Júlio Fernando Seara Sequeira da Mota Lobão
A política de estabilização económica baseada na manutenção da taxa de câmbio numa banda, levada a cabo pela Rússia desde Julho de 1995, deixou de ser sustentável à medida que a instabilidade política, os desequilíbrios orçamentais e a deterioração das condições externas começaram a lançar dúvidas sobre a capacidade do país para contrariar a sua fragilidade económica. O desenlace surgiu sob a forma de uma grave crise financeira que se iniciou em meados de 1998 e que se deveu principalmente à incapacidade de tomar medidas tendentes a resolver o problema orçamental.
Ao longo dos anos de 1996 e de 1997, a Rússia incorreu em défices orçamentais ao nível federal na ordem dos 7 a 9 por cento do PIB de que resultou um significativo aumento da dívida, particularmente nos segmentos de maturidade mais curta. Além disso, por meados de 1998, os termos de troca internacionais tinham-se deteriorado em cerca de 18 por cento em termos homólogos devido a uma grande quebra nos preços internacionais dos principais produtos de exportação do país. O impacto da crise da Ásia foi muito significativo: a retirada dos investidores internacionais dos mercados emergentes afectou a conta de capital e o financiamento líquido do défice federal, por parte dos não residentes, na forma de Eurobonds e de títulos de dívida denominados em rublos, diminuiu em 1,8 por cento do PIB entre Junho de 1997 e 1998 quando comparado com o mesmo período do ano anterior.
O aumento das taxas de juro internas em resposta à deterioração da balança de pagamentos e a ausência de políticas de ajustamento orçamental traduziu-se, enquanto o rublo foi mantido no interior da banda, em fortes perdas de reservas externas e num aumento das yields de dívida pública até aos 192 por cento no dia 10 de Julho de 1998. Ainda em Julho, as pressões diminuíram depois do anúncio de um acordo com o Fundo Monetário internacional que significava o recebimento de 22,6 mil milhões de dólares. O mercado de acções recuperou e as taxas de juro iniciaram uma trajectória descendente. No entanto, em Agosto surgiram graves problema de liquidez, os investidores retiraram-se do mercado de dívida, as yields da dívida pública atingiram os 300 por cento e as reservas internacionais registaram uma forte quebra. As autoridades reagiram anunciando, em Agosto de 1998, a reestruturação da dívida estatal denominada em rublos e o alargamento da banda cambial de 5,3-7,1 rublos por dólar para 6,0-9,5 rublos por dólar. No entanto, estas medidas não acalmaram os mercados financeiros: o mercado de acções caiu mais de 10 por cento no dia 13 de Agosto e o rublo passou no dia 2 de Setembro para um regime de flutuação cambial. O serviço da dívida externa foi suspenso em 17 de Agosto e as autoridades iniciaram conversações com os credores no dia 26 do mesmo mês tendo em vista o reescalonamento da dívida a vencer nos anos de 1999 e 2000.
Estes eventos tiveram um impacto muito desfavorável nos mercados financeiros russos. Um grande número de bancos, que tinha investido fortemente em dívida pública e se tinha exposto ao risco cambial, entrou em processo de falência. O acesso aos mercados financeiros internacionais sofreu restrições. Os efeitos externos da crise foram também graves. Os investidores externos sofreram perdas tanto com a desvalorização do rublo como com a reestruturação da dívida. O facto da crise ter ocorrido durante a vigência de um programa de recuperação financeira patrocinado pelo Fundo Monetário Internacional lançou dúvidas sobre a capacidade da instituição em lidar com problemas semelhantes noutros países.
O choque inicial nos mercados financeiros russos teve lugar no dia 6 de Agosto de 1998 e persistiu até ao final de Setembro. O choque inicial deu-se no mercado de obrigações e afectou o mercado de acções cerca de uma semana depois.
Na crise russa, ainda mais do que nas crises do México e da Ásia, é difícil estabelecer datas ou eventos que marquem o início e o final do período de tensão. Definimos, para o presente estudo, o período compreendido entre os dias 6 de Agosto de 1998 (data do choque inicial nos mercados financeiros do país) e 15 de Outubro do mesmo ano (data da descida de taxas por parte da Reserva Federal dos EUA) como o período de crise. Como período de controlo optamos por manter o ano de 1996 como Bazdresch e Werner (2001), por exemplo.
Durante o período tranquilo, a maioria dos mercados apresentou índices de correlação elevados em relação aos restantes mercados merecendo ser destacados os valores do indicador entre o Reino Unido e os mercados de Irlanda (0,5), Alemanha (0,51) e França (0,66) (ver tabelas 4.33-4.35, abaixo). Os valores, em geral, são estatisticamente significativos: dos 36 indicadores, 23 são significativos a 1%. O valor do rácio de verosimilhança é também significativo a 1%. Apesar do grau de dependência linear entre os mercados ser, em termos históricos, bastante elevado, constata-se que durante o período de crise se regista um aumento na quase totalidade dos coeficientes (a excepção é a correlação entre Japão e Alemanha) com especial significado em Portugal face aos mercados de Espanha (aumento de 0,7), França (aumento de 0,65) e Reino Unido (aumento de 0,5). São 7 os aumentos de correlação no período de crise em relação ao período tranquilo com significado estatístico a 5%.
O indicador de Erb et al. (1998) sustenta os principais resultados da análise do coeficiente de correlação convencional na medida em que, a partir da média móvel de tal indicador, se pode constatar que se assistiu a um aumento da correlação, embora tal aumento tenha sido de uma dimensão consideravelmente inferior ao registado por ocasião da crise da Ásia, por exemplo (ver gráfico 4.1, apresentado anteriormente).
Podemos assim concluir, a partir da análise da evolução das correlações durante o período de crise da Rússia, que se registou uma quebra estrutural nas relações entre as rendibilidades dos mercados desenvolvidos o que pode ser entendido como evidência de contágio de curto prazo.
A crise da Rússia alterou profundamente as características estatísticas das distribuições de probabilidade das rendibilidades dos mercados da amostra (ver tabela 4.36, a seguir). Os resultados são tanto mais significativos quanto se registam tanto na comparação com o período tranquilo como quando se considera todo o período da amostra e abrangem todos os mercados com grau de significância muito elevado. Todos os valores da estatística de Kolmogorov-Smirnov apresentam-se altamente significativos (com um nível de significância inferior a 1%) nos dois períodos com a excepção dos mercados da França, EUA e Japão que registam níveis ligeiramente menos significativos (nível de significância entre 1% e 5%) na comparação entre o período de crise e o período 1993-2004.
A tabela 4.37 mostra que a crise da Rússia foi caracterizada por um forte aumento da frequência de rendibilidades extremas. Esta observação é tanto mais relevante quanto se aplica a todos os mercados da amostra independentemente do factor de comparação (período tranquilo ou período total da amostra). A Irlanda, por um lado, e Portugal e Espanha por outro, foram os mercados que apresentaram uma maior incidência, respectivamente, de observações extremas negativas e positivas durante o período de crise. O caso mais grave, a Irlanda, registou 52,9% das observações nos dois percentis extremos. Mesmo o país menos afectado pela crise da Rússia, o Japão, apresentou uma frequência de valores extremos 2,5 superior ao esperado quando se tem em conta todo o período da amostra. Em média, verifica-se que são quase 4 os mercados que apresentam, em cada sessão, rendibilidades que podem ser situadas num dos percentis extremos, enquanto que tal valor no período tranquilo é de 0,14 mercados e durante todo o período da amostra é de cerca de 1 mercado.
Na tabela 4.38, que a seguir se apresenta, mostra-se a frequência na coincidência das observações extremas a que fizemos referência. Os dados indicam que se verificou uma fortíssima associação temporal entre as observações extremas durante a crise da Rússia. Em cerca de 22,5% das sessões, existiam pelo menos quatro mercados cujas rendibilidades eram extremas e em 2% das sessões todos os mercados terminaram com rendibilidades extremas. A coincidência temporal entre as rendibilidades extremas parece ser mais forte quando as rendibilidades são negativas (27,5% das sessões tiveram pelo menos quatro mercados nesta situação) do que quando são positivas (21,6%).
Em conclusão, pode-se afirmar que a crise da Rússia se traduziu num aumento significativo tanto na frequência de observações extremas como na associação temporal entre essas observações extremas.
Durante o período tranquilo, os mercados da amostra caracterizaram-se por serem estacionários e por se apresentarem cointegrados entre si, em ambos os casos sem excepção.
Durante o período da crise da Rússia notam-se algumas alterações das características das variáveis nomeadamente no que respeita à estacionariedade. Em quatro das nove variáveis não se pode rejeitar a hipótese da existência de uma raíz unitária. Os testes sugerem que a rendibilidade do mercado de acções de Portugal é uma variável integrada de ordem dois enquanto que as rendibilidades dos mercados da Irlanda, França e EUA se apresentam como integradas de primeira ordem.
Apesar destas alterações sensíveis na característica individual da estacionariedade das variáveis, as relações de equilíbrio de longo prazo não parecem ser colocadas em causa pela crise da Rússia uma vez que, a julgar pelos testes de Máxima Verosimilhança de Johansen, todas as relações de cointegração subsistem.
O número de relações de causalidade de Granger entre os mercados aumentou de forma sensível entre o período tranquilo e o período da crise da Rússia (de 26 passaram para 38) (ver tabelas 4.39 e 4.40, abaixo). Todos os países vêem aumentar a sua influência nos restantes mercados com excepção da França e Reino Unido que continuam a “causar” 4 mercados cada. Caso interessante é o do mercado dos EUA que durante o período tranquilo se destacava como o mais influente (“causando” 6 outros mercados), e que vê crescer a sua influência durante o período de crise passando a influenciar significativamente todos os mercados da amostra. No que respeita aos mercados menos influentes, é de destacar os casos dos mercados da Grécia e Portugal que não exercem influência significativa em nenhum outro mercado durante o período tranquilo. Durante o período de crise, Portugal continua a ser o menos influente explicando apenas a evolução das rendibilidades de França e Reino Unido.
No decorrer do período tranquilo, Alemanha, Reino Unido e Irlanda são os mercados influenciados por um maior número de países (4) enquanto que EUA e Portugal são explicados por apenas um outro mercado. Já durante a crise da Rússia, Portugal e França passam a ser os países a sofrer um maior número de influências externas (são “causados” por todos os restantes mercados) enquanto que os EUA se mostram imunes às influências exteriores na medida em que não são “causados” por nenhum dos mercados da amostra. Especialmente significativa é a evolução entre os dois períodos em análise dos países que afectam o mercado de Portugal: passa-se de uma situação em que apenas o mercado da Alemanha exercia influência significativa durante o período tranquilo para uma outra em que todos os outros mercados permitem explicar a evolução das suas rendibilidades durante a crise da Rússia. A evolução do número de países capazes de “causar” cada um dos mercados da amostra é bastante diferenciada: enquanto que Portugal, Grécia, França e Japão vêem aumentar o número de mercados capazes de explicar as suas rendibilidades durante a crise da Rússia, Espanha, Alemanha, Reino Unido e EUA tornaram-se mais autónomos face às influências exercidas pelos restantes mercados.
Em conclusão, pode-se afirmar que o aumento das relações de causalidade entre o período tranquilo e o período da crise da Rússia traduz um aumento sensível da interdependência entre a generalidade dos mercados da amostra sendo de destacar, no entanto, o caso atípico dos EUA que, ao mesmo tempo que passa a ser exercer influência sobre todos os mercado durante o período de crise, se torna completamente autónomo face às influências externas.
As funções de resposta a impulsos calculadas a partir dos modelos VAR indicam que, durante o período tranquilo, as interacções verificadas entre os mercados foram em número e significado moderados (tabela VII.6 no anexo VII). Observaram-se 18 casos de choques de duração de uma sessão com significado estatístico, embora os choques só desapareçam por completo ao fim de 4 sessões. O mercado dos EUA, pela influência exercida junto da maioria dos restantes mercados, pode considerar-se como o mais importante neste período enquanto que as evidências apontam o mercado da Alemanha como o mais vulnerável à variação nos restantes mercados. A crise da Rússia afectou profundamente as funções de resposta a impulsos. Durante o período de crise, todas as funções deixaram de ser significativas incluindo as calculadas entre os países que evidenciavam relações significativas no período tranquilo. Embora os efeitos dos choques provenientes dos mercados da amostra sejam, em geral, de magnitude superior aos observados no período tranquilo, a elevada volatilidade inerente ao período da crise da Rússia repercute-se com tal intensidade nos intervalos de variação calculados que os resultados deixam de se poder considerar estatisticamente significativos. Para constatar até que ponto o critério de significado estatístico adoptado no presente estudo condiciona os resultados observados no caso da crise da Rússia, importa referir que, se tivéssemos adoptado, em substituição do critério de dois desvios-padrão, o critério menos exigente de um desvio-padrão apenas (opção perfilhada em vários estudos empíricos de contágio), teríamos 32 funções significativas em 72 possíveis e 13 das quais com uma persistência de três ou mais períodos. Nos gráficos 4.6 e 4.7 representam-se as funções de resposta a impulsos de Espanha a choques provenientes do mercado dos EUA, que ilustram a evolução a que acabamos de nos referir.
A decomposição da variância mostra que as variações ocorridas no período de crise tendem a ser explicadas, em maior medida, pelas inovações noutros mercados e que a capacidade explicativa dos países em relação à própria variância tende a diminuir ao longo do tempo no período de crise (ver tabelas VI.28-VI.36 no anexo VI). Estes padrões podem ser interpretados como indicações de que as relações entre os mercados se alteraram de forma significativa durante o período de crise no sentido da diminuição da autonomia da generalidade dos mercados. A título de exemplo atente-se no caso do mercado de acções do Japão (tabela VI.36 no anexo VI): no período tranquilo, as inovações no mercado nipónico permitiam explicar mais de três quartos da variância ocorrida no próprio mercado. Já durante o período de crise essa percentagem desceu para os 15% no primeiro período e diminuiu ao longo dos dez períodos sob análise até atingir um mínimo de 7%. Ao mesmo tempo, a generalidade dos restantes mercados viu aumentar significativamente o seu poder explicativo da variância tanto quando se estabelece a comparação com a situação no período tranquilo como quando se considera a evolução ao longo do tempo. Apesar da tendência geral ser a que se acaba de descrever, nota-se que o grau de autonomia é menor nos mercados do Reino Unido (no período tranquilo) e Irlanda, Alemanha e França (no período de crise) e que se atingem os valores mais elevados nos mercados de Portugal e Grécia.
Pode-se então concluir, a partir das funções de resposta a impulsos e da decomposição da variância do modelo VAR que a autonomia entre os mercados diminuiu durante o período de crise, embora não seja possível identificar padrões significativos de interacção entre mercados específicos.