TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

TERRITÓRIOS DO CINEMA. REPRESENTAÇÕES E PAISAGENS DA PÓS-MODERNIDADE

Fátima Velez de Castro
João Luís J. Fernandes
(Coordinadores)

Universidade de Coimbra

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Cinema e território Entre a metáfora e a realidade

Jorge Seabra
CEIS20
Faculdade de Letras
Universidade de Coimbra
jorge-seabra@sapo.pt

O tempo e o espaço são duas categorias fundamentais da narrativa fílmica. O primeiro porque, quer tenhamos em conta o documentário ou a ficção, qualquer narrativa é um percurso temporal percorrido entre dois momentos, em que durante o primeiro é enunciado o problema e sobre o qual poderá ser apresentada uma solução no final. O espaço, por sua vez, é um segmento para o qual a narrativa remete a partir da imagem, convidando o espetador a situarse numa realidade física que pode ser apenas diegética, aquela onde o narrado se passa, ou histórica, quando o contado remete também para uma realidade física pré-existente como são, por exemplo, os filmes de evocação histórica.
Ao tempo e ao espaço devemos ainda acrescentar a imagem em si, como categoria fundamental da narrativa pela sua capacidade discursiva. Mesmo que estejamos perante uma obra onde não existam personagens que dialoguem, ou narradores que no interior da narrativa conduzam o espetador, o facto de a imagem ser colocada perante os olhos do espetador permite que este construa ideias e significados que estão para além da imagem em si. Quando somos colo- cados perante a imagem “revólver”, cada espetador não lê apenas, por exemplo, “objeto com determinadas caraterísticas físicas e que se designa por revólver”, podendo atribuir-lhe funções, capacidades, finalidades e consequências, que eventualmente sintetiza na expressão “arma que dispara”. Entendamo-nos. “Arma que dispara” é uma leitura que está para além do objeto denotado, cuja inter- pretação é subjetivamente determinada pela experiência, sensibilidade e cultura de cada um. Deste modo, qualquer imagem fílmica, por mais elementar que seja, tem um poder discursivo cujo significado está sempre para além daquilo que é representado denotadamente na tela e, desse modo, este potencial, se foi determinante na perceção das capacidades narrativas da imagem fílmica e, a partir daí, da sua afirmação estética nos inícios do século XX, tem obviamente consequências objetivas e concetuais quando procuramos estabelecer relações entre o cinema e outros domínios, como é o caso que aqui vai ser abordado, das relações entre o cinema e o território.
Do ponto de vista cinematográfico, o território deverá ser entendido neste texto como o espaço selecionado para aparecer na imagem em função dos objetivos fílmicos pretendidos, documentais ou ficcionais, sendo certo porém que as condicionantes anteriormente referidas terão de ser tidas em conta, nomeadamente quando julgamos que a imagem pode ser um registo mimético da realidade. Por outro lado, nos inícios do cinema, foi precisamente a sua capacidade de chegar ao real de uma forma até aí nunca vista que o tornou um auxiliar precioso na aproximação e observação da realidade, tendo sido essa aliás a primeira e principal função que os irmãos Lumière lhe deram quando desenvolveram as então designadas “vistas Lumière”, vindo posteriormente a ter um papel dinâmico significativo em diversos domínios, nomeadamente para o campo militar, para os mecanismos de informação e propaganda desenvolvi- dos por certos estados e sistemas políticos na primeira metade do século XX, e ainda para o campo científico, onde se pode incluir a Medicina e obviamente a Geografia, factos que conduziram Marc Ferro a atribuir ao cinema o papel de “agente da história”, precisamente pelo papel dinâmico e motor que tinha no desenvolvimento social1. Ou seja, do ponto de vista daquele autor, o cinema era um agente da história pelas informações que facultava aos governos ou sistemas militares, pela capacidade persuasiva que tinha enquanto instrumento de propaganda ou ainda pelo auxiliar precioso que poderia ser no estudo e na intervenção científica sobre a realidade física ou humana.

Cinema e território. realidade e representação

Nesta abordagem ao cruzamento entre cinema e território, o primeiro aspeto que gostaríamos de focar diz respeito às relações entre representação e realidade. Esclareçamos desde logo um ponto que nos parece determinante. Um filme, quer seja documental ou ficcional, nunca pode ser confundido mimeticamente com a realidade que é mostrada nas imagens. Esta questão, se não precisa de grande argumentação demonstrativa para o caso da ficção, pois estamos sempre perante um universo diegético imaginado pelos autores das obras, independen- temente das relações que possam ser estabelecidas com a realidade histórica, já necessita de alguma clarificação relativamente ao documentário, porque existem algumas tendências para se considerar o documentário como reprodução da realidade. Em primeiro lugar, a máquina de filmar constitui uma intermedia- ção entre a realidade e o espetador e, nessa medida estamos perante a primeira e fundamental barreira que nos impede de conceber a imagem documental como a realidade. Independentemente das diferenças de captação existentes entre o olho humano e a objetiva, esta procede ao registo do filmado segundo um conjunto de escolhas determinadas pelo realizador, cujo resultado conduz a imagens inclusivas ou exclusivas relativamente à realidade transformada em espaço fílmico. Ou seja, uma realidade que é naturalmente contínua, ao ser objeto de fragmentação através do plano, tem subjacente um processo de decisão que determina o que deve estar dentro e fora de campo, sendo este o primeiro fator que afasta a imagem fílmica da realidade.
Em segundo lugar, a intermediação exercida pela máquina de filmar, para além da fragmentação e das inerentes exclusões ou inclusões espaciais que faculta ao espetador, afasta-se também da realidade que tem como referente quando o realizador procede a opções ao nível daquilo que é mostrado em campo. A forma como a imagem é fornecida ao espetador ao nível da escala e do ângulo são outros dois procedimentos, que pressupõem escolhas do autor e, apesar de aceites voluntariamente pelo espetador, condicionam a leitura e a interpretação que este faz da informação que está a ser apresentada. Suponhamos um documentário assente em entrevistas, relativamente às quais são seguidas diferentes opções de escala e ângulo, em que alguns entrevistados são captados sempre em grande plano contrapicado, e outros surgem sempre em planos médios horizontais, provocando inevitavelmente impressões diferentes no es- petador em resultado de escolhas diferentes para registar a realidade filmada. Outros exemplos poderiam ser apresentados, ao nível das opções relativas à organização narrativa do discurso, do qual, invariavelmente, resulta sempre a mesma constante. As opções assumidas pelo realizador na organização do documentário estão sempre condicionadas a uma forma subjetiva de observar a realidade e a posicionamentos pessoais, não podendo dessa forma, como an- teriormente afirmámos, confundir as imagens documentais com a realidade da qual emergiram. Ou seja, compete ao investigador não fazer papel de ingénuo, aceitando as imagens que tem sob escuta como uma impressão construída a partir da realidade, desenvolvendo para o efeito os exercícios analíticos con- trastivos necessários para compreender as obras, mas nunca as aceitando como um mimetismo do real, situação que deve ser tida em conta no caso dos filmes que produzem abordagens sobre o território.
Deste modo, no caso que nos interessa, o da relação entre filme e ter- ritório, quer estejamos perante um documentário ou uma ficção, devemos entender sempre a obra cinematográfica como meio utilizado pelo autor para produzir um pensamento sobre o assunto, um discurso autoral que tem de ser esclarecido ao nível das suas intencionalidades, funções e processos. Tal não significa porém a desvalorização desses olhares e perspetivas como processos de registo e de captação de imagens relativas ao território. Tal como todos as informações e processos que o cientista social utiliza para estudar o seu objeto não passam também de uma intermediação sobre aquilo que tem sob escuta, de igual forma devemos proceder relativamente às imagens que são captadas sob o território. Não sendo ele próprio, nem sendo um mimetismo dele próprio, são contudo uma aproximação diferente ao real, com vantagens específicas e inerentes ao meio, que o cientista deve usar munindo-se para o efeito das prevenções necessárias para não cair nos erros anteriormente apontados, sendo o principal dos quais o conhecimento dos procedimentos fílmicos utilizados na captação de imagens para poder usar com objetividade o conteúdo das imagens no estudo do território.
Ou seja, a imagem fílmica pode ser um auxiliar precioso na aproximação ao território enquanto objeto, desde que tenhamos claro que o mostrado na imagem é fruto de uma intermediação técnica cujo resultado não se pode confundir com a realidade, que a imagem é gerada através de procedimentos técnicos que cortam e fragmentam o espaço | território filmado em planos, quando esse espaço | território é por natureza continuo, podendo resultar daí perceções erradas se não atendermos e conhecermos as intenções subjacentes à fragmentação e as funções relativas à conceção da imagem ao nível da escala, ângulo ou outros procedimentos fílmicos relevantes.

Esta sobredeterminação do meio e do processo estilístico utilizado para captar a realidade envolvente poderá ser melhor compreendido se forem referidos três documentários de finais dos anos vinte e princípios dos anos trinta do século XX, nos quais, a valorização da montagem como processo expressivo conduz a uma perceção intensa e veloz da realidade, que está em plena sintonia com a influência que a vanguarda soviética dos anos vinte exercia sobre os cineastas, segundo a qual através da montagem era possível acrescentar sentidos não presentes nas imagens em si. Se recordarmos Berlim, sinfonia de uma capital (Walter Ruttmann, 1927), Douro, faina fluvial (Manoel de Oliveira, 1931) e O homem da máquina de filmar (Dziga Vertov, 1929), nas quais encontra- mos um processo de captação da realidade em planos de curta duração, que introduzem um fator de aceleração rítmica, como se nos espaços e territórios captados existisse uma intensa atividade laboral, urbana ou social. Para além disso, essa aceleração não permite ao espetador a plena captação da informação contida nas unidades, proporcionando ainda uma leitura e interpretação sobre a realidade focada que provavelmente seria diferente se as unidades que vão surgindo tivessem mais tempo de exposição.
Esclarecido que a imagem fílmica apenas oferece representações condicio- nadas segundo a perceção que o realizador tem ou quer dar sobre o território, o estudo dessas imagens, por sua vez, pode tornar-se um domínio significativo no estudo do tema, quer o entendamos do ponto de vista físico ou humano, ou ambos simultaneamente. Ou seja, o cinema, ao ser sobretudo um espaço simbólico de expressão, possibilita que as obras onde o território está presente, quer o entendamos do ponto de vista urbanístico, populacional ou paisagístico, reflitam as conceções que as sociedades foram tendo sobre aqueles domínios, porque os autores não são imunes à realidade envolvente, pelo contrário, o mais óbvio será encontramos em muitas obras que a história do cinema já ofereceu posicionamentos sobre aquelas realidades, nos modos como as concebem e dão a ver à sociedade. Numa palavra, os filmes ganham importância pelo lado mnésico que apresentam porque, afinal, o que resta é a impressão, o discurso produzido, a memória que o autor entendeu produzir sobre o assunto, memória essa que é entendida como representação pessoal sobre o território, seja ele de que tipo for. Nessa linha, o estudo do espaço fílmico, ao ter como referente o território onde as sociedades humanas existem, permite ainda equacionar e refletir sobre as visões coletivas que as sociedades vão deixando sobre esse universo geográfico e, a partir daí, se forem construídos corpus fílmicos unifor- mes, torna-se possível apreender sobre a evolução da perceção coletiva que os autores cinematográficos foram produzindo sobre um território determinado.

Cinema e território. metáfora e realidade

O cinema deverá estar entre os meios de criação artística mais eficazes na simulação metafórica de espaços, que se sabe de antemão não existirem, mas que, devido à capacidade de manipulação e realismo inerentes ao filme, produzem um efeito de adesão emocional sobre o espetador conduzindo-o muitas vezes a confundir a metáfora com a realidade. Este fenómeno, muito interessante do ponto de vista psicológico, é particularmente evidenciável nas ficções que se passam em lugares, cidades ou regiões, a partir dos quais se constrói um arquétipo sobre o sítio, cuja força é tal modo decisiva que pode conduzir por um lado à rejeição e à frustração quando o espetador visita o local para o qual foi aliciado pelo filme ou, por outro, receando a desilusão anterior, prefere manter-se na memória a metáfora do lugar que foi construída a partir do filme, preservando assim a ligação afetiva ao lugar imaginário que se sabe não existir mas que, de qualquer modo, o espetador prefere guardar como se do local real se tratasse. Esta situação, muitas vezes, conduz o espe- tador a visitar regularmente aquele local imaginário, sítio onde irá as vezes que quiser mas que, ao mesmo tempo, sabe que nunca irá efetivamente visitar a não ser no seu próprio pensamento.
Vejamos o caso de Casablanca (Curtiz, 1942), hoje a completar 73 anos, um filme de baixo orçamento, rodado durante a Segunda Guerra Mundial, que se tornou um clássico da história do cinema, e que foi no tempo numa obra ao serviço da propaganda desenvolvida pelos EUA ao serviço da causa aliada. A narrativa tem como contexto a saga da fuga dos perseguidos do na-zismo que, no seu desejo de atingirem os EUA como destino de liberdade e do fim da perseguição, têm de passar transitoriamente por Casablanca e Lisboa para finalmente rumarem à terra prometida. O espaço fílmico fundamental é Casablanca, nomeadamente o Rick’s bar, onde Rick Blaine (Humphrey Bogart) e Ilsa Lund (Ingrid Bergman) protagonizam a história de amor impossível de acontecer, porque a causa da liberdade em que Ilsa está envolvida é mais importante que o interesse individual e amoroso destas duas personagens. Por entre as peripécias que a intriga nos vai oferecendo, quase sempre passadas no Rick’s bar, há também uma canção que se tornou um standard da história da música, As time goes by, tocada e cantada por Sam (Dooley Wilson) ao piano, que no filme adquire especial significado devido à relação frustrada que existiu entre os dois protagonistas em Paris.
Este filme evoca situações que historicamente existiram, que espacialmente tinham Casablanca como território mas, nem o filme foi rodado naquela cidade marroquina, nem os espaços criados para a rodagem têm qualquer semelhança com locais existentes no tempo naquele local. Porém, as conexões afetivas, emocionais e estéticas que o espetador estabelece com o filme conduzem-no a identificar a ação com um espaço referencial, Casablanca, da qual resultam as duas situações anteriormente apontadas. Ou resulta o estímulo para visitar aquela cidade do norte de África, ida eventual que sai frustrada porque os locais de rodagem não foram ali, logo não existem sítios que se aproximem da Casablanca de Michael Curtiz e, em segundo lugar, o arquétipo que o espetador constrói sobre a cidade a partir do filme pouco se aproxima da Casablanca que existe na atualidade. Daí que, como dissemos, muitas vezes o espetador, conhecedor dessa inexistência real, prefira guardar a ficção como a sua “realidade preferida”, não destruindo assim os efeitos emocionais e estéticos que a obra sobre si exerce, preferindo manter como falsos mas filmicamente verdadeiros os momentos que presencia no Rick’s bar, nomeadamente os instantes em que Sam volta a tocar As time goes by a pedido de Ilsa, depois da inesperada separação em Paris, e se vai apercebendo da emoção que se vai apossando da personagem, através dos intencionais e múltiplos grandes planos com que a personagem é mostrada, até que o confronto visual e verbal com Rick acontece.

Ou seja, o espetador só tem acesso a estes momentos se vir Casablanca porque apenas se passam na realidade fílmica que por isso mesmo ganha existência quando o espetador se dispõe a ver o filme de Michael Curtiz. Mas, como Casablanca remete para um espaço referencial, uma cidade localizada no norte do continente africano com o mesmo nome, a realidade fílmica aí lo- calizada, ao ganhar existência imaginária para o espetador, tem simultaneamente a capacidade de criar um território, que o espetador sabe inexistente, mas que guardará para si como isso mesmo, um território imaginado, onde acontece uma ficção com a qual estabelece vínculos afetivos e estéticos, e que alimenta sempre que precisar. A construção deste género de territórios, onde a conivên- cia e aceitação do espetador é um elemento necessário, é outro dos domínios a destacar na relação entre cinema e território. O cinema tem a capacidade de criar territórios imaginários, que só têm existência quando o espetador está a ver o filme e, desse ponto de vista, poderão ser interessantes e cientificamente significativos para o estudo dos imaginários territoriais projetados e procurados pelas sociedades contemporâneas. A existência humana, ao lado da componente de materialização física de que se reveste, tem também uma componente onde o imaginário tem um papel relevante, através do qual as sociedades expressam e projetam o que gostariam de ver e não ver concretizado, cujo papel não deve ser menosprezado e, nesse domínio, o cinema é um dos meios mais eficazes para potencializar esses domínios.

Cinema e território. desejo e identificação

Embora aqui nos interesse apenas abordar a relação entre o filme e o espetador, depois de concebido, produzido e exibido, queríamos começar por referir que não é de somenos importância o impacto económico que um filme estabelece com o território na fase em que está a ser produzido. Existem organizações in- ternacionais como a European Film Commission, que por sua vez tem associações filiadas nacionais, como é o caso da Spain Film Commission, que se desdobra numa extensa rede de gabinetes distribuídas pelo país, com o objetivo de facilitar aos produtores a gestão das rodagens, dando também acessoria ao nível do financia- mento, da identificação de locais, gestão administrativa e localização de serviços necessários à produção. No caso espanhol, a procura de produções internacio- nais desde 1916 até 2015 ascende a 175 produções, nas quais se podem incluir filmes clássicos como Lawrence da Arábia (David Lean, 1962), Por um punhado de dólares (Sergio Leone, 1964), Doctor Zhivago (David Lean, 1965) ou Reds (Warren Beatty, 1981) ou realizadores como Ridley Scott, Orson Welles, Steven Spielberg, Woody Allen, Anthony Mann, Nicolas Ray, Joseph Mankiewicz ou Michelangelo Antonioni. Ou seja, se numa fase inicial terão sido as produtoras que procuravam por sua iniciativa os exteriores para efetuarem as rodagens das obras, numa fase posterior, as autoridades espanholas, fruto do interesse interna- cional das organizações cinematográficas pelo território, trataram de se organizar para potenciarem ainda mais a vinda das produtoras, promovendo o território, a sua variedade e, simultaneamente, criando um conjunto de serviços de apoio que, do ponto de vista logístico, financeiro e legal facilitam as organizações in- ternacionais do setor quando procuram o território espanhol para aquele efeito. Este tipo de instituições, que exemplificámos através da Spain Film Commission, são fundamentais para o desenvolvimento da relação económica entre território e cinema. São organizações de cariz governamental, que têm proliferado de uma forma geral em diversas partes do planeta. Sobre o caso português, o conhecimento que temos da situação é apenas a da intenção de o estado português manifestar o propósito em criar uma organização congénere até finais de 2014, do qual no entanto não temos conhecimento da sua instituição.
Centrando agora a nossa atenção na forma como o espetador recebe e reage às imagens fílmicas, devemos salientar que este desenvolve dois tipos de identificação que evoluem dinamicamente em função da forma como a narrativa foi construída. Essa dupla identificação, que é particularmente constatável nas ficções, é constituída por um lado pela identificação primária e, por outro, pela identificação secundária. O caso da identificação primária significa o efeito de espelho que a imagem exerce sobre o espetador, em que este observa a imagem como se aquela estivesse a refletir o espaço em que o espetador se encontra, querendo isto dizer que, por vezes, o fascínio que a imagem exerce ao ser observada é de tal forma grande que o espetador se ima-gina no espaço da ação, num processo que revela total identificação entre a imagem e o espetador. Na prática, este tipo de identificação, ao significar a possibilidade de o espetador se imaginar no espaço da ação, como se estivesse dentro do próprio filme, fruto da sedução que os espaços fílmicos e da capacidade de envolvimento emocional que o filme tem, conduz na generalidade dos casos, quando se trata dos locais de rodagem, ao aparecimento do desejo de visitar esses sítios onde a ação se passou.
O caso da identificação secundária, que não interessa para o caso em questão, significa que o espetador vai distribuindo as suas preferências por personagens ao longo do visionamento, através de um processo que não é completamente livre mas condicionado à forma como as situações vão sendo apresentadas ao espetador, deduzindo-se ainda que, em última instância, é quem organiza a informação que é apresentada que manipula as preferências do espetador.
No caso em apreço, apenas nos interessa a identificação primária, pela sedução que exerce no espetador, cujas implicações são determinantes na rela- ção com o território, nomeadamente num domínio específico, o do potencial turístico que determinados filmes exercem, quer na criação de rotas a locais paradigmáticos onde as rodagens foram efetuadas, quer na promoção de re- giões ou países, cujo peso económico não é de forma alguma menosprezável. Ou seja, em determinados filmes verifica-se uma identificação primordial entre o espetador e aquilo que está a ver, que o poderá conduzir, subsequentemente, ao desenvolvimento do desejo de visitar os locais onde o filme foi rodado, daí que exista por exemplo em Espanha a ‘rota de Almodovar no cinema’, com percursos turísticos aos locais onde o realizador rodou as suas obras ou, por outro lado, o simples desejo de visitar turisticamente uma região ou cidade pelo exercício de atração desenvolvido no espetador através da identificação primária. Neste aspeto, são inúmeras as referências e estudos que referem a influência que os filmes exercem a visitar determinadas cidades, como é o caso de Paris onde, segundo Carlos Rosado Cobián, presidente da Spain Film Commission, «60% das pessoas admitem ter visitado Paris depois de verem um filme» sobre a cidade2.

A propósito desta atração que a imagem fílmica exerce, que pode suscitar a identificação e auto-projeção do espetador relativamente ao espaço-território da ação e, consequentemente, o desenvolvimento de uma atração eventualmente materializável numa visita turística, gostaríamos de referir um exemplo clássico, África minha (Sydney Pollack, 1985), que poderá conduzir o espetador a visitar no Quénia os locais de rodagem, ou simplesmente alguns destinos naquele país com a mesma ambiência que, no caso do filme de Pollack, poderão passar pelo desejo de sentir o pulsar da liberdade que perpassa ao longo da obra. A questão deve começar por ser explicada através da intriga, na qual existe uma relação com desenlace infeliz entre Karen (Meryl Steep) e Denys (Robert Redford), na qual o espaço onde a ação se desenrola tem uma função metafórica fundamental na explicação deste final.
A relação entre os dois desenvolve-se em África. Karen foi para aquele continente depois da compra de uma quinta vindo, nessa sequência, a co- nhecer o caçador Denys, com quem virá a desenvolver uma relação amorosa, cujo desenlace feliz embate porém no modelo que cada um preconiza para o desenvolvimento do laço afetivo. Karen é defensora de uma relação no quadro de um conjunto de elementos de estabilidade que, se idealmente passavam pela relação conjugal, no mínimo deveriam reger-se por alguns aspetos, nomeadamente uma casa onde ambos vivessem. Denys, em oposição a estes princípios, é um amante de um tipo de liberdade que só África lhe pode dar, como se o continente fosse a sua casa, precisando de longas saídas, na qual a caça é apenas um pretexto, e cuja razão de fundo é a necessidade existencial de estar consigo próprio na imensidão do espaço africano. Porém a oposição de princípios relacionais caminha para uma situação de rutura, até que Denys cede aos ideais de Karen, cuja concretização é no entanto inviabilizada devido à morte de Denys num acidente com o seu avião, sobre o qual pairará sempre a dúvida se foi acidente ou suicídio, na medida em que a estabilização “resi- dencial” de Denys deverá também ser interpretada como um aprisionamento em relação ao qual tem incompatibilidades existenciais e, nessa medida, a morte de Denys surgirá como a antecipação de um definhamento que viria a acontecer mais tarde.

Será nesse sentido que a imensidão do espaço africano é tratado de for- ma muito significativa, sempre por iniciativa de Denys, como se através de uma escrita imagética quisesse explicar a Karen as suas necessidades daquelas amplidões de perder de vista, numa partilha de emoções que, em última ins- tância procuram também seduzir a companheira para aquele modo de vida. Neste processo de expressão, como se poderá deduzir, a imagem adquire uma componente simbólica determinante onde, por arrastamento, o espetador é convidado a observar imagens através de escalas e motivos onde a beleza e a imensidão de África se cruzam permanentemente, resultando daqui uma ine- vitável atração que se desenvolve, fruto de um desejo que se vai instalando no espetador, em consequência da identificação que desenvolve com os espaços que lhe são mostrados, da sua auto-projeção naqueles territórios, onde o desejo de aventura e sedução em visitar aquelas regiões do Quénia se cruzam.

Cinema e território. representação, metáfora, identificação

Concluído este pequeno ensaio sobre a relação entre cinema e território, importa colocar uma questão simples mas em todo o caso muito pertinente, que consiste em saber que aproveitamento científico poderá advir desta relação. As escolhas temáticas que fizemos responderão em parte à questão desde que percebamos os domínios de comunicação e significações em que o cinema se movimenta e organiza e, por outro, entendamos igualmente que a relação entre cinema e mimetismo da realidade é de todo inexistente. Esclarecemos o assunto através da questão da repre- sentação, através da qual procurámos clarificar que as imagens do território estão mais próximas da representação subjetiva do que do espelhamento fiel e objetivo do espaço. De qualquer forma, sublinhe-se que, neste aspeto, o cinema está no mesmo patamar dos outros mecanismos de estudo e recolha sobre o território, que são sempre intermediações da realidade e não ela própria. O problema, julgamos, consistirá na falsa ideia de que a relação entre cinema e território seria a de aquele trazia uma objetividade efetiva para o estudo do território que, na verdade, está mais próxima da subjetividade que da objetividade.

Em segundo lugar, através da metáfora e da identificação, procurámos também evidenciar dois outros domínios com relação direta com o estudo do território, que diz respeito à projeção imaginária que o cinema pode fazer sobre alguns territórios, a ponto de levar à construção de arquétipos inexistentes ou, por outro, ao desenvolvimento de desejos e auto-projeções que é também um domínio da área do estudo do território.
Esclarecidos estes pontos devemos concluir que a relação entre os dois domínios e de todo improdutiva do ponto de vista científico? Pensamos que não desde que percebamos que os domínios da representação, da metáfora e da identificação são campos importantes no estudo do território do ponto de vista do imaginário e da perceção coletiva que a sociedade vai dando sobre o território onde vive. Por outro lado, mesmo sendo representação, se dominarmos os procedimentos de expressão fílmica naturalmente que conseguiremos retirar informações objetivas sobre imagens construídas a partir de um determinado território.
Concluindo, pensamos que o principal contributo do cinema para o estudo do território estará mesmo na importância simbólica da sua representação, porque aí podemos eventualmente assistir as projeções que a sociedade vai produzindo sobre o território em que vive, e esse será um domínio importante para o estudo da representação que a sociedade vai fazendo sobre o espaço em que vive e, por outro, indiscutivelmente, o cinema é um dos mecanismos mais poderosos para provocar o desejo de aproximação ao território, consistindo este outro domínio que não pode ser secundarizado nesta relação.

Referências Bibliográficas

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Aumont, Jacques (2009). Dicionário teórico e crítico do cinema, Lisboa, Texto e Grafia. Catroga, Fernando (2001). Memória, história e historiografia, Coimbra, Quarteto. Ferro, Marc (1995). Historia contemporánea y cine, Barcelona, Ariel.
Gardies, René (2008). Compreender o cinema e as imagens, Lisboa, Texto e Grafia. Martin, Marcel (2005). A linguagem cinematográfica, Lisboa, Dinalivro.
Seabra, Jorge (2014). Cinema. Tempo, memória, análise, Coimbra, Imprensa da Universidade de Coimbra.

Fílmicas

Curtiz, Michael (1942). Casablanca, Hal B. Wallis.
Oliveira, Manoel (1931). Douro faina fluvial, Porto, Manoel de Oliveira. Pollack, Sidney (1985). África minha, Sidney Pollack.
Ruttmann, Walter (1927) Berlim, sinfonia de uma capital, Karl Freund. Vertov, Dziga (1929). O homem da câmara de filmar, Moscovo, VUFKKU.

Webgrafia

http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/governo-cria-portuguese-film-commission-para-atrair- rodagens-e-promover-o-destino-portugal-1659512.
http://congresocinesalamanca2015.com/2015/06/27/carlos-rosado-clausura-el-cihalcep-2015/.