Júlio Fernando Seara Sequeira da Mota Lobão
Até aos anos 80 do século passado, as crises ocorridas nos mercados emergentes, particularmente nos países da América Latina, com o seu longo historial de pesadas dívidas externas, desvalorizações sucessivas, crises bancárias e recessões económicas profundas, eram atribuídas a políticas internas inconsistentes. As crises financeiras eram consideradas como eventos que ocorriam em mercados individuais, sem carácter sistémico tendo, por isso, merecido pouca atenção a possibilidade de transmissão de efeitos entre países.
A situação alterou-se ao longo dos anos 90 à medida que se assistiu ao desencadear de uma série de graves crises financeiras: a crise do Mecanismo Europeu de Taxas de Câmbio em 1992, a crise do México em 1994-1995, a crise do Sudeste Asiático em 1997-1998, a crise da Rússia em 1998, a crise do Brasil em 1999 e a crise da Argentina em 2001-2002. Uma das características mais impressionantes destas crises foi que o momento da sua ocorrência e a sua intensidade não pareceram estar relacionados com os problemas fundamentais com que os países se defrontavam. Além disso, as consequências negativas associadas aos episódios de instabilidade não se limitaram aos países de origem sendo antes transmitidos rapidamente a vários mercados com estruturas e dimensões muito diversas em todo o mundo constituindo aquilo a que se passou a designar na literatura por efeitos de contágio.
É importante estudar a transmissão internacional de choques entre os mercados financeiros por razões de vária ordem. Em primeiro lugar, o contágio pode ter profundas implicações na gestão de carteiras e particularmente nos processos de diversificação internacional do risco. Um pressuposto importante de modelos bem conhecidos de avaliação de activos financeiros, e das estratégias de investimento que neles se fundamentam, é o de que uma parte do risco é específica aos países ou mercados de investimento. Em consequência, a diversificação internacional dos investimentos deveria possibilitar a diminuição deste tipo de risco. No entanto, se os comovimentos entre os mercados aumentarem, em consequência do fenómeno do contágio no seguimento de um choque idiossincrático negativo, poder-se-iam colocar em causa os benefícios da diversificação precisamente quando esses benefícios seriam mais necessários. Os testes à existência de contágio podem, nesta medida, ser entendidos como um teste à eficácia da diversificação internacional de investimentos de carteira muito em particular quando os modelos anteriormente referidos são utilizados para o efeito.
Em segundo lugar, a importância da temática do contágio vem reforçada pela tendência de integração dos mercados financeiros a nível mundial a que temos vindo a assistir desde finais do século passado e a que comummente se designa por globalização.
Por um lado, o processo de globalização potencia a ocorrência de episódios de contágio. De facto, o advento de novas tecnologias e a liberalização dos mercados financeiros internacionais tem causado um aumento notável nos fluxos internacionais de capitais o que, por sua vez, tem por efeito o aumento da interdependência entre as economias e da possibilidade de transmissão internacional de choques. Alguns autores têm defendido que um grau excessivo na mobilidade internacional dos capitais pode estar a contribuir para um aumento da vulnerabilidade dos mercados financeiros a episódios de contágio.
Por outro lado, a compreensão do fenómeno de contágio poderá permitir orientar as reformas na arquitectura financeira internacional solicitadas pelos decisores políticos, comunidade académica e agentes de mercado em reacção à crise de confiança no sistema financeiro internacional suscitada pelos episódios de turbulência já referidos.
Em terceiro lugar, o estudo do contágio é importante para se aferir do papel e eficácia das intervenções das instituições financeiras internacionais em contextos de crise. Os decisores políticos preocupam-se com o facto de que um choque negativo num país possa ter um impacto significativo noutras economias ainda que os fundamentais destas sejam saudáveis e que existam poucas relações entre os países. Assim, se existir contágio pode estar justificada uma intervenção multilateral ou a intervenção de instituições financeiras internacionais como o Fundo Monetário Internacional (FMI), por exemplo, quer através de ajuda financeira directa aos países afectados quer regulando a transparência da informação financeira divulgada. Ao contrário, se a propagação do choque idiossincrático inicial se processar pelo facto dos fundamentais dos países estarem muito relacionados, a disseminação da crise será apenas o resultado do processo de integração dos mercados, pelo que a ajuda internacional não terá motivos para existir. , Nesta medida, os testes à existência de contágio podem constituir um teste à plausibilidade das justificações para uma intervenção financeira a nível internacional.
Um dos objectivos do trabalho desenvolvido nesta dissertação é o de averiguar a existência de contágio nas suas diferentes noções, entre os mercados de acções dos países desenvolvidos durante o período de 1993-2004, e em particular, durante seis episódios seleccionados de crises financeiras: a crise do México em 1994-1995, a crise do Sudeste Asiático em 1997-1998, a crise da Rússia em 1998, a crise do Brasil em 1999, a crise associada aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001 e a crise da Argentina em 2001-2002.
Para além disso, são também comparados os resultados obtidos para as várias concepções de contágio estudadas e discutidos os resultados de um conjunto alargado de testes onde se incluem os seguintes: de correlação, de Kolmogorov-Smirnov, de valor extremo, de raíz unitária, de cointegração, de causalidade e outros baseados na estimativa de modelos de vectores autoregressivos.
O presente trabalho distingue-se dos restantes estudos existentes nesta área em vários aspectos. As suas contribuições principais podem ser organizadas em dois níveis: um nível teórico e um nível empírico.
A nível teórico, no que respeita à forma como foi realizada a sistematização (exaustiva) das contribuições anteriores. Com efeito, considerou-se o fenómeno de uma forma abrangente em que se incluem as perspectivas oriundas de áreas tão diversas como as Finanças Empresariais, as Finanças Internacionais ou a Economia Internacional. Para além disso, e tendo em atenção os diversos canais de contágio, foi feita a revisão das principais metodologias de detecção do fenómeno e as contribuições empíricas da literatura.
A nível empírico, e antes de mais, relativamente aos restantes trabalhos, no que diz respeito às características da amostra adoptada. Em primeiro lugar, a amostra utilizada no estudo empírico é mais alargada e completa do que a da maioria dos estudos anteriores. Por nos concentrarmos num período de tempo bastante longo, em vários episódios de crise, e por recorrermos a uma variedade alargada de testes estatísticos, diminuiu-se o risco de se extraírem resultados e conclusões erróneas como poderia ocorrer se, em vez disso, partíssemos da análise limitada de um único episódio de crise (o que ocorreu na esmagadora maioria dos estudos anteriores). Além disso, também a generalidade dos estudos concentrou-se nos efeitos de contágio num único país enquanto que, no presente trabalho, se exploram os efeitos de contágio em vários países.
Em segundo lugar, os dados utilizados no estudo empírico do contágio têm frequência diária, no que se distinguem da generalidade dos estudos anteriores que se socorrem geralmente de dados com periodicidade semanal ou mensal. Os dados diários apresentam a vantagem importante de permitirem detectar efeitos de contágio de curto prazo que poderiam ser imperceptíveis em análises com dados de menor frequência. Os dados diários apresentam ainda a vantagem adicional de permitirem uma monitorização dos mercados financeiros em período curto o que se pode mostrar essencial num contexto onde, de outra forma, as medidas a tomar poderiam já ser tardias.
Em terceiro lugar, o estudo incide sobre os efeitos de contágio numa amostra formada unicamente por países desenvolvidos o que constitui, em conjunto com os propósitos anteriores, um caso único nos trabalhos sobre o tema. De facto, o impacto do fenómeno de contágio nos países desenvolvidos pode ter consequências importantes sobre as restantes economias.
Em quarto lugar, o estudo empírico debruça-se sobre o contágio nos mercados de acções ao contrário da maioria dos estudos que se centram no estudo do fenómeno sobre a evolução das taxas de câmbio. Esta contribuição é particularmente relevante na medida em que existe evidência empírica que aponta para o facto dos mercados de acções influenciarem os mercados de câmbios e não o contrário.
Em quinto lugar, importa salientar que a abrangência temporal da amostra permitiu o estudo de eventos em relação aos quais tem sido votada pouca atenção no domínio da literatura sobre o contágio. Referimo-nos especificamente à crise associada aos atentados terroristas de 11 de Setembro de 2001 e à crise da Argentina ocorrida durante os anos de 2001-2002.
Por último, e tendo em atenção as contribuições anteriores, a discussão efectuada sobre os resultados da aplicação dos testes de detecção do contágio nas suas diversas acepções contribui também para clarificar qual o conceito de contágio a adoptar nos estudos empíricos do fenómeno muito em particular quando se sabe que não existe consenso na literatura quanto à definição do fenómeno.
O presente trabalho encontra-se organizado em cinco capítulos.
No capítulo seguinte apresentam-se as várias noções de contágio, as teorias que justificam a existência do fenómeno e respectivas metodologias de detecção.
Para cada uma das teorias e metodologias referidas apresenta-se, numa divisão de capítulo própria, os principais estudos empíricos realizados.
No Capítulo 3 descreve-se a metodologia utilizada no estudo empírico e apresentam-se os dados e as noções de contágio a ser testadas.
O Capítulo 4 é dedicado à discussão dos resultados do estudo empírico. Analisam-se os resultados obtidos para cada um dos testes e para todo o período da amostra bem como para cada um dos episódios de crise abordados. No final do capítulo efectua-se uma análise comparativa dos resultados obtidos em cada um dos períodos em estudo.
Por fim, o Capítulo 5 resume a dissertação, discute as implicações dos resultados alcançados e lança alguns desafios para investigação futura.