|
A perspectiva neoliberal de desenvolvimento ganhou espaço teórico e ideológico no último quarto do século XX. Sua efetiva implementação ocorreu de forma pioneira e concentrada nos países periféricos.
Segundo esta perspectiva, as reformas estruturais que incentivassem o funcionamento do mercado, apoiado na iniciativa privada e na menor presença estatal nas atividades econômicas, garantiriam a retomada das altas taxas de investimento e o crescimento econômico com distribuição de renda.
A retomada do desenvolvimento econômico estaria limitada pelo contexto de esgotamento da perspectiva estruturada no processo de substituição de importações. Esta, a partir da liderança estatal, estaria caracterizada pela implementação de políticas de protecionismo comercial, repressão financeira e forte regulamentação dos mercados, principalmente, do mercado de trabalho. Mais especificamente, foram propostas as reformas estruturais de abertura comercial, liberalização financeira interna e externa, desregulamentação dos mercados, privatização de estatais e serviços públicos, e eliminação da maior parte dos subsídios, como forma de liberalizar os preços. Essas medidas, na visão neoliberal, formariam o único tipo de estratégia econômica capaz de garantir a inserção desses países periféricos no decantado novo processo de globalização.
É nesse contexto que se inserem as propostas de defesa da abertura externa como forma de garantir uma inserção internacional benéfica para esses países. Do ponto de vista da abertura comercial, existiriam três conseqüências desejáveis para os países periféricos: (i) melhora na alocação dos recursos e, portanto, na eficiência econômica, segundo os preceitos do modelo de vantagem comparativa; (ii) elevação das taxas de crescimento da produção, por intermédio da elevação da produtividade, em decorrência da maior concorrência exercida pelos produtos externos; e, (iii) melhora da distribuição de renda em favor do fator abundante (trabalho desqualificado no caso específico das economias periféricas), conforme o modelo Heckscher-Ohlin-Samuelson, além da elevação dos salários reais, por conta do choque de produtividade proporcionado pela concorrência externa. Ainda com os questionamentos dos novos modelos do comércio internacional sobre determinados supostos do modelo original, a abertura comercial seria desejável, dentre outras coisas, por fornecer acesso à tecnologia incorporada nos bens importados, uma vantagem dinâmica não apontada pelo modelo original. Esses novos modelos destacam, ainda, o efeito pró-competitivo do comércio exterior.
A abertura financeira é justificada, por sua vez, pelas supostas vantagens trazidas pela livre mobilidade de capitais, afirmando que ela aperfeiçoaria a intermediação financeira global entre poupadores e investidores, permitindo a canalização da poupança externa para países com insuficiência de capital. Isto ajudaria também no financiamento compensatório de choques externos e, portanto, na estabilização do gasto interno. Defende-se ainda a abertura ao livre movimento de capitais porque ela levaria à perda de autonomia de política econômica para os países que a implementarem, o que seria salutar, já que isto reduziria o risco de políticas inadequadas ao novo contexto de globalização financeira, e proporcionaria uma maior uniformização das políticas econômicas.
Independente das justificativas ortodoxas para a abertura externa apresentarem uma mudança de forma ao longo do tempo, passando de uma defesa do tratamento de choque para o argumento da seqüência ótima e, posteriormente, para o revisionismo do pós-Consenso de Washington, o conteúdo das políticas apregoadas continua o mesmo. A inserção internacional dos países periféricos deveria ser norteada pelo processo de abertura externa, comercial e financeira, ainda que o Estado devesse atuar como regulador-supervisor em mercados que apresentassem determinadas imperfeições.
A implementação pioneira desse tipo de política ocorreu na década de 70 em países do cone sul, como Chile e Argentina, ambos sob a liderança de ditaduras militares. A partir de 1982, o México também passou a executar uma estratégia neoliberal de desenvolvimento, no que foi acompanhado novamente pela Argentina na virada dos anos 80 para os 90. O que essas experiências latino-americanas demonstraram é que esse tipo de política provocou um aumento da vulnerabilidade externa dessas economias, que se manifestou em crônicos déficits em suas contas externas e superendividamento público. Essa vulnerabilidade, ao mesmo tempo em que gerou regimes de baixas taxas de crescimento, culminou na deflagração de crises cambiais e/ou financeiras em 1981-82 no Chile e Argentina, 1994 no México e, novamente, na Argentina em 2001-2002. A tendência à concentração de renda também foi observada nessas experiências latino-americanas de abertura externa.
Diferentemente, a opção de inserção internacional tomada pelos países asiáticos, durante a década de 80, no que ficou conhecido como o “milagre asiático”, possuiu uma característica mais ativa e com forte participação estatal na condução dos programas econômicos. A dinâmica da região foi redefinida por um deslocamento do capital produtivo japonês rumo aos demais países da região, na forma de uma estratégia de substituição de importações com promoção de exportações. Os problemas apareceram justamente após a efetivação de medidas de liberalização financeira, que redundaram no aumento do grau de abertura financeira dessas economias. A crise de 1997 foi o resultado da conseqüente fragilidade financeira que se abateu sobre essas economias naquele momento.
Contrariamente ao que se defende como o melhor caminho para os países em desenvolvimento, a política efetivamente aplicada nos países centrais não condiz muito com a radicalidade do discurso neoliberal que seus governos costumam empregar. Como visto, mais do que no lado financeiro, é no aspecto comercial que o paradoxo entre o discurso neoliberal e a prática política se apresenta, tanto nos EUA como na União Européia. Mesmo a abertura e internacionalização financeiras foram adotadas como forma de financiamento, não só de déficits externos, mas principalmente do crescente estoque da dívida pública desses países. Durante a década de 80, esse estoque nos países da OCDE cresceu cerca de 300%.
Frente ao paradoxo “discurso ideológico – prática efetiva dos países centrais”, o Brasil optou, tardiamente, pelo ideário contido no primeiro e implementou uma estratégia de inserção internacional passiva ao longo dos anos 90. Como visto, tanto o processo de abertura comercial como o de abertura financeira foram iniciados já na virada dos anos 80 para os 90. O elemento de estabilização do programa neoliberal só foi obter sucesso relativo na segunda metade da década.
Ainda que a implementação das reformas neoliberais no Brasil não tenha seguido a seqüência ótima propugnada pela teoria convencional, e recomendada pelo Consenso de Washington, o importante a ressaltar é que a idéia de que só através dessas reformas é que a economia brasileira iria obter um novo regime com altas taxas de crescimento, e redução da concentração da renda, sempre esteve presente na opção de desenvolvimento adotada na década de 90. Assim, com seqüência ótima ou não, o fato é que as políticas econômicas do período pertencem à tradição neoliberal, por mais que seus formuladores procurem dissimular.
Os resultados dessas políticas repetiram os obtidos pelas experiências latino-americanas anteriores. Entre 1995 e 2000 o déficit comercial totalizou US$ 25,5 bilhões que, somados aos US$ 148,1 bilhões de déficit na conta de serviços, redundaram em um déficit em transações correntes de US$ 158,3 bilhões entre 1995 e 2000. Esse crônico déficit externo colocou a necessidade de um crescente financiamento externo, que se traduziu em um substancial crescimento do endividamento externo (a dívida externa cresceu 184% entre 1989 e 2000) e no grande diferencial entre as taxas de juros internas em relação às internacionais, diferença necessária para a atração dos capitais forâneos. Este último aspecto, além de contribuir para o aumento da dívida pública (a dívida líquida do setor público apresentou uma elevação de 267% entre 1994 e 2000), definiu uma situação de restrição ao crescimento da economia do país.
Estes problemas de balanço de pagamentos, aliados à incapacidade do governo em saldar suas contas, reduziram a credibilidade externa do país, o que redundou em uma situação de fuga de capitais já no segundo semestre de 1998, conformando a crise cambial de janeiro de 1999.
Este quadro parece confirmar a validade da visão crítico-conjuntural no que diz respeito à restrição externa ao crescimento que o país viveu ao longo da década de 90, assim como no que se refere à explicação da crise cambial de 1999.
Entretanto, os dados e indicadores apresentados neste trabalho demonstram que os problemas de vulnerabilidade externa da economia brasileira na década de 90 não são conseqüência meramente de uma distorção de preços relativos refletidos na taxa de câmbio, mas refletem um caráter mais estrutural.
Em primeiro lugar, é inquestionável que os substanciais déficits na balança comercial guardam uma relação estreita com a sobrevalorização do câmbio real que ocorreu no período 1992-1998. Entretanto, a adoção do regime de bandas para o câmbio, no contexto da implementação do Plano Real, não foi o único responsável pela sobrevalorização, uma vez que esta já vinha se efetivando desde 1992, justamente por causa da maciça entrada de capitais que se seguiu ao início do processo de abertura e liberalização financeiras. Por outro lado, o processo de abertura comercial provocou uma verdadeira mudança estrutural na economia brasileira. Reforçado pela valorização do câmbio, este processo levou a um brutal crescimento das importações, que não foi seguido da elevação das exportações, conforme pregavam as teses ortodoxas. Com isso, a demanda tendeu a se deslocar dos produtos domésticos para os produtos importados, incrementando a propensão a importar da economia e intensificando a restrição externa ao crescimento, que se manifestou, ao longo da década, no clássico movimento de stop and go.
Em segundo lugar, não se pode desprezar o substancial déficit da conta de serviços, responsável por grande parte do déficit crônico em transações correntes que o país apresentou na década de 90. A abertura financeira e ao capital estrangeiro (investimento externo direto e de portfolio), ao mesmo tempo que aliviavam no curto prazo os problemas do balanço de pagamentos, recolocavam o problema para períodos posteriores, na medida em que redundaram no acréscimo do passivo externo (estoque da dívida externa e de capital estrangeiro) e do seu serviço (serviço da dívida externa acrescido da remessa de lucros e dividendos). Portanto, a contínua e crescente necessidade de financiamento externo obrigou a manutenção de altos diferenciais entre os juros domésticos e os internacionais, definindo a restrição externa que impediu o crescimento da economia brasileira ao longo dos anos 90.
Além disso, a piora do perfil distributivo na última década, não captada pelo tradicional índice de Gini, pode ser observada tanto pelos efeitos diretos que o processo de abertura externa teve na distribuição funcional da renda e na estrutura ocupacional do mercado de trabalho, como no efeito indireto dado pela acentuação de seu determinante mais estrutural, a concentração de riqueza.
Dessa forma, este estudo constatou que o processo de abertura externa no Brasil dos anos 90 levou a uma situação de acréscimo da vulnerabilidade externa de sua economia, expressa tanto nos desequilíbrios de fluxo (balanço de pagamentos e serviço do passivo externo) como nos de estoque (passivo externo e endividamento público). Portanto, o país defrontou-se com uma restrição externa estrutural ao crescimento, a acentuação da concentração de riqueza e renda. Ocorreu, também, a majoração da probabilidade de reversão de expectativas dos investidores internacionais, o que redunda em crises cambiais recorrentes, com sérias implicações financeiras, como ocorreu em 1995, 1999 e em 2002, às vésperas da eleição presidencial. Assim, como resultado da liberalização e da desregulamentação, o Brasil entra no século XXI mergulhado em uma trajetória de instabilidade e crise.