Sérgio Dias Branco
CEIS20 - Universidade de Coimbra IFILNOVA - Universidade Nova de Lisboa
sdiasbranco@fl.uc.pt
Há mais de trinta anos, Françoise Choay escrevia que a cidade de amanhã se iria assumir como um sistema diferente, um outro conceito com uma nova significação (1965). Talvez não sejamos ainda capazes de definir esse sistema. Talvez nunca seremos. Podemos, no entanto, avançar uma direcção de pensa- mento - e o cinema pode ajudar-nos a pensar sobre esta cidade que existe sem que a consigamos definir.
Com o desaparecimento dos contornos que lhe definiam os limites, a cidade tornar-se-ia um organismo utópico modificando o valor e o entendimento dos fenómenos urbanos - utopia é aqui empregue no seu sentido original,o da nega- ção do lugar, daquilo que não é em parte alguma. Choay desenvolve esta ideia:
“Admitamos que subsiste uma realidade comparável àquela que hoje chamamos cidade; é apenas no plano de uso que nos será possível aproximarmos dela. O feito que a nova linguagem - vocabulário e sintaxe - possui de ser construída conscientemente e deliberadamente, ressoa na sua significação: arrisca abolir a ilusão tradicional que nos faz ver as estruturas urbanas como dádivas da natureza.1”(1965, p. 82)
Todas as produções e construções humanas resultam de gestos que instauram e criam contrastes com o natural existente. São, em simultâneo, naturais, na medida em que fazem parte da história material do mundo, sempre em desenvolvimento, à qual pertence também o ser humano. Ser habitante e actor da vida urbana é, hoje, uma condição natural. Ou melhor: é uma condição singular, específica, histórica, mas à qual a dinâmica social empresta um valor de naturalidade. A construção e habitação de estruturas urbanas é um processo que arrasta consigo a alteração da ideia de natureza. Quando Paul Virilio interpreta a nossa história social através de conceitos como os de velocidade (ver 1998), segue uma linha de pensamento semelhante. Como teórico do urbanismo e da arquitectura, Virilio entende os avanços electrónicos e mecânicos como instrumentos de modificação do mundo e da percepção que temos dele. A ideia de natureza sempre foi mutável e repensada. O conceito de natural concretiza em muitos momentos um modo de identifica- ção, reconhecimento, suporte, cujo carácter inalterado e inalterável é socialmente urdido entre tempos.
A cidade é, na sua essência, pulsante, viva, aberta. Isto é, a abertura faz parte das suas características e manifesta-se na maneira como muda e como acolhe. A cidade não é um território. Um território, por exemplo de um país, tende a ter fronteiras claras, apenas redefinidas através da violência, ou seja, da guerra. Nesse sentido, uma cidade não pode ser considerada um território, dado o modo como se transforma, por vezes ultrapassando aquilo que pareciam ser os seus limites. A cidade é um organismo e só o é porque o que a desenha é a vida dos seres que a habitam. Os arquitectos dizem muitas vezes que desenham cidade, mas no fundo o que fazem é dar forma e espaço para que a cidade possa emergir e acontecer. Não há cidade sem vida humana.
Encontramos uma correlação e uma contingência similares entre os habitantes da cidade e as imagens que ocupam, transfiguram, e delineiam a cidade. Como diz Jean-Luc Godard: “Não há imagem, só imagens. E uma certa maneira de montar as imagens: havendo duas há sempre uma terceira. É o fundamento da aritmética, é o fundamento do cinema. [...] Não há imagem, só há relações entre imagens” (apud. Oliveira, 1999, pp. 100-101). Já Walter Benjamin reconhecia as imagens, a sua multiplicação e transformação, como estando no coração da experiência moderna (2006, pp. 207-322). Na imagem tudo vacila. Tudo parece decidir-se.
As imagens em movimento do cinema, do vídeo, da televisão, dos sistemas informáticos e de comunicação, tornaram-se decisivos para a dinâmica própria da cidade, moldando a sua experiência. As imagens mais do que representa- ções são matérias sensíveis, momentos de um energia que é considerada vital. Virilio aproxima a experiência arquitectónica daquela que é proporcionada por estas imagens, o que é sintomático de uma transformação. Segundo ele, modificaram-se as noções de superfície, matéria, e surgiram outras como a de interface (ver Virilio, 1998).
Numa primeira aproximação, a representação do espaço através destes meios audiovisuais resulta num espaço empiricamente não real, mas convencional. Pode-se afirmar que este último, em vez de possuir uma existência autónoma, não é mais do que uma resultante figurativa do primeiro. Proporcionou-se a confusão entre os dois espaços, contribuindo para a evolução contemporânea, porque a representação é uma operação de selecção de elementos e relações. Estes elementos e estas relações aparecem de uma forma que já nada tem a ver com a primeira. Esta nova disposição é fruto de uma prática combinatória que permite a composição de um universo idêntico ao real - com atributos como espessura e profundidade a partir da perspectiva, mas com leis próprias. O mundo não fica reduzido a fragmentos porque a nossa mente integra os pe- daços individuais que aparecem nos ecrãs num contexto espacial mais amplo, restituindo e percebendo o seu sentido homogéneo.
A percepção deve ser distinguida da compreensão. A cognição, tomada na generalidade, tem um interesse limitado para a estética e para o estudo da arte. A percepção designa um conhecimento de um objecto tido como real, adquiri- do mediante os sentidos. Assim se distingue também a percepção da sensação. A psicologia tende a considerar a percepção como um processo composto por dois movimentos distintos: discriminação entre estímulos e interpretação das mudanças quantitativas e qualitativas que eles introduzem. Na actividade per- ceptiva esses momentos correspondem igualmente a dois sistemas desiguais: o sensorial e o intelectivo. As sensações não nos proporcionam directamente uma imagem do mundo e são elaboradas pela inteligência.
Na verdade, a percepção prática implica uma consciência. Virilio fala em imaginário visual que regula as respostas às imagens. É entre fragmentos, como numa montagem, que a identidade se define na urbanidade de hoje. Já Agostinho chama a atenção para o facto da experiência do espaço e do tempo ser heterogénea, sentida, pensada, ganhando sentido subjectiva e qualitativamente (2004, pp. 589, 591). Há uma diferença entre o espaço e o tempo homogéneos, quantitativos, medidos pela ciência, em secções fixas, centímetro a centímetro, ou em instantes estáticos, segundo a segundo. A nova conjuntura urbana é também uma nova conjuntura perceptiva. As representações oferecidas pelos meios cinemáticos são tomadas como expressões da realidade do mundo sensível e os espaços passaram a ser ocupados por imagens, que não só duplicam o real como o emulam. Ao ser sublinhado esse valor expressivo, que muito deve à noção de directo vinculada pela televisão, rapidamente as imagens deixaram de ser vistas apenas como representações para se afirmaram como objectos com um carácter sintático e combinatório. Não admira, portanto, que a relação entre a arquitectura e as imagens em movimento tenha sido complexificada através de uma dialéctica da imagem:
“De todas as artes, [...] é a arquitectura que tem tido a mais pri- vilegiada e difícil relação com o cinema. Apesar do seu papel óbvio para a experimentação espacial, o cinema tem também sido criticado pelos seus efeitos nocivos na imagem arquitectural”2 (Neumann, 1996, p. 13).
A questão desloca-se da apercepção, apreensão directa, imediata, não reflexiva, de que Virilio fala, para a autonomia da imagem, modelo desse real autónomo, sem origem nem fim, de que Jean Baudrillard se ocupou (1991). Essa é uma ideia contemporânea em que as imagens são analisadas são só como coisas nas quais descobrimos e projectamos sentidos, mas como estímulos fisiológicos no contexto de um sistema perceptivo que usa certas capacidades adormecidas ou transformadas. Benjamin escrevia, por isso, que “[a]dentro de períodos históricos transforma-se todo o modo de existência das sociedades humanas, e com ele o seu modo de percepção” (2006, p. 212, orig. em itálico).
Por exemplo, uma das acções mais comuns no quotidiano de um espectador de hoje é o zapping. Através dele, situamo-nos permanentemente entre, escapando à fixidez, aparentemente fugindo às limitações do espaço, do tempo, e da nossa condição. A experiência da interactividade e a sensação de comando através do controlo remoto levam à imediata dedução da ubiquidade. Mas facilmente se demonstra o carácter ilusório desta omnipresença. O zapping não consegue ser a alternância entre dois ou mais modos, muito menos a presença, mas sim a acumu- lação de processos que se iniciam sem nunca se completarem. Neste movimento, o corpo perde a mobilidade. É reconhecido que a percepção está relacionada com o movimento. O nosso corpo permite uma acção no mundo. O espaço e o tempo não são um produto. Como argumenta Maurice Merleau-Ponty, não pensamos no espaço e no tempo, nem estamos neles: existimos e somos neles (1994, pp. 327-400 e 549-580). Aquele ser a que chamamos zapper, pelo contrário, está imóvel. Como tende a viver as imagens como o único real possível, organiza-as à distância, a partir do controlo remoto. Já não se movimenta no mundo físico de modo a existir: existe na medida em que está parado e o mundo que compõe se movimenta à sua volta.
Do zapping podemos partir para uma discussão alargada sobre a telecomu- nicação e a circulação das imagens. Uma das modificações implicadas neste processo histórico é a atenuação, tendente à eliminação, da noção de distân- cia. O mundo aparece como um único lugar, sem horizonte. Viver passa a ser uma viagem veloz, num fluxo de saltos permanente. Esta velocidade arrasta a vacilação constante e a cidade, como paisagem saturada de imagens, já não nos aparece como extensão e duração, como indica Virilio (1993, pp. 24-26). Inseparável da globalização capitalista, este movimento de expansão apoiado nas tecnologias digitais produziu um novo complexo de conexões e possibilidades que parecem tornar o social e o cultural menos determinados, nomeadamente favorecendo uma cultura comunitária. Este mundo de espectros é um mundo em que o próprio capitalismo, global, imperial, se torna espectral. Esconde a sua natureza: a exploração e predação do trabalho assalariado através do emprego da força de trabalho para produzir e incrementar mais-valia. Isto é, mascara a homogeneidade das relações sociais do seu modo de produção com a heterogeneidade dos seus produtos e consumidores. Como esclarece Teresa
L. Ebert, “[a] proliferação da heterogeneidade é uma das estratégias de gestão que o capitalismo global implementa para aumentar as vendas e os lucros”, porque ao contrário do que se pode pensar o capitalismo não é “um regime normativo que impõe a homogeneidade em todo o lado”3 (2009, p. 135). A homogeneidade e heterogeneidade são assim destrinçadas e definidas a partir da sua função eco- nómica, social, e ideológica - uma função de encobrimento ou manifestação, de adormecimento ou acção, de acatamento ou insubmissão, de aprisionamento ou emancipação. Se a primeira palavra não é um sinónimo de capitalismo, a segunda também não.
O filme Shijie (O Mundo, 2004) equaciona esta dialéctica que se vive sobretudo no espaço urbano. Trata-se de mais uma peça no retrato que o cineasta Zhang-ke Jia tem feito da República Popular da China contemporânea. Recorrendo a dados oficiais, Luís Carapinha informa-nos que a população urbana chinesa cresceu de 17% para 53% entre 1979 e 2012, o que “constitui o maior e mais rápido processo de urbanização vivido por um país na história mundial” (2015, p. 339). Shijie retrata Pequim como metrópole e os seus habitantes como personagens à procura da sua história e identidade. O principal cenário do filme é um parque de diversões temático em Pequim, onde foram construídas pequenas réplicas de monumentos de todo o mundo, do Taj Mahal indiano à Torre Eiffel francesa. Os visitantes passeiam por estas imitações edificadas e tentam inclui-las nas suas fotografias. É neste local que a protagonista, Tao, trabalha como performer. A sua receosa relação amorosa com um colega de trabalho, Taisheng, segurança do parque, ocupa-lhe a mente. Trabalham no parque muitos migrantes, vindos de outras regiões chinesas e de fora do país - como Taisheng, que vem da província de Shanxi, e uma emigrante russa que se torna amiga de Tao. Como nos filmes imediatamente anteriores, Zhang-ke usou o vídeo de alta definição, mas desta vez não apenas para filmar, mas também para criar e introduzir animações digitais. Estas imagens dão forma aos sentimentos e pensamentos de Tao e inserem-se na sua “vida digital”, na expressão do realizador. Numa das cenas, ela viaja de autocarro pela cidade quando recebe uma mensagem escrita de Taisheng no seu telemóvel (fig. 1a). “Até onde podes ir?”, pergunta ele, ansioso que a intimidade sexual com ela se consume. A sequência animada surge logo a seguir (fig. 1b), transfigurando o transporte e a cidade num sonho acordado em que a personagem abandona, por momentos, a sua situação de angústia. A cena começa com um anúncio do parque mostrado num monitor do autocarro, antes da câmara rodar para a esquerda para enquadrar Tao. Entre as imagens das réplicas no monitor e as imagens que emergem da sua emoção - as primeiras salientando a imitação, as segundas a criação - a cidade fora do parque é apenas um vislumbre que se vê do interior do autocarro ou através da sua imaginação pessoal. A integração da urbanidade como imaginário colectivo, e em aberto, é uma das marcas da transformação acelerada da vida na China.
As mitologias fazem a dinâmica do mundo contemporâneo. É próprio do processo do mito transformar um conteúdo em forma, como refere Roland Barthes (1988, p. 188). No presente, as imagens, como formas, são muitas vezes estímulos anestéticos, mas são também elementos que respondem formalmente à necessidade de que “tudo, de qualquer maneira, se torne objecto de comunica- ção” (Vattimo, 1992, p. 12). Formam-se a partir da matéria, aparentemente para a desmaterialização, desintegrando o mundo, situando-se noutro mundo, situando outro mundo.
A cidade tornou-se um sistema aberto, sem limites estáveis, apagando as suas fronteiras, esvaziando a sua estrutura. Este desenvolvimento é indissoci- ável de transformações ao nível da percepção. As formas da arquitectura e do urbanismo tendem para a disformidade. De acordo com Virilio, as imagens só parecem correctas porque a nossa percepção está deformada. A utilização da figura da anamorfose por parte deste pensador, implica ainda a distinção entre o deformado e o não deformado ou entre o real e o não real. A ideia que tende a triunfar no líquido sistema de imagens em que estamos integrados, no entanto, é a da mistura indistinta de tudo, da impossibilidade de conhecer e reconhecer a realidade. Assim entendidas, as imagens audiovisuais não produziriam um espaço-tempo alternativo ao real, mas outro real, porventura mais real que o real que julgamos conhecer, renovado a partir da autofagia que o institui.
A temporalidade e a espacialidade são propriedades que, de algum modo, obrigam à percepção pelo sujeito, forçam a que seja activada a função através da qual o aparato perceptivo produz representações dos objectos que lhe são exte- riores. Contudo, a subjectividade, sensível e intelectual, não pode ser pensada como um véu ou uma barreira, mas emerge e altera-se na teia de relações da realidade histórica e social. O sistema mitológico da actualidade não é mais do que o modo como as sociedades falam de si, se comentam e potenciam, através da forma como perspectivam e desejam. O que é o mito da aldeia global senão uma metáfora da harmonia, do equilíbrio, e do igualitarismo? - pergunta João Arriscado Nunes (1997, pp. 29-36). A utopia é a matriz da caracterização da cidade sem uma imagem geral fixa. Que ordem compositiva e formal pode ter um lugar sem contornos definidos? É uma questão que conduz aos paradoxos das novas relações sociais, onde a vizinhança é tendencialmente anónima, mas o mundo inteiro é potencialmente vizinho. Utópico, no sentido da impossibilidade de uma definição positiva, o espaço urbano pode ficar refém da transitividade e da plasticidade, possibilitando a montagem incessante. Dessa forma, as imagens reprodutíveis podem perder o potencial crítico que Benjamin detalhou, domi- nadas pelo instante fugaz em vez do gesto marcante, envolvendo numa anestesia quem com elas se envolve. O problema coloca-se no campo da história quando o sentido enraizado e contextualizado destas imagens é esvaziado.
“O cinema projectou e os homens viram que mundo estava lá,”4 diz Jean-Luc
Godard nas suas Histoire(s) du cinéma (História(s) do Cinema, 1989-98). Dizer que o mundo estava lá, projectado, não é dizer que as imagens se equivalem ao mundo. Virilio lembra uma máxima de Paul Valéry: “Toda a representação é uma redução.”5 (1998, p. 4). Toda a representação volta a tornar presente e, nesse sentido, reduz o que esteve presente e o seu contexto. Porém, as imagens em movimento não são entendidas como simples reduções. Benjamin explica que a “autenticidade de uma coisa é a essência de tudo o que ela comporta de trans- missível desde a sua origem, da duração material à sua qualidade de testemunho histórico” (2006, p. 211). Estas imagens assemelham-se a ampliações, levando à identificação das imagens com o seu referente, como se elas absorvessem as suas pulsações. Da imagem como duplicação à autonomização da imagem foi um passo curto. A matéria da história deu lugar à matéria como história, às imagens que fazem história, possíveis de montar e dispor de muitas maneiras.
Semelhante noção inverteu a fórmula hegeliana: tudo o que é real é racional, tudo o que é racional é real. Vogamos agora sob o efeito de um novo postulado: tudo o que é real é visível, tudo o que é visível ou pode ser visto é real. As imagens, por vezes pensadas como elementos imateriais, são uma matéria construtora da re- alidade em diversas dimensões porque manifestam a economia das relações sociais.
É por essa razão que para Gianni Vattimo “imagens” e “mundo das mercadorias” são sinónimos (1992, p. 14). No limite, a história como ciência estaria condenada a lidar com os mesmos simulacros que qualquer espectador. Baudrillard descreve um real que “[é] apenas operacional. Na verdade, já não é real, pois já não está en- volto em nenhum imaginário. É um hiper-real, produto de síntese irradiando modelos combinatórios num hiperespaço sem atmosfera.” (1991, p. 8). A dispersão quotidiana das imagens faz com que já não se projectem simplesmente em muitos ecrãs, mas se diluam vertiginosamente numa paisagem onde tudo é ecrã.
Godard é um cineasta que entende a pertinência destas questões, conside- rando que só podemos pensar a nossa condição contemporânea se pensarmos sobre e com as imagens. A dada momento, Film socialisme (Filme Socialismo, 2010) desenvolve este pensamento ligando a história do cinema à história de uma cidade. O filme cruza excertos da célebre cena na escadaria de Odessa (fig. 1) de Bronenosets Potyomkin (O Couraçado Potemkine, 1925), realizado por Sergei Eisenstein, com planos filmados no mesmo local mais de 80 anos depois (fig. 2). A sequência pertence a uma parte que se estrutura em torno de seis lugares sob o título “Nossas Humanidades” (“Nos Humanités”): Egipto, Palestina, Odessa, Grécia, Nápoles, e Barcelona. As imagens a preto e branco de Bronenosets Potyomkin mostram os cossacos a descerem as escadas para car- regarem sobre o povo que se revoltava contra o regime monárquico tzarista. As imagens a cores dão a ver os lances de escada de fora e do lado esquerdo, com câmara a mover-se através da folhagem das árvores. Esta perspectiva não consta no filme dirigido por Eisenstein - há apenas um plano de perfil da escadaria, captado mais acima, fixo, sem o obscurecimento provocado pelas folhas, que surge no início da cena. Sabemos que o massacre filmado pelo cineasta sovi- ético não aconteceu, mas a revolta da tripulação do Potemkine é factual e foi um acontecimento crucial do movimento revolucionário russo de 1905 a 1907 que prenunciou a Revolução de Outubro de 1917. O filme de 1925 dramatiza essa revolta, ligando-a à luta de um povo oprimido, que o navio de guerra, já tomado, defende, contra o exército russo tzarista. Este massacre não foi orde- nado pelo tzar ou levado a cabo pelos cossacos, mas representa muito episódios de repressão violenta. É precisamente por isso que, não tendo acontecido, passou a pertencer ao imaginário colectivo dos progressistas e revolucionários, dando forma cinematográfica à força que se opunha à dominação social e política que caracterizava o tzarismo. A sequência começa com a imagem de uma coruja, animal de hábitos nocturnos, em pleno dia, virando a cabeça atenta ao que a rodeia e dirigindo o seu olhar para a câmara. Depois da montagem paralela entre o preto e branco e a cor, o olhar de Eisenstein e o de Godard, um grupo de adolescentes ouve uma mulher a falar, possivelmente sobre a escadaria e Bronenosets Potyomkin. Um dos miúdos diz sobre o marinheiro revolucionário que instiga a insurreição e morreu no seu decurso: “Pobre Vakulinchuk.” Como se vê em Film socialisme através do que se vê em Bronenosets Potyomkin, o seu funeral tornou-se numa gigantesca manifestação de massas. A escadaria marca a entrada de uma cidade portuária moldada pela história das imagens e pelas imagens da história. No fundo, Godard mostra a presença do passado em Odessa como se fosse uma sombra - ainda antes de 2 de Maio de 2014, quando uma marcha incendiária de grupos nacionalistas, alguns assumidamente neo-nazis, apoiantes da Maidan, assaltou a cidade e incendiou a Casa dos Sindicatos, vitimando mais de 40 antifascistas ucranianos.
A imagem de cidade sempre foi uma representação da ordem económica, po- lítica, social, e cultural. É também um volume de marcas temporais, um caminho de rastos e sobreposições de tempos históricos. A história procura uma narrativa dos eventos passados, mesmo tendo em conta a tensão entre a afirmação do ca- rácter documental das imagens, como objectos do mundo, e o seu esquecimento. Tudo se desloca cada vez mais para a intimidade da vida doméstica, afastando-se da sociabilidade da vida pública, negando aquilo que determina, conforma, de- safia, e agita a subjectividade. Tal conduz a uma vivência da cidade já não como realidade física, mas como espaço abstracto. Meio sem limites definidos, oposto à cidadela, é ainda possível que adquira uma dimensão de civitas, isto é, que assuma uma ordem simbólica ligada à cidadania, apesar de tender a perder a sua forma constante e legível. A organização espacial da cidade é vital na definição da nossa relação com mundo, definindo-nos como personalidades participantes e actuantes. Daí que Virilio fale na instrumentalização do lar. A habitação deixa de se situar no mundo, porque este parece que já não pode ser mapeado por coordenadas. É o mundo que é situado a partir de casa, reordenado, reorganizado.
Virilio transfere a questão da organização e funcionamento espacial da cidade para o tempo como sistema abstracto de reorganização permanente da vida e das actividades humanas. A ampliação do dia operacional alarga as horas de trabalho e cria um contínuo sem descanso - o dia eléctrico sucede ao dia químico que sucede ao dia solar. Esta progressão prolonga o dia para a noite até os dois se imiscuírem e é uma operação idêntica ao achatamento da profundidade espacial. Tempo e espaço são entidades maleáveis. As cidades contemporâneas são povoadas de estruturas como os grandes centros comerciais, peças isoladas e de encerramento viradas para dentro. A autonomia funcional em relação à estrutura física cria um conjunto complexo de sítios dispersos. A estruturação espacial está, mais do que nunca, dependente da dinâmica política de governo e planeamento da cidade.
A relação entre urbanidade e movimento ganha particular importância nesta conjuntura, como Jean Rémy e Liliane Voyé reconhecem: “Há um modo de es- pacialização específico à vida social que está ligado ao modo como estão integradas as deslocações na vida de todos os dias e nos momento excepcionais que a pontuam.” (1994, p. 49). A separação e a fragmentação são as figuras mais importantes nesta mutação. O interior é dividido do exterior tal como o sujeito é autonomizado do lugar e da época. O zapping mostra que o espaço de interacção da humanidade com o meio físico tem vindo a diminuir de modo sintomático. Estar em frente a um televisor ou navegar pela internet não é muito diferente de entrar num automóvel na garagem de um edifício e só sair noutra, noutro edifício. A cidade confere unidade e lógica ao nosso movimento no território, à nossa passagem de um interior para outro. O mundo lá fora é uma ficção de imagens, o que justifica que Virilio trace um paralelo entre o ecrã de um televisor com a janela de um automóvel.
A ordem e legibilidade urbanas que Kevin Lynch defende em A Imagem da
Cidade (1996) desvanecem-se na vertigem - e um sinal disso é o facto das suas re- flexões posteriores darem mais importância à temporalidade do que à espacialidade. Teorizar pressupõe estabelecer distinções e propor definições a partir de uma análise que decomponha o todo nas suas partes e relações. Lynch decompôs a imagem da cidade em diversos componentes: vias, limites, bairros, cruzamentos, e elementos marcantes. Mas neste tempo que Choay denomina de pós-urbano, revelando nesta expressão esvaziada a dificuldade em pensá-lo, a essência da cidade parece ter mudado. A imagem da cidade deu lugar à cidade das imagens. Se Virilio fala da arquitectura improvável (ver 1998), talvez possamos falar da cidade improvável.
Esta cidade e as suas imagens são orientadas pelas relações do sistema capi- talista. Wall Street: Money Never Sleeps (Wall Street: O Dinheiro Nunca Dorme, 2010), sequela de Wall Street (1987), ambos realizados por Oliver Stone, analisa a financeirização da economia que se intensificou entre um filme e outro. Uma das sequências desta obra abre com a imagem de um corredor de servidores, computadores, e cabos na qual é inscrita uma faixa de índices do mercado de capitais em perspectiva (fig. 3a). A pouco e pouco, o concreto desaparece e só fica o abstracto: os lados (como fachadas altas) e os canais (como ruas extensas) são definidos de números, gráficos, telefonemas, e comentários que representam as transações financeiras que as redes de telecomunicação e a transmissão de dados fazem fluir (fig. 3b). Esta cidade é construída a partir da comunicação entre muitas capitais do mercado financeiro global. Como explica António Avelãs Nunes, a “globalização financeira assume [...] uma importância fundamental no quadro da política de globalização neoliberal, traduzindo-se [...] na criação de um mercado único de capital à escala mundial e na consagração do princípio da liberdade de circulação do capital” (2012, p. 21). É uma economia “divorciada da economia real e da vida das pessoas comuns: o mon- tante das transações financeiras internacionais é dezenas de vezes superior ao valor do comércio mundial; milhões e milhões de dólares circulam dia- riamente no mercado cambial único em busca de lucro fácil e imediato” (Avelãs Nunes, 2012, p. 22).
Wall Street: Money Never Sleeps oferece uma representação visual desta descolagem entre a economia real e a especulação virtual. O fluxo do capital financeiro, a sua acumulação, circulação, reprodução, cria as linhas que dese- nham as cidades - a cidade da rede informática onde comunicamos e a cidade que habitamos.
O mundo em desvanecimento é ainda o da matéria da história mesmo que a cidade que daí resulte seja improvável. Assistimos à emergência de uma urba- nidade imagética, uma urbanidade que se exprime por imagens. Como Virilio vem afirmando, a progressiva anulação das constantes que a nossa percepção necessita de reconhecer não pode ser separada de uma estética do instante e da desaparição. Há uma lição a colher sobre as imagens que o cinema nos ensina desde o seu início: mesmo quando nelas se encena a ilusão, a aparência enga- nadora, toda a imagem transporta consigo a verdade da sua existência. Como elementos estruturantes da cidade, da sua experiência e da sua transformação, as imagens demarcam-na através das suas duplicidades interiores de que a noção de espectáculo deriva: o natural e o artificial, o real e o virtual, tocamse no fenómeno urbano contemporâneo, que nas palavras de Virilio é “uma ‘forma/imagem’ tão pouco real como a da ilusão”6 (1998, p. 15). A arquitectura e a cidade parecem modificar-se também segundo outras tantas dualidades: a efemeridade substitui a resistência e a transparência a opacidade. Entretanto, torna-se mais urgente escapar ao pensamento puramente dicotómico, refor- çando a leitura crítica. Voltamos então ao princípio, de onde não chegámos a sair. Nestes espaços urbanos, todos eles criações artificiais, tudo nos reenvia para uma nova noção de natural, um natural construído, que se revela na vida intensa e potência criadora da cidade das imagens.
Esta cidade é feitas de imagens, mas é, em si, uma imagem, de carácter simbólico e espectacular, um tropo espacial. Ou como escreve Herberto Helder: “Não existe outra metáfora que não seja o espaço; aquilo a que chamam metáforas são linhas de montagem narrativa, o decurso da alegoria, o espectáculo.” (1979,
p. 148). Num ensaio sobre as ligações entre a urbanização e o capitalismo, David Harvey argumenta que o crescimento das cidades contemporâneas é uma resposta às crises sistémicas na acumulação de capital (ver 2008). A cidade é um artefacto complexo no qual a história está inscrita e se inscreve - uma história de segregação e privilégio, mas também de democracia e socialização. A urbanidade de hoje, marcada pelos interesses capitalistas de agentes privados, distingue-se pela densificação, compressão, separação, e simulação.
As cidades permanecem organismos vivos que contêm vectores de mudança e o cinema é uma forma artística que as (re)conhece e (re)cria. Os olhares fíl- micos de Zhang-ke, Godard, e Stone, evidenciam que esta realidade pode ser criticamente observada e artisticamente meditada. As cidades são construídas pelas sociedades humanas ao longo do tempo através dos vínculos entre as actividades que ocupam os seus habitantes. Os filmes destes cineastas mostram que uma urbanidade, que numa primeira impressão se faz tanto de imagens soltas como de pessoas atomizadas, não impede que os indivíduos sejam situados socialmente nem que as suas acções organizadas sejam consideradas transfor- madoras. Na verdade, apontam para outra urbanidade, reflectindo sobre a que hoje prevalece. Seja através de um olhar imaginativo, sustentado pelas novas tecnologias, que se apropria da cidade como entidade social e nela inscreve um drama pessoal, como em Shijie. Seja através de um olhar consciente da história de libertação de uma cidade, plasmada nas imagens cinematográficas e integrada no imaginário colectivo, como em Film socialisme. Seja através de um olhar revelador do movimento de capitais pela alta finança que manobra as estruturas de funcionamento das grandes cidades, como em Wall Street: Money Never Sleeps.7
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A primeira versão, esquemática, deste texto tomou a forma de uma palestra apresentada no Workshop CutCity2012, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias, 27 Fev. 2012. Agradeço o convite que me foi dirigido pela Doutora Eliana Sousa Santos (Departamento de Arquitectura da Escola de Comunicação, Arquitectura, Artes e Tecnologias da Informação) para participar nesse evento como orador.
Merleau-Ponty, M. (1994). Fenomenologia da Percepção [1945], trad. C.A. Ribeiro de Moura. São Paulo: Martins Fontes.
Neumann, D. (org.) (1996) Film Architecture. Nova Iorque: Prestel-Verlag.
Oliveira, L. M. (org.) (1999). Jean-Luc Godard 1985-1999. Lisboa: Cinemateca Portuguesa. Rémy, J. e Voyé, L. (1994). Cidade: Rumo a uma Nova Definição? [1992], trad. J. Domingues de
Almeida. Porto: Edições Afrontamento.
Vattimo, G. (1992). A Sociedade Transparente [1989], trad. H. Shooja e I. Santos. Lisboa: Relógio D’Água.
Virilio, P. (1993). Temps, espace et démocratie. Entrevista de E. Gabey e T. Paquot. Urbanisme, 263, 24-26.
Virilio, P. (1998). La arquitectura improbable. El Croquis, 91, 4-15.