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CAPÍTULO 3

 

 

A EXPERIÊNCIA BRASILEIRA DE ABERTURA EXTERNA: O NEOLIBERALISMO TARDIO

 

 

            O Brasil terminou por, tardiamente, aderir à onda das políticas neoliberais que se abateu na América Latina nas últimas décadas, desde que as primeiras experiências dos anos 70 tiveram o ocaso relatado. Entretanto, as relações do país no cenário internacional sempre foram determinantes para sua trajetória de desenvolvimento.

            A experiência histórica brasileira sempre mostrou amplas e profundas relações com o exterior, ainda que com distintos padrões de inserção internacional ao longo do tempo. A evolução econômica do país tem sido em muito determinada por suas relações e padrões de comércio exterior[1], papel na divisão internacional do trabalho e dependência em relação ao capital internacional, tanto na forma de empréstimos e financiamentos como na de investimentos diretos e, mais ultimamente, de portfolio. Como fez questão de assinalar Casseb (2000: 68), “desta forma, o setor externo tem atuado ora como fonte importante do crescimento, ora como verdadeira barreira ao crescimento”.

            O que se pretende neste capítulo é, após uma digressão sobre a inserção externa no passado da economia brasileira, identificar as especificidades dessa inserção na década de 90 e ressaltar a congruência dessa opção com os ideários neoliberais de abertura externa.

 

3.1- ESTRATÉGIAS DE DESENVOLVIMENTO E INSERÇÃO EXTERNA NO PASSADO

 

            Ao contrário de todo o discurso, não só o liberal mas também o pretenso modernizador, seja na academia ou nos meios propagandísticos, o grau de internacionalização (abertura) da economia brasileira sempre foi compatível – e até superior em não raros momentos – com as economias consideradas “abertas”.

            Gonçalves (1994) demonstra claramente que, tanto em termos de abertura comercial, como em abertura financeira e produtivo-real, o Brasil esteve longe de poder ser considerado uma economia fechada.

            No que se refere ao aspecto comercial, a comparação com os EUA[2] demonstra que as participações das exportações e importações sobre o PIB, no período 1900-1990, sempre foi historicamente superior na economia brasileira do que na americana. A situação é alterada, no lado das importações, só a partir de meados dos anos 70 e durante a década de 80, quando o Brasil apresenta um forte estrangulamento externo, obrigando o país a aplicar controle de importações, e os EUA começam a conviver com os déficits gêmeos estruturais (fiscal e comercial). Do lado das exportações, o percentual sobre o PIB na economia americana é superior a partir do início dos anos 90, chegando a cerca de 12% do PIB entre 1997-99, enquanto na economia brasileira chegava-se a 6,6% em 1998 e 8,6% em 1999[3]. Mesmo assim, em termos de abertura comercial, o país sempre esteve historicamente com coeficientes compatíveis aos observados na economia internacional[4].

            No que se refere ao setor financeiro (receitas e despesas em relação a investimento direto estrangeiro e dívida externa), ainda em comparação com os EUA, e ao setor produtivo-real (participação de empresas estrangeiras na indústria em termos de vendas e empregos), os dados[5] também demonstram que o Brasil está longe de ser considerado uma economia historicamente fechada.

            Isto não impediu que o Estado brasileiro, quando assumiu um esforço industrializante e de crescimento, tenha utilizado instrumentos que restringissem a abertura externa, principalmente no tocante ao comércio exterior. De acordo com a sua estratégia, “manejando câmbio, tarifas e outros elementos de política econômica, o Estado desenvolvimentista interveio sistematicamente na estrutura de preços relativos, com diferentes ênfases, mas sempre de modo a favorecer a continuidade do processo industrializador” (Benjamin et al., 1998: 96). Essa estratégia também esteve ligada em distintos momentos à necessidade de obtenção de financiamentos externos, empréstimos e/ou capital externo, para possibilitar a formação interna de capital e o crescimento. Por outro lado, essa dependência em relação a capitais externos colocou recorrentemente os desequilíbrios externos, direta ou indiretamente, no centro das crises econômicas do país, desde a declaração da independência.

            Já da transferência da Corte portuguesa para o Brasil e com a abertura dos nossos portos às “nações amigas”, a balança comercial brasileira irá se tornar deficitária. O período compreendido entre 1821 e 1860 se caracterizou por fortes déficits comerciais que eram cobertos pela entrada de capital externo, quase sempre sob a forma de empréstimos públicos. Em um segundo momento, o desequilíbrio externo passou a se manifestar pelo enorme pagamento de juros e amortizações da dívida. Considerando o período 1850-1889, nosso superávit comercial (presente desde 1861) acumulado foi de 690 milhões de mil-réis. Entretanto, o serviço da dívida externa acumulou no mesmo período 780 milhões[6].

            Assim, pode-se dizer que durante a época imperial, a política comercial liberal[7], aliada ao fato de assumirmos a dívida de nossos colonizadores, quando da transferência da corte, nos obrigou a recorrer a empréstimos, principalmente ingleses, o que, em um segundo momento, se transformou em um crescente pagamento do serviço da dívida.

            Com a proclamação da República até a 1a Guerra Mundial, o padrão anterior é repetido, com o país obtendo expressivos superávits comerciais, utilizados para o pagamento do serviço de dívida. O resultado, em termos de transações correntes é ligeiramente negativo. Na década de 1890, o déficit em transações correntes atinge 2% do PIB; na década seguinte obtemos um superávit nessa conta de 2% do PIB; e, voltamos a apresentar um déficit  de 3% do PIB entre 1910 e 1913. Já em seu nascedouro, a República se viu às voltas com a crise do “encilhamento” que, como ressaltou Tavares (1999: 452), já naquela época, resultou da política econômica de endividamento interno e externo do Império, o que levou a duas das primeiras medidas da República, que foram uma grande moratória, seguida da negociação de um reescalonamento da dívida externa (funding loan) com os banqueiros ingleses[8]. De fato, a dívida externa federal que em 1890 era de 30,9 milhões de libras chegou a 44,2 milhões de libras em 1900. O fato da taxa de crescimento média entre 1901-1913, período pós-moratória, ter sido de 4,49% ao ano não parece ser mera coincidência.

            No entre-guerras, as entradas de capital foram pequenas até a primeira metade dos anos 20, e depois atingem 3,5% do PIB até 1931. Desse momento até o início da 2a Guerra Mundial, o fluxo líquido de capitais é negativo (Goldsmith, 1986: 183). Vale ressaltar que, após a crise de 1929-33, um novo padrão de acumulação de capital vigorará no país. A economia brasileira passava de uma dinâmica primário-exportadora, onde o determinante básico eram as exportações, para um processo de maior industrialização, quando o determinante básico passam a ser os investimentos[9]. Mesmo assim, o que se teve de industrialização substitutiva de importações nas primeiras três décadas do século passado teve importante participação do IDE que, antes de 1930, recebia o mesmo tratamento que o capital nacional, chegando “a receber privilégios especiais de taxas de retorno mínimas garantidas, empréstimos internos com taxas preferenciais e isenção fiscal” (Gonçalves, 1999b: 56).

            Os dois primeiros períodos históricos do processo de substituição de importações, segundo a periodização feita por Tavares (1982: 70-73), foram justamente o período que se inicia no pós Grande Depressão e termina no início da 2a Guerra Mundial e o compreendido pelo período durante esta última. Nesses dois períodos o estrangulamento externo brasileiro se caracterizou pelas fortes restrições à capacidade para importar, tanto na Grande Depressão quanto durante a 2a Guerra Mundial. A cobertura cambial disponível – somando o saldo da balança comercial com a entrada de novos empréstimos externos, e descontando o serviço da dívida pública externa – em 1929 chegou a um valor negativo de 6,7 milhões de libras, enquanto que em 1940 foi de 0,3 milhões de libras, também negativos. Considerando o serviço da dívida pública externa como proporção do saldo comercial, ele atinge 146,2% em 1927, passa para 252,2% no ano seguinte, e chega a 213,6% em 1929 (Abreu, 1999: 46 e 149). No primeiro período, a política governamental de defesa procurou recuperar a atividade interna, aproveitando a capacidade produtiva instalada para substituir importações. No segundo, por conta das dificuldades em suprimentos externos, o investimento público foi a opção utilizada para enfrentar um momento de escassez absoluta na entrada de novos empréstimos externos. Ainda segundo Abreu (1999: 46 e 149), a entrada de novos empréstimos externos para o país foi nula em todo o período compreendido entre 1935 e 1945.

            Em matéria de políticas cambiais[10], a situação típica a partir de 1930 foi a opção por um racionamento das escassas divisas, através de um sistema de licenciamento de importações. A situação insustentável nas contas externas no início da década de 30[11] levou à reinstituição do monopólio cambial do Banco do Brasil, além da suspensão de pagamentos do serviço da dívida em 1937. Esses controles cambiais foram utilizados entre 1931 e 1935, ano este em que se processou uma certa liberalização com a eliminação da política discriminatória de alocação de câmbio. Essa liberalização se desdobrou em uma crise cambial quando “ao final de 1937, a escassez cambial, associada principalmente ao súbito crescimento das importações, levou, após o golpe de novembro, à unificação das taxas de câmbio com a taxa única desvalorizada, à reintrodução do controle cambial estrito e à moratória do serviço da dívida externa” (Abreu, 1999: 152).

            No período da 2a Guerra Mundial, ocorreu uma perda de mercados antes de 1941-42 que foi prontamente revertida, e os saldos comerciais pós-1942 propiciaram um acúmulo de reservas que, em sua maior parte, era composto de cambiais inconversíveis, o que não permitiu acesso irrestrito a importações mesmo no pós-guerra.

            O período compreendido entre 1930-45 também é ilustrativo no tocante à dívida externa, pois foi um período de ajustamento gradual dos pagamentos à capacidade de pagamento do país. Já em 1931, o Brasil suspendeu os pagamentos aos fundos de amortização de todos os empréstimos externos, com exceção dos referentes à consolidação (funding) de 1898 e 1914, ao mesmo tempo em que se negociou um outro empréstimo de consolidação para três anos. Entretanto, findo este em 1934, a redução do pagamento do serviço da dívida permitida pelo esquema não foi suficiente. Assim, nesse ano, foi acertado um outro esquema de redução de pagamento, que tampouco solucionou o problema.

            O conseqüente desequilíbrio externo nos obrigou a uma nova suspensão dos pagamentos do serviço da dívida já em 1937, que só seriam retomados em março de 1940, após a negociação de um esquema quadrianual de pagamento, ainda que só em novembro de 1943 tenho sido acertada a renegociação com os credores, através de um acordo permanente. No balanço final, o estoque total da dívida externa caiu de 237 milhões de libras esterlinas em 1939 para 169 milhões de libras esterlinas seis anos depois. O fato de que a taxa média anual de crescimento real tenha sido de 5,9% nos anos 40, frente a 4,4% nos anos 30, tampouco parece ser mera coincidência (Gonçalves e Pomar, 2000).

            Ilustra-se assim que não só as crises econômicas pelas quais atravessou o país estão relacionadas com os desequilíbrios nas contas externas, como também que estes últimos impõem uma restrição externa ao crescimento, que, por sua vez, solucionada ou, no mínimo, contornada, possibilita o aparecimento das condições para a retomada do crescimento.

 

3.1.1- Estrangulamento externo e industrialização no período 1945-64

 

            O processo de substituição de importações que caracterizou a industrialização brasileira no longo período 1930-61 acabou sendo imposto pelas próprias conseqüências da inserção internacional periférica e dependente do país. A redução da demanda internacional por nossas exportações e a retração do financiamento externo, pelo menos em um primeiro momento, definiam os recorrentes estrangulamentos externos que colocavam a necessidade de tarifas aduaneiras sobre importações, controle quantitativo sobre as mesmas (com esquemas como os licenciamentos), reservas de mercado interno e uso planejado de divisas com controle cambial.

            Entretanto, se durante o período 1930-45 ocorreu uma restrição absoluta à capacidade para importar, com os problemas cambiais e de retração de financiamento externo, o período 1947-1961 passará a apresentar restrições relativas, por conta dos resultados positivos na balança comercial e, em um segundo momento, da retomada do financiamento externo.

            Os estrangulamentos externos recorrentes e a conseqüente restrição à capacidade para importar induziram investimentos substitutivos de importações, de forma que se passava a produzir internamente produtos antes importados. O aumento da demanda por importações derivadas do crescimento provocado por aqueles investimentos redundava em novos estrangulamentos externos que, por sua vez, redefiniam o processo, e forneciam a dinâmica ao processo de substituição de importações (PSI), segundo a observação clássica de Tavares (1982: 41).

            Ainda segundo essa autora, o PSI pode ser definido em três períodos históricos, além daqueles dois iniciais da 2a Guerra Mundial e da fase pós-depressão. O primeiro deles é o do imediato pós-guerra (1945-47), quando ocorre um certo alívio externo com a retomada absoluta da capacidade para importar e um crescimento menos orientado para a substituição de importações[12]. O segundo período duraria até 1954 e seria definido pela expansão industrial aliada a melhoria do poder de compra das exportações. Já o último período (1956-61)[13], correspondente à implementação do Plano de Metas, estaria caracterizado pelo crescimento na participação do governo nos investimentos e pelo considerável financiamento dos investimentos através da entrada de capital externo privado e oficial.

            Logo após o término da guerra instituiu-se o mercado livre de câmbio, abolindo-se as restrições a pagamentos existentes desde os anos 30. A política liberal de câmbio redundou em um acúmulo de atrasados comerciais – o déficit comercial atinge US$ 313 milhões em 1947 – e na forte redução das reservas. Dessa maneira, mais uma vez, a imposição de controles cambiais e seletivos sobre as importações tornou-se imperativa.

            Nesse sentido, implementou-se em julho de 1947 o regime de controle de câmbio por cooperação segundo o qual os bancos autorizados a operar eram obrigados a vender ao Banco do Brasil 30% de suas compras de câmbio livre à taxa oficial. O Banco do Brasil, por sua vez, fornecia divisas de acordo com as prioridades de importação. Em fevereiro do ano seguinte foi adotado o contingenciamento das importações segundo o sistema de licenças prévias para importar de acordo com prioridades estabelecidas. Esses controles, ao mesmo tempo que funcionaram como resposta ao desequilíbrio externo, promoveram o desenvolvimento industrial. Vianna (1990: 115) destaca ainda que a manutenção da paridade cambial no nível de 1939 (Cr$18,5 por dólar), levou a uma valorização do câmbio real, tendo em vista a inflação positiva do período, que, somada ao controle de importações, teria provocado três efeitos em direção à promoção do desenvolvimento industrial e da atividade interna: (i) efeito subsídio dado pelos preços relativos artificialmente mais baratos para importações prioritárias (bens de capital, matérias-primas e combustíveis); (ii) efeito protecionista como resultante da restrição às importações que competissem com a produção interna; e, (iii) efeito lucratividade, definido pelo estímulo à produção para mercado doméstico com a valorização cambial (excetuando obviamente o setor exportador cafeeiro).

            O relaxamento na concessão das licenças para importação nos sete primeiros meses do segundo governo Vargas originou um desequilíbrio na balança comercial. Prontamente foi modificada a orientação de relaxamento mas, “mesmo assim, 1952 caracteriza-se por uma clara crise cambial, com um déficit comercial de US$ 286 milhões, pelo esgotamento das reservas internacionais conversíveis, e por um acúmulo de atrasados comerciais superiores a US$ 610 milhões” (Bocchi, 2000: 24).

            As modificações no marco regulatório sobre capital externo e comércio exterior nesse momento são de crucial importância. Em janeiro de 1953, com a lei 1807, foram liberalizados os movimentos de capital estrangeiro pelo mercado de câmbio livre, ao mesmo tempo em que era favorecida a remessa de rendimentos. Na prática, essa lei instituiu um sistema de taxas múltiplas de câmbio. Do lado da oferta de câmbio  passaram a vigorar uma taxa fixa oficial aplicada a mais de 85% das exportações (café, cacau e algodão) e três taxas flutuantes para as demais exportações, combinando em diferentes proporções a taxa oficial com a taxa do mercado livre, que era aplicada nas transações financeiras. Do lado da demanda de divisas, passaram a existir a taxa oficial, que cobria as importações essenciais (cerca de 2/3 do total), remessas financeiras do governo e remessas do capital estrangeiro considerado de “interesse nacional”, e a taxa livre para o restante das importações e outras remessas.

            Ao longo do ano ainda foi homogeneizado o benefício cambial dado às exportações (excluindo o café), o que reduziu as três taxas mistas e flutuantes a apenas uma – igual a 50% da taxa oficial mais 50% da taxa do mercado livre – e introduzido o sistema de pauta mínima para as exportações[14].

            Em 09/10/1953, o governo lança a Instrução nº 70 da SUMOC que restabelece o monopólio cambial do Banco do Brasil e extingue o controle quantitativo das importações, estabelecendo o regime de leilões de câmbio em bolsa de fundos públicos do país, sob o sistema de taxas múltiplas de câmbio. O regime de leilões cambiais pode ser apresentado simplificadamente em quatro etapas:

(I) importador resgata em pregão público as Promessas de Venda de Câmbio (PVC), dando direito à aquisição de câmbio no valor e moeda estipulados;

(II) comprador das PVC’s leva estas ao Banco do Brasil no prazo de cinco dias e, em seguida ao pagamento de ágio, recebe o certificado de câmbio;

(III) verificados os preços dos produtos a importar, obtém-se a licença de importação com o certificado de câmbio;

(IV) de posse da PVC e da licença de importação, o comprador adquire câmbio à taxa oficial em qualquer banco autorizado. O comprador fica com o direito à restituição do correspondente à diferença não utilizada.

            Ficavam fora dos leilões as compras do governo e algumas importações preferenciais. As demais importações eram classificadas em cinco categorias de acordo com o critério de essencialidade para a realização dos leilões[15].

            Já as exportações tiveram as taxas mistas substituídas por duas bonificações (uma para o café e outra para as demais), definindo um sistema com duas taxas de câmbio para as exportações.

            Outra mudança importante no marco regulatório foi a apresentação da Instrução 113 da SUMOC em 27/01/1955, fornecendo tratamento favorável ao capital estrangeiro. “Esse mecanismo permitia às empresas estrangeiras importar bens de capital sem cobertura cambial, se o investidor estrangeiro aceitasse o valor (em moeda nacional) do equipamento como participação de capital na empresa que fosse usar o equipamento” (Gonçalves, 1999b: 59). Os benefícios ao capital estrangeiro contidos nessa Instrução duraram até 1961. Essa facilidade para o capital externo vai ser utilizada no período seguinte de industrialização pesada (1956-61) como forma de financiamento para os projetos do Plano de Metas. Mesmo assim, vale ressaltar que nesse período do PSI (1945-55) a taxa média anual de crescimento da economia foi de 6,5% (Cano, 2000: 170).

            A partir de 1954, o preço do café caiu em maior proporção ao aumento do quantum exportado do produto, o que contribuiu para uma redução da capacidade para importar. A queda nas exportações e o endividamento externo definiram o estrangulamento externo que levou a uma nova onda de investimentos substituidores de importações, assegurada pela reserva de mercado obtida através de proteção cambial e tarifária. Além disso, face à redução da capacidade para importar, as importações necessárias foram mantidas à custa de financiamento externo, sendo considerável o crescimento tanto dos empréstimos externos como dos investimentos diretos no período 1956-61, em comparação com o período 1947-55 (tabela 1).

 

Tabela 1 – Balanço de pagamentos 1947/1964 (US$ bilhões)

Conta \ Período

1947/55

1956/61

1962/64

1947/64

1-Balança comercial

1,66

0,77

0,37

2,80

2-Serviços

-2,92

-2,24

-0,73

-5,89

    - Fretes e seguros

-1,50

-0,62

-0,26

-2,38

    - Lucros e dividendos

-0,41

-0,20

-0,02

-0,63

    - Juros

-0,25

-0,51

-0,34

-1,10

3-Transações correntes

-1,26

-1,47

-0,36

-3,09

4-Movimento de capitais

-0,09

1,12

0,21

1,27

     - Investimentos externos

0,15

0,67

0,13

0,95

     - Empréstimos

0,42

2,29

0,80

3,51

     - Amortizações

-0,68

-1,87

-0,95

-3,5

5-Variações de reservas

-1,30

-0,69

-0,59

-2,51

Fonte: Golsdmith (1986), apud Bocchi (2000: 42).

 

            Esse foi exatamente o período de implementação do Plano de Metas, que procurou complementar o PSI através da instalação de indústrias produtoras de bens de capital no país[16]. As peças básicas da política econômica do Plano incluíam o tratamento extremamente favorável ao capital estrangeiro, o aumento da participação pública direta na formação de capital – esta participação na formação bruta de capital fixo passou de 25,6% em 1953-56 para 37,1% em 1957-60 (Lessa, 1983: 70) – e na canalização de recursos privados para áreas estratégicas. Estes últimos foram estimulados tanto pela reserva de mercado interno, como pela garantia de favorecimentos nos financiamentos externos e pela concessão de crédito de longo prazo, via BNDE, com baixas taxas de juros e prazos favoráveis de carência e amortização.

            Para a primeira peça, o tratamento favorável ao capital externo, foi fundamental a alteração do marco regulatório antes referida, nos moldes da lei 1807 e suas posteriores regulamentações, principalmente a Instrução 113 da SUMOC[17].

            Em agosto de 1957 foi realizada nova reforma no sistema cambial com o objetivo de simplificar o sistema de taxas múltiplas e introduzir um novo sistema de proteção específica por produtos da mesma categoria. O sistema cambial teve uma redução das cinco categorias anteriores para apenas duas. Na categoria geral foram incluídas as matérias-primas, os equipamentos e bens genéricos sem suprimento interno, enquanto que na categoria especial estavam bens de consumo restritos e com suprimento interno. Foi mantido o regime de leilões cambiais, com a categoria geral obtendo a maior parcela de divisas. Uma terceira categoria (preferencial) foi criada, não sujeita a leilão, com a finalidade de abarcar importação de bens com tratamento privilegiado, como o petróleo por exemplo.

            A reforma aduaneira de 1957 procurou assim reduzir o controle cambial como mecanismo de proteção, passando-se a impor alíquotas ad valorem elevadas às importações. Foram estabelecidas tarifas entre 0 – 150% para cada grupo de produtos similares. Além disso, regulamentou-se a lei de similar nacional que, para determinado produto, “garantia a total exclusão da pauta de importações caso sua produção interna fosse em volume e qualidade suficiente para atender à demanda” (Orenstein e Sochaczewski, 1990: 179).

            Dessa maneira, a inserção internacional do país no período do Plano de Metas se caracterizou pela utilização dos instrumentos cambiais e comerciais na promoção da industrialização e da atividade interna, processo no qual o favorecimento ao capital externo também foi determinante para alavancar as altas taxas de investimento no período. Além das alterações regulatórias sobre capital externo, que permitiram a forte entrada dos investimentos diretos, deve-se ressaltar também a importante atitude tomada em 1959, quando o governo rompe com o FMI, não se submetendo à sua política de estabilização. Como balanço do período (1956-62), denominado por Cano (2000) como de industrialização pesada em sua primeira etapa, o investimento como proporção do PIB sai de 13,5% em 1955 para 18% em 1958-59, detendo-se em 15,5% em 1960-62, o que sustentou uma taxa média anual de crescimento igual a 7,1%!

            Os anos 60 se caracterizaram pela modificação das funções dos instrumentos cambiais, que deixaram de servir como ferramentas industrializantes, passando a assumir um papel de maior liberalização, isto é, a taxa de câmbio passou a ser determinada mais pelo mercado, o que acabou se concretizando em desvalorizações cambiais à medida em que as contas externas expressavam maior saída líquida de capitais.

            Considerando este período 1945-64 como um todo, mais especialmente até o final do Plano de Metas, a política econômica governamental contribuiu para o processo de substituição de importações, na medida em que efetuou-se investimento público de infra-estrutura e forte financiamento ao capital privado. No mesmo sentido, a “política de comércio exterior, sobretudo cambial, que, variando embora de mecanismos (desde os controles quantitativos até taxas múltiplas de câmbio), manteve até recentemente[18] uma discriminação efetiva entre as importações, dando tratamento preferencial aos bens de capital e certos insumos essenciais” (Tavares, 1982: 61).

            Mesmo com a alteração do foco da política econômica para um combate mais incisivo à inflação, que começava a se definir como uma meta mais prioritária do governo, nos anos 60, o PSI já apresentava sinais de esgotamento, por conta das assincronias criadas na estrutura produtiva brasileira. As restrições que provocaram essas assincronias, como destacam Miranda e Tavares (1999), se definiam pela restrição ao financiamento interno e externo à importação de equipamentos e bens intermediários, assim como pelo esgotamento da reserva de mercado outorgada pela política substitutiva.

            Analisando o período pós-guerra (1945-64), do ponto de vista das contas externas, nota-se a retomada do recorrente padrão de superávits comerciais que são incapazes de saldar os déficits na conta de serviços (tabela 1). Entre 1947 e 1964, a balança comercial acumulou um superávit de quase US$ 3 bilhões, consumido quase que inteiramente apenas com nossos gastos em fretes e seguros (US$ 2,38 bilhões). No mesmo período, o déficit acumulado nas transações correntes atingiu US$ 3,1 bilhões, não financiado integralmente pela entrada de capitais externos, mesmo com as facilidades para o capital estrangeiro instituídas pelas mudanças regulatórias.

 

 

 

3.1.2- A época da ditadura militar até o final da década de 70

 

            A crise econômica do período 1962-67 tem explicação no próprio movimento cíclico da economia, e se manifestou mediante deficiências do Sistema Financeiro Nacional (SFN) e dos efeitos recessivos das políticas de estabilização. Essa crise teve como principais determinantes o aumento da capacidade ociosa nos novos setores (bens de capital, consumo duráveis e alguns intermediários), o que inibiu a acumulação, os violentos cortes de investimento público, e a redução do investimento de reposição, face à recente modernização dos segmentos de bens de consumo não-duráveis.

            Quanto à estabilização, de fato, a equipe econômica que assume logo no início da ditadura militar tem a redução da inflação como prioridade. O diagnóstico sob o comando Campos-Bulhões identificava a estagnação econômica e o descompasso das contas externas como provocados pelos efeitos das altas taxas inflacionárias, originadas, segundo o diagnóstico, no desequilíbrio das contas públicas e pela política salarial recente. Ainda que discordando de um tratamento de choque, o gradualismo da terapia proposta, que caracterizou a política de estabilização do regime militar (1964-67), promoveu, além da indexação financeira da economia e o controle dos preços, a contenção da expansão monetária e creditícia, a redução dos gastos públicos e um brutal arrocho salarial[19].

            Das reformas econômicas institucionalizadas no período inicial da ditadura militar, aquela implementada no sistema monetário-financeiro foi a mais importante. O objetivo explícito dessa reforma era consolidar o SFN, constituindo instituições, instrumentos financeiros e regras operativas, de forma a capacitar o sistema para uma função de financiamento de médio e longo prazo junto ao setor privado. O objetivo, portanto, era sustentar um novo ciclo de industrialização de forma não-inflacionária, isto é, alterar o modelo de financiamento que se baseava em concessão de crédito público e endividamento externo ligado ao suporte das importações necessárias e dos atrasados comerciais. Em suma, manter a inflação controlada e montar um modelo de financiamento junto ao mercado de capitais e, em termos externos, com movimentos autônomos de capitais, eram as metas.

            As principais medidas da reforma incluíram a introdução da correção monetária em quase todas as operações contratuais financeiras, uma nova regulamentação das sociedades de capital aberto, dos bancos (tanto comerciais como de investimento), corretoras e distribuidoras de valores (com atuação nos mercados primário e secundário de ações), criação de sociedades de crédito imobiliário e demais formas de captação de recursos financeiros líquidos, assim como a redefinição de captações de recursos externos.

            Neste último conjunto de medidas estão a nova lei de remessa de lucros, que revogou os constrangimentos anteriores para remessas, e “a ampliação do grau de abertura da economia ao capital externo – de risco e, principalmente, de empréstimo – visando a ampliar a concorrência do Sistema Financeiro Brasileiro” (Hermann, 1999: 21).

            Das reformas financeiras, ainda é preciso destacar a criação de novas instituições, o Conselho Monetário Nacional (CMN), com funções normativa e reguladora, e o Banco Central como executor das políticas monetária e financeira (em substituição à antiga SUMOC). Essas instituições regulavam os incentivos criados, a autorização de emissão de passivos com correção monetária (vigente inicialmente para títulos públicos), e os incentivos fiscais de redução/isenção de imposto de renda para o mercado de capitais.

            Alguns autores defendem que as reformas monetário-financeiras do período 1964-67 não tiveram êxito em seu intuito de alavancar um novo modo de financiamento para a industrialização. Resumidamente, Hermann (1999: 23) afirma que “nem o ‘milagre econômico’, nem o II PND tiveram como fontes principais de financiamento o mercado de capitais ou bancos privados nacionais, mas sim o endividamento externo, créditos públicos e recursos próprios gerados por ‘mark-ups’ crescentes”. Dessa forma, embora o endividamento externo não tenha crescido tanto no período, o início da ditadura terminou por propiciar os meios, exatamente ao contrário dos objetivos propostos pela reforma financeira, para um modelo de financiamento galgado no endividamento externo, modelo consubstanciado na década seguinte.

            Entre 1969 e 1973, época conhecida como o “milagre econômico”, por conta das taxas médias de crescimento anual em torno de 10% - em que pese a brutal e conhecida concentração de renda que a caracterizou -  nossa dívida externa passou de 11% do PIB para 16,6%[20]. Se considerarmos que o país apresentou nesse período uma balança comercial equilibrada, gastos com serviços “produtivos” (transporte, seguros, etc.) de US$ 2 bilhões, e um saldo líquido na conta de capital de risco de US$ 1 bilhão, conclui-se que restaria US$ 1 bilhão para financiar com empréstimos externos, a fim de sustentar aquelas taxas de crescimento econômico (Bocchi, 2000: 44). Entretanto, a captação desses recursos atingiu no período US$ 6,8 bilhões (Cruz, 1984).

            Ao endividamento externo “gratuito” – além das necessidades de sustentação das altas taxas de crescimento – deve-se acrescentar o fato de que, no período, o grau de abertura externa foi acrescido. Do lado comercial, “embora a tarifa média tenha caído de 108% para 60%, a proteção efetiva ainda não comprometia a produção nacional, representando isso muito mais uma simplificação do que uma abertura comercial” (Cano, 2000: 193)[21]. Já a abertura produtivo-real pode ser tipificada pela aprovação da lei 4390, regulamentada pelo Ato Executivo 55762, de 02/1965, cujo princípio básico era fornecer tratamento idêntico ao investidor externo em relação àquele dado ao capital nacional.

            Dentro da estratégia industrializante do II PND, que tinha o objetivo de fornecer uma resposta ativa à crise internacional do choque petrolífero de 1973[22], para completar o PSI dos setores de bens de capital e insumos básicos, foi facilitada a captação de capital externo para investimento em áreas como energia, siderurgia e transporte. Além disso, foram captados vultosos empréstimos externos, sendo que a maior parte deles foi feita por governos e empresas públicas.

            Se durante o “milagre”, o suposto financiamento pela entrada de capital externo gerou um forte endividamento, após o primeiro choque do petróleo e com a estratégia do II PND, a dependência do financiamento externo se deu para financiar o crescente déficit em transações correntes, que de US$ 600 milhões em 1970 passou para US$ 1,7 bilhão em 1973 e US$ 7,1 bilhões no ano seguinte. No final do governo Geisel, as empresas públicas estavam superendividadas e, mesmo assim, continuaram captando empréstimos apenas para que o país conseguisse honrar o serviço de seu endividamento. A dívida externa brasileira que, no final de 1973, era de US$ 13,8 bilhões, chega a US$ 52,8 bilhões em 1978, um crescimento de 283%. Essa mesma dívida, como proporção do PIB, atingia 26% nesse último ano e, em 1977, o correspondente ao pagamento de juros já representava cerca de 50% do nosso déficit em transações correntes.

            Embora de maneira excessiva, o endividamento externo realizado no período militar ainda foi direcionado, em alguma parcela, para investimentos que sustentaram altas taxas de crescimento. No período 1970-79, a taxa média de crescimento ao ano foi de 8,75%, sendo que o PIB por habitante cresceu, no mesmo período, 6,02% em média. O conhecido brutal retrocesso em termos políticos e sociais do período militar no Brasil, incluindo aqui a concentração da renda criada, esteve associado a esse quadro de crescimento econômico. Se o apelo ao excessivo endividamento externo feito nos anos 90 pode ser comparado ao do período militar, enquanto estratégia, o mesmo não pode ser dito a respeito de sua destinação.

 

3.1.3- Crise da dívida e ajuste exportador: a década perdida

 

            Se, durante o “milagre econômico”, o financiamento pela entrada de capital externo levou a um crescente endividamento e, durante o contexto do 1º choque do petróleo e do II PND, o novo endividamento serviu para cobrir o crescente déficit em transações correntes, na época do 2º choque do petróleo e da alta dos juros internacionais a situação piorou.

            O contexto internacional da virada dos anos 70 para os 80 foi extremamente desfavorável para os países periféricos. O preço do petróleo explodiu pela segunda vez, passando de US$ 12,4 por barril para US$ 34,4. Só esse fato já provocou um adicional nas despesas da balança comercial brasileira de US$ 37,7 bilhões entre 1979 e 1983. Além disso, ocorreu a grande alta das taxas de juros internacionais: a taxa básica de empréstimos bancários nos EUA subiu de 5,7% em 1975 para 18,8% em 1984, enquanto que a taxa libor e a prime rate atingiram, respectivamente, 16,4% e 21,5% no ano de 1980. Como resultado, o pagamento de juros sobre a nossa dívida externa passou de US$ 2,7 bilhões em 1978 para US$ 11,4 bilhões em 1982.

            O país entrou em um processo de insolvência externa, tendo em vista o enorme endividamento acumulado até aquele momento – a dívida externa brasileira chegou a US$ 93 bilhões de dólares em 1983 conforme a tabela 2. Este endividamento perdurou ao longo da década e esteve na origem da deterioração das contas internas do país (crise fiscal do Estado), na queda da atividade econômica e na disparada da inflação. Dessa forma, não seria exagerado afirmar que a crise dos anos 80 tem como origem o endividamento externo oriundo dos objetivos industrializantes da ditadura militar, no contexto das duas crises do petróleo e da explosão dos juros internacionais.

 

Tabela 2 - Dívida externa total, por prazo (1979-1989) -US$ bilhões

Ano

Longo e médio prazo

Curto prazo

Total

1979

49,9

5,9

55,8

1980

53,8

10,3

64,4

1981

61,4

12,5

73,9

1982

70,2

15,1

85,3

1983

81,3

12,2

93,5

1984

91,0

10,9

102

1985

95,8

9,3

105,1

1986

101,7

9,4

111,2

1987

107,5

13,6

121,1

1988

102,5

10,9

113,5

1989

99,2

16,2

115,5

     Fonte: Bacen.

 

            Com a moratória mexicana de 1982, iniciou-se o período do ajuste exportador como terapia para a crise da dívida externa. O Brasil foi obrigado a recorrer, no ano seguinte, ao FMI, a fim de assinar a primeira de muitas cartas de intenções, que possibilitariam a renegociação da dívida externa com os credores privados e oficiais[23]. As políticas de estabilização apresentadas como contrapartida a essa renegociação apresentavam um diagnóstico segundo o qual a crise seria, de fato, resultado da situação internacional (dos seus choques em específico), mas também de fatores internos, como o excesso de empresas estatais, de incentivos fiscais e subsídios, a existência de restrições às importações e operações cambiais, reajustes salariais supostamente acima do aumento da produtividade, e um excessivo gasto interno[24].

            A terapia proposta era simples: esforço exportador total para que os saldos comerciais permitissem pagar o serviço da dívida externa. Esse padrão de inserção internacional para o Brasil não era nenhuma novidade. O ajuste exportador, que caracterizou a década (tabela 3), teria como instrumento a elevação das taxas de juros internas, provocando uma redução da absorção interna (consumo e investimento) que, por um lado, diminuiria a pressão inflacionária e, por outro, reduziria a demanda por importações e proporcionaria os desejados saldos comerciais. Para a redução da demanda interna ainda seriam vitais a implementação de uma política de contenção salarial e restrições fiscais; estas últimas ainda proporcionariam a redução da dívida pública interna.

 

Tabela 3 - Balanço de pagamentos (1980-1989) – US$ bilhões

Ano

Exportações

Importações

Saldo comercial

Balança de Serviços

Transações correntes

Conta de capital

Saldo

1980

20,1

23

-2,8

-10,2

-12,8

9,5

-3,2

1981

23,3

22,1

1,2

-13,1

-11,7

13,6

1,9

1982

20,2

19,4

0,8

-17,1

-16,3

10,5

-5,8

1983

21,9

15,4

6,5

-13,4

-6,8

2,9

-3,9

1984

27

13,9

13,1

-13,2

0,0

8,0

8,0

1985

25,6

13,2

12,4

-12,9

-0,2

1,6

1,4

1986

22,3

14

8,3

-13,7

-5,3

-5,9

-11,2

1987

25,2

15,1

11,1

-12,7

-1,4

-7,8

-9,3

1988

33,8

14,6

19,2

-15,1

4,2

-9,8

-5,6

1989

34,4

18,3

16,1

-15,3

1,0

-9,6

-8,6

Fonte: Bacen.

 

            O combate à inflação não deu resultados e provocou uma profunda recessão. A taxa de crescimento da economia em 1983 foi negativa (-2,9%) e a inflação voltou a crescer no período 1982-85 (tabela 4).

            Essa ineficácia da terapia convencional reforçou as teses heterodoxas, principalmente a hipótese da inflação inercial[25], e, ao longo da década, vários programas econômicos, de cunho até mais heterodoxo, foram implementados sem sucesso duradouro na estabilização macroeconômica.

 

Tabela 4 – Variáveis macroeconômicas (1980-1989)

Variável \ Ano

1980

1981

1982

1983

1984

1985

1986

1987

1988

1989

Taxa de crescimento

9,3

-4,3

0,8

-2,9

5,4

7,8

7,5

3,5

-0,1

3,2

Investimento*

22,9

24,3

23,0

19,9

18,9

18,0

20,0

23,2

24,3

26,9

IGP-DI

110,2

95,2

99,7

211

223,8

235,1

65

415

1037

1783

Déficit público primário*

-

-

-

-1,7

-4,2

-2,6

-1,6

1,0

-0,9

1,0

Déficit público operacional*

-

5,9

6,6

3,0

2,7

4,4

3,6

5,5

4,8

6,9

Déficit público nominal*

-

12,5

15,8

19,8

23,3

28,6

11,3

32,3

53,0

83,1

*como proporção do PIB.

Fonte: Contas Nacionais (IBGE), Bocchi (2000: 47) e Conjuntura Econômica.

 

            Em 28/02/1986, por exemplo, foi lançado o Plano Cruzado que, dentre suas principais medidas, incluía uma reforma monetária, que introduziu o cruzado como novo padrão monetário, o congelamento de preços por tempo indeterminado[26], e o estabelecimento de regras específicas de conversão ao novo padrão. As taxas de inflação caíram abruptamente nos primeiros meses, sendo que a mais alta foi observada em maio, 1,4%, Entretanto, o aquecimento da economia que se seguiu à explosão de consumo obrigou o governo a lançar, em julho daquele ano, um pacote fiscal elaborado com o intuito de desaquecer o gasto interno (Cruzadinho). Foi criado um sistema de empréstimos compulsórios dentro do pacote, mas este tampouco teve eficácia em seu intento. A expectativa do descongelamento deu novo impulso à demanda e, embora a inflação oficial permanecesse baixa, ocorreu o aparecimento de ágio no preço das transações.

            Após a vitória governista nas eleições, foi lançado em novembro de 1986 um novo pacote fiscal (Cruzado II) que reajustou alguns preços públicos (gasolina, energia elétrica, etc.) e aumentou impostos indiretos incidentes sobre automóveis e bebidas, por exemplo. Com isso, “o impacto imediato do Cruzado II seria um violento choque inflacionário. Tais aumentos dos preços públicos e administrados (...) forneceram uma válvula de escape para toda a inflação reprimida durante o congelamento” (Modiano, 1990: 364). Com a volta da inflação, a indexação é retomada e todos os controles de preços são suspensos em fevereiro de 1987.

            Do lado externo, a redução do superávit comercial em 1986 (cai de US$ 12,4 bilhões em 1985 para US$ 8,3 bilhões no ano seguinte) e a forte queda de nossas reservas no início de 1987, por conta dos saldos desfavoráveis no balanço de pagamentos (déficits de US$ 11,2 bilhões e US$ 9,3 bilhões em 1986 e 1987, respectivamente), levaram à declaração de moratória em fevereiro de 1987. Foi decidida a suspensão unilateral de todos os pagamentos de juros relativos à dívida externa de médio e longo prazo, devida aos bancos comerciais estrangeiros. Essa moratória foi rapidamente abandonada em novembro de 1987, sendo retomada a renegociação com os credores. O problema da dívida externa perpassou os anos 80 por inteiro, chegando em 1989 a um total de US$ 115, 5 bilhões, cerca de 80% acima do valor da dívida em 1980.

            No plano das políticas de estabilização na fase pós-cruzado, outros planos foram aplicados, e suas características combinaram elementos ortodoxos, como o comprometimento com a redução do déficit fiscal e a restrição creditícia com altas taxas de juros, com elementos heterodoxos de desindexação de preços e congelamentos temporários. Entretanto, nenhum deles surtiu efeito, e a década terminou com o mesmo problema inflacionário que apresentava em seu início, com o agravante de ser um problema potencializado.

            No balanço final da década de 80, o Brasil acumulou um saldo comercial total de US$ 99,5 bilhões, pagou um total de juros sobre a dívida de US$ 97,3 bilhões e remeteu sob a forma de lucros e dividendos US$ 9,1 bilhões. O balanço da conta de serviços foi deficitário em US$ 141,9 bilhões que, descontando o saldo comercial, se transforma em US$ 42,4 bilhões em déficit de transações correntes, desconsiderando as transferências unilaterais. Como a entrada de capitais externos estava relativamente estagnada, o Brasil se tornou nos anos 80 exportador líquido de capitais. Não é de se espantar, portanto, que essa década seja conhecida como a década perdida, momento em que o país obteve pífios 2,93% ao ano de crescimento econômico e 0,86% de crescimento do PIB por habitante.

            Do lado da dívida pública, a retomada dos pagamentos da dívida externa pós-moratória terminou por provocar o encilhamento do setor público (Tavares, 1999), tornando obsoleto qualquer discurso de controle das contas públicas. Enquanto sucessivos superávits primários eram obtidos em nome desse discurso, o déficit público operacional, como proporção do PIB, atinge 6,9% em 1989.

            Não bastasse isso, a década de 80 também representou um momento de concentração de renda. Lacerda (1999: 93-94) constata que: (i) os 10% mais ricos que possuíam 46,6% da renda nacional em 1981, passaram a possuir 53,2% em 1989, significando um crescimento de 14,2%; (ii) os 20% mais pobres passaram de uma posse de 2,7% da renda em 1981 para 2% em 1989, uma queda de 25,9%; e, (iii) os 50% mais pobres que possuíam 13,4% da renda em 1981, passaram a possuir 10,4% em 1989.

            Durante essa década perdida, o grau de abertura externa do país se viu completamente subordinado ao ajuste exportador como resposta à restrição imposta pelos problemas de financiamento de nossas contas externas. No aspecto comercial, foram reduzidas/eliminadas algumas sobretaxas, a tarifa média sobre importações caiu de 51% para 35% e a amplitude tarifária passou de 0 – 105% para 0 – 85%. Entretanto, também foram introduzidos subsídios e incentivos para a produção destinada à exportação e controles das importações através de barreiras não-tarifárias. Estas últimas compensaram o movimento de aparente abertura no aspecto tarifário através de instrumentos como os programas especiais de importação, as licenças para importação e a lista de produtos com importação proibida (Lei do Similar Nacional).

            Ocorreu também no período uma abrupta redução no investimento direto estrangeiro, em comparação com a década de 70, não só por conta da redução nos fluxos de entrada, mas também pelo crescimento na repatriação de capital e remessa de lucros. Segundo Gonçalves (1999b: 67), “as empresas de capital estrangeiro beneficiaram-se das elevadas taxas de juros vigentes no mercado financeiro doméstico para obter lucros financeiros, que compensaram a queda do lucro operacional”. Essas empresas, também para contrabalançar a queda do lucro operacional, procuraram ampliar as exportações, racionalizar custos, demitir trabalhadores e concentrar capital, como estratégia defensiva.

            Deve-se destacar também os primeiros movimentos, no final da década, para uma liberalização financeira externa[27]. Com a resolução nº1289 de 1987, foram ampliadas as aplicações em carteira, através dos Anexos I, II e III. Já com a resolução nº1460 de 1988, foi permitida a conversão de títulos de dívida externa em investimentos no Brasil. Ainda nesse contexto, foi criado o mercado de câmbio flutuante, um importante passo para a liberalização cambial, e regulamentou-se o acesso de empresas brasileiras ao mercado externo, através de títulos emitidos por instituições internacionais, lastreados em ações de empresas brasileiras (as ADR’s e GDR’s).

            Esses movimentos de liberalização financeira externa já fazem parte do contexto de abertura que caracterizará os anos 90, e foram fundamentais para a retomada do acesso aos capitais externos presentes no renovado cenário de abundante liquidez internacional.

 

3.2- ANOS 90: A IMPLEMENTAÇÃO NO BRASIL DA ESTRATÉGIA NEOLIBERAL DE DESENVOLVIMENTO

 

            A virada dos anos 80 para os 90 assistiu à volta da liquidez internacional por conta dos processos de desregulamentação e globalização financeiras, o que permitiu aos países endividados voltarem ao circuito de financiamento externo após uma década de forte retração do capital externo. Além da nova configuração internacional, a volta aos mercados financeiros internacionais também foi determinada por outros condicionantes.

            Em primeiro lugar, ocorreu um processo de reestruturação das dívidas externas que se caracterizou pela securitização dessas dívidas, nos moldes do chamado Plano Brady. A concepção original deste – pelo menos a mais difundida[28]- defendia a possibilidade de diminuição do valor da dívida externa, mediante redução do principal da dívida e/ou dos juros a serem pagos, da extensão dos prazos de pagamento, e da substituição das obrigações (passivos) com taxas de juros flutuantes por títulos com taxas fixas (processo de securitização).

            O Brasil foi um dos últimos países da América Latina a finalizar o acordo sob os termos do Plano Brady em abril de 1994, embora as negociações já viessem do final dos anos 80. O acordo brasileiro fez referência apenas à parte do setor público com bancos comerciais estrangeiros e, na prática, significou o levantamento da moratória parcial que vigorava desde 1989. Portella Filho (1994: 86) estima que o desconto total da dívida líquida[29] ficou em US$ 4,7 bilhões, o que representou apenas 14,5% da dívida elegível para redução e 5,5% da dívida externa pública antes do acordo[30]. Considerando a dívida externa pública antes do acordo e aquela elegível para redução, o grau de abrangência do plano para o caso brasileiro foi de apenas 37,6% da primeira.

            Mais do que os resultados do acordo, o importante para os objetivos deste estudo é que a implementação da reestruturação da dívida externa nestes moldes impunha condicionalidades na opção de política econômica interna, isto é, os devedores que recorreram ao Plano Brady tiveram normalmente que se submeter ao Consenso de Washington[31]. Vale salientar que, mesmo com a negociação encerrada em 1994, o capital externo já voltava a entrar no país desde 1990, por causa do processo de liberalização financeira externa iniciado ainda no governo Sarney. O excesso de liquidez internacional, provocado pela desaceleração mundial em 1990-92, também favoreceu o fluxo de capitais.

            A adesão ao Consenso de Washington, portanto, não foi apenas a aceitação de uma condicionalidade “técnica” referente à renegociação da dívida externa mas, muito além disso, representou a opção de um projeto de longo prazo que, além de uma política de estabilização, abrangeu reformas estruturais na economia, no Estado e na forma de inserção internacional do país[32]. O neoliberalismo tardio dos anos 90 é o que marca a nossa história recente e deixará como herança problemas estruturais que, sem uma nova opção de política de inserção internacional, sofrerão, no máximo, mudanças formais.

 

3.2.1- Os planos de estabilização: a panacéia da estabilização continua

 

            Logo no início de seu mandato, Fernando Collor implementou um plano de estabilização que, segundo o próprio, constituía sua única “bala na agulha para enfrentar o tigre da inflação”. O Plano Collor I, aplicado a partir de março de 1990, diagnosticava o excesso de gastos governamentais e de demanda privada como a causa do processo inflacionário e, portanto, o seu “arsenal” incluía medidas de caráter monetário-financeiro e tributárias.

            Entre 15 de março e 15 de abril, os preços ficaram congelados, sendo posteriormente flexibilizados, mas com prefixação. O cruzado novo (NCz$), moeda vigente, ainda foi substituída pelo cruzeiro (Cr$). A negociação de preços, a partir de 1991, passou a ser feita em câmaras setoriais com a participação de governo, empresas e sindicatos. Quanto aos salários, o reajuste em março ainda foi feito pela lei antiga mas, a partir daí, ele foi pré-fixado, sendo que a parcela não-corrigida seria negociada livremente. Deu-se o mesmo tratamento ao salário mínimo, adicionando-se 5% caso a inflação fosse superior a 5%, tomando como base de cálculo para esta uma determinada cesta básica. A taxa de câmbio sob um regime flutuante foi controlada para evitar oscilações mais bruscas.

            A medida que suscitou maior controvérsia foi o confisco dos depósitos à vista e aplicações financeiras. Especificamente, o governo reteria por 18 meses essas aplicações e contas, sendo devolvidas nos 12 meses seguintes com correção monetária e juros de 6% ao ano. Para as contas correntes e poupanças, a retenção foi feita para saldos superiores ao equivalente de US$ 1.000,00. Para fundos overnight e de curto prazo, o valor retido correspondeu a 75% do valor das aplicações, enquanto que para os demais ativos a retenção foi de 80% do valor da aplicação. Além disso, estabeleceu-se uma tributação ampliada sobre as aplicações financeiras, com IOF sobre saques em 25% para ouro financeiro, 25% para títulos do mercado de valores e 8% para os demais.

            Além da tributação sobre aplicações financeiras, o ajuste fiscal incluiu a indexação e redução dos prazos de recolhimento dos impostos, a ampliação da tributação, elevação das alíquotas, e suspensão dos incentivos regionais, com exceção da Zona Franca de Manaus. O objetivo fundamental era obter um superávit operacional de 2% do PIB com um esforço fiscal de 10% do PIB (Filgueiras, 2000: 87). Para tanto, ainda foram feitas uma reforma patrimonial com venda de ativos da União e o lançamento de um maciço programa de privatizações, e uma reforma administrativa que envolveu o fechamento de órgãos públicos e a demissão de funcionários.

            O Plano Collor I representou um verdadeiro calote da dívida pública, fato que pode ser constatado quando se observa que, em dezembro de 1989, a dívida interna pública federal representava 13% do PIB, e em setembro de 1992 essa participação caiu para 8,5% do PIB (Cano, 2000: 233). Do ponto de vista de seu objetivo fiscal, pode-se considerar que ele obteve considerável sucesso imediato, já que o superávit público operacional em 1990 foi de 1,3% do PIB, sendo que o resultado primário foi positivo em 4,6% do PIB. Entretanto, prontamente, a “única bala” decantada por Collor parecia ter errado o “alvo”.

            No setor interno, a inflação que, em março de 1990, era de 81%, foi reduzida para 10% em média no período abril-maio, subiu para 14% em média em setembro-outubro e 19% em dezembro, totalizando 1800% no ano (Cano, 2000: 234). O próprio resultado positivo no déficit público foi revertido, pois em 1991 o superávit primário reduziu-se à metade do ano anterior, e a manutenção do superávit operacional só foi conseguida graças ao calote da dívida interna já mencionado. Do lado real, a economia entrou em forte declínio, com uma taxa de crescimento negativa em mais de 4% em 1990.

            Além disso, do lado externo, o desequilíbrio nas transações correntes (déficit de quase US$ 4 bilhões) ocorreu em uma situação de financiamento não favorável (saída líquida de capitais em mais de US$ 4,7 bilhões), definindo uma situação de inviabilidade externa.

            Por conta desse fracasso, em fins de janeiro de 1991, é lançado o Plano Collor II com o congelamento por prazo indeterminado de preços e salários, a unificação das datas-base de reajustes salariais pela média real dos últimos 12 meses, com possibilidade de correções futuras, e novas medidas de aperto monetário e fiscal. Além disso, foi imposta uma tablita para contratos, efetuou-se um reajuste de 60% nas tarifas e preços públicos, e foram extintos os fundos com operação sobre o overnight e o indexador geral da economia (Bônus do Tesouro Nacional – BTN), sendo criada a TR (fixada pelo Banco Central) como pré-fixador de correção monetária. No final desse mesmo ano, ainda foi feita uma nova reforma fiscal de emergência, quando se criou a UFIR como unidade de correção tributária.

            Os resultados não foram tão catastróficos como no plano anterior mas, mesmo assim, a economia em 1991 cresceu apenas 1% e a inflação que havia passado de 12% em março para 6% no período abril-maio, voltou a crescer para 22% em dezembro.

            Em 1992 foi mantida a ortodoxia de redução dos gastos públicos com arrocho salarial, muito embora as contas externas tenham obtido um alívio. A recessão do período 90-91, em conjunto com a desvalorização cambial acumulada desde janeiro de 1990, colocou um freio nas importações[33], ao mesmo tempo que as exportações cresceram de maneira razoável. Assim, o saldo comercial positivo (US$ 15,3 bilhões em 1992) foi suficiente para reverter o déficit em transações correntes observado no ano anterior. Além disso, o forte ingresso de capital externo, com origem no grande diferencial dos juros internos em relação aos internacionais, no processo de abertura financeira já em andamento, e na renegociação da dívida externa, ajudou no desafogo das contas externas.

            No ano seguinte, foi alterada a política salarial quando foram aumentados os níveis reajustáveis para salários privados e encurtados os prazos de reajuste para os salários do governo. O que se observa, entretanto, é que no período 1991-93, após sua abrupta redução, o processo inflacionário voltou a se estabelecer.

            Na verdade, após o impeachment do presidente Collor em 1992, “o perfil político do novo presidente, de viés antiliberal, juntamente com a natureza frágil do equilíbrio das forças políticas que lhe dava sustentação, reduziu o ímpeto das reformas previstas pelo governo anterior, em que pese ter aumentado o ritmo das privatizações – que sofreu modificações em algumas de suas regras” (Filgueiras, 2000: 90).

            Após o “interregno” Itamar, a implementação da concepção neoliberal de desenvolvimento foi acelerada, mas, para isso, era preciso antes cumprir as metas de estabilização macroeconômica para que o capital externo, já atraído pelo diferencial de juros e pelo processo de liberalização financeira, continuasse financiando as contas externas. Esse é o papel primordial que cumpriria o Plano Real.

 

3.2.2- Embasamento teórico e implementação do Plano Real

 

            É possível perceber a origem do Plano Real, ao menos no que se refere à sua concepção teórica original, no debate a respeito das causas da inflação no Brasil na década de 80. Naquele debate, separava-se os fatores que aceleravam a inflação daqueles que mantinham a tendência inflacionária. Nesse sentido, os componentes essenciais do processo inflacionário seriam dois. Os choques de oferta e/ou demanda, definidos por impulsos que perturbam periodicamente o ritmo de elevação dos preços, considerados como causas primárias, ou fatores aceleradores da inflação. Em segundo lugar, tem-se o resíduo inflacionário não explicado por choques, em que a taxa de inflação passada tende a se refletir na taxa de inflação presente, o que lhe forneceria uma dinâmica de auto-alimentação e, justamente por isso, recebeu o nome de inércia inflacionária.

            O componente inercial seria determinado pelos mecanismos mais institucionais de indexação formal e, principalmente, pela capacidade que os agentes econômicos teriam de recompor seus picos de renda real, ao repassar o aumento de custos para os preços, mantendo suas respectivas participações relativas na renda, o que definiria um conflito distributivo. Como os reajustes de preços não são sincronizados no tempo, cada reajuste específico procura levar em consideração os outros e, assim sucessivamente, definindo um processo de repasse geral aos preços das modificações de custos.

            A partir do diagnóstico da inflação inercial, as propostas de política de estabilização seguem o “paradigma da hiperinflação”. Segundo este, em um processo hiperinflacionário, os reajustes de preços se tornam cada vez mais simultâneos. No limite, a simultaneidade dos reajustes leva ao final do conflito distributivo e, portanto, ao término da inflação inercial. Dentro deste paradigma surgiram duas propostas. A primeira foi a do Choque Heterodoxo (Lopes, 1986), composto por um congelamento geral de preços, salários e da taxa de câmbio, e por uma reforma monetária, com o objetivo de sincronizar os reajustes e equilibrar os preços relativos, o que apagaria a memória (inércia) inflacionária. Além disso, seriam liberadas as políticas monetária e fiscal como forma de garantir o combate a possíveis novos choques. Essa proposta foi o embasamento teórico do Plano Cruzado, aplicado em 1986.

            A segunda proposta foi a da Moeda Indexada (Resende, 1985), segundo a qual a implementação do choque heterodoxo apresentaria dificuldades. Como não existe sincronia perfeita nos reajustes de preços, um congelamento abrupto deixaria os preços relativos desequilibrados, isto é, alguns deles ficariam abaixo dos seus valores reais médios e outros acima. Em outras palavras, ocorreria uma espécie de congelamento do conflito distributivo, sem resolvê-lo, e os agentes seriam obrigados a desistir de melhorar suas respectivas posições relativas.

            Como alternativa, propunha-se a introdução de uma moeda indexada periodicamente pelo governo, de forma tal que a moeda circulasse paralelamente à moeda oficial, com a vantagem de que a primeira estaria defendida do imposto inflacionário. Em termos práticos, o que ocorre é a retirada das funções unidade de conta e reserva de valor da moeda oficial, mas mantém-se a circulação paralela para obter a credibilidade da nova moeda. Quando isto fosse conseguido, operar-se-ia a troca das moedas, inclusive na função de meio circulante. O argumento é bastante simples. A moeda indexada diariamente e a conversão de todos os contratos para a nova moeda levam à indexação total e instantânea da economia. Essa superindexação provocaria o fim do conflito distributivo e, portanto, da inflação inercial. Para que isso levasse à estabilização, as causas consideradas primárias (déficit público e política monetária frouxa) deveriam estar sob controle, de forma que a inflação fosse essencialmente inercial. Esta proposta é a base teórica do Plano Real.

            Não é apenas o embasamento teórico que origina os laços familiares entre os dois planos de estabilização (Cruzado e Real). Segundo Filgueiras (2000: 100), a formulação do Plano Real teria aprendido com a experiência do Cruzado em quatro sentidos: (i) a inflação não seria apenas inercial e a fragilidade financeira do Estado constituir-se-ia em um dos componentes fundamentais; (ii) a passagem abrupta de preços e salários para a nova moeda traria consigo as pressões inflacionárias da velha moeda (sancionamento de desalinhamento prévio dos preços relativos); (iii) com a redução da inflação, o consumo tenderia a se elevar e ocorreria um processo de remonetização, dada a elevação dos encaixes reais, o que definiria a necessidade de controle da política monetária; e, (iv) o salário real médio poderia crescer e pressionar o consumo no curto prazo.

            O Plano Real foi lançado em três etapas. Inicialmente, na virada de 1993 para 1994, apresentou-se o Plano de Ação Imediata (PAI) com o objetivo de promover o equilíbrio fiscal operacional e garantir a premissa de uma inflação essencialmente inercial. Controlado o déficit operacional, o que restasse, isto é, o déficit nominal residual, seria muito mais uma questão monetária do que fiscal. O PAI gerou cortes profundos na proposta orçamentária de 1994, com a “esterilização” de 20% das destinações orçamentárias, no que ficou conhecido como Fundo Social de Emergência (FSE). Talvez porque o termo “social” soasse irônico em demasia, mais tarde o FSE transformou-se em Fundo de Estabilização Fiscal (FEF).

            Em 01/03/1994 é introduzida a Unidade Real de Valor (URV) como uma nova unidade de conta. O objetivo era promover a superindexação da economia através dessa unidade[34], como reajuste diário controlado pelo governo, sempre em paridade com o dólar. Por isso, além de unidade de conta, a URV passou a ser encarada como uma reserva de valor pelos agentes. Desta forma, embora a conversão dos contratos para a URV fosse opcional, com exceção dos salários que tinham a obrigatoriedade de conversão pelo salário real médio do quadrimestre anterior, os agentes econômicos foram convertendo seus contratos para URV. A superindexação controlada pelo governo garantiu o realinhamento dos preços relativos e o fim do conflito distributivo, sem necessidade de congelamento.

            Em 01/07/1994, transformou-se a URV em meio circulante, com a denominação de “Real”, na proporção de 1URV para 1 R$, equivalendo a CR$ 2.750 (moeda antiga). Além do mais, a taxa de câmbio foi determinada, inicialmente, com um limite superior de R$ 1 para cada dólar, mas sem fixação de um nível inferior, definindo um regime de bandas cambiais assimétricas. Em março do ano seguinte, optou-se por um regime puro de bandas cambiais com o estabelecimento de limites superior e inferior. Dentro desse intervalo, a taxa de câmbio flutuaria de acordo com as oscilações de mercado; além dele, o Banco Central interviria para manter a flutuação dentro das bandas, vendendo dólares quando a cotação se aproximasse do teto, e comprando na situação inversa. Na prática, o que ocorreu é que mesmo dentro das bandas, o Banco Central atuou no mercado cambial de forma a garantir uma determinada cotação favorável para determinada conjuntura[35].

            Essa atuação do Banco Central só poderia ser efetivada se houvesse um nível de reservas internacionais que lhe permitisse intervir no mercado de divisas. Como os capitais externos já vinham entrando no país antes da efetivação do Plano Real, por conta dos diferenciais de juros, da abertura financeira, e das condições externas favoráveis, formou-se o chamado “colchão de reservas”. As reservas internacionais atingiram US$ 32,2 bilhões no final de 1993 e US$ 38,8 bilhões ao final do ano seguinte. Essa entrada de dólares é que propiciou a determinação das bandas de forma a manter o câmbio sobrevalorizado em relação ao dólar.

 

 

 

 

Gráfico 1 – Evolução da taxa de câmbio efetiva* (1990-1999)


*leva em consideração o IPA e a inflação dos principais parceiros comerciais do país.

Fonte: IPEADATA.

 

            O gráfico 1 identifica nitidamente três períodos distintos para a taxa de câmbio efetiva na década de 90. O primeiro período corresponde à fase dos planos de estabilização do governo Collor, onde ocorreu uma substancial desvalorização cambial. O segundo período, iniciado em outubro de 1992 e extendendo-se até o final de 1998, apresenta uma forte valorização do câmbio efetivo. Como o estabelecimento das bandas cambiais só é iniciado em julho de 1994, a responsabilização da âncora cambial no processo de sobrevalorização deve ser relativizada, pois esta já é nítida desde 1992. Não é mera coincidência que é justamente nesse ano que a conta de capital no balanço de pagamentos se torna positiva. Se em 1991 essa conta foi deficitária em US$ 1,4 bilhão, no ano seguinte o saldo positivo correspondeu a US$ 6,1 bilhões. Isto não é nada mais do que o reflexo da forte entrada de capitais que se inicia por conta do processo de abertura financeira, em conjunto com as altas taxas domésticas de juros. O terceiro período, de forte desvalorização cambial, reflete a crise cambial de janeiro de 1999.

            O papel da política cambial no Plano Real, em seu primeiro momento, antes da crise de janeiro de 1999, foi duplo. Por um lado, a âncora cambial, definida pelas bandas, amparava a desaceleração dos preços das demais variáveis e, por outro lado, a sobrevalorização cambial contribuía para essa mesma desaceleração, uma vez que os produtos importados ficavam mais baratos para o mercado interno. Isto provocava a concorrência dos importados com os produtos nacionais, potencializando o efeito da abertura comercial, levando à redução dos preços internos, pelo menos para aqueles setores que sofreram essa concorrência externa. Além disso, a sobrevalorização era um meio de conter a demanda agregada, uma vez que nossos produtos ficavam mais caros para os compradores internacionais. Com menos demanda, os preços tendem a cair.

            Fazendo uma avaliação que leve em conta os objetivos propostos pelos próprios programas de estabilização macroeconômica, isto é, a redução e o controle da inflação e do déficit público, vê-se que, no balanço da década, obteve-se um relativo sucesso. No tocante ao combate à inflação, a tabela 5 mostra que, dos planos de estabilização da fase pré-Real, a redução da inflação só foi observada no início da década, entre 1990 e 1991, e, mesmo assim, por pouco tempo. O controle inflacionário só foi obtido depois de 1994, com a implantação do Plano Real.

 

Tabela 5 – Variação anual dos preços em % (1990-1999)

Ano

IGP-DI

IPA-DI

IPC-DI

IPC-FIPE

ICV

1990

2739,7

2734,7

2938,1

2902,4

3256,8

1991

414,7

404,7

440,8

410,6

458,7

1992

991,4

976,9

998

965,2

980,7

1993

2103,7

2065,4

2169,6

1920,4

2054,8

1994

2406,8

2279

2668,5

2502,5

2782,4

1995

67,5

58,8

81,6

76,8

102,4

1996

9,34

8,09

11,34

10,04

13,18

1997

7,48

7,78

7,21

4,83

6,11

1998

1,7

1,51

1,66

-1,79

0,47

1999

19,98

28,9

9,12

8,64

9,57

Fonte: FGV, FIPE e DIEESE, apud Filgueiras (2000: 155), e Conjuntura         Econômica para 1999.

 

            Quanto ao déficit público, pela tabela 6, observa-se que a obtenção de saldos positivos no conceito primário durante toda a década, excluindo 1996 e 1997, só redundaram em superávits operacionais até 1994, com exceção de 1992. Após esse período, que coincide com a fase pós-Real, os déficits operacionais foram sempre substanciais, chegando a representar 7,5% do PIB em 1998. A comparação dos resultados nominais com os operacionais mostra que a substancial redução dos déficits no primeiro conceito se deve à abrupta redução da inflação conseguida pelo Plano Real, o que não garantiu melhores resultados no conceito operacional. Sendo assim, do ponto de vista do déficit público, parece que o discurso oficial inerente ao Plano Real, segundo o qual a implementação de um ajuste fiscal conseqüente tornaria o déficit nominal uma questão monetária, fez parte apenas do discurso. Isto em que pese todo o esforço na obtenção de saldos positivos no conceito primário.

 

Tabela 6 - Déficit público em % do PIB (1990-2000)*

Conceito / Ano

Primário

Operacional

Nominal

1990

-4,60

-1,30

29,6

1991

-2,85

-1,35

23,3

1992

-2,26

2,16

43,1

1993

-2,67

-0,25

59,1

1994

-5,29

-1,37

45,5

1995

-0,36

4,88

7,2

1996

0,09

3,75

5,9

1997

0,92

3,2

5,0

1998

-0,01

7,54

8,0

1999

-3,07

3,25

9,5

2000

-3,56

2,70

4,5

  *os valores negativos indicam superávit.

  Fonte: Conjuntura Econômica

 

            Antes de conseguir a redução da inflação com o Plano Real, as reformas neoliberais de abertura externa, tanto comercial, quanto financeira, já vinham sendo implantadas desde o início da década.

 

3.2.3- O processo de abertura comercial

 

            Durante a década de 80, as restrições impostas ao ingresso de produtos importados eram variadas. As restrições tarifárias incluíam tanto o valor elevado das tarifas de importação, quanto a imposição de sobretaxas sobre essas tarifas. Do lado das barreiras não-tarifárias destacavam-se o estabelecimento da necessidade de financiamento externo para operações de importação de bens de capital, a exigência de anuência prévia de órgãos da administração federal para a importação de alguns produtos específicos, e a obrigatoriedade de criação de um programa anual de importação por empresa.

            Entretanto, um dos instrumentos não-tarifários mais importantes da década de 80 talvez tenha sido a proibição de aquisição externa de vários produtos incluídos no chamado Anexo C. Este era constituído por uma extensa lista com cerca de 1300 produtos com guias de importação suspensas, exceção feita para os casos realizados sob draw back e com acordos internacionais. Esse instrumento funcionava de forma tal que, quando as contas externas (comercial e de transações correntes) se mostravam desfavoráveis, o número de produtos incluídos na lista era aumentado. Assim, enquanto 19,8% dos produtos se encontrava no Anexo C em 1980, em 1981, 1982 e 1983, esse percentual cresceu, respectivamente, para 25,1%, 30,6% e 40%. Em 1987, dados os problemas externos, esse percentual atingiu 29,6%, quando em 1985-86 ele já havia sido reduzido para apenas 17,3% (Barros et al., 1996: 07).

            O processo de abertura comercial no Brasil teve início ainda no biênio 1988-89. Em julho de 1988 foi implementada uma reforma tarifária que visou aproximar as tarifas legais de importação das efetivas, ao suprimir parte dos regimes especiais de importação. Além disso, foram eliminadas algumas sobretaxas importantes, como o IOF de 25% sobre operações de câmbio para importação e a taxa de melhoramento de portos equivalente a 3%. No ano seguinte, uma reforma tarifária reduziu as alíquotas de importação de bens intermediários e de capital.

            Assim, o biênio 1988-89 pode ser considerado o início do processo de abertura comercial, mesmo antes do governo Collor, como frisam Moreira e Correa (1997), por conta da diminuição da redundância tarifária média de 41,2% para 17,8%, de uma pequena alteração na estrutura tarifária, da abolição da maior parte dos regimes especiais de importação, e da unificação do grau de proteção tarifária da indústria local. Sob este último aspecto, Fritsch e Franco (1992: 68) ressaltam que a tarifa média foi reduzida de 51,2% em 1988 para 37,4% no ano seguinte, enquanto que a tarifa modal reduziu-se de 30% para 20% no mesmo período, e a amplitude tarifária passou de 0 – 105% para 0 – 85%. Em outras palavras, duas das principais características de um processo de abertura comercial já foram observadas nesse biênio: (i) redução da tarifa média sobre importações; e, (ii) diminuição da dispersão tarifária[36].

            Com a posse do governo Collor em 1990, o processo de abertura comercial foi acelerado. Os elementos centrais na alteração desse processo foram três. Em primeiro lugar, foram revogadas a isenção e a redução tributária contempladas nos regimes especiais de importação que ainda existiam. Em segundo lugar, foram extintas as restrições quantitativas às importações, reconstituindo-se a tarifa aduaneira como instrumento básico de proteção. Finalmente, teve início a implantação progressiva de uma reforma tributária, no sentido de uma maior redução das alíquotas e da dispersão tarifária.

            Na verdade, a política de comércio exterior do governo Collor ficou inteiramente subordinada à “nova” política industrial, proposta pelo governo no documento PICE (Diretrizes Gerais para a Política Industrial e de Comércio Exterior) de 26/06/1990[37]. A concepção que norteava o documento era a da redução progressiva dos níveis de proteção, com a redução das tarifas e a eliminação da distribuição indiscriminada de incentivos e subsídios, de forma a fortalecer os mecanismos de concorrência e mercado. A exposição da indústria à competição internacional asseguraria ainda o incentivo ao aumento da produtividade e qualidade dos produtos locais. Foi sob estas diretrizes que se deu a seqüência da abertura comercial no governo Collor, posteriormente intensificada nos governos seguintes.

            Já no seu primeiro dia de governo, Collor introduziu uma legislação que revogava todas as isenções e reduções de imposto de importação e de IPI sobre importações, exceção feita aos casos de draw back, bens de informática, Zona Franca de Manaus, e às Zonas de Processamento de Exportação, mais tarde extintas. Em seguida, foram revogadas as listas de bens com importações suspensas (Anexo C), e as exigências de apresentação de programas de importação, de anuência prévia de órgãos da administração federal para importação (exceção à informática), e de financiamento externo para as importações de bens de capital com cobertura cambial.

            Completando a eliminação das restrições não-tarifárias, foi revista posteriormente a política de informática, com a redução do número de produtos sujeitos à exigência de anuência prévia para importação e produção no país, e o compromisso quanto à extinção da reserva de mercado. Esta se definia tanto pela suspensão das proibições às importações como pela presença de capital estrangeiro no setor de produção doméstico.

            A reforma tarifária, por sua vez, abrangeu a redução, em junho de 1990, das alíquotas relativas ao complexo têxtil, insumos e máquinas agrícolas, insumos químicos e bens de capital sem produção nacional[38], e a elaboração de um cronograma de reduções tarifárias até 1994, conforme a tabela 7, cronograma este que foi antecipado em fevereiro de 1992.

 

Tabela 7 – Cronograma de reduções tarifárias

Cronograma inicial

Cronograma antecipado*

1990

1990

15/02/91

15/02/91

01/01/92

01/01/92

01/01/93

01/10/92

01/01/94

01/07/93

Media da tarifa (%)

Moda (%)

Desvio padrão (%)

32,2

40

19,6

25,3

20

17,24

21,2

20

14,2

17,1

20

10,7

14,2

20

7,9

*cronograma revisto em fevereiro de 1992.

Fonte: Guimarães (1995: 09).

 

            A política de promoção de exportações, por seu lado, foi menos agressiva. A lei 8187/91 reativou o mecanismo de crédito, através de autorização ao Tesouro Nacional, para pactuar encargos financeiros inferiores ao respectivo custo de captação do PROEX (Programa de Financiamento às Exportações), ao mesmo tempo em que concedeu ao financiador o estímulo equivalente à cobertura da diferença entre os encargos pactuados com o tomador e o custo de captação de recursos. Já a lei 8402/92 ampliou o mecanismo de draw back e reafirmou os incentivos fiscais a exportações do final dos anos 80.

            Em 1994 a política comercial sofreu algumas modificações, mas no sentido de aprofundar o processo de abertura comercial[39]. Foram reduzidas novamente as alíquotas de importação, em alguns casos para zero ou 2%, sobretudo para bens de consumo com peso significativo nos índices de preço. Adicionalmente, foi antecipada para setembro de 1994 a entrada em vigor da TEC[40]. As tabelas 8 e 9 mostram que o resultado, tanto para a tarifa nominal como para a efetiva[41], foi o aprofundamento da liberalização (redução da tarifa e da sua dispersão).

 

 

Tabela 8 – Tarifa nominal e TEC (em %)

 

Julho/93

Dezembro/94

Dezembro/95

TEC-20061

Média simples

13,2

11,2

13,9

11,9

Média ponderada2

11,4

9,9

11,5

10,6

Mediana

12,8

9,8

12,8

12,8

Mínima3

0

0

0

0

Máxima4

34

24,7

55,5

19,6

Desvio padrão

6,7

5,9

9,5

4,6

1-ano de plena vigência  sem a lista de exceções.

2-com base no valor adicionado.

3-referente a extração de petróleo e carvão.

4-referente a automóveis, caminhões e ônibus, com exceção de dez/94 que corresponde a indústria de laticínios.

Fonte: Kume (1996: 09).

 

Tabela 9 – Tarifa efetiva e TEC (%)

 

Julho/93

Dezembro/94

Dezembro/95

TEC-20061

Média simples

18,9

14,4

23,4

15,3

Média ponderada2

14,5

12,3

12,9

15,4

Mediana

15,1

11,3

14,6

14,4

Mínima3

-2,0

-1,9

-1,9

-1,7

Máxima4

129,8

44,6

270,9

53,1

Desvio padrão

21,7

9,7

45,9

9,2

1-ano de plena vigência  sem a lista de exceções.

2-com base no valor adicionado.

3-referente a extração de petróleo e carvão.

4-referente a automóveis, caminhões e ônibus.

Fonte: Kume (1996: 09).

 

            As tabelas 8 e 9 , entretanto, também mostram que 1995 foi um ano de aparente recuo na liberalização das importações, notadamente no que diz respeito à dispersão tarifária. De fato, os efeitos da crise mexicana de dezembro de 1994, o problema nas nossas contas externas e pressões protecionistas de alguns setores, fizeram com que o governo impusesse algumas “restrições às importações através de aumentos nas tarifas de um grupo de produtos selecionados e da utilização pontual de restrições não-tarifárias, cuja aplicação tinha sido eliminada em março de 1990” (Kume, 1996: 05).

            Contudo, antes de representar uma alteração na concepção da política comercial, essas medidas representam apenas ajustes pontuais em resposta a certas conjunturas adversas nas contas externas. Reconhecendo isso, um importante membro do governo Fernando Henrique reafirma o compromisso do governo com a abertura quando diz que: “o Brasil está à vontade para aproximar-se com cautela da ALCA e das tentativas de apressar sua implementação. Não tem motivo para nenhum complexo de inferioridade em matéria de liberalismo comercial, pois, nesta década, realizou um dos mais rápidos, drásticos e maciços processos de abertura de que se tem registro em países mais industrializados” (Serra, 1998: 20).

            Esse processo de abertura comercial teve impactos profundos sobre a estrutura da economia brasileira nos anos 90. Em primeiro lugar, a abertura comercial, em conjunto com a sobrevalorização cambial provocou um enorme crescimento das importações, que se traduziu em vultosos déficits comerciais. O total de importações em 1989 chegou a US$ 18,3 bilhões, passando para US$ 21 bilhões em 1991, US$ 33 bilhões em 1994, atingindo US$ 61,4 bilhões em 1997. Por sua vez, o superávit comercial de US$ 16 bilhões em 1989 caiu para US$ 10,4 bilhões em 1994, e se transformou em um déficit que percorreu todo o período 1994-2000. Em 1997, esse déficit totalizou US$ 8,4 bilhões.

            Deve-se ressaltar também a modificação na composição desse valor total de importações para a década de 90: “destaque-se, ainda,  que o incremento do quantum importado foi ainda mais expressivo (23% ao ano), haja vista que os preços de importação caíram de forma quase ininterrupta nesse período” (Markwald, 2001: 15).

            Outro efeito importante da abertura comercial foi o crescimento dos coeficientes de importação e exportação. O coeficiente de exportação da indústria (exportações sobre consumo aparente) passou de 9,1% em 1990 para 13,7% em 2000 (Markwald, 2001: 21). Entretanto, esse crescimento foi muito inferior ao do coeficiente de importação.

 

Tabela 10 – Coeficiente de penetração das importações1 (1999-2000)

Macro-complexo

Construção

Metal-mecânico

Têxtil

Agro-indústria

Química

Total2

1990

2,5

6,6

2,3

3,0

10,4

6,4

1991

2,9

8,8

3,2

3,4

10,6

7,3

1992

2,5

9,0

3,5

2,8

9,6

7,1

1993

2,4

10,3

6,5

3,6

10,2

8,1

1994

3,0

13,9

8,4

4,8

11,8

10,3

1995

4,1

18,8

13,2

7,1

14,8

13,8

1996

4,1

19,2

14,1

6,1

15,8

13,9

1997

4,4

23,3

16,6

7,1

15,7

15,8

1998

4,3

27,0

15,4

7,3

14,6

16,3

1999

3,8

24,9

12,2

5,4

13,3

14,3

2000

4,2

24,4

13,6

5,1

13,9

14,6

1-importações sobre consumo aparente, com base no câmbio real de 2000.

2-média da indústria.

Fonte: FUNCEX, apud Markwald (2001: 18).

 

            A tabela 10 mostra o coeficiente de penetração das importações entre 1990 e 2000 para a indústria total e sua composição por macrocomplexos. Percebe-se claramente que o coeficiente de importações da indústria passou de 6,4% em 1990 para 14,6% em 2000, um crescimento bem maior do que o do coeficiente de exportações. Por macrocomplexos, destacaram-se nesse sentido o metal-mecaânico (que inclui o setor de máquinas e equipamentos) e o têxtil. Especificamente no que se refere ao setor bens de capital, esse coeficiente passou de 13,5% em 1991 para 57,6% em 2000 (Markwald, 2001: 10)!

            Por outro lado, Laplane et al. (2000: 78) revelam que esse efeito da abertura comercial se deu de forma mais intensa nas empresas de capital estrangeiro do que nas empresas de capital nacional. O coeficiente de exportação das empresas estrangeiras passou de 9,6% em 1989 para 10,8% em 1997, enquanto que o de importação subiu de 3,9% para 9%. Embora o mesmo processo tenha ocorrido nas empresas nacionais, ele não foi tão intenso. O coeficiente de exportação passou de 6,6% em 1989 para 8% em 1997 e o de importação de 2,5% em 1989 para 5,3% em 1997.

            O que ocorreu, na verdade, foi uma mudança estrutural na economia brasileira durante os anos 90. O processo de abertura comercial, em conjunto com a valorização cambial, levou a um brutal crescimento das importações, não acompanhado pelas exportações. Como não se tratou de algo meramente conjuntural, a demanda tendeu a se deslocar dos produtos domésticos para os produtos importados, elevando a propensão a importar da economia. Notadamente, o avanço deste efeito rumo aos setores intermediários de produção provocou um verdadeiro processo de desubstituição de importações[42].

 

3.2.4- Liberalização da conta de capital e abertura financeira

 

            O processo de abertura financeira, implementado no Brasil a partir da virada dos anos 80 para os 90, possui uma especificidade em relação a outros países latino-americanos. Essa especificidade se encontra na proibição de depósitos e empréstimos em moeda estrangeira, tanto para residentes quanto para não-residentes, no sistema bancário local. Dessa forma, mesmo com o avanço da abertura em relação às transações de entrada e saída, no que diz respeito à conversibilidade entre moedas, só são permitidas transações com títulos públicos indexados ao câmbio e créditos com correção cambial. Nesse sentido, a liberalização financeira brasileira na década de 90 foi menos intensa do que na Argentina e no México. Mesmo assim, o grau de abertura financeira cresceu consideravelmente no período.

 

3.2.4.1- Processo de desregulamentação do mercado financeiro interno

 

            A desregulamentação financeira interna teve início com a reforma bancária de 1988 que, através da Resolução 1524/88 do Bacen, autorizou a formação de bancos universais (múltiplos). A lei também extinguiu a carta-patente, instrumento através do qual era autorizado o funcionamento de novas instituições financeiras. “Pelas novas regras, bancos comerciais e bancos de investimento foram autorizados a constituírem, entre si ou com financeiras, uma pessoa jurídica única, formando um banco múltiplo” (Hermann, 1999: 31). Na prática, a reforma significou um reconhecimento institucional a algo já praticado.

            Em 1991 é apresentado o Plano Diretor para o Mercado de Capitais, que foi parcialmente implementado em 1993. Esse plano modificou a lei das Sociedades Anônimas (S.A.) e criou novos mecanismos e fundos (para investimento em títulos com correção cambial, por exemplo) com o intuito de flexibilizar a captação de poupança interna e externa. A nova lei sobre S.A. apresentou “pouco avanço na criação de novos dispositivos de controle e fiscalização para dar maior transparência às informações das empresas; não alterou o limite de dois terços para a formação do capital com ações preferenciais, possibilitando com isso o controle da empresa, com apenas 17% (51% das ações ordinárias) e eliminou o direito de recesso (direito de ações), reduzindo assim os direitos de acionistas minoritários para facilitar privatização, fusão, divisão ou compra/venda de empresa” (Cano, 2000: 249-250).

            A criação de novos mecanismos de captação de recursos está intimamente ligada ao crescimento da dívida pública e ao crescimento do mercado de títulos em maior proporção do que o de crédito bancário. Com as altas taxas de juros oferecidas pelos títulos públicos federais, ocorreu uma reestruturação dos ativos das instituições financeiras, de forma que cresceu a parcela decorrente de títulos e valores mobiliários nas carteiras dessas instituições[43]. Essa parcela passou de 4,9% para 24% na carteira dos bancos públicos entre 1994 e 1998. Já no que se refere aos bancos privados, essa parcela cresceu de 8,6% em 1994 para 26,5% em 1998. Em 1999, os bancos privados nacionais tiveram 31,8% de suas receitas provenientes da aplicação nesses ativos (Andima, 2001: 34).

            A década de 90 assistiu a uma considerável evolução da indústria de fundos. Em 1995, como componente do processo de reformulação dos fundos, foram criados os Fundos de Investimento Financeiro (FIF’s), regulamentados pelo Bacen e, em sua maior parte, relacionados a investimento de renda fixa. Esses fundos substituíram a estrutura anterior com multiplicidade de produtos, cada qual com normas específicas relativas a composição de carteira, prazo de aplicação e liquidez de quotas. O mais importante, entretanto, é que a flexibilização permitida na composição das carteiras dos FIF’s possui poucas exceções: (i) limitação para aplicação em ações ou em quotas de fundos regulamentados pela CVM em 20% do patrimônio total; e, (ii) observação das normas de diversificação de risco.

            Os fundos regulamentados pela CVM, atualmente denominados Fundos de Investimentos em Títulos e Valores Mobiliários, foram simplificados nas regras de diversificação de risco e de composição de carteira. Não existe limite para investimentos representados por ações, valores imobiliários e derivativos, mas as operações de renda fixa, em geral, estão limitadas a 49% do patrimônio total[44].

 

3.2.4.2- Abertura ao capital externo

           

            A abertura financeira no Brasil foi iniciada no biênio 1987-1988. No que se refere à liberalização cambial, em dezembro de 1988, a criação do segmento de câmbio de taxas flutuantes foi um fato marcante. Inicialmente chamado de mercado de câmbio administrado, esse segmento absorvia as transações relativas a viagens internacionais mas, no ano seguinte, ele incorporou outros tipos de transações como transferências unilaterais e uso de cartão de crédito internacional, dentre outros. Concretamente, esse segmento cambial permitiu a ampliação dos limites de operações cambiais e maiores facilidades para investimentos brasileiros no exterior (Gonçalves, 1996: 138).

            Em março de 1990, foi criado o segmento de câmbio livre, caracterizando o processo da liberalização cambial brasileira dentro de um contexto de regime de câmbio dual. O segmento de câmbio comercial foi utilizado para a balança comercial, conversão de moeda nacional para remessa e conversão de investimentos e de empréstimos no exterior[45]. A partir daí, as condições de acesso ao mercado cambial foram expandidas seja pela autorização para qualquer banco comercial operar no segmento flutuante, pela ampliação dos limites das posições comprada ou vendida dos bancos autorizados a operar no mercado de câmbio, ou pela não identificação do vendedor no segmento flutuante. Este último aspecto permitiu o aumento da oferta de divisas proveniente tanto do mercado paralelo como dos depósitos brasileiros no exterior[46]. Em maio de 1991, foi autorizada a entrada direta de investidores institucionais estrangeiros no mercado acionário doméstico, livre de restrições, através do mercado de câmbio comercial.

            O processo de liberalização cambial terminou por revogar a centralização cambial, estabelecida pela Resolução 1564 de 16/01/1989. Segundo esta, o pagamento de juros, lucros, dividendos e principal da dívida externa seriam feitos a critério do Banco Central. As primeiras medidas do processo de revogação da centralização cambial foram tomadas em 1991, com a liberalização dos pagamentos de juros e do principal da dívida de médio e longo prazo para os setores privado e público não-financeiro.

            Outro mecanismo que manifesta uma maior liberdade cambial se encontra na permissão de operações com moeda nacional por parte dos não-residentes. A Carta Circular nº 5 do Banco Central do Brasil (Bacen), de 27/02/1969, já permitia a existência das contas de não-residentes (chamadas contas CC-5). Entretanto, a Resolução nº 1946, de 29/07/1992, e a Carta Circular nº 2242, de 07/10/1992, ampliaram sua abrangência, ao incluir as instituições financeiras em seu escopo, desobrigando-as de autorização para movimentar suas contas. Em suma, este mecanismo ampliou a liberdade na movimentação de capital e, portanto, elevou o grau de conversibilidade cambial no país. Já no início de 1992, o Banco Central havia permitido a livre conversibilidade dos depósitos denominados em moeda nacional em contas de instituições financeiras não-residentes, potencializando ainda mais os mecanismos próprios do segmento de câmbio flutuante.

            As contas CC-5 deram acesso ao mercado financeiro brasileiro mediante as contas de não-residentes do mercado de câmbio flutuante, e não estavam sujeitas a restrições de tipo de aplicação, constituindo-se assim no principal canal de entrada de hot money. Se possuíam maior risco cambial, apresentaram, em compensação, grande rentabilidade no diferencial das taxas de juros domésticas, em relação às internacionais (Freitas e Prates, 1998).

            Do ponto de vista da captação de recursos externos, o processo de liberalização financeira no Brasil dos anos 90 teve duas características: (i) expansão brutal do lançamento de títulos em moeda estrangeira por parte de empresas brasileiras (bônus, commercial papers, etc.); e, (ii) forte entrada de investidores estrangeiros no mercado de capitais brasileiro, a partir de maio de 1991. Esses recursos externos se aproveitaram em muito do enorme diferencial entre as taxas domésticas de juros e as internacionais, além do que as alterações na regulamentação e no marco regulatório também caracterizaram o processo de liberalização financeira que permitiu a volta do país ao circuito financeiro internacional[47].

            A ampliação do acesso dos residentes às fontes externas de financiamento se deu tanto pelo mercado de capitais, como pelo mercado de crédito, e a alteração na legislação que possibilitou essa ampliação envolveu a expansão do leque de instrumentos financeiros à disposição, e a alteração nos prazos mínimos de captação e na tributação incidente.

            Como exemplo dessas alterações, deve-se citar a Resolução 1743/90, que permitiu a emissão de commercial papers por empresas brasileiras, as resoluções 1809 (substituída pela 2770/2000), 1834 e 1848, todas de 1991, que autorizaram a emissão de outros instrumentos de dívida no mercado financeiro internacional (Certificados de Depósito, Export Securities, e títulos – ADRs –  e debêntures conversíveis em ações), e a Resolução 1847/91, que isentou do imposto de renda os juros e os demais custos associados à colocação de papéis no exterior, para transações com um prazo superior a 2 anos. Em 1992, a Resolução 1972 regulamentou os investimentos estrangeiros no país através dos certificados representativos de ações e outros valores mobiliários de empresas emitidos e negociados nos EUA (ADR’s) e outros mercados (GDR’s)[48].

            No tocante à liberalização das transações de entrada, destaca-se ainda a abertura do mercado financeiro nacional aos investidores estrangeiros conforme as várias modalidades de investimento de portfolio. Neste ponto, ainda em 1987, a Resolução 1289 estabeleceu a regulamentação que disciplinava as Sociedades de Investimento – Capital Estrangeiro (Anexo I), os Fundos de Investimento – Capital Estrangeiro (FICE – Anexo II), e as Carteiras de Títulos de Valores Mobiliários – Capital Estrangeiro (CTVM – Anexo III). O Anexo I tinha como finalidade a orientação dos recursos ingressados na aplicação em carteira diversificada de títulos e valores mobiliários. O Anexo II, por sua vez, dizia respeito aos recursos sob a forma de fundo aberto com as cotas adquiridas apenas por estrangeiros. Assim, enquanto os Anexos I e II regulamentavam o investimento de portfolio com instituições financeiras constituídas no país, o Anexo III regulamentava o investimento de portfolio através de carteiras de valores mobiliários mantidas e com cotas negociadas no exterior.

            Em março de 1991 é criado pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), através da Resolução 1832, o Anexo IV à Resolução 1289/1987, regulamentando as carteiras de valores mobiliários de companhias abertas por investidores institucionais estrangeiros. Diferentemente das outras modalidades, o Anexo IV não incluía requerimentos de diversificação e de capital inicial, possuía duração indeterminada, e estabelece isenção de tributação sobre ganhos de capital. Além disso, “esse Anexo acabou absorvendo o Anexo III (...) e tornou-se a principal modalidade de entrada de capital estrangeiro nas bolsas de valores domésticas a partir de então (...) sua instituição significou a flexibilização dos canais de investimento de portfolio estrangeiro nas bolsas de valores domésticas” (Prates, 1997: 114).

            A regulamentação sobre o investimento de portfolio, através do Fundo de Renda Fixa – Capital Estrangeiro (FRFCE), ainda procurou diferenciar o investimento externo em renda variável do mercado de renda fixa. Este fundo, autorizado em 1993, permitia o investimento dos recursos em títulos do tesouro ou do Bacen (até a faixa de 35%), em títulos de renda fixa de empresas e instituições financeiras sediadas no país (CDB’s e quotas do FAF).

            Em 16/03/1995, a Resolução 2148 possibilitou a captação de recursos externos pelos bancos para repasses a pessoas físicas e jurídicas para financiamento de custeio, investimento e comercialização da produção agropecuária. Por outro lado, a Resolução 2170 de 30/06/1996 facilitou a captação dos bancos para repasse a pessoa física ou jurídica para financiamento imobiliário. Finalmente, a Resolução 2312 de 05/09/1996 fez o mesmo para repasses a empresas exportadoras. Todas essas resoluções estabeleceram um prazo mínimo de 180 dias para essas operações, e completaram as mudanças no marco regulatório sobre a emissão de títulos no exterior.

            Mais recentemente, no biênio 1999-2000, o marco regulatório foi alterado no sentido de atualizar e simplificar as aplicações de não-residentes nos mercados domésticos financeiro e de capitais. Ao mesmo tempo que a Resolução 2689 de 26/01/2000 indicava a extinção dos Anexos I e II, ela estabeleceu uma data limite para adaptação dos recursos ingressados pelo Anexo IV às novas disposições, e possibilitou a transferência dos recursos ingressados sob o Anexo V à nova sistemática.

Na prática, com a nova regulamentação, o capital externo de portfolio não precisa mais declarar o tipo de aplicação que pretende fazer. Com isso, os investidores podem transferir seus recursos no país de uma aplicação para outra sem restrição. Assim, o novo marco regulatório não representou uma redução do grau de abertura financeira mas, ao contrário, no sentido de simplificar a regulamentação sobre o investimento externo de portfolio, significou a reafirmação do compromisso do país com a liberalização do fluxo de capital externo.

No tocante à conversibilidade interna da moeda, o processo de liberalização no Brasil não foi tão radical como os implementados na Argentina e no México. No início de 1990, como já comentado, foi criado o mercado livre de câmbio, com o Banco Central deixando de comprar/vender divisas à taxa estipulada. Ao longo do processo de liberalização foi ampliado o leque de ativos indexados ao dólar, inclusive de títulos públicos, e expandida a liberdade de posse de divisas no mercado flutuante. As autorizações do Banco Central para expansão das posições compradas em moeda estrangeira, por parte das instituições financeiras, terminou legalizando a demanda por moeda estrangeira como ativo de reserva.

Segundo Gonçalves (1999b: 104), “o processo de abertura para o capital estrangeiro não pode ser separado do forte processo de liberalização financeira. A desregulamentação financeira ocorrida no país ao longo dos anos 90 criou condições mais favoráveis para as ECE [Empresas de Capital Estrangeiro] atuantes no país”. Dentre os mecanismos que facilitaram o movimento do capital externo, o autor cita a possibilidade de lançamento de títulos no mercado internacional (incluindo a emissão de certificados representativos de ações como ADR’s e GDR’s e de outros valores mobiliários), o uso das contas de não-residentes em moeda estrangeira (CC-5), a permissão para pagamento por tecnologia entre filial e matriz, e a criação dos fundos de privatização para capital estrangeiro.

Esse capital externo, sob a forma de investimento direto estrangeiro[49], também se beneficiou do aumento na conversibilidade da conta corrente na medida em que este, além da liberalização do movimento do investimento de portfolio, incluiu a simplificação dos procedimentos para remessa de lucros e dividendos e a eliminação do imposto de renda suplementar para essas remessas, e a redução do imposto de renda das mesmas de 25% para 15% nos anos de 1991 e 1992. Isto, na prática, igualou o capital estrangeiro ao capital nacional (Freitas, 1996).

Ao longo da década de 90, as restrições ao investimento direto estrangeiro foram sendo abolidas. No período 1991-93 é que se deu a alteração na legislação flexibilizando as restrições à remessa de lucros e pagamento por tecnologia. Adicionalmente a estes estímulos à saída de capital, o artigo nº 171 da Constituição Federal, que distinguia as empresas brasileiras das empresas brasileiras de capital nacional, favorecendo as segundas, foi alterado de forma a tratá-las igualmente. Já em 1994 ocorreu o término da Lei de Informática, o que acarretou na elevação da entrada de capital no setor[50].

 

3.2.4.3- Impactos e modificações na estrutura do Sistema Financeiro Brasileiro

 

            A entrada substancial de capital externo na década de 90 pode ser observada na tabela 11.

 

Tabela 11 -  Captação Bruta de Recursos Externos no Brasil 1991-97

(Composição em %)

Capital Externo \ Período

1991

1992

1993

1994

1995

1996

1997

Investimento Direto

6,0

7,4

2,7

5,2

6,1

12,1

13,8

Investimento de Portfolio

    - Anexo IV

6,5

4,1

21,7

16,7

46,1

44,7

58,0

47,7

45,9

40,9

32,4

29,1

30,1

25,0

Empréstimo em Moeda

37,9

44,8

33,8

20,3

29,5

35,5

27,5

Vinculado ao Comércio Exterior

49,5

26,0

17,5

16,5

18,5

20,0

28,5

Total em %

    - em US$ milhões

100

11.627

100

17.791

100

32.667

100

43.073

100

53.885

100

78.949

100

128.984

Fonte: Bacen, apud Prates (1999: 35).

 

No período 1991-97, a captação bruta de recursos externos chegou a cerca de US$ 367 bilhões. Deve-se ressaltar também que, na composição desse capital externo ingressante, a parcela relativa ao investimento de portfolio cresce a partir de 1992 e, já no ano seguinte, torna-se a principal fonte de recursos externos com 46,1% do total. Desses recursos ingressados sob a forma de investimento de portfolio é de chamar a atenção a grande participação dos que ingressaram na modalidade do Anexo IV, principalmente no período 1993-95. Em 1994, por exemplo, apenas os recursos captados sob a forma do Anexo IV representaram 47,7% do total[51].

Como ressalta Prates (1999: 44), a quase totalidade do investimento de portfolio ingressou por meio do Anexo IV, sendo direcionada principalmente para a aquisição de ações de empresas estatais no amplo processo de privatização ocorrido na década[52]. Isto fez com que o mercado secundário de ações tenha sido o segmento do mercado financeiro mais atingido pela abertura financeira. Em um trabalho anterior (Prates, 1997: 164-165), a mesma autora ressaltava que “a abertura financeira na década de noventa apenas legalizou a entrada direta de investidores institucionais estrangeiros nas bolsas de valores domésticas, ou seja, no mercado secundário de ações. A compra de ações no mercado primário continua proibida. Os investidores estrangeiros têm acesso a esse mercado apenas quando são realizadas emissões globais de ações ou através de ADRs de nível III”[53].

As modificações na estrutura do Sistema Financeiro Nacional (SFN) do período são nítidas no sentido de sua maior concentração, crescimento da participação estrangeira e diminuição das instituições públicas, principalmente as estaduais (Andima, 2001: 31)[54]. Esses foram os impactos sobre a estrutura do SFN dos processos de desregulamentação e abertura financeiras.

 

Tabela 12 – Volume total negociado no mercado de derivativos na BM&F (1994-00)

Ïtem selecionado

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

Total (em US$ bilhões)

1577

3044

4744

6904

5864

2370

3808

Média diária (em US$ bilhões)

6,4

12,4

19,1

27,7

23,8

9,6

15,4

Juros futuro (% do total)

61,4

59,1

59

46,6

53,7

54,3

60,7

Índice de ações futuro (% do total)

7,2

4,4

5,6

6,4

4,2

4,4

5

Dólar futuro (% do total)

17,1

25,2

25,2

35,5

32,1

26,8

26,7

Ouro (% do total)

2

0,5

0

0

0

0

0

Produtos agropecuários (% do total)

1,6

1

0

0

0,1

0,2

0,2

Swaps (% do total)

10,4

7,8

7,2

8,3

7,5

12,3

6,5

Outros* (% do total)

0,3

2

3

3,2

2,4

1,9

0,9

*opções flexíveis em US dólar, Ibovespa, C-Bonds e Teleouro.

Obs.: a queda nos valores absolutos  em dólar para o biênio 99-00 reflete os efeitos da desvalorização cambial.

Fonte: Andima (2001: 40).

 

            A estrutura do SFN tem como principal característica o fato de ser predominantemente bancário. O segmento bancário reúne mais de 90% do total de ativos no setor. Como 70% dos ativos do sistema bancário correspondem às 10 maiores instituições, constata-se a concentração prevalecente no setor. As operações do setor estão fortemente concentradas no segmento de títulos públicos, dado o crescimento e o estoque atual da dívida pública. Isso fez com que as operações de crédito representem apenas 27% do PIB[55], o mercado privado de papéis ainda seja pequeno (estoque equivalente a 12% do PIB), e o mercado de ações tampouco seja muito ativo. O volume total negociado na Bovespa em 2000 correspondia a 17% do PIB (Andima, 2001: 24). Entretanto, segundo a CVM[56], o mercado de capitais cresceu 5 vezes mais do que o PIB. Calculando o valor de mercado das ações com base em seus preços e na quantidade de empresas abertas com ações negociáveis em bolsa, a CVM estimou que esse valor correspondia a 7,3% do PIB em 1991, cresceu para 34,8% em 1994 e, após cair para 20,7% em 1998, atingiu 37,6% do PIB em 1999, demonstrando uma certa evolução no período. O mercado de derivativos, por sua vez, teve um alto grau de desenvolvimento dos seus principais produtos, conforme a tabela 12.

            Outra alteração significativa na estrutura do SFN diz respeito ao crescimento dos bancos múltiplos na composição das instituições bancárias. Em dezembro de 1989, o número de instituições bancárias sob a forma comercial era de 61; os bancos de investimento eram 33 e os bancos múltiplos 114. Em dezembro de 2000 essa composição era de 28 bancos comerciais, 18 bancos de investimento e 164 bancos múltiplos.

            No que se refere à desnacionalização do SFN, a estratégia do governo se aproveitou de uma “brecha legal” para modificar o marco regulatório. Segundo o artigo 192 da Constituição Federal de 1988, o SFN deveria ser regulado por lei complementar, incluindo o referente às condições de participação estrangeira. Na ausência da lei, prevaleceu o artigo 52 das Disposições Constitucionais Transitórias, que vedava a instalação de novas instituições financeiras domiciliadas no exterior e o aumento do percentual da participação das já instaladas. Entretanto, isso não se aplica a autorizações que resultem de acordos internacionais ou sejam do interesse do governo brasileiro.

            Aproveitando a brecha e em conformidade com o projeto implantado, considerou-se de “interesse do governo brasileiro” o aumento da participação estrangeira no SFN. Dessa forma, desde agosto de 1995, já foram lançados mais de cem decretos presidenciais reconhecendo “tal interesse”. Com a Resolução 2815 do Conselho Monetário Nacional, revogando o artigo 17 do Anexo III à Resolução 2099/94, o Bacen flexibilizou, a partir de janeiro de 2001, a interpretação daquela vedação constitucional, possibilitando a instituições nacionais com participação ou controle estrangeiros a instalação de novas agências, sem necessidade de autorização por decreto presidencial. A relevância dessa medida se dá porque 84% do total das instituições financeiras “estrangeiras” no país corresponde a esse tipo.

            A desnacionalização bancária torna-se clara com os dados das tabelas 13, 14 e 15, que apresentam a participação percentual das instituições nos ativos, nos depósitos e nos créditos do setor bancário. Destaque-se a participação dos bancos com controle estrangeiro nas três variáveis, comparando-se os anos de 1994 e 2000.

Tabela 13 – Participação das instituições nos ativos da área bancária (em %) 1993-00

Instituição

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

Bancos públicos

50,9

51,4

52,2

50,9

50,1

45,8

43

44

Bancos privados nacionais

40,7

41,2

39,2

39

36,8

35,3

33,1

32,2

Bancos com controle estrangeiro

8,4

7,2

8,4

9,8

12,8

18,4

23,2

23,9

Fonte: Andima (2001: 33)

 

Tabela 14 – Participação das instituições nos depósitos da área bancária (em %)1993-00

Instituição

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

Bancos públicos

56,3

55,9

58

61,2

59,1

51,2

50,6

48,5

Bancos privados nacionais

38,8

39,4

36,4

34,1

32,9

33,1

31,8

33,2

Bancos com controle estrangeiro

4,8

4,6

5,4

4,4

7,5

15,1

16,8

18,3

Fonte: Andima (2001: 33)

 

Tabela 15 – Participação das instituições nos créditos da área bancária (em %) 1993-00

Instituição

1993

1994

1995

1996

1997

1998

1999

2000

Bancos públicos

61,8

59,1

62,1

58,1

52,2

53,2

47,5

46,6

Bancos privados nacionais

31,5

35,4

31,8

32,7

35,4

31

31,7

33,1

Bancos com controle estrangeiro

6,6

5,2

5,7

8,6

11,7

14,9

19,8

20,3

Fonte: Andima (2001: 33)

 

            Os bancos múltiplos possuem mais de 70% do ativo total do setor na média dos anos 90 (Hermann, 1999: 34). Dentre as principais alterações na operação desses bancos, durante a década, destaca-se o aumento relativo das operações externas (haveres externos e operações cambiais), tanto pelo lado do ativo como pelo lado do passivo. Do lado do ativo essas operações representavam 8,2% do total dos bancos privados em 1988-90, e passaram para 17% em junho de 1997, enquanto que do lado do passivo correspondiam a 19,9% em 1991 e chegaram a 26,4% em 1997 (Hermann, 1999: 54 e 57). Essas alterações representam o aumento no grau de abertura financeira no setor.

 

 

3.2.4.4 – Administração do grau de abertura financeira

 

            De acordo com as circunstâncias conjunturais, dadas pelos momentos de instabilidade no mercado financeiro internacional, o governo alterou os parâmetros da abertura financeira, principalmente após 1993. As variáveis de controle utilizadas foram tanto a taxação (IOF e imposto de renda, este, em geral, nulo) quanto a regulação da diversificação das aplicações.

            A partir de meados de 1993, o governo implementou algumas medidas ora para restringir o fluxo líquido de capital externo, ora incentivando a entrada e saída dos recursos. O próprio discurso oficial apontava o crescimento da dívida pública e as limitações imperantes sobre a política macroeconômica como as razões para a necessidade dos ajustes no grau de abertura, especificamente para meados de 1993. Do lado das emissões de títulos no exterior, foram ampliados os prazos mínimos de amortização, e para efeito de benefício fiscal, de dois e cinco anos para três e oito respectivamente. Mais tarde, em dezembro de 1994, foi suspensa a autorização automática dessas emissões e os prazos de renovação foram alterados. Quanto à taxação, o IOF sobre emissões no exterior, que era de 3%, passou para 7% em outubro de 1994, foi zerado em março de 1995, elevado para 5% cinco meses mais tarde, e novamente zerado em abril de 1997.

            Para o investimento de portfolio foram proibidas as aplicações nos fundos de commodities no Anexo V, em setembro de 1993, e, no final do mesmo ano, foi vetada a utilização desses recursos na aquisição de valores mobiliários de renda fixa e de debêntures em operações que resultassem rendimentos pré-determinados. O IOF, especificamente sobre recursos referentes ao Anexo IV, passou de 1% em outubro de 1994 para 0% em março de 1995. Cinco meses após foi proibida a aplicação desses recursos no mercado de derivativos, medida que foi anulada em abril de 1997.

            Ainda em meados de 1993, no sentido contrário de outras medidas de gestão, foi aumentado o limite das posições compradas dos bancos – sem necessidade de depósito no Bacen – de US$ 2 milhões para US$ 10 milhões. Essa medida implicou o aumento da conversibilidade da moeda e, portanto, do grau de abertura financeira. Em agosto de 1995, o IOF sobre as contas de não-residentes (CC-5) correspondia a 7%, sendo reduzido para 2% em abril de 1997.

            Especificamente sobre os Fundos de Renda Fixa – Capital Estrangeiro, autorizados em 1993, o IOF incidente foi majorado de 5% para 9% em outubro de 1994, retornando aos 5% em março de 1995. Posteriormente, em agosto do mesmo ano, esse imposto voltou a crescer para 7%, e tornou a cair para 2% em abril de 1997.

            Em abril de 1996, o Banco Central impôs restrições à utilização das contas de não-residentes (CC-5), dentro desse espírito de manejo do grau de abertura financeira. A Carta Circular 2677 de 10/04/1996 tornou obrigatória a apresentação de documentos para transferências acima de US$ 10 mil, além de estabelecer condicionalidades extras para a abertura das contas. “A partir daí, as contas de não-residentes somente podem ser abertas e movimentadas por bancos credenciados a operar no mercado flutuante e não estão sujeitas a limites de transferência de recursos apenas se a instituição financeira no exterior mantiver relação de correspondência ou tiver vínculo acionário com o banco brasileiro depositário dos recursos” (Prates, 1999: 28)[57].

            O que essas medidas no manejo da tributação e composição do capital externo mostram claramente não é uma suposta indecisão, ou recuo, no projeto governamental de aprofundar o processo de liberalização financeira. Ao contrário, essas medidas demonstram que a estratégia de atuação do governo brasileiro no “controle” do capital externo se traduziu no mero manejo da política monetário-financeira de acordo com as necessidades conjunturais de financiamento externo da economia. Em situações de abundância de divisas (outubro de 1994 e agosto de 1995, por exemplo) foram impostas algumas pequenas restrições à entrada de capital de curto prazo. Por outro lado, em momentos de escassez/queda das reservas (março de 1995 e abril de 1997), a tributação e as regulamentações eram manejadas no sentido de flexibilizar o fluxo de capital externo.

            Essa tentativa do governo de administrar conjunturalmente as circunstâncias momentâneas, dentro de um projeto de mais longa duração, não parece ter alterado a natureza deste. Magalhães (2000), ao estimar o grau de abertura da conta de capitais no Brasil durante o período 1988-98, constata que a imposição de algumas restrições ao capital de curto prazo, a partir de 1993, foi ineficaz em garantir ao Bacen maior controle sobre a taxa de juros. Isto é, a política econômica teve um reduzido grau de autonomia na determinação da taxa de juros, justamente porque o grau de abertura financeira no país é alto e crescente após 1992.

            Dentro do projeto mais amplo de reformas estruturais, implantado no país nesta última década, o aumento do grau de abertura financeira tem sido estratégico. Prates (1997: 176) afirma que não foram os fatores internos (programa de estabilização e reformas neoliberais) os principais determinantes do retorno dos fluxos de capital externo. A autora argumenta que os fatores externos (nova ordem do sistema financeiro internacional e o ciclo dos países centrais) foram os determinantes em última instância, talvez em uma tentativa de diferenciar-se de análises mais tradicionais. Sem desconsiderar a importância de fatores externos, é de se perguntar: seria possível uma magnitude de entrada de capital externo nos anos 90, como aconteceu no Brasil, sem um processo de liberalização financeira da magnitude e profundidade que ocorreu? Embora o contexto internacional seja o mesmo para todos os países, a capacidade de resposta e/ou influência não é, dado que a natureza e a profundidade da inserção internacional ainda guardam em muito um caráter de opção nacional.

            A argumentação ortodoxa, como visto no primeiro capítulo, defendia que o processo de abertura externa no Brasil levaria a um regime de maiores taxas de crescimento e redução da concentração de renda. Isso ocorreria não apenas porque o financiamento externo possibilitaria a elevação das taxas domésticas de poupança, mas também porque provocaria um choque de produtividade induzido pela concorrência dos produtos externos. Se os resultados defendidos por essa argumentação foram obtidos ou não é o que se passa a analisar.



[1] Já na época de economia primário-exportadora, o país mostrava enorme dependência do comércio exterior, que se manifestava tanto em dependência das flutuações do mercado mundial como em dependência da concorrência externa.

[2] Esta comparação se justifica não apenas por este país ser um dos maiores defensores da abertura, mas também por se tratar de uma economia de porte continental e, portanto, apresentar um grande mercado interno. Uma comparação com uma economia com reduzido mercado interno e, por isso, obrigada a se direcionar rumo a mercados externos, seria, no mínimo, tendenciosa.

[3] Deve-se considerar que os dados fornecidos pelo FMI são calculados em dólares e o efeito da desvalorização cambial influiu muito mais na redução do PIB brasileiro em dólares do que na redução do valor do comércio exterior brasileiro em dólares.

[4] Isto ainda que “devido às restrições de balanço de pagamentos causadas por choques externos nas últimas duas décadas [antes dos anos 90], o país tenha sido obrigado a impor barreiras tarifárias e não-tarifárias por questões similares àquelas encontradas nos países desenvolvidos” (Gonçalves, 1994: 154).

[5] Os dados estão calculados em Gonçalves (1994: 155-157).

[6] As informações aqui utilizadas estão sistematizadas em Bocchi (2000).

[7] Na segunda metade do século XIX, a abertura comercial atinge 1/3 do PIB (Goldsmith, 1986: 59).

[8] “A década de 1890 será bastante conturbada interna e externamente, tendo o país atravessado duas crises cambiais, sendo que a crise da metade da década resultará em moratória nos anos 1898 e 1900” (Bocchi, 2000: 22).

[9] “Porém, o novo padrão era relativamente contido e em parte subordinado ao antigo setor exportador. Primeiro, porque o anterior compartimento produtor de bens de produção era muito incipiente, dependendo, ainda, das divisas geradas pelo setor exportador, com o que importava os bens de produção necessários à reprodução ampliada. Segundo, também pelo mercado, dado que era ainda o setor exportador, e seus segmentos urbanos, que garantia parcela expressiva de seu mercado. Dá-se, assim, um processo de industrialização, ainda que restringido” (Cano, 2000: 167 – itálico original).

[10] As políticas cambiais do período e o sistema de taxas múltiplas de câmbio são analisados minuciosamente em Abreu (1999, capítulo 4).

[11]Insustentabilidade gerada fundamentalmente por uma redução no preço das exportações, não suficientemente compensada por um aumento no quantum exportado e pela interrupção de entrada de capital externo público e privado. Essa instabilidade externa durou praticamente a década inteira (Abreu, 1999).

[12] É preciso, no entanto, frisar novamente que grande parte das reservas acumuladas nesse momento não diziam respeito a divisas conversíveis, o que não permitia acesso irrestrito a importações.

[13] Os anos 1955-56 representam uma transição política e econômica. É curioso notar que 1956 foi o único ano do período do PSI em que o crescimento per capita foi negativo.

[14] Tratava-se de uma “permissão para que exportadores de alguns produtos (café, cacau e algodão) negociassem no mercado oficial apenas as divisas correspondentes às cotações mínimas fixadas para cada um deles, podendo vender no mercado de taxa livre o que excedesse a esses preços mínimos” (Vianna, 1990b: 138). Com essa medida as exportações de café subiram imediatamente.

[15] Isto acabava funcionando como proteção à indústria pois, na medida em que importações eram substituídas por produção interna, elas se tornavam menos essenciais na classificação das importações para os anos seguintes.

 

[16] “O Plano conferia prioridade absoluta à construção dos estágios superiores da pirâmide industrial verticalmente integrada e do capital social básico de apoio a esta estrutura. Daria continuidade ao processo de substituição de importações que se vinha desenrolando nos dois decênios anteriores”(Lessa, 1983: 27).

[17] “Os montantes de capital ingressados sob a Instrução 113 até dezembro de 1961 somaram US$ 379,4 milhões para as indústrias básicas e US$ 131,7 milhões para as indústrias leves” (Orenstein e Sochaczewski, 1990: 173).

[18] A autora escrevia em 1963.

 

[19] A reforma salarial instituiu um salário base pela média salarial dos últimos 24 meses, acrescida de um resíduo inflacionário (rotineiramente subestimado pelo governo) e de um acréscimo de produtividade (não regulamentado em lei e com status muito mais de eterno compromisso do que de efetiva realização).

[20] O Brasil assinou acordos sucessivos com o FMI no período 1965-72 para a renegociação da dívida externa. Entretanto, considerando o período militar por completo (1964-1985) a dívida externa brasileira passa de US$ 2,5 bilhões para US$ 105 bilhões, um crescimento de 3900% em 21 anos! (Gonçalves e Pomar, 2000: 10-11).

[21] Posteriormente, a partir de 1974, quando o cenário externo piorou (tanto em termos de financiamento como de mercado exterior), foram reintroduzidos controles quantitativos e tarifas seletivas.

[22] Foge aos objetivos deste trabalho discutir as alternativas de política econômica que se colocavam para enfrentar o choque do petróleo em 1973. Basta para tanto, ressaltar que, mesmo em uma opção de continuidade pelo crescimento econômico, recorreu-se ao financiamento externo, sejam em termos de empréstimos, seja na forte presença do capital estrangeiro no setor industrial. Sobre o debate acerca das alternativas de política naquele momento são conhecidos os trabalhos de Castro (1985), Lessa (1998) e Carneiro (1990).

 

[23] Isto se deu em um contexto externo de forte retração da liquidez internacional, como decorrência da crise da dívida externa nos países periféricos.

[24] Esta perspectiva baseada na atividade interna excessiva como origem dos problemas inflacionários e de balanço de pagamentos, característica do receituário do FMI, é frontalmente oposta àquela que observa o endividamento externo recorrente como um processo que desemboca em restrições cambiais, desvalorização, inflação conseqüente e desajuste das contas públicas. Enquanto a primeira se assenta em aspectos conjunturais e momentâneos, esta última se preocupa com o processo estrutural conformado nas contas externas, como o resultado de uma opção de inserção (e imposição em alguns momentos) internacional.

[25] Uma discussão mais aprofundada deste ponto é feita mais adiante, pois defende-se que a tese da inflação inercial embasa teoricamente o Plano de estabilização implementado no país a partir de 1994.

[26] Para os salários, pretendia-se, anualmente, corrigir em 60% a variação do custo de vida, sempre que a inflação atingisse 20%, o chamado gatilho (Modiano, 1990).

 

[27] Os aspectos mais específicos da abertura financeira no Brasil serão destacados no próximo item como elementos da implantação do receituário neoliberal no Brasil. Eles são apenas citados aqui por fazerem parte do contexto de transição entre as duas décadas.

 

[28] Em um exaustivo e minucioso estudo sobre a concepção e a implementação do Plano Brady na América Latina, Portella Filho. (1994: 65-66) adverte: “estranhamente, as características continuistas do Plano Brady passaram meio despercebidas pelas avaliações técnicas preliminares de alguns especialistas e da imprensa brasileira que, no geral, deram destaque excessivo à proposta de redução das dívidas. Nem todos perceberam que – colocada em bases voluntárias e entregue à administração dos cartéis bancários – a redução da dívida acabaria se tornando uma meta secundária do plano”.

[29] Esse indicador inclui o desconto captado nas recompras e bônus (US$ 3,9 bilhões), o valor presente da redução dos juros, incluindo o esperado após 1994 (US$ 4,7 bilhões), e o impacto negativo do financiamento das cauções (US$ 3,9 bilhões), que é feito mediante imobilização de reservas e/ou novos empréstimos.

[30] “Esse indicador permite observar que parte substancial do desconto captado pelos devedores no curto e médio prazo foi neutralizado pelo aumento do endividamento líquido decorrente do financiamento das cauções” (Portella Filho, 1994: 87).

[31] “No que diz respeito aos devedores, eles continuariam submetidos a um tratamento caso a caso de suas dívidas e teriam que realizar reformas estruturais e ajustes macroeconômicos supervisionados pelo FMI e BIRD” (Portella Filho, 1994: 62 – negrito original).

[32] Para uma avaliação global de todo o conjunto de reformas veja-se Cano (2000).

[33] O valor total das importações não caiu tanto assim (de US$ 21 bilhões em 1991 para US$ 20,6 bilhões em 1992), mas estes fatores contribuíram para que a explosão das importações, dado o radical processo de abertura comercial já implantado, fosse retardada momentaneamente.

 

[34] “Na prática, o programa estimulou a aceleração dos preços e, em seguida, ampliou e intensificou sua ‘inércia’: a média mensal da alta dos preços passou de 33% no terceiro trimestre de 1993, para 36% no quarto, subindo de 42% para 46% entre janeiro e junho de 1994” (Cano, 2000:237).

 

[35] Neste ponto não é feita uma análise da administração da política econômica, nem do manejo dos instrumentos de política, durante as sucessivas conjunturas que se apresentaram nos tempos de vigência do Plano Real. Isto será feito no próximo capítulo, na medida em que se entende que as restrições enfrentadas pelo país estão subordinadas ao quadro estrutural que se formou ao longo da década.

[36] Isto em que pesem os apelos de Oliveira (1993: 13-14) para caracterizar este período como uma racionalização tarifária, ao invés de uma liberalização comercial.

[37] Guimarães (1995) faz uma análise da subordinação da política de comércio exterior do governo Collor à política industrial, de caráter explicitamente neoliberal, proposta pela PICE.

[38] As portarias MEFP 363/90 e 126/91 redefiniram o conceito de bens de capital de fabricação nacional, admitindo-se um índice de nacionalização de 70% - posteriormente de 60% - para efeito de benefícios fiscais, financiamento oficial e compra por órgãos públicos (Guimarães, 1995).

[39] Kume (1996) chegou a afirmar que o ápice da liberalização das importações poderia ser identificado em setembro de 1994, por conta de (i) forte sobrevalorização cambial, (ii) antecipação em três meses da TEC (Tarifa Externa Comum) do Mercosul, e (iii) reduções tarifárias efetuadas para pressionar preços internos.

[40] Em março de 1991 foi assinado o Tratado de Assunção, que deu origem ao Mercosul. Estava programada para janeiro de 1995 a vigência de uma Tarifa Externa Comum de 20% e uma tarifa modal de 14%. Estabeleceu-se também uma lista de exceções por país, a ser extinguida em 2006 (Cano, 2000: 246).

[41] A proteção efetiva é definida como o aumento percentual no valor adicionado doméstico proporcionado pela estrutura de proteção tarifária e não-tarifária relativamente ao valor adicionado obtido em situação de livre comércio.

[42] Quanto ao coeficiente de importações, “para o total da indústria, atingiu-se, em 1995,  níveis similares àqueles prevalecentes no período pré-II PND (1968-73) ou no período pré-Plano de Metas” (Moreira e Correa, 1997: 74).

 

[43] “Entre 1994 e 2000 (posição de final de ano), o patrimônio líquido dos fundos cresceu mais de 240% em termos reais, passando de R$ 47 bilhões (13% do PIB) para R$ 296 bilhões (27% do PIB). Desse total, cerca de 90% referem-se a fundos de investimento financeiro, cujas características são compostas majoritariamente por títulos públicos federais (cerca de 70%)” (Andima, 2001: 42).

[44] Uma análise completa do novo perfil do Sistema Financeiro Nacional nos anos 90 e o maior crescimento da indústria de fundos, em relação ao crédito bancário, pode ser encontrada em Andima (2001).

[45] A unificação dos dois segmentos, comercial e flutuante, só veio ocorrer mais tarde, precisamente, a partir de fevereiro de 1999, quando o CMN autorizou a unificação das posições de câmbio dos bancos nos dois mercados (Freitas e Prates, 1998 e Prates, 1999). A medida implicou no desaparecimento do mercado flutuante, que envolvia transações que necessitavam de autorização do Banco Central. A unificação do câmbio aumentou a conversibilidade e, portanto, a liberdade da conta de capital.

[46] “Criou-se, assim, um mecanismo formal que funciona como uma ‘ponte’ tanto com o mercado paralelo e como uma ‘ponte’ para o retorno de capitais brasileiros no exterior. Com este mecanismo, passa a haver uma mobilidade (quase completa) entre o mercado paralelo e o sistema oficial de câmbio” (Gonçalves, 1996: 139).

[47] “Pode-se afirmar que as mudanças atuais na legislação referentes à colocação de papéis no exterior tiveram como objetivo adequar o marco regulatório doméstico ao novo modelo de financiamento internacional, ancorado na securitização das dívidas e na dissolução das fronteiras entre os segmentos de renda fixa e variável e entre os mercados de crédito e de capitais (dívida ‘indireta’ e direta, respectivamente)” (Prates, 1997: 105-106).

[48] Esta modalidade de investimento de portfolio também é conhecida como Regulamento Anexo V à Resolução 1289 de 20/03/1987.

[49] O Bacen considerava, em 1997, o capital externo sob a forma de investimento direto os recursos ingressados que representavam, no mínimo, 10% do capital votante ou 20% do capital total, e tem como naturezas básicas o investimento em imóveis, subsidiárias e filiais, e a participação em empresas no país (Bacen, 1997).

[50] Para um estudo pormenorizado da evolução do IDE e de seus determinantes ao longo da década ver Gonçalves (1999b).

[51] Em 1998, o saldo líquido da movimentação de recursos sob a forma do Anexo IV foi negativo em US$ 2,5 bilhões, já indicando o período de fuga de capitais que culminaria na crise de janeiro de 1999.

[52] O IDE também teve o seu direcionamento principal para o processo de privatização, de fusão e aquisição de empresas. Segundo dados do Bacen e do World Investmente Report da UNCTAD, em 1997 essa rubrica era de 61,2% do total do IDE, e em 1998 chegou a 95%!

[53] Diferentemente dos níveis I e II, os ADRs de nível III envolvem a oferta pública de valores mobiliários.

[54] O peso do BNDES no ativo total das instituições financeiras capazes de financiar investimento cai da média de 24,8% em 1974-88 para 15,2% em 1989-97 (Hermann, 1999: 36).

[55] A relação crédito / PIB em outros países comprova a afirmação: 36% no México, 66% no Chile, 97% na China e 82% nos EUA.

[56] Conforme publicado no periódico Valor em 05/05/2000, e consta em www.cvm.org.br.

 

[57] Isto, obviamente, valeu até o momento em que foi extinto o segmento flutuante do mercado de câmbio.