TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

Fátima Velez de Castro
João Luís J. Fernandes
(Coordinadores)

Universidade de Coimbra

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ANATOPIAS CINEMATOGRÁFICAS EM CONTEXTO GEOGRÁFICO. CONTRIBUTO PARA A (DES)CONSTRUÇÃO DE PAISAGENS IMAGINADAS

Fátima Velez de Castro
DCEGOT/Departamento de Geografia e Turismo
Universidade de Coimbra
velezcastro@fl.uc.pt

António Campar de almeida
CEGOT/Departamento de Geografia e Turismo
Universidade de Coimbra
camparalmeida@gmail.com

A Geografia e o Cinema: uma relação (im)provável

A relação (im)provável entre a Geografia e o Cinema tem na imagem o seu elemento material mais evidente, seja porque a interpreta, seja porque a constrói. A influência da ciência na arte tanto pode ser encarada na perspecti- va de uma, como de outra polaridade: se os territórios buscam na ficção e no documentário pistas analíticas e investigativas para construir quadros teóricos e entender dinâmicas funcionais das sociedades com os lugares, a construção fílmica baseia a cenografia dos seus roteiros em estruturações paisagísticas e em localizações específicas.
Esta relação, além de útil e necessária, é desejável, segundo Schlotmann e Miggelbrink (2009), os quais defendem que a Geografia vai mais além do que a localização ou a espacialização dos fenómenos, pois é na análise, interpretação e sistematização da simbologia visual, associada a sistemas socioculturais das popula- ções e da dinâmica da natureza, que se pode estudar os territórios na sua totalidade.
Também Adams (2005), com base nos estudos de Robert Sacks (1997), se refere à forma como os indivíduos percebem e se relacionam com determinados lugares, entendendo que há três tipos de elementos que explicam esta relação: a natureza, o significado e as relações sociais. Ora a Geografia e o Cinema, como campos de investigação, assumem uma dimensão interdisciplinar, em parte fruto da dinâmica das espacialidades ficcionadas, pois retratam a geogra- fia cultural e social do quotidiano. Neste sentido Lukinbeal e Zimmermann (2006) e Lopes (2013: 43) invocam a posição de J.K.Wright o qual, nos anos 40 do séc.XX, defendeu que a Geografia não devia tratar apenas as core areas tradicionais (estudos objetivos), mas também abrir-se a “áreas periféricas” (es- tudos subjectivos), utilizando para isso instrumentos como livros de viagens, revistas, jornais, assim como a artes como a pintura, a poesia ou outra ficção. Ou seja, pretendia-se a possibilidade de construção, na ciência geográfica, da investigação científica com base em fontes aparentemente não científicas. Tendo em conta esta ideia, alguns geógrafos, em especial a partir dos anos 80 do séc.XX, diversificaram o âmbito analítico das suas pesquisas, tomando como instrumentos de trabalho a literatura, a arte, a comunicação social, a música, a banda desenhada, a literatura de viagens, os anúncios, a televisão, os postais, os filmes, entre outros, como forma de entender a dinâmica das acções humanas sobre o ambiente, e como tal se pode refletir na paisagem.
Azevedo (2009) defende que o Cinema ajuda a compreender o papel da memória e dos diferentes imaginários geográficos na criação de imagens de lugar na constru- ção de paisagens culturais. A importância desta estruturação é explicada por Tuan (1980), ao afirmar que a avaliação do ambiente, pelo observador, é essencialmente estética, utilizando mecanismos de visão como se fosse um estranho que julga pela aparência e por algum critério formal de beleza. É necessário por isso um esforço especial para provocar empatia em relação às vidas e valores dos autóctones, sendo que a arte fílmica utiliza a imagem paisagística para surtir esse efeito relativamente à totalidade dos elementos do filme. Neste contexto, entenda-se a “natureza” como o ambiente físico, o palco onde se desenrolam as acções humanas, em estreita relação com os ecossistemas. As “relações sociais”, no sentido individual, terão por base a quotidianidade e os códigos culturais das comunidades. O “significado”, no sen- tido individual e em estreita relação com o conceito de “topofilia” de Yi-Fu Tuan, entende-se como o que deriva das relações afectivas que os indivíduos estabelecem com os territórios. Poderá neste caso basear-se numa simbologia material e imaterial apreendida e à qual é atribuída uma significância especial. É neste sentido que o autor considera o “lugar” e a paisagem inerente não como algo tangível, mas antes como uma base insubstancial sobre a qual são construídos cenários para os diversos actores participantes, assim como para as suas próprias acções.
A génese do Cinema prova esta teoria. Phryston (2014) refere que as primeiras imagens filmadas foram do mundo natural em movimento, nome- adamente cenas de rua. A autora considera que as relações entre paisagem e Cinema são desde sempre permeadas por nuances que têm tanto a ver com a própria complexidade conceptual, como com a centralidade da paisagem na construção de ambientes, formas e texturas. Alguns cineastas e autores buscam propositadamente adensar o seu papel, que vai mais além da função estética ou funcional. Mais, a paisagem cinematográfica revela-se como uma instância crítica do espaço, como um método de filmar, como um elemento primordial de encenação.

Pode por isso o Cinema ser válido numa atitude analítica das paisagens? Sim e mais: Martins (2012) defende que a escolha do Cinema como meio através do qual a identidade paisagística pode ser estudada é perfeitamente viável, uma vez que a forma como os filmes retratam os lugares e os espaços reflectem as normas culturais e as estruturas sociais e ideológicas dominantes.
Como construtor de paisagens, pode-se considerar duas variantes. Por um lado, como consequência colateral do sucesso cinematográfico de determina- das obras, e que se passa a reflectir no território, como cenários de elementos iconográficos que vão sendo identificados pelos fãs. Em termos práticos, pode gerar roteiros turísticos e efeitos económicos derivantes. Um dos casos mais conhecidos ocorreu na cidade de Paris, com o filme “O fabuloso destino de Amélie Poulain”, de Jean-Pierre Jeunet (2001), em que os locais de filmagem, no bairro de Montmartre, se tornaram locais de visita obrigatória para os espectadores-turistas.
Fernandes (2013a) e Duque (2013) concordam com a ideia, defendendo que nas áreas de produção cultural, o Cinema é um dos que mais se territorializa, sobretudo no que diz respeito à construção de paisagens turísticas. Actualmente, o turista busca os lugares de rodagem de um filme, os espaços de vida do actor ou do realizador, os museus de patrimonialização, mas também os lugares de exibição, estreias e competição de obra cinematográficas. Estas representações têm, nas paisagens pós-modernas, segundo o autor, a sua máxima expressão nos parques temáticos, espaços de lazer e turismo, pontos de convergência de consumidores que procuram ocupar os tempos livres no que designa de “terri- tórios plastificados da imaginação” que encenam personagens e narrativas. Estas paisagens intertextuais permitem momentos de fuga da realidade, partindo de lugares que territorializam mitos cuja origem se perde numa difusa rede criativa que cruza linguagens e registos, do cinema à televisão, da literatura à fotografia.
Por outro lado, a construção de paisagens associa-se também à vertente ce- nográfica, a qual busca inspiração tanto nas correntes estéticas contemporâneas das obras, como no ambiente e nos locais específicos de filmagens. A aproxima- ção à realidade é por isso relativa, dependendo das opções do realizador: mais purista se enquadra o desenrolar da acção em cenários reais com o mínimo de intervenção; mais eclético e arrivista, se introduz elementos alóctones, na lógica de completar o enquadramento, ou até mais, criando um universo paralelo, inexistente, fruto da combinação de vários lugares, que pode derivar num lugar único, singular, que retrata não só a sobreposição de ambientes-espaços como também de tempos – uma anatopia. É com base neste ideia, a da construção anatópica de lugares fílmicos, que irá ser realizada a discussão, a qual terá como quadro analítico exemplos práticos de projecções fílmicas.

O Cinema como construtor de paisagens e de anatopias territoriais

Uma anatopia territorial, encarada como uma construção paisagística que resulta da sobreposição topológica de camadas espácio-temporais, por vezes torna-se necessária para fazer passar a mensagem expressa no roteiro, ou até mesmo para gerar novas territorialidades. E a paisagem, que é sempre o resulta- do do fluir de acontecimentos sobre um determinado espaço (Almeida, 2006), também se constrói artificialmente com o objectivo de gerar efeitos estéticos e emocionais no espectador.
Esta última tendência é tão importante que Duque (2013) e Velez de Castro (2008) afirmam que os lugares representados pelo cinema derivam de estratégias poderosas que criam uma ideia sobre os territórios, produzindo lu- gares subjectivos de memória, sem que tenha havido uma vivência real, antes uma experimentação sensorial de carácter visual e auditivo. Sobre a constru- ção paisagística em Cinema, Azevedo (2012) entende esta arte como arena para o questionamento da paisagem como experiência, a qual se centra nos significados obtidos da experiência sensorial mais do que dos processos físicos da visão. Esta construção material tem como objectivo sublimar o esforço de encontrar uma diferente relação com “o visível”, no sentido de contrariar um persistente impulso ortodoxo e pós-moderno de denegrição da visão. Significa então que, segundo a autora, a ideia de “paisagem” em Cinema acaba por ser a síntese de uma construção sociocultural entre manifestações do espaço físico e representações artísticas desse mesmo espaço. A heterogeneidade genérica do próprio filme parece evidenciar por isso uma relativa estabilidade tipológica de cronotopes, que foram sendo trabalhados desde a sua origem, permitindo evidenciar o papel cultural de natureza, espaço e lugar sintetizado na ideia de “paisagem cinematográfica”. Lukinbeal (2005) acrescenta que esta se reveste de grande importância para o desenrolar da história, uma vez que é constantemente o suporte da acção, onde as tensões e a dramatização ocorre. E se, entendida como objecto dinâmico, a paisagem pode ver o seu papel aparentemente mi- nimizado em determinados pontos do filme, na sua totalidade reveste-se de grande importância pelo impacto perceptivo que provoca nos espectadores, criando-lhes não raras vezes a necessidade de vivenciar esse(s) espaços(s).
Nesta linha de ideias, será interessante a referência a estudos recentes sobre turismo cinematográfico que demonstraram haver territórios que tentam chamar a atenção de empresas produtoras de filmes, com o objectivo de promover a imagem do território. Esta foi uma estratégia ponderada há pouco tempo para o caso português, onde o então presidente da Câmara Municipal de Lisboa, António Costa, considerou “negociar” com Woody Allen a rodagem de um filme tendo como cenário a cidade de Lisboa. Também Fernandes (2013b) defende que a indústria cinematográfica não (re)constrói apenas a imagem dos lugares, pois para além da representação de dinâmicas territoriais, o próprio cinema se territorializa ao modelar paisagens, ao construir territorialidades inovadoras, ao criar lugares específicos associados a novas funcionalidades e simbolismos. Nesta lógica, refere-se ao “Set-Jetting” ou “Cinema Tourism” ou “Movie-Induced Tourism”, como a expressão territorial da relação “cinema-turismo-território”, que passa pela construção de paisagens pós-modernas associadas ao espectáculo, a narrativas, às territorialidades das celebridades, entre outros aspectos.
Reflectindo esta dinâmica, Escher (2006) afirma que a paisagem cinemato- gráfica ou a paisagem apresentada nos filmes pode ser interpretada como uma representação material e subjectiva da superfície terrestre, à qual são adicionados elementos fictícios do dia-a-dia. O que o espectador observa é o produto da cria- ção do realizador, em estreita relação com o reflexo da percepção própria de cada indivíduo. A criação de paisagens imaginadas no Cinema é mais do que um mero suporte estético, pois tem como objectivo transmitir a mensagem inerente à acção da narrativa. O autor identifica três tipos de elementos presentes nas paisagenscinematográficas – geográficos, históricos e fictícios – os quais tentam imprimir “genuinidade” à história. Tal leva a duas reacções: por um lado, o espectador entende o local como autêntico e atribui-lhe um significado de existência real; por outro, a paisagem é objectivamente manipulada, do ponto de vista estético, representando o mesmo valor/função dos actores. Neste caso, a originalidade, beleza e estética dos lugares assumem uma posição de protagonista no filme.
Nesta linha de ideias, Costa (2013) refere que as imagens fílmicas não projectam simplesmente a realidade concreta, mas produzem realidade, cons- troem os lugares e os espaços em termos visuais e narrativos. Entende por isso estas representações em dois sentidos diversos. Por um lado, as “apresentações interpretações”, que são as narrativas e as imagens fílmicas e os significados construídos e produzidos; por outro, as “imaginações”, associadas aos lugares imagetificados e narrados.
Ainda no âmbito do caso apresentado para a cidade de Lisboa, Orueta (2013) identifica um conjunto de características que determinam a escolha dos locais de rodagem dos filmes. A primeira está relacionada com aspetos físicos, como é o caso das horas de sol, luminosidade, ausência de chuva, acesso ao local, entre outras, ou seja, que apresente condições meteorológicas e ambien- tais adequadas à rodagem, assim como de segurança no local de trabalho para a equipa. A segunda diz respeito à autorização de filmagem em determinados locais urbanizados ou não urbanizados, onde é necessário fazer os devidos re- querimentos e pagar as taxas. A terceira relaciona-se com a disponibilidade de meios logísticos e humanos para fazer face às necessidades do filme e da equipa.
O autor discerne o “lugar geográfico” do “lugar fílmico”, distinguindo-os pelo primeiro ser a realidade e o segundo a representação da realidade. Centremo- nos no “lugar fílmico”: o realizador conduz o olhar do espectador, sendo que a paisagem é apreendida apenas com o olhar, pois a audição está subordinada à acção e os outros sentidos não se podem usar neste contexto. Destaca que as suas características são alteradas através de técnicas digitais, podendo ser por isso modificáveis até no sentido de produzir outros lugares fílmicos. A identificação do lugar fílmico é entendida em ampla relação com a “geografia fílmica”, segundo Costa (2009), uma vez que esta vertente questiona o “porquê do onde”, tendo em conta as diversas formas de ver, nomear, determinar, construir e representar essa distribuição espacial. Além disso a preocupação estética é evidente, nomeadamente a representação do(s) espaço(s), tendo em conta técnicas associadas ao realismo, ilusionismo, fantasia, arquitetura, entre outras, com destaque para o uso da banda sonora e dos sons em geral, para a criação de percepções específicas nos espetadores (Wissmann, 2014).
A autora considera contudo que pode existir uma dificuldade para o estu- do e a análise do filme como elemento mediador e de formação em contexto geográfico, devido à forma aparentemente mimética como o cinema trata o espaço, sobretudo se se considerar o aparato cinematográfico que reproduz ou deve reproduzir a realidade. É que analisar a própria construção da ideia de paisagem na cultura ocidental, implica, segundo Azevedo (2004), a compreensão da experiência de paisagem em diferentes contextos e a sua apropriação pelos discursos geográficos em diferentes períodos, assim como a própria experiência individual. É por isso que Costa (2013), evocando estudos de Anne Cauquelin (2007), afirma que no processo de visualização de um espaço/lugar, é atribuído um determinado valor de “verdade” inerente a quem observa e interpreta.
La Roca (2012) vai mais longe ao referir a visão de Durand (1993) que apelida de “constelação de imagens”, na lógica da sobreposição de camadas já referidas, como a produção cinematográfica que resulta da compreensão estética produzida pela construção e projecção das paisagens. É neste tipo de estrutura, de “trajecto antropológico”, que a espacialidade urbana e as suas paisagens se mostram em toda a sua diversidade, construindo um ponto de vista simbólico, metafórico e ontológico para o realizador, para os actores e para os espetadores. O autor, referindo-se às obras filmadas em espaços urbanos, arrisca o aforismo: “Não há cidade sem cinema, não há cinema sem cidade”.
Poderemos arriscar também um derivante: “não há cinema sem que se retrate paisagem, não há paisagem que não seja retratada pelo cinema”. Por isso consideramos que a paisagem cinematográfica resulta de uma cons- trução necessária, que se aproxima mais do real ou mais do utópico conforme as necessidades de realização, de ideologia, de estética ou até mesmo logística, em casos específicos. Se a estruturação do território deriva da subjectividade analítica e da imaginação assumida de quem a constrói, assegura-se como uma linha tecnicista e artística válida.
Porém, o que questionamos neste capítulo, é se a tentativa de aproximação à realidade produz anatopias inválidas do ponto de vista geográfico e do ponto de vista cronotópico, ou se pelo contrário, por se tratar de uma construção artística, mesmo baseada na realidade, as anatopias são válidas para a tradução da mensagem cinematográfica. E ainda reflectir sobre a pertinência da con- sultoria científica na produção das paisagens, como coadjuvante dos processos criativos em Cinema.

Análise casuística

Há pessoas que, por passatempo, curiosidade ou preciosismo, se dedicam a descobrir disfunções ou desajustes de vários tipos nos filmes ou séries te- levisivas, onde alguns descuidos dos realizadores ou ocorrências ocasionais e imprevistas, não escapam aos seus olhos ou ouvidos atentos. Os anacronismos são os mais famosos e o rol deles é vasto e são tanto mais frequentes quanto a narrativa da peça se reporta a um período antigo. Riscos traçados nos céus por aviões e um ou outro automóvel passando ao longe dentro de um cenário que se queria pré-histórico, clássico, medieval ou moderno, é muito usual e facilmente percetível.
Há situações, no entanto, em que o realizador dificilmente poderá fugir à inclusão de elementos anacrónicos, sempre que as filmagens decorram em tre- chos paisagísticos reais, os quais, tantas vezes, são muito diferentes dos coevos da história que se pretende contar. Só a título ilustrativo desta afirmação basta ver algumas cenas que acontecem no recente filme franco-português Linhas de Wellington, de 2012, realizado pela chilena Valeria Sarmiento. Grande parte do enredo descreve a fuga de população do Centro Litoral de Portugal em direção às linhas de Torres Vedras, mandadas construir pelo general Arthur Colley Wellesley, 1.º Duque de Wellington, como um dos últimos redutos defensivos de Lisboa. A fuga dos populares, tal como o avanço, logo atrás, das tropas francesas do Marechal André Massena, foi feita essencialmente a oeste das serras ocidentais do Maciço Antigo xistento e quartzítico, pela maior faci- lidade de deslocação de grandes grupos de pessoas com parte dos seus haveres. Não se conhece muito sobre a cobertura vegetal desta área da Beira Litoral e da Estremadura no início do séc. XIX, deduzindo-se que haveria ainda manchas frequentes de carvalhais, de sobrais e de pinhais, quer de pinheiro-bravo quer de pinheiro-manso, e grandes manchas de matos diversos, para além das áreas agrícolas (Link, 1805 apud Devy-Vareta, 2005). No entanto, há uma certeza: não havia a profusão de eucaliptos por aquelas paisagens, já que estes apenas teriam sido introduzidos no país na década de 50 do séc. XIX (Radich, 2007) e como essências ornamentais em jardins, botânicos ou privados, e pouco mais. Ora, no momento presente é difícil, na região em causa, percorrer alguns quilómetros em que este género botânico não esteja presente. E isso nota-se constantemente junto dos caminhos calcorreados no filme.
Já as cenas pretensamente passadas em Coimbra, onde o protagonista é um oficial português ferido na batalha do Buçaco, não escapam ao juízo de qualquer conhecedor desta cidade – as ruas, embora estreitas, sinuosas e inclinadas, não podem ser de Coimbra, porque mostram calçada em granito, quando aqui o lastro das ruas é constituído por seixos de quartzito, a conhecida “calçada de Coimbra”, que tanto embaraço causa às senhoras com sapatos de salto alto. Aquelas cenas teriam sido filmadas em Óbidos, aproveitando a sua semelhança morfológica com a “Alta” de Coimbra, o que configura uma situação anatópica. A proximidade de Lisboa, por questões logísticas, foi, decerto, um argumento determinante na sua escolha.
Razões semelhantes, mas com finalidades bastante distintas presidiram às filmagens de uma série, tipo telenovela, que está a passar há mais de um ano na RTP1, intitulada Bem-vindos a Beirais. A análise deste caso merece mais tempo e pormenores.
O nome da aldeia é bastante sugestivo – Beirais. Claro que a escolha não foi inocente, fazendo-se apelo ao imaginário popular português, exacerbado durante o Estado Novo, de que o estereótipo da típica aldeia está consignado nas serras e, se possível, do interior centro do país, a Beira. O concurso de1938, da Aldeia mais portuguesa de Portugal, veio exponenciar essa imagem, suportada pelo facto de das 12 aldeias em concurso, 5 eram beirãs e 4 delas serranas – Monsanto da Beira (Idanha-a-Nova) que viria a ganhar, Paul (Covilhã), Manhouce (S. Pedro do Sul) e Cambra (Vouzela) (Sampaio, 2012).
A paisagem da região onde se desenrolaria o enredo é construído por um con- junto de imagens de trechos de paisagens, ora mais amplas ora de maior detalhe, que mostram, de facto, uma realidade que representa, em grande parte, a Beira serrana. Em regra, as imagens introdutórias focam-se numa aldeia, ao longe, que por norma se situa na base de uma vertente acentuada ou na base de uma pequena bacia hidrográfica que drena um relevo montanhoso. Um dos exemplos identifi- cados é o da povoação de Covanca na base da serra de Cebola, no município de Pampilhosa da Serra. Estranhamente, essa envolvente montanhosa nunca é visível nas filmagens no interior da aldeia de acolhimento. Já a escolha de aldeias, visto não se tratar de apenas uma, com a maioria das casas brancas foi um cuidado tido, no sentido de não discordar com a cor dominante da localidade onde decorrem as filmagens. O uso da cor branca, ou de outra cor clara, é uma prática usual desde que o advento da democracia na década de 1970 permitiu e incentivou o regresso de muitos emigrantes e de retornados das antigas colónias para as suas povoações de origem, ou onde puderam fixar-se. Esse afluxo suplementar, mesmo que se tenha vindo a revelar efémero, em muitos casos, permitiu a recuperação de antigas casas ou a construção de novas habitações, agora com materiais de construção generali- zados, ou seja o tijolo e o cimento e rebocadas, sem terem de recorrer à rocha local muitas vezes sem reboco. Apenas as aldeias mais antigas, e em abandono, mantêm as cores dos materiais locais e, assim, passam quase despercebidas na paisagem. Ora, a aldeia pretensamente da Beira é, afinal, Carvalhal no concelho do Bombarral, à qual há, aliás, um explícito agradecimento, visível no final de cada episódio. Está-se, portanto, perante uma situação anatópica. Mas, mesmo que não fosse dito, seria fácil deduzir que se tratava de uma povoação com influências do sul. As casas, além de brancas, são amiúde pintadas nos cunhais, socos e barrões mas também nas molduras das portas e janelas, ou seja nas ombreiras e padieiras, por cor azul, vermelha ou amarela, uma caraterística mais típica do Algarve, Alentejo ou Estremadura (Varanda, 2009). Na Beira ou mais ao norte é muito raro.

O recurso a imagens captadas em paisagens lindíssimas, diga-se em abono da verdade, revelam constantemente a presença de rochas ou de outros elementos abi- óticos e bióticos reveladores de territórios montanhosos situados no Maciço Antigo português. Assim, são muito frequentes as rochas xistentas, ou seja metassedimen- tares, quer nos afloramentos rochosos quer na forma arredondada das cumeadas ou festos das elevações serranas; outras imagens mostram rochas granitóides, quer na profusão de bolas superficiais quer em algumas serras de vertentes mais abruptas e com pouca vegetação na parte superior (num dos casos parece tratar-se da serra da Estrela). Apenas em uma ou duas imagens se vêem muros construídos por rocha calcária empilhada, em terreno onde uma vaca pachorrenta rumina, o que remete para a Orla Meso-Cenozóica Ocidental, provavelmente na Estremadura.
Os elementos hidrológicos também são mais próprios das regiões interiores porque dizem respeito a rios a correr sobre um substrato metassedimentar ou granítico, ou então mostram diferentes quedas de água também sobre rochas desse tipo. Algumas das cascatas são reconhecidas, como é o caso da Frecha da Mizarela, na serra da Freita, no concelho de Arouca, onde o rio Caima vindo sobre os granitos cai por mais de setenta metros sobre os xistos mais facilmente desgastáveis. E são apresentadas tantas outras quedas, mais pequenas, mas que não deixam de ser um elemento estético fundamental para ilustrar as paisagens serranas.
Os componentes vegetais completam o cenário pretendido pois foram escolhidas perspetivas visuais onde a afirmação serrana está presente. Os pinhais são quase uma constante e numa das imagens surgem em primeiro plano pinheiros-de-Riga (Pinus sylvestris L.) que em Portugal apenas persistem no Gerês em modo natural, mas que têm sido plantados pelos serviços florestais pelas serras do Norte e Centro de Portugal continental, em regra acima dos 500 m; é facilmente identificável pelo seu ritidoma cor de laranja (Castroviejo, 1986-2015). Noutros casos constata-se que cabras estão a pastar pequenos arbustos de giesta-branca (Cytisus multiflorus (L’Hér.) Sweet) muito frequente sobre granitos e quartzitos nos planaltos e serras do norte e centro do país (Castroviego, op.cit.; Costa et al., 1998).
Embora se possa considerar uma realidade que percorre todo o país, os so- calcos destinados à produção agrícola, construídos ao longo da vida de muitas gerações de agricultores, são mais frequentes no fundo de vales apertados ou nas respetivas vertentes e na adjacência das aldeias. Algumas das imagens mostram estes socalcos onde os últimos e resistentes habitantes das áreas serranas vão cultivando cereais, vinho, frutas e forragens para seu consumo e dos animais que criam. Outras obras humanas mais elaboradas também ilustram a série, de modo a acrescentar-lhe valor paisagístico; referimo-nos a pontes antigas relativamente baixas e construídas em granito, mas também uma ponte bastante alta e bem arquitetada, e que tinha como função permitir a passagem do comboio sobre o rio Vouga, junto de Pessegueiro do Vouga, na linha com o nome desse rio.
A colocação da aldeia em zona serrana, mais ou menos isolada, vem dar algum crédito à possibilidade de uma ideia que percorreu vários episódios e que se focava no desenvolvimento de um movimento pró-independência da aldeia face ao “estado colonizador, Portugal”. Embora aparentemente abstrusa, esta ideia pode ter nascido de uma inspiração no Couto Misto, um verdadeiro micro-estado (27 km2) independente de facto e que persistiu entre o séc. X e 1868. O seu território, isolado quanto baste, situava-se dentro da Galiza e de Trás-os-Montes, imediatamente a leste de Tourém e a norte da serra do Larouco. Era constituído apenas por três aldeias – Santiago, a capital, Rubiás e Meaus. Os seus habitantes, para além de possuírem direitos fiscais, económicos, comerciais e pessoais exclusivos, praticavam uma democracia direta, com eleição dos detentores de cargos e sua eventual demissão, e o funcionamento de um conselho aberto onde participavam todos os vizinhos, quando da tomada de decisões importantes para a comunidade (López Mira, 2008). Além do mais, estavam isentos de impostos para Espanha ou Portugal e do fornecimento de soldados, assim como podiam dar asilo a foragidos de qualquer destes países.

Considerações finais: a paisagem rural afinal conta (?)

Nenhum filme ou série televisiva é inocente nos seus intuitos. Muitas das suas mensagens têm fins sociais, económicos, religiosos, cívicos ou ideológicos; e isto acontece sob todos os regimes políticos vigentes e de modo mais subli- minar ou mais explícito. Os regimes ditatoriais sempre usaram esta via para a sua propaganda. No caso do concurso da aldeia mais portuguesa de Portugal, acima referido, para além do objetivo de fazer da vida rural a linha de con- duta virtuosa do regime, estava subjacente também uma promoção turística, portanto económica, do território rural nacional; daí apenas terem sido aceites a concurso as aldeias que tinham um certo grau de acessibilidade, para que as gentes citadinas ou estrangeiras pudessem facilmente aceder e usufruir das belezas paisagísticas e culturais desse espaço desconhecido, mas carregado de virtudes (Sampaio, 2012: 120).
Significa isto que, antes como agora, que o território rural interior vende, só é necessário saber embalá-lo em imagens sugestivas, fazer apelo ao mais profundo dos nossos sentimentos radicais (no verdadeiro sentido da palavra) e mostrar o que de mais belo, segundo os parâmetros vigentes, a natureza e/ ou o ser humano moldaram ou erigiram para deleite e conhecimento dos mais alheios a esta realidade. Mesmo que as belas aldeias reconstruídas não passem de desertos humanos durante a maior parte do ano e apenas preencham a sua função, parcial, em meia dúzia de dias. Se o cinema contribuir para esse reapro- ximar das pessoas às suas origens ou de outras que os substituam, já desempenha um papel fulcral no tão badalado, e tão pouco cumprido, reordenamento do território nacional. Consideramos, por isso, determinadas anatopias relativa- mente justificadas face à realidade geográfica que retratam, tendo em conta esta finalidade. No entanto é sempre indispensável a consultoria científica, de modo a que não se verifiquem derivações cronotópicas demasiado absurdas, que possam vir a interferir na qualidade e no objetivo final da obra cinematográfica.

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