Maria Beatriz Marques
Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra
beatrizmarques35@hotmail.com
A cultura foi, e será sempre, o fator distintivo e, em simultâneo, unificador entre os diversos povos das diferentes regiões do planeta.
Desde a língua à gastronomia, da música à literatura, do teatro, ao cinema, da pintura à religião, etc., os hábitos culturais são identitários e constituem o valor acrescentado dos diversos sistemas culturais e a razão para a sua sobrevivência.
A sociedade em que vivemos pretende, ainda que na nossa opinião apenas aparentementemente, acentuar o papel dos diferentes sistemas culturais na sedimentação da paz e no respeito pela identidade das minorias do centro e das periferias das cidades, dos países, dos continentes e do mundo, no seio de sociedades desenvolvidas e “democráticas”.
Naturalmente, e como muito bem referiu Abraham H. Maslow1, o ser
humano tem diversas necessidades que têm de ser satisfeitas cumulativamente. De acordo com este autor, as necessidades humanas estão organizadas e dispostas em níveis, numa hierarquia de importância e influência.
A sua hipótese básica é que, em cada pessoa, existe, ainda que potencial- mente, uma hierarquia de cinco necessidades humanas. Essa hierarquia pode ser visualizada como uma pirâmide, constituída na sua base pelas necessidades primárias e no seu topo pelas necessidades secundárias. O comportamento hu- mano é guiado pela satisfação equilibrada destes diversos níveis de necessidades.
Assim, em zonas desfavorecidas economicamente ou em zonas de conflito, ou atingidas por desastres naturais, a principal prioridade é assegurar que neces- sidades básicas, como comida, abrigos e cuidados de saúde, sejam garantidas à população. Mas, a médio prazo, esta prioridade torna-se cada vez menos eficaz no domínio da motivação e da satisfação dos seres humanos.
Esta evidência conduz à necessidade de subir na hierarquia da pirâmide e colmatar as necessidades, ditas secundárias, dos cidadãos que pouco têm a perder e que valorizam de sobremaneira aspetos considerados, muitas vezes, como menores no chamado 1º mundo.
A criação de diversas ONG’s, que operam nos mais mais diversos ramos ou setores de atividade, ajuda a colmatar, nas mais distintas situações limite, necessidades de natureza diversa, e contribui para a felicidade dos seres huma- nos carenciados.
Assim surgiu a organização sem fins lucrativos Libraries Without Borders (Bibliotecas Sem Fronteiras)2, cujo objetivo é tornar a cultura, a formação e a educação acessíveis às pessoas das mais diversas faixas etárias, géneros, nacionalidades, etc., que, e infelizmente, ficam durante largos anos isoladas nos campos de refugiados, estimulando-as a ultrapassar as dificuldades inerentes a esta situação.
Também a nível local e nacional surgem organizações com objetivos simil- ares, como é o caso das Bibliotecas de Leitura Pública, as quais visam, a nível municipal ou concelhio, satisfazer ou colmatar as diversas necessidades culturais e sociais que vão surgindo ao longo dos tempos.
Implícita a esta noção de responsabilidade pública está a visão democrática desta instituição como um centro local de informação onde não possa existir qualquer tipo de descriminação, designadamente de idade, raça, sexo, religião, língua ou condição social3.
A Missão destes sistemas de informação:
“combaterem a incultura e a ignorância das comunidades locais, através da disponibilização de todos os tipos de manifestações artísti- cas que pudessem contribuir para elevar o bem estar das populações, para conservar os valores da cultura local e sobretudo para envolver recreativamente todos os segmentos da comunidade, que pelas mais diversas razões se encontravam alheados do mundo das bibliotecas” (Marques, 2012: 16).
Os sinais de modernidade, anunciados em 1789 pelos ideais subjacentes à Re- volução Francesa – Liberdade, Igualdade e Fraternidade –, parecem cada vez mais longe de serem concretizados e a esfera pública de que nos fala Habermas4 deu lugar a individualismos, nacionalismos exarcebados, fanatismos reliogiosos, etc.; daí a necessidade de falarmos na necessidade de criar novos paradigmas, pósmodernos, com novos valores, na sua maioria de natureza imaterial ou espiritual, ou com a re- cuperação de antigos valores, entretanto esquecidos pela sociedade capitalista e pelo chamado “capitalismo informacional” (Castells; Majer & Gerhardt, 2000).
“A informação é um conhecimento inscrito (gravado) sob a forma escrita (impressa ou numérica), oral ou audiovisual. A informação com- porta um elemento de sentido. É um significado transmitido a um ser consciente por meio de uma mensagem inscrita em um suporte espacial- temporal: impresso, sinal elétrico, onda sonora, etc. Essa inscrição é feita graças a um sistema de signos (a linguagem), signo este que é um elemento da linguagem que associa um significante a um signifcado: signo alfabético, palavra, sinal de pontuação [...], que vende-se bem.” (Le Coadic, 1996: 1,5)
O obscurantismo político, económico, social em que o país se viu mergu- lhado a partir do golpe militar de 1926, com a instauração da ditadura em Portugal, e até ao 25 de Abril de 1974, manifestou-se em todos os domínios e setores da atividade cultural.
O acesso à cultura era limitado em todas as suas manifestações. A elevada taxa de analfabetismo, a inexistência de televisão, o número reduzido de esta- ções de rádio, de jornais, de revistas, etc., convinha de sobremaneira ao poder instituído, pois dessa forma a mensagem política transmitida era aceite sem qualquer tipo de contestação.
A partir de 28 de Maio de 1926 impôs-se, de uma forma clara, a proibição de todas as doutrinas imorais e que pusessem em causa a segurança do Estado. Todas as ideias “ditas” modernistas eram censuradas e limitava-se significativa- mente o acesso a toda a informação sobre o que se passava no mundo.
Muita da informação sobre a 1ª e a 2ª Guerra Mundial era conhecida em Portugal através de canais de comunicação clandestinos ou da estação radiofó- nica BBC, a qual era escutada em situações muito limitadas da esfera privada e apenas por quem possuía aparelhos de rádio.
No domínio do cinema, ao longo de quase todo o século XX, a produção e distribuição de filmes e documentários foi controlada pelo poder central: dos exibidores ambulantes aos cineclubes.
O acesso à informação, independentemente do suporte em que ela se en- contrava registada (papel, filme, som), era controlado pelos respetivos órgãos inquisitoriais.
Apesar da Assembleia Nacional criar, em 1971, na dependência da Secretaria de Estado da Informação e Turismo, o Instituto Português de Cinema (I. P. C.)5, “que exercerá as suas atribuições, sem prejuízo das conferidas por lei aos organismos corporativos e das que pertençam a outros departamentos do Estado”, este facto em pouco veio alterar esta política de centralização e controle da informação veiculada.
A preocupação deste Instituto era, naturalmente, a proteção dos filmes portugueses, realizando-se um controle, quase absoluto, do cinema estrangeiro exibido em Portugal, o qual, para além de ter de ser obrigatoriamente legendado, exigia a existência de um visto.
Na linha política vigente, os objetivos subjacentes aos filmes apoiados pelo
I.P.C. seria o de “serem representativos do espírito português, quer traduzam a psicologia, os costumes, as tradições, a história, a alma colectiva do povo, quer se inspirem nos grandes temas da vida e da cultura universais”.
No caso das Bibliotecas Públicas (BP) portuguesas, a situação era muito
semelhante à que se vivia no domínio cinematográfico, pois o objetivo do poder em exercício era o de fazer difundir a informação que lhe era favorável e o de obstaculizar o acesso a ideias que pusessem em causa o seu status quo.
Com a instalação da ditadura em Portugal também ocorreram alterações significativas no domínio da política do livro e da leitura, surgindo uma nova reforma das Bibliotecas e Arquivos, a qual, de acordo com MELO, marca um retrocesso na política de leitura6, verificando-se um aumento significativo da censura.
“A limitação no acesso à informação contrária às ideias do regime e que conferisse poder aos cidadãos, foi desde sempre uma constante ao longo da história geral das Bibliotecas e, naturalmente, das Bibliotecas portu- guesas, pondo assim em causa a longevidade destas instituições liberais” (Marques, 2012: 44).
Assim, apesar desse retrocesso das mudanças das ideias liberais – que se fizeram sentir a partir da segunda metade do século XIX e que conduziram à criação das chamadas Bibliotecas Populares e à Inspecção-Geral das Bibliotecas e Arquivos Públicos (IGBAP), órgão criado em 29 de Dezembro de 18877 –, e do revivalismo dos ideais republicanos, durante este período crítico da História das BP portuguesas, foi criada muita legislação neste domínio específico.
“Os objetivos principais de toda esta legislação produzida durante a ditadura militar no domínio das Bibliotecas eram a conservação do patri- mónio bibliográfico do país e a centralização política, daí que para além de promover o gosto pela leitura, o grande objetivo das bibliotecas seria o de reduzir ao máximo a possibilidade de sociabilização dos indivíduos, desviando o povo dos lugares de reunião inconvenientes, como tabernas, casas de tavolagem e centros perniciosos8 para a estabilidade do regime” (Marques, 2012: 49-50).
A exemplo do que tinha acontecido nos países berço das BP – em Inglaterra e nas suas colónias americanas, o regime salazarista pretendia evitar qualquer conflito, derivado por exemplo, do consumo excessivo de álcool ou da partilha de ideias em locais públicos, nomeadamente nas tavernas.
O obscurantismo cultural referido apenas foi combatido significativamente pela ação da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG)9 que, através do seu Serviço de Bibliotecas Itinerantes, criado em 1958, combatia este deserto cultural em que vivia o pais.
“Consciente da ausência de infra-estruturas ao nível da política portuguesa do livro e da leitura, Branquinho da Fonseca11 inaugura em 1958 o Serviço de Bibliotecas Itinerantes da FCG12, o qual percorria todo o território continental e ilhas adjacentes” (Marques, 2012: 51).13
“La información y el conocimiento no sólo se han convertido en la fuerza principal de transformación social, sino que son la promesa de que muchos de los problemas que viven las sociedades humanas pueden verse aliviados de manera importante, si tan sólo la información y habi- lidades son empleadas y compartidas de manera sistemática y equitativa” (UNESCO, 2002).
Assim, só a partir dos finais do século XX é que assistimos à criação de verdadeiras BP, dignas desse nome, através do lançamento de uma rede, con- substanciada no Programa do X GC, que incluía, entre as Grandes Opções do
Plano de 1986, a dinamização de uma política nacional do livro através de um conselho coordenador que integrasse todos os organismos oficiais intervenientes nesta área15.
Na sequência destas recomendações, é produzido um relatório intitulado Leitura Pública – Rede de Bibliotecas Municipais, o qual lançava os fundamentos teóricos e práticos do conceito de leitura pública:
“A criação da Rede Nacional de Leitura Pública, em 1987, que dá corpo aos movimentos associativos que se começam a gizar a partir de 1983, é o ponto de partida para a criação de infraestruturas que contribuíssem para o progresso e para o desenvolvimento sustentado das comunidades locais” (Marques, 2012: int.).
Este documento considerava que:
“[...] todas as iniciativas legislativas levadas a cabo até então tinham resultado numa imensa necrópole [...] de piedosas intenções logo à partida condenadas ao fracasso” (1986: 9-10).
A leitura pública era entendida neste relatório como sendo uma questão de natureza estrutural para a afirmação da jovem democracia, sendo o Estado apontado como o promotor e o garante de uma nova política para o setor das BP, enquanto as autarquias surgiam como os protagonistas mais diretos e interessados das ações a desenvolver16.
Também neste relatório eram apresentadas algumas diretivas relativamente às áreas funcionais17, aos fundos documentais e ao pessoal necessário, as quais eram consideradas como requisitos básicos para a criação das novas Bibliotecas.
Este estudo passou a constituir a base do Programa Rede Nacional de Bibliotecas Municipais, mais tarde designado por RNLP – Rede Nacional de Leitura Pública, a qual foi instituída tendo por base o número de habitantes de cada concelho.
O indicador de natureza quantitativa era, à época, aquele que permitiria uma rápida e eficaz agilização do processo, tendo em conta a necessidade de aceder em tempo útil aos fundos comunitários que foram disponibilizados na sequência da entrada de Portugal na CEE18.
A partir de 198719, operacionaliza-se a proposta contida no Relatório de 1986 e o Estado e as autarquias assumem as suas responsabilidades específicas no domínio da Leitura Pública, através da criação da RNLP e da reestrutura- ção do IPL (criado em 1980), transformado agora (através do Decreto Lei nº, 71/87 de 11 de Fevereiro) em Instituto Português do Livro e da Leitura (IPLL).
De acordo com Melo,
“A RNLP representa o corolário da evolução de dois movimentos: o da democratização política (com o reforço do poder local municipal e a aceitação pelo Estado central de uma maior partilha de poderes e compe- tências) e o da democratização cultural (apostando no desenvolvimento individual e social, numa estrutura difusora de várias actividades cultu- rais e próxima das populações)” (Melo, 2004.B: 349).
Com o projeto da RNLP pretendia-se, em primeira instância, fazer desvanecer as assimetrias que separavam o interior do litoral do país, nomeadamente no que concerne ao fornecimento de bens culturais por parte do Estado.
A lógica subjacente a este projeto era a da partilha e acesso a um património muitas vezes esquecido pelos órgãos do poder local e porquanto inacessível a uma grande maioria de cidadãos, que residiam em zonas mais desfavorecidas do país, de difícil acesso ao livro e à leitura e onde as próprias livrarias eram praticamente inexistentes.
Assim, no inicio dos anos 90, comprar um livro, uma revista ou qualquer outro suporte de Informação em Trás-os-Montes, no Alentejo ou na zona do Pinhal Interior Norte ou do Pinhal Interior Sul, era não só um exercício de poder económico, mas também um problema de acesso aos poucos canais de distribuição existentes.
Neste contexto, muitos dos municípios portugueses viram-se dotados de equi- pamentos, em alguns casos “megalómanos”, que passaram a constituir o “ex libris” das cidades, assumindo-se, em muitas cidades, como o mais belo e o maior edifício.
De acordo com os diversos Programas-tipo, as suas áreas funcionais con- templavam grandes auditórios, na maioria dos casos sem ocupação ou qualquer tipo de programação cultural prevista, dotados de condições acústicas, espaciais, etc., propícias a diversas manifestações artísticas, nomeadamente à projeção de filmes e documentários.
Nesta linha de argumentação, mais do que a construção de infraestruturas físicas, impunha-se uma nova atitude, uma nova mentalidade ao nível da gestão destes equipamentos autárquicos, assente em mecanismos cooperativos, em ideias globalmente definidas e estrategicamente aplicadas em cada realidade local, tendo por finalidade a prossecução do objetivo comum de criar há- bitos de leitura, aqui entendida como um fenómeno global e transversal às diferentes épocas, às diferentes necessidades e às suas manifestações, e que permitissem o desenvolvimento harmonioso do indivíduo, a transformação e o progresso da humanidade.
A primeira e grande preocupação destas bibliotecas que começaram a surgir ao longo do território nacional era a de permitir o acesso à informa- ção registada, presencial ou, seguindo a tradição das Bibliotecas Itinerantes da FCG, através de um serviço de empréstimo domiciliário, que abrangia, quase exclusivamente, o suporte impresso, desde livros, sobretudo de litera- tura portuguesa, a revistas e jornais subordinados às mais diversas temáticas, designadamente os lavores e o desporto.
Paulatinamente, e de acordo com os pressupostos prescritos pelo Manifesto da Unesco para a Leitura Pública, foram introduzidos novos suportes da infor- mação, nomeadamente o audiovisual.
A partir da última versão do Manifesto, de 1994, a Biblioteca Pública (BP) passa a desenvolver toda a sua missão ao longo de 4 eixos fundamentais, a saber: Informação, Alfabetização, Educação e Cultura.
Todavia, durante os primeiros anos de vida destes equipamentos, a grande aposta era a função educativa, daí a ligação estreita à escola e à população infanto-juvenil, fazendo uso exclusivo do suporte impresso.
Tendo em conta o elevado grau de analfabetismo da população portuguesa, decorrente das dificuldades em aceder ao sistema de educação e ensino durante o período da ditadura, foram criadas diversas atividades, nomeadamente a designada “Hora do Conto”, que visava atrair para a leitura todos aqueles que ainda não sabiam ler, pretendendo desta forma enraizar os hábitos de leitura desde as mais tenras idades.
Mas a pergunta que desde então e até hoje se coloca é a de saber se basta contar uma história para que a informação contida num livro tenha algum impacto no imaginário infantil ou adulto.
Ora, saídos do obscurantismo em que vivemos durante cerca de 48 anos21, impunha-se a estes equipamentos culturais que assumissem a Missão de verdadeiros centros culturais para as populações, em muitos casos ainda analfabetas e que não tinham, a não ser através destes espaços, a possibilidade de aceder a manifestações da arte, da escrita, da pintura, da escultura, do cinema, etc.
No entanto, e pelas razões enunciadas, nomeadamente a inexistência de Bibliotecas nas Escolas dos diversos níveis de ensino, a ligação às escolas e ao sistema educativo em geral, aos alunos, aos professores foi a grande, senão a única função destas primeiras Bibliotecas de Leitura Pública.
Só a partir de 1997, com o Programa do XIII GC (1995-1999) que conduzia ao restabelecimento do Instituto Português do Livro e da Leitura e da Biblioteca Nacional de Lisboa como instituições autónomas e de vocações distintas e preconizava o incremento da rede nacional de leitura pública, articulando-a com uma rede de bibliotecas escolares a instituir em colaboração com o Ministério da Educação22, é que a BP vai conseguir reunir as condições necessárias para assumir integralmente a Missão e as funções que lhe estavam consignadas no Manifesto da Unesco para a Leitura Pública.
Graças ao lançamento da Rede de Bibliotecas Escolares, em 1997, a BP passa a ser considerada, a par da biblioteca escolar, um subsistema do sistema nacional de infor- mação e assume definitivamente a sua Missão como um centro cultural com funções ativas na transformação das diversas linguagens da Informação em Conhecimento.
Assim, inerente ao conceito de leitura pública, estava o seu caráter abrangente, não só em termos de público alvo, mas também em termos do próprio conceito de leitura, que, a partir de então, deixa de se limitar à palavra escrita, à descodificação dos signos, e estende-se a tudo o que possa ser passível de atribuição de sentido, de interpretação, desde filmes, a músicas, gestos, imagens, pessoas, paisagens, etc., e que contribui para melhorar a nossa forma de ver o mundo e de o experienciar.
Daí o caráter plural e único da leitura que permite a quem vê um filme, ou lê um livro, aprender, desaprender e reaprender de acordo com os fatores exógenos e endógenos em que o filme é visto ou o livro é lido. Sendo este fenó- meno comum a todos os indivíduos e nos diversos momentos, apela a diversos sentimentos do ser humano, como o amor, a raiva, a angústia, alegria, medo, etc., em função do momento e do contexto da leitura.
Este caráter plural da leitura, que já tinha sido anunciado pelas categorias expressas por Roland Barthes e Antoine Compagnon, aliado à criação da Rede de Bibliotecas Escolares, parecia anunciar uma verdadeira revolução na metodologia de ensino e aprendizagem, abrindo caminho ao aparecimento de uma Nova Sociedade da Aprendizagem, onde as competências no domínio da informação, para além de se assumirem como a ferramenta essencial do ser humano no século XXI, constituiam a chave de acesso ao conhecimento e ao desenvolvimento social, político, económico, tecnológico e cultural:
“Ler é uma técnica de descodificação porque pressupõe uma apren- dizagem; Ler é uma prática social pelo que foi sempre “um operador de discriminação social”, e como padrão do tempo da comunicação, da memória, do segredo, só podia ser um “instrumento privilegiado do poder”; Ler é uma forma de gestualidade associada a uma determi- nada posição do corpo, que significa uma ocupação de tempos livres, um prazer, um trabalho, um passatempo, etc.; Ler é uma forma de sabedoria, dado que é uma via para a comunicação entre o sujeito e um “tesouro” (de conhecimento, de pensamento); Ler é um método e então ler quer dizer “ler bem”, a actividade de leitura como desenvol- vimento da inteligência crítica. Ler é um método intelectual destinado a organizar um saber, um texto, e a restituir-lhe todas as vibrações do sentido contidas na sua letra; Ler é uma actividade voluntária, desenvolvida sem espírito de troca, de rentabilização, e apenas pelo prazer do leitor.”23
Paralelamente ao desenvolvimento das Bibliotecas de Leitura Pública, o Cinema também assiste a um crescendo no seu grau de importância e reco- nhecimento como uma fonte privilegiada de Cultura. Foram aparecendo em Portugal, ainda que com uma elevada concentração geográfica, muitas salas de cinema nos centros urbanos, designadamente em Lisboa, Porto e na sua área metropolitana, nas grandes cidades algarvias, no centro e na região norte e ilhas (VER ANEXO 1). As zonas rurais do interior norte, centro e sul ficavam sem acesso a muitas destas manifestações artísticas, nomeadamente ao cinema.
Impossibilitadas, durante largos anos, de permitirem o empréstimo de suportes audiovisuais, muitas das novas bibliotecas pertencentes à RNLP, sobretudo as das cidades do interior, foram criando dias ou semanas específicas para projeção de filmes que já tinham deixado os circuitos comerciais e que permitiam a estas populações marginalizadas o acesso à informação cinematográfica.
Neste âmbito, foram estabelecidos diversos protocolos entre as Bibliotecas do interior e os distribuidores nacionais de filmes, no sentido de satisfazer uma necessidade dos grupos marginalizados da sociedade por razões relacionadas com a sua interioridade geográfica.
Todavia, a partir de meados dos anos 90 e sobretudo na 1ª década do novo milénio, com a vulgarização do acesso da Internet no nosso país, muitas das salas de cinema entretanto criadas foram fechando sucessivamente devido à falta de clientes. Um dos argumentos também invocados para a redução do número de espetadores nas salas de cinema foi o elevado preço dos bilhetes numa época de recessão económica do país. e mais recentemente o aparecimento dos sistemas de videoclubes disponíveis em todos os distribuidores de televisão por cabo24.
Naturalmente que esta nova realidade conduziu ao encerramento da quase
totalidade das cadeias nacionais e internacionais de videoclubes, como foi o caso, e a título de exemplo, a Blockbuster, e, como referimos anteriormente, ao encerramento de muitas salas de cinema, sobretudo nos centros cívicos, algumas delas com um caráter histórico e patrimonial de valor elevado, e à sua deslocação para as periferias das cidades, nomeadamente para os novos locais de consumo, como o são os centros comerciais - Shoppings.
Neste contexto surgem imensas notícias dando conta desta nova situação e reagindo contra a inércia do poder local e nacional em relação a este fenómeno:
“Até aos anos 80 as salas estavam cheias mas, nos anos 90, começa a sentir-se uma quebra no público. Atualmente o Porto não tem nenhuma sala de cinema tradicional que passe filmes diariamente, exceto o Cinema Carlos Alberto e o Passos Manuel, que passam cinema uma vez por se- mana. Muitas dessas grandes salas que fizeram furor nos anos 60 e 70 fecharam, outras foram vendidas e algumas são alugadas ocasionalmente para a realização de outros eventos. No início do ano de 2013 encerraram por todo o país 49 das 106 salas de cinema, que a exibidora Socorama Castello-Lopes detinha. São cerca de metade das salas da Castello-Lopes que já fecharam portas, tendo levado ao despedimento de 75 trabalha- dores. Há casos verdadeiramente alarmantes de regiões de Portugal sem um único cinema comercial, são disto exemplo, Viana do Castelo, São João da Madeira, Covilhã, Leiria, Loures, Seixal, Guia e Ponta Delgada (os Açores ficam assim sem cinemas comerciais). Estes 49 cinemas multiplex já não exibem filmes desde o dia 31 de janeiro de 2013”25.
“O cinema sofreu em 2013 uma quebra de 9,2% de espectadores e desceu 11,4% nas receitas de bilheteira em 2013, uma tendência terá piorado em 2014. O cinema americano domina. As salas de cinema por- tuguesas sofreram em 2013 uma quebra de 9,2% de espectadores, tiveram menos 12,1% sessões e desceram 11,4% nas receitas de bilheteira, indicam os dados do Instituto Nacional de Estatística (INE)”26.
“As salas de cinema registaram 12 milhões de espectadores e 62,7 milhões de euros de receita de bilheteira em 2014, sendo os piores va- lores de consumo desde 2004, segundo dados do Instituto do Cinema e Audiovisual (ICA). O ICA divulgou hoje as estatísticas da exibição de cinema em Portugal em 2014 e o que se verifica é uma nova quebra na ida dos portugueses ao cinema, comparando com 2013. Mas se a compa- ração for feita com 2004 a quebra é ainda mais acentuada. Em 2004, foram contabilizados 17,1 milhões de espectadores. Em 2014 foram pouco mais do que 12 milhões (12.065.374). No que toca à receita bruta de bilheteira, os valores desceram de 71,1 milhões de euros (2004) para 62,7 milhões de euros (2014). Segundo dados do ICA, em 2014 cada sessão de exibição de cinema contou, em média, com 20 espectadores… Lisboa, Porto e Setúbal são os distritos que registam maior número de espectadores, assim como um maior número de salas, embora em média tenham sido emitidos 22 bilhetes sessão”27.
“As salas de cinema registaram, até novembro, 12,8 milhões de espe- tadores e 66,2 milhões de euros de receita de bilheteira, ultrapassando os dados da totalidade de 2014, Depois de, nos últimos anos, se ter registado uma quebra consecutiva na ida dos portugueses ao cinema, 2015 revela um aumento no consumo de filmes em sala comercial. Embora falte ainda contabilizar o mês de dezembro, a exibição comercial de cinema soma mais espetadores e receitas, em 11 meses deste ano, do que em 2014”28.
A informação contida nestas notícias, juntamente com os dados recol- hidos na PORDATA, apesar de poderem ser alarmantes do ponto de vista comercial, em lugar de nos conduzirem a visões catastróficas em termos do futuro do cinema e, sobretudo, das salas de cinema em Portugal, devem levar-nos a uma reflexão profunda, a qual tem por base a afirmação proferida pelos promotores deste livro de que “o cinema e a linguagem cinematográfica não se encerram no plano de um ecrã, nem se completam com a obra finalizada e exibida”.
Assim sendo, e no que diz respeito a esta crise generalizada no setor cultural,
poucos clientes no teatro, no cinema, nas bibliotecas, nos museus, etc., somos obrigados a repensar o papel dos seus vários agentes, das múltiplas linguagens do século XXI e na necessidade de criar sinergias diversas que conduzam a um reposicionamento e a um aprofundamento das necessidades dos cidadãos no século XXI.
Ora, para que os indivíduos e as organizações, enquanto seres vivos, neste caso de estudo o cinema e as Bibliotecas, possam sobreviver neste ambiente turbulento e recuperar o equilíbrio ou a ordem original, têm de ser mais
flexíveis, mais dinâmicos e mais capazes de se adaptarem às mudanças, cada vez mais rápidas, complexas e, por vezes, radicais do meio envolvente.
No novo milénio, privilegiam-se as parcerias, os consórcios, as alianças, a cooperação entre as diversas organizações, no sentido de agilizar os procedi- mentos administrativos, de incrementar a transparência e a sustentabilidade da sua existência e desenvolvimento29, de aumentar a sua capacidade criativa e produtiva e, sobretudo, de justificar os recursos utilizados (humanos, materiais e financeiros) em função dos benefícios obtidos.
Esta nova realidade implica a adoção de uma atitude proativa em relação aos recursos disponíveis no planeta e, no caso concreto em análise, uma aproxima- ção e uma articulação entre todas as manifestações e Instituições de Memória.
“A sobrevivência de cada organização resulta da sua capacidade para se adaptar, da sua maior ou menor flexibilidade para reagir a cada ciclo social, através da busca permanente de um equilíbrio entre a sua missão e os valores da sociedade em que está inserida. É este processo contínuo de aprendizagem e melhoría, entre os diversos sistemas individuais e o macrossistema social em que estão inseridos, que permite a criatividade e a inovação das organizações e dos subsistemas que as constituem. Por isto, o estudo das diversas organizações é indissociável da análise das necessidades intrínsecas de cada sociedade, em cada momento histórico” (Marques, 2013: 388).
No que se refere à importância dos Arquivos neste processo de renovação da Administração Pública, Porto Ancona, 2010, p. 250, afirma que “la alfabetización, inclusive la digital, el impacto administrativo de los registros electrónicos, entre otras cuestiones, deben considerarse dentro del inven- tario actual de la ciudadanía y de la transparencia de las acciones públicas. El control informal de la administración de la esfera pública no se limita más a los medios masivos de comunicación. El ciudadano común puede, a través de la democratización del acceso a las nuevas tecnologías, funcionar como un importante contrapeso social y demandarle más transparencia a la administración pública... No basta con que haya un registro sistemático de las acciones: es necesario que estén organizados y sean accesibles.”
“O conhecimento serve primeiramente para nos conhecer melhor, a nós mesmos e todas as nossas circunstâncias, conhecer o mundo. Serve para adquirirmos as habilidades e as competências do mundo do trabalho, serve para tomar parte nas decisões da vida em geral, social, políti- ca, econômica. Serve para compreender o passado e projetar o futuro. Finalmente, serve para nos comunicar, para comunicar o que conhecemos, para conhecer melhor o que já conhecemos e para continuar aprendendo” (Gadotti, 2005, p. 46).
"Se a Internet constitui o grande oceano do novo planeta informa- cional, é preciso não esquecer dos muitos rios que a alimentam: redes independentes de empresas, de associações, de universidades, sem esquecer as mídias clássicas (bibliotecas, museus, jornais, televisão etc.)" (Lévy, 1999, p.126).
No âmbito desta análise, quer as bibliotecas, quer o cinema, quer todas as outras manifestações artísticas têm de ser reinventadas no sentido de satisfazerem as expetativas, as necessidades e, sobretudo, os desejos dos nativos digitais.
Contrariamente ao que acontecia no século passado, em que a priori- dade era o acesso à informação contida nos diversos contentores, hoje importa transformar essa informação em conhecimento, isto é, ajudar a sociedade a ver o mundo e a viver neste mundo de acordo com novos valores, novas atitudes e novos comportamentos.
Nesta perspetiva, torna-se prioritária a aposta numa Geografia Cultural, pois a magia de um livro, de um filme, etc, não se esgota na sua leitura ou no seu visionamento, mas na sua capacidade de conduzir ao progresso da humanidade e ao bem estar e à felicidade dos indivíduos. Ambos se assumem como verdadeiros te- souros para a compreensão dos comportamentos, das visões do mundo, dos valores, das ideologias dominantes numa determinada sociedade.
Assim, as BP têm de reocupar o seu papel ancestral de intermediários entre a produção intelectual do homem e o seu conhecimento, ou seja, entre os produtores de informação e os seus leitores, entendidos na sua aceção mais lata, transformando os recursos informativos em riqueza e desenvolvimento sustentável.
Daí a indispensabilidade de interligar o estudo da função educativa com as funções informativa, de lazer e de entretenimento, como o melhor caminho para se entenderem algumas eventuais formas de censura, que cada vez se vão fazer acentuar mais fruto das ameaças crescentes da Sociedade Digital.
A título de exemplo, e porque na sociedade em epígrafe, a informação – acedida, processada, construída, desconstruída e reconstruída – é cada vez mais fonte de poder podemos citar uma das muitas consequências da recente tensão entre os EUA e a Rússia, sendo que esta, “suspendeu a cooperação entre a Biblioteca Presidencial Boris Iéltsin e a Biblioteca do Congresso norte-americano, bem como dei- xará de transmitir aos Estados Unidos cópias digitais de filmes raros da coleção do Fundo Estatal de Cinema Russo (Gosfilmofond). Ambas as decisões foram tomadas devido às sanções impostas contra as au- toridades russas, empresários e membros do Parlamento russo após a anexação da Crimeia pelo país.”
Como comentou Vladímir Kójin, diretor do grupo de trabalho responsável pela cooperação entre a Biblioteca Boris Iéltsin e a Biblioteca do Congresso, “As sanções significam uma perda para ambos os lados. Neste caso, principalmente para o lado americano”.
Kójin lembrou que em 2010 a Rússia doou aos americanos cópias digitais de dez filmes que foram retirados dos EUA e posteriormente extraviados. Entre as obras raras extraviadas estavam produções de diretores de cinema mudo como James Cruz, Rex Ingram, George Fitzmaurice e Victor Fleming. As películas eram exibidas nos cinemas soviéticos na década de 1920 e eram até então mantidas no Gosfilmofond:
“Chegam a nós não somente filmes russos, mas também todos aqueles que estão em exibição no país. Nossa coleção está registrada no Guiness, o Livro dos Recordes, como o maior repositório de filmes do mundo. Americanos, alemães e japoneses viajam até aqui para ver filmes que em seus países já não são mais encontrados”, relatou o diretor do Gosfilmofond, Nicolai Borodatchov.
Percebemos claramente a partir destas afirmações que a transversalidade da Geografia cultural implica uma partilha de recursos e uma concentração de sinergias que transformem os Territórios do Cinema em fenómenos globais que extravasam as fronteiras físicas dos equipamentos tradicionais e das fronteiras nacionais e regionais e transmitem informações com significados diferentes consoante a interpretação que lhes é dada, ou seja o conhecimento construído:
"A passagem da Sociedade da Informação para a Sociedade do Conhecimento implica que a informação acedida provoque uma trans- formação proativa no indivíduo e na sociedade. Não basta aceder, avaliar e usar a informação disponível à escala global, é preciso que ela conduza à felicidade do ser humano, garantindo a preservação dos seus valores, da sua identidade e direitos fundamentais como a liberdade, a segurança, a privacidade, etc.“ (Marques, 2016:11).
Assim surge a necessidade crucial dos mediadores30 e mediados, que se assu- mem como os únicos capazes de criar, de inovar e dessa forma acrescentar valor às organizações, aumentando a sua qualidade, competitividade e produtividade. A função de mediação da informação31 é entendida como
Do latim mediatior, que significa aquele, ou aquilo, que medeia ou intervém, o intermedi- ário, ato ou efeito de mediar, intermediação.
Ainda que de uma forma passiva ou estática, de levar informação de um lado para o outro. Do latim mediatio, substantivo feminino que significa ato ou efeito de mediar, intermediação.
“toda la acción de interferencia - realizada por el profesional de la información - directa o indirecta; conciente o inconsciente; individual o colectiva; que propicia la apropiación de la información que atienda, plena o parcialmente, una necesidad informacional de los utilizadores” (Almeida Júnior, 2007: 30).
Neste contexto, as BP começam a associar às suas funções tradicionais, a função de mediação entre os contentores e os conteúdos, acrescentando valor à informação que eles transportam, independentemente do suporte em que esta se encontra registada.
A par das apresentações de livros, comentadas pelos seus autores, da tradi- cional “Hora do Conto” referida, destinada a um público que maioritariamente ainda não sabe ler, estas iniciativas começam a ser replicadas e renovadas, dando lugar a iniciativas destinadas a um público de idade cada vez mais avançada que, pelas mais variadas razões, não consegue ler.
É importante relevar que, da mesma forma que se aprende a ler um livro, a interpretar as palavras, as frases, os parágrafos, também se aprende a ver um filme, a decifrar tudo aquilo que está para além dos cenários, para além das representações, etc., e a criar uma consciência crítica sobre aquilo que se vê, que se lê ou que se ouve.
Paralelamente, surgem novas atividades, destinadas à leitura de outras linguagens ou linguagens alternativas para ver e interpretar o mundo, para além da linguagem escrita, como a linguagem cinematográfica, dirigidas a vários segmentos da população – crianças, jovens e idosos, cujo critério são os conteúdos exibidos, como os “Ciclos de Cinema”, alguns de natureza temática, como o do Porto, criado em 2010 e comissariado pelo realizador e crítico de cinema Lauro António, cujo sucesso tem vindo a aumentar de ano para ano, tendo tido na 1ª temporada uma média de 80 pessoas por sessão e em 2012 uma média de 120.
Estes ciclos de cinema, maioritariamente de entrada gratuita, que se realizam periodicamente, uma vez por dia, uma vez por semana, uma vez por mês, etc., nos espaços físicos das BP – auditórios –, ou mesmo ao ar livre,32 pretendem, mais do que o acesso à informação – paisagens, lugares, realizadores, atores, músicas, obras, etc. -–, a descodificação das mensagens contidas nos conten- tores, sejam eles livros, revistas, filmes, sítios Web, etc., a partir dos olhos, das perceções, das experiências, das expetativas, dos valores dos espetadores.
Assim, a visualização de filmes nas Bibliotecas tem, ou deverá ter, uma função substancialmente distinta da visualização de filmes em salas de cinema, destinadas a massas, ou no espaço privado de um lar, através da televisão ou de um computador.
Para que tal possa acontecer, é necessário acrescentar valor à informação ou ao valor original ou primário do conteúdo visionado. O objetivo primordial desta atividade será a criação de uma consciência crítica, de um crescimento individual e/ou coletivo, em suma, de conhecimento.
A leitura que fazemos do acesso à cultura é muito mais do que ter acesso à informação. Aliás, defendemos mesmo que o acesso a volumes exacerbados de informação pode ter o mesmo efeito dos tempos da ditadura, isto é, conduzir-nos ao lado mais perverso da Sociedade da Informação, que é o crescente fenóme- no da iliteracia ou analfabetismo funcional, à ignorância e à “colonização” da Sociedade Global por uma elite de privilegiados.
Assim, as BP assumem-se como espaços únicos da esfera pública onde se dá voz às minorias e se questiona o poder instituido nos mais diversos domínios. O caso do cinema é absolutamente ilustrativo dos efeitos nocivos da globali- zação, traduzidos no esquecimento a que se viu condenado o cinema francês, espanhol, italiano, etc., em nome do gigante da indústria cinematográfica que é Holywood.
Ora, para que a cultura assuma o seu papel original de fator de desenvol- vimento sustentável, de riqueza dos povos, de elemento diferenciador e que contribua substancialmente para o PIB33 nacional e mundial, ela tem de se assumir como um agente ativo para a resolução dos problemas humanos, para a redução da pobreza, do desemprego, da solidão, dos crimes, das guerras, etc.
Na prossecução deste objetivo, deverá munir-se de todas as ferramentas es- tratégicas disponíveis para a afirmação de valores locais, nacionais e universais, para a obtenção de consensos, para a divulgação de mensagens, nomeadamen- te através de um novo tipo de Marketing, definido como Marketing 3.0 ou Marketing espiritual, onde as pessoas são compreendidas como seres humanos num todo, com mentes, corações e espíritos. Pessoas que têm necessidades e esperanças que nunca devem ser negligenciadas, pessoas que precisam de com- preender o significado da sua vida, pessoas que, e contrariamente ao que se passava na Sociedade Industrial, não encontram a felicidade nos bens materiais, mas nos valores espirituais.
Assim, a cultura tem de reivindicar o seu papel crucial na Sociedade do Conhecimento, aliando o lazer, o entretenimento e, por exemplo no caso do cinema, interpretando-o não apenas como um complemento a obras literárias, mas como uma das formas de criar e/ou recriar ideologias, fundamentar e despoletar movimentos de consciência cívica, de cidadania verdadeiramente solidária e democrática.
Neste contexto, os debates que se seguem ao visionamento da imagem, estimulando a dinâmica de grupo através do método de “brainstorming”, são determinantes para aumentar a criatividade e a inovação e, sobretudo, para formar opiniões, para a construção de uma Sociedade crítica em relação a um projeto de grupos que dominam o poder público e privado e de alguns países, nomeadamente os EUA (Hollywood), cuja manipulação excessiva conduz à desinformação e aos aspetos negativos de uma globalização “canibalesca” e à criação de novos monopólios34, que geram uma homogeneização cultural e uma padronização de comportamentos e, em última instância, levaram à perda de identidade do ser humano35.
Estas considerações partem do pressuposto que o uso da informação “não é um processo mecânico, objetivo ou facilmente medido, pois depende do ser humano que conhece, pensa, emociona-se, tem caraterísticas únicas e insere-se num contexto específico” (Marques, 2016:7).
Assim a mensagem de uma obra literária, de um filme, ou seja, a informação
construída e reproduzida por um autor, por um realizador, etc., são os factos e o conhecimento, são as teorias, as interpretações decorrentes das relações estabelecidas entre os factos. Daí que só surge novo conhecimento quando existe um processo infocomunicacional, isto é, quando a informação que é comunicada, é devidamente e individualmente descodificada e interpretada de forma a construir novo conhecimento.
No âmbito desta análise, e no caso concreto do cinema, mais do que evoluir tecnologicamente, do mudo para o falado, do preto e branco para o colorido, do analógico para o digital, é necessário evoluir na comunicação e interpretação da mensagem produzida pelos cinéfilos e pelas comunidades em geral.
Transpor para a mensagem cinematográfica, para uma imagem visual, uma obra escrita, como por exemplo algumas obras que retratam a imagem das Bibliotecas e dos Bibliotecários como O Nome da Rosa, A Máquina do Tempo, Minority Report, O Código Da Vinci, Fahrenheit 451, etc., poderá constituir um verdadeiro desafio de exegese que nos ajudará a compreender os efeitos do meio na transmissão e na compreensão da mensagem36 e a mudança necessária dos meios culturais para a Sociedade em que operam.
Esta responsabilidade social das organizações, outrora apanágio exclusivo das Organizações com Fins Não Lucrativos, como as ONGs, começa a ser um tema recorrente das empresas lucrativas e também já chegou ao mundo do cinema.
35Ora, respeitar a diversidade cultural, que se confunde com o próprio sangue da civilização, constituirá um dos grandes desafios, senão o maior desafio da sociedade do conhecimento. Ver Rifkin, 2001: 25.
Como referia Marshal MacLuhan – “O meio é a mensagem”.
Exemplo disso é a iniciativa de caráter inovador no nosso país e que tem como objetivo principal a ligação entre o Cinema e a Solidariedade numa acção de responsabilidade social de várias empresas para apoiar as crianças em risco e respetivas famílias:
“A iniciativa Cinema Solidário é promovida pela ZON Lusomundo, pela agência de publicidade ON-Team e pela consultora em fundraising Call To Action. O filme “James Bond 007 – Quantum of Solace” foi exibido ontem e continua no dia de hoje, para convidados das empresas que apoiaram a iniciativa, nas salas de cinema ZON Lusomundo do Cascais Shopping, Colombo, Vasco da Gama, Alvaláxia, Amoreiras Shopping, Palácio do Gelo (Viseu) Glicínias (Aveiro) e Dolce Vita Antas (Porto).Cada sessão é apoiada por uma empresa, sendo que a sessão de ontem em Cascais teve o apoio da ZON Multimédia com a presença do seu presidente Rodrigo Costa. Em cada sessão, as empresas, através de um donativo monetário a entregar ao Movimento pela Defesa da Vida (MDV), apoiam o Projecto Família. Além da ZON Multimédia, participaram nesta iniciativa inédita a Visabeira através do Palácio do Gelo, o BES, Better World, a Martifer, a Chamartin, a Accenture e a Microsoft. O MDV é uma instituição de solidariedade social que tra- balha no âmbito da promoção da unidade familiar, apoiando crianças em risco e as respectivas famílias. Em 2007 o projecto família apoiou 75 famílias e evitou a retirada de 155 crianças junto das suas famílias. Para além dos montantes doados ao MDV-Movimento de Defesa da Vida, que ultrapassaram os 100.000€, registou-se ainda a contribui- ção voluntária entre os cerca de 1.700 espectadores que participaram simultaneamente nestas sessões.”37
Esta iniciativa, entre tantas outras que felizmente ocorrem no nosso país, é a demonstração da necessidade de as organizações se virarem para o mercado, de envolverem todos os stakeholders das diversas organizações, como as Bibliotecas, a indústria cinematográfica, etc., no planeamento de ações inclusivas, no es- tabelecimento efetivo de redes de informação, de parcerias e de articulações e mediações entre as diversas linguagens culturais.
Conclusão
Esta mudança de prioridades da Sociedade da Informação (acesso à infor- mação - quantidade), para a Sociedade do Conhecimento (uso da informação
- qualidade)38, não pode continuar a ser um mero exercício intelectual, tem
que ser instrumentalizada, isto é, tem de ser demonstrado o contributo da informação para o progresso individual e para a mudança social, através do valor intrínseco do conhecimento para aumentar a criatividade e a inovação39.
38Os Conceitos de Sociedade da informação e do Conhecimento têm a sua origem na teoria crítica do pós-industrialismo que, nas décadas de 60 e 70 do século passado, anunciava o fim da era do capitalismo e a emergência de uma sociedade de serviços ou de tempos livres - a tecnopolia de POSTMAN, Neil – Tecnopolia : quando a cultura se rende à tecnologia. Lisboa : Difusão Cultural, 1993. Estes conceitos também foram muito desenvolvidos por Bell, Daniel – The social framework of the information society. In FORRESTER, T., org. – The microelectronics revolution. Oxford : Blackwell, 1980, p. 500-549 e Lyom, David – A sociedade da informação. Oeiras : Celta, 1992, entre outros, fala de Sociedade da informação, Sociedade do conhecimento e Sociedade da aprendizagem. Ver o artigo de Gurnsey, John – Information society. In FEATHER, John ; Sturges, Paul, ed. - International Encyclopedia of Information and Library Science. London : New York
: Routledge, 1997. ISBN 0-415-09860-2, p. 218-220. Cunha,, 2003: 67-76, considera que os conceitos de sociedade da informação, sociedade do conhecimento e sociedade da aprendizagem não são sucedâneos, ou seja, um não substitui o outro. Ao contrário, são simultâneos, fruto de um desdobramento a partir da existência e valor da informação que só adquire sentido na medida em que é comunicada, é disseminada, o que permite gerar conhecimento para produzir novas informações, o que pressupõe uma aprendizagem contínua, para realimentar o processo, p. 71
39Esta necessidade de demonstração do valor da informação e dos serviços de informação para a sociedade do novo século, é uma imposição que deriva do chamado New Public Management ou Nova Gestão Pública, uma ideologia neoliberal onde domina uma fraca intervenção do estado a nível económico e cultural, que se veio sobrepor ao modelo de Estado Providência (Welfare State, que se tinha começado a implantar na Europa depois da 2ª guerra mundial e que associado à noção de cidadania consagrava uma série de direitos sociais), impondo o papel do mercado como o modelo ideal. A título de exemplo podemos referir alguns investimentos feitos no passado pelas Assim, não basta ouvir uma história, ou ver um filme, é preciso interpretar as personagens ou atores principais e secundários, os argumentistas, as paisagens, as bandas sonoras, os efeitos especiais, os cenários, a contextualização, etc., e através de um exercício de brainstorming, procurar envolver todos os clientes no processo da construção do conhecimento. Esta técnica de “confronto e dis- cussão” contribui para contrariar a homeostasia caraterística das organizações e para (re)estabelecer o seu equilíbrio. É este o valor acrescentado que justifica a nossa existência numa sociedade cada vez mais exigente, mais competitiva e, simultaneamente, cada vez mais assimétrica, desigual, infoexcluída e iliterada.
Para que esta mudança ocorra é necessário uma vontade de todos os povos, de todas as regiões do planeta, para a construção de uma sociedade mais justa, mais solidária, mais inclusiva, mais democrática e, sobretudo, menos assimétrica social, económica e geograficamente.
Concluo com as palavras de um visionário que foi vítima das atrocidades de uma sociedade doente, a qual, e infelizmente, em tudo se parece com a Sociedade da Informação em que vivemos; trata-se, claro, de Mahatma Gandhi (1869-1948):
”Não quero que a minha casa fique cercada de muros e que as minhas janelas fiquem fechadas. Quero que as culturas de todas as terras soprem sobre a minha casa tão livremente quanto possível. Mas recuso-me a ser derrubado por qualquer uma delas” Mahatma Gandhi (1869-1948).
Bibliotecas Municipais em atividades destinadas às faixas etárias mais baixas, como a “Hora do Conto”, cujo sucesso foi inestimável e contribuiu substancialmente para a afirmação das bibliotecas municipais no seio das comunidades servidas, e que hoje, tendo em conta o Plano Nacional de Leitura, lançado em 2006, e todos os seus projetos e iniciativas, pode conduzir ao reequacionamento das prioridades e investimentos efetuados e quiçá ao abandono desta “vaca leiteira” do passado se verificarmos ter-se transformado num “peso morto” para o planeamento estratégico da organização. Ver: http://www.planonacionaldeleitura.gov.pt/index1.php. Esta atividade pode igualmente ser repensada, como uma oportunidade para divulgar, junto das crianças de tenra idade ou mesmo junto de adultos analfabetos que ainda existem em Portugal, as tradições orais de determinada comunidade, descentrando o objeto, do documento para a informação veiculada oralmente, no âmbito da preservação da memória local e da promoção cultural.
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