2.1 Território, ambiente e património
O desenvolvimento rural emerge nos últimos anos como um dos eixos estruturantes e prioritários das políticas de desenvolvimento territorial. Para contextualizar a evolução recente, é importante destacar o papel que diversos documentos orientadores e normativos, produzidos à escala nacional e internacional1 , tiveram na definição e aplicação das novas políticas e instrumentos para o mundo rural.
No caso da União Europeia, os espaços rurais estão hoje menos vinculados à função tradicional de abastecedores de alimentos, convertendo-se em espaços multifuncionais. A atual fase pós-produtivista significa que para além de abastecer de produtos agrícolas a agricultura produz bens públicos, isto é, aparece comprometida com a manutenção da paisagem, a preservação do ambiente, a salvaguarda e a valorização do património e constitui um elemento fundamental no âmbito da gestão do território.
Esta nova forma de conceber a agricultura (e o mundo rural) transmite-se também ao desenho do novo tipo de medidas de apoio. Depois da ênfase atribuída aos mercados, produtos, exportações e armazenamento, ganham expressão medidas concretas relacionadas com a manutenção das superfícies, as boas práticas agrícolas, a reflorestação e a preservação da paisagem. Isto significa que a nova política para o mundo rural tem sido orientada para o desenvolvimento rural, com o objetivo de conciliar a dimensão agrícola/rural e ambiental, diversificar as atividades produtivas e definir novos objetivos para a agricultura em função da perspetiva de ordenamento rural (Puente Férnandez, 2002).
As experiências LEADER são a expressão mais visível desta atmosfera de mudança que procura outorgar ao mundo rural uma papel mais ativo na condução do seu próprio futuro. O caráter inovador do Programa prende-se com a sua programação e gestão territorializada, envolvendo grupos da ação local, que com base numa estratégia de desenvolvimento local, recebem, avaliam e apoiam propostas de candidatura, de agentes privados e públicos, em áreas como a diversificação das atividades económicas (destacando-se o turismo em espaço rural), os equipamentos socioculturais, a preservação e a valorização do(s) património(s), e a promoção da imagem territorial.
De outro modo, a cooperação e o trabalho em rede constituem metodologias largamente elogiadas e referenciadas no âmbito da preparação de novas iniciativas de desenvolvimento (Carvalho, 2006). Assim acontece com a estratégia e programação do desenvolvimento rural, para o período 2007-2013, que pretende a integração de todas as medidas no âmbito de um instrumento único: o Fundo Europeu Agrícola de Desenvolvimento Rural (FEADER). A regulamentação deste instrumento, aprovada em junho de 2005, estabelece três objetivos para a política de desenvolvimento rural: aumento da competitividade da agricultura e da silvicultura; melhoria do ambiente e da paisagem rural; promoção da qualidade de vida e da diversificação económica das áreas rurais. Estes objetivos serão concretizados através de quatro eixos: três de natureza temática coincidentes com cada um dos referidos objetivos e um relativo à aplicação da abordagem LEADER no quadro dos programas de Desenvolvimento Rural. De igual modo, o FEADER determina a obrigatoriedade de cada Estado-membro estabelecer um Plano Estratégico Nacional para o Desenvolvimento Rural e um Programa Nacional ou um conjunto de Programas Regionais de Desenvolvimento Rural (Rosa, 2005).
2.2. O turismo cultural e o património construído nas estratégias de desenvolvimento dos territórios rurais
Como acabámos de referir, a fase pós-produtivista configura novas opções para o desenvolvimento dos territórios rurais, como é o caso do lazer e do turismo.
O turismo destaca-se, nos últimos anos, como fenómeno em rápida expansão (Butler et al., 1998; Hall et al., 2003) e configura uma das vias complementares que se pretende incentivar num contexto de marginalização económica e social de grande parte dos territórios rurais, através de diferentes políticas, instrumentos e iniciativas, tendo em vista converter valores naturais e culturais em valores económicos (Carvalho, 2005). Contudo não são alternativas fáceis às agriculturas em crise ou letárgicas, como também não são, na sua maioria, incentivos viáveis e de longa esperança de vida (Cavaco, 1999). No mesmo sentido aponta Balabanian (1999), quando defende que os territórios rurais, particularmente os mais frágeis, são mais lugares de excursão e de lazer do que espaços turísticos, e mesmo assim o retorno económico desses lazeres é muito fraco.
Assim, retemos (e partilhamos) a ideia de que o turismo é uma atividade muito seletiva e que apenas alguns territórios apresentam potencial para serem, progressivamente, incorporados na categoria de espaços de turismo 2. Prefigura um dos caminhos para o desenvolvimento, que deve ser integrado numa estratégia territorial sustentável (Carvalho, op. cit.).
Uma outra dimensão complicada refere-se à dificuldade em conciliar as diferentes orientações, perspetivas e interesses em relação ao turismo rural (figura 1), uma vez que os territórios rurais constituem plataformas de interesses divergentes e conflitos entre diferentes atores (Sharpley, 2003). Como sublinha este autor, a gestão dos territórios rurais é hoje mais complexa, com uma multiplicidade de estruturas e mecanismos políticos, que refletem o declínio do papel do setor agrícola e a emergência da diversidade de interesses e processos, incluindo o turismo. Ao mesmo tempo, o contexto político de governação rural conheceu algumas transformações, nomeadamente a partilha de poder e a participação de entidades governamentais e não governamentais. A pluralidade das intervenções e das instituições envolvidas traduz a confrontação de duas perspetivas ideológicas: de um lado, a perspetiva idílica, alicerçada em interesses ambientalistas e em práticas conservacionistas dos recursos e valores ambientais e culturais do mundo rural; de outro lado, a visão racionalista, assente na utilização e na maximização económica dos recursos turísticos rurais.
Nos últimos anos, tem-se assistido a um crescente uso turístico dos espaços rurais, através do incremento de novas modalidades turísticas, nomeadamente o turismo cultural. Esta modalidade demarca-se das formas mais convencionais de turismo, por via da sua dimensão ecocêntrica relacionada com a educação, o desenvolvimento pessoal e outros valores intrínsecos geradores de motivação para viajar (Wearing e NeiL, 2000; Fennel, 1999; Richards, 1998).
Como refere Henriques (2003: 50), o turismo cultural pode ser perspetivado «sob um enfoque triplo, ou seja, como a superação do turista consumista e da necessidade de evasão, como forma de unir os povos e como oportunidade de desenvolvimento económico para regiões sem a oferta clássica de evasão e diversão. Neste sentido é uma alternativa à trivialização da viagem, ante a perspetiva meramente consumista de outras formas de turismo».
Segundo Grande Ibarra et al. (1998), a definição de turismo cultural envolve três condições (a juntar ao deslocamento turístico): o desejo de se cultivar, conhecer e compreender os objetos, as obras e os homens; o consumo de um produto de tipo cultural (monumento, obra de arte, espetáculo), e a intervenção de um mediador, indivíduo, documento escrito ou material audiovisual, que valorizam ou realizam o produto cultural. Assim, o turismo cultural configura as viagens de mais de um dia de duração, cuja motivação principal seja a realização de, pelo menos, uma visita ou atividade de tipo cultural e que envolva o consumo de serviços turísticos básicos como alojamento e/ou transporte.
De igual modo, importa sublinhar que a conceção de turismo cultural fazia referência apenas ao conjunto de elementos patrimoniais, especialmente aqueles que integram a “alta cultura” e o património monumental, deixando relegados para segundo plano a cultura popular e o património não monumental. Atualmente quase todos os elementos culturais são suscetíveis de aproveitamento de um ponto de vista turístico 3, pela sua transcendência como aspetos diferenciadores e de identidade do território.
Com efeito, a maioria dos documentos sobre desenvolvimento sustentável do turismo, elaborados nos últimos anos, reconhece o património (na amplitude das conotações natural e cultural) como recurso para o desenvolvimento, e por isso as componentes do território são elementos chave para a valorização turística dos lugares. Desta forma, o património é interpretado como um recurso, um ativo turístico, no sentido de que pode configurar uma ferramenta útil de desenvolvimento e um valor a conservar para o turismo rural. Também a qualidade estética, a autenticidade e a variedade nas composições territoriais fazem toda a diferença (Antón Clave, 2000).
Por sua vez, a relação entre turismo e património, tanto a nível internacional, como em Portugal, decorre em boa parte da crescente importância e visibilidade do turismo em todas as suas manifestações (das práticas recreativas às dimensões relacionadas com a atividade económica), bem como da preocupação pela preservação e valorização do património (Ashworth, 1994; Prentice, 1999).
Newby (1994) defende que essa relação pode ser pensada como um continuum (figura 2). “At one end, culture is shared between residents and the visitors. At the other end, culture is packaged and shaped for presentation to tourists, the exact packaging being more influenced by need to generate tourist expenditure than by the cultural element itself. At both, there is an emphasis on the appropriateness of costume to the visitor experience (…). This relationship forms a continuum along which there are three principal focuses – coexistence, exploitation and imaginative reconstruction. While there is no inevitability that a place will evolve from one state to another, from coexistence through exploitation to reconstruction, it is quite clear that the growth is tourism has been partially responsible for the extension of this continuum and the development of news forms of relationship between culture and tourism” (Newby, op. cit., 208-209). A situação de coexistência significa que o turismo não domina a economia local. Quando o turismo começa a ocupar uma posição importante na economia local, impulsionado pela sociedade de consumo, o património cultural transforma-se na base de produção de mais valias económicas.
O processo de mercadorização do património, isto é, a transformação do património em produto de consumo, segundo a ótica de que a procura de nova função ou uso para certos imóveis com reconhecido valor patrimonial, no contexto da sociedade de consumo (e do espetáculo), privilegiará o acesso e o desfrute da população com mais capacidade económica e, em certos casos, pode subtrair o bem patrimonial ao seu contexto sociocultural. Como nota Barata (2003: 103-104), a massificação do consumo de bens culturais, expressão da rendibilidade do património cultural, quando centrado nos próprios sítios e não nas comunidades, «para além do esgotamento a que pode conduzir do próprio património, (…) pode ainda perverter o “espírito” dos lugares”, banalizando-o. Transformando os bens culturais em mais um produto de mercado, altera-se ainda a sua abordagem, porque à “itinerância viajante” se substitui uma fruição turística de “consumo” célere que apenas permite uma apreensão muito particular dos espaços».
Na medida em que assistimos ao progressivo desenvolvimento e consolidação de formas de ocupação e uso do espaço rural vinculadas ao turismo, no âmbito de um processo mais alargado de hipervalorização do património e patrimonialização em larga escala (Fortuna, 1997), que por sua vez decorre (em geral) de «estratégias de promoção e mercadorização dos lugares que respondem em simultâneo aos novos desafios da globalização e à esteticização pós-moderna dos quotidianos e dos seus cenários» (Henriques, 2003: 214), importa refletir sobre a sua tradução territorial, e perceber se o turismo cultural se constitui num novo fator de articulação económica e territorial, e de valorização patrimonial.
Como o “êxito” social do turismo não pode desvincular-se de medidas concretas derivadas da intervenção pública, é muito pertinente analisar as políticas e os instrumentos que permitem impulsionar e consolidar esta atividade (Carvalho, 2005).
1 A título de exemplo, podemos referir: “Plano Nacional de Desenvolvimento Económico e Social” (Portugal, 1999); “Programa de Desenvolvimento Regional, 2000-2006” (Portugal, 1999); “Campanha Europeia para o mundo rural” (COE, 1988); “O Futuro do Mundo Rural” (CE, 1988); “Quel Avenir pour les Campagnes? Une Politique de Développement Rural” (OCDE, 1993); “Conferência sobre Desenvolvimento Rural – Declaração de Cork” (UE, 1996); “Agenda 2000” (UE, 1999); “2ª Conferência sobre o Desenvolvimento Rural – Salzburgo” (UE, 2003); “Construir o nosso futuro comum – desafios políticos e recursos orçamentais da União alargada, 2007-2013” (CE, 2004).
2 Na perspetiva de Joaquim (1999: 305), o “turismo em espaço rural (TER) recobre um conjunto diversificado de atividades turísticas, apresentando profundos contrastes no interior dos países europeus, o que se relaciona, por um lado, com os diferentes conceitos de rural e, por outro lado, com as várias formas que o TER pode assumir”.
O próprio conceito resulta de diversas perspetivas e contributos, de tal modo que não existe uma aceção única de TER. Porém, é possível identificar dimensões comuns (transversais) em várias definições. Assim, a ênfase recai, em regra, nos seguintes domínios: utilização de recursos naturais e culturais que são próprios dos territórios e das paisagens; preocupação de conservar e valorizar diversos patrimónios; reduzida dimensão da unidade de exploração e dos equipamentos/infraestruturas associados; participação dos turistas nas atividades e nos costumes locais; tratamento personalizado dos utentes. De resto, trata-se de atividades e serviços realizados mediante remuneração em áreas rurais, segundo diversas modalidades de hospedagem.
3 O alargamento da noção de património – ancorado em dimensões antes negligenciadas, como construções rurais, artesanato, velhas unidades fabris, sem esquecer as dimensões imateriais – e a patrimonialização (como processo social de ativação do património) são indissociáveis dos motivos de ordem económica, social e cultural, relacionados com o papel desses recursos no desenvolvimento do turismo.