Tesis doctorales de Economía


O SETOR IMOBILIÁRIO INFORMAL E OS DIREITOS DE PROPRIEDADE: O QUE OS IMÓVEIS REGULARIZADOS PODEM FAZER PELAS PESSOAS DE BAIXA RENDA DOS PAÍSES EM DESENVOLVIMENTO

Krongnon Wailamer de Souza Regueira


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4.7 A QUALIDADE DOS ATIVOS POSSUÍDOS PELOS INFORMAIS E QUE PODERIAM SER UTILIZADOS COMO COLATERAIS

Conforme DE SOTO (1987, 2001) destaca em suas obras, o principal problema das pessoas pobres dos países em desenvolvimento é a falta de acesso ao crédito decorrente do fato de não poderem fornecer seu ativo mais valioso, o imóvel, como garantia. A primeira restrição enfrentada pelos donos destes ativos imobiliários é de ordem legal, pois estes não são reconhecidos como legítimos proprietários aos olhos da justiça. Contudo, uma outra restrição não abordada por De Soto assume um caráter limitador, sobretudo em um contexto onde ocorre racionamento de crédito: a qualidade dos ativos.

Que ativos seriam esses possuídos pelos pobres que, em caso de regularização, poderiam ser utilizados como colaterais? Apesar de existirem em alguns países imóveis em áreas nobres que não possuem um registro formal de propriedade, a maior parte da informalidade no setor imobiliário urbano geralmente ocorre em bairros pobres e favelas.

Um imóvel situado em determinada região tem parte do seu valor correlacionado às instituições que existem na mesma. Se com a regularização o imóvel assume funções que vão além do seu valor de uso como moradia, não se pode negligenciar que tais funções dependerão das instituições formais e informais existentes na região onde o imóvel se localiza. Um imóvel localizado em uma região onde exista criminalidade elevada, enchentes, falta de energia elétrica, água potável, saneamento básico, doenças e ameaças aos direitos de propriedade, ainda que esteja regularizado, tende a ter um menor valor de mercado e possuir limitada liquidez . Neste caso, poucos bancos estarão dispostos a aceitar um imóvel com estas características como garantia. Ou seja, o valor de duas residências idênticas em termos de construção pode variar significativamente dependendo do lugar no qual se encontram localizadas.

Em um ambiente onde os direitos de propriedade não são formalmente registrados, as relações pessoais ganham uma importância considerável nas transações realizadas, porém estas ficam restritas às pequenas comunidades e são fundamentadas pelas instituições informais desenvolvidas pelos agentes. ANDRADE (2004, p.37) analisa como a mudança do mundo informal para o formal modifica as relações econômicas e legais:

[...] as pessoas deixam de depender das relações pessoais e sociais para reconhecer e proteger os direitos sobre a propriedade dos seus ativos, pois passam a existir leis que regem estas propriedades. No entanto, com essa mudança, os proprietários perdem sua autonomia e precisam ser mais responsáveis e arcar com os seus compromissos, já que são facilmente identificados caso não ajam de acordo com a lei.

A reportagem abaixo de SARAPU (2007) publicada pelo jornal O DIA, na edição on-line de 7 de fevereiro de 2007, ilustra as dificuldades para se fazer cumprir os direitos de propriedade em uma favela no Rio de Janeiro após a invasão da mesma por um grupo rival:

Dois dias após retomar o controle da Cidade Alta, em Cordovil, traficantes penduraram touca ninja usada por miliciano em poste da Rua Água Doce, como um ‘troféu’. No local ocorreu confronto entre bandidos e integrantes da milícia, na manhã de domingo. No fim de semana, duas pessoas morreram e seis ficaram feridas na favela. O poste fica em frente ao Edifício Jacarepaguá, onde um dos quatro apartamentos do primeiro andar foi invadido e usado como ‘base’ dos invasores [grifo meu].

Segundo moradores, a touca era usada pelo PM Alex Sarmento Mendes, que foi morto no tiroteio. Lotado na Diretoria Geral de Pessoal, é suspeito de ter pertencido à milícia. Ele estaria deixando quadra de esportes da comunidade, quando encontrou traficantes do Comando Vermelho. Atingido num olho, morreu no Hospital Getúlio Vargas, na Penha.

ABUSOS INVESTIGADOS

O corregedor da PM, tenente-coronel Paulo Ricardo Paul, anunciou ontem que a 1ª Delegacia de Polícia Judiciária Militar vai investigar denúncias de moradores publicadas ontem com exclusividade em O DIA. Também será apurado o suposto apoio de blindado da PM na invasão. “Se for preciso, vamos checar onde cada um dos sete blindados da PM estavam. Queremos verificar a utilização de outros carros da corporação e o apoio de policiais nessa ação. Também vamos investigar o possível envolvimento dos PMs mortos”, disse. Na Ilha do Governador, um soldado que estava de folga morreu durante ataque do tráfico ao Morro do Barbante.

Ontem, moradores da Cidade Alta fizeram novas denúncias. Segundo eles, sargento que seria do 16º BPM (Olaria) circulava de farda em carro da PM. Nas mãos, papel com nomes e endereços de apartamentos que deveriam ser invadidos [grifo meu]. Cada grupo — eram vários, totalizando 300 homens — tinha cópia para checar quem era abordado nas ruas. Mapas da Cidade Alta foram distribuídos para facilitar a ação. Além dos homens de preto e policiais fardados, também haveria bombeiros de uniforme, segundo moradores.

Pelos relatos, F., uma loura de 20 anos, foi levada por milicianos para quadra esportiva onde o motoboy Fábio Fernandes Rocha, 29, foi torturado e morto. O pai da moça, um pastor evangélico, conseguiu resgatá-la. Chocada, F., que teria namorado um traficante, deixou a comunidade. Enquanto quatro pessoas ficaram amarradas na quadra, milicianos fizeram churrasco e acabaram com bebidas do bar [grifo meu], ao som de funk chamado ‘Bonde do Caveirão’.

Moradores contaram que, sabendo que o apartamento do Edifício Jacarepaguá estava vazio, milicianos usaram o espaço para guardar objetos roubados de casas invadidas. Ontem, equipe de O DIA esteve no imóvel e encontrou porta arrombada, roupas espalhadas e talheres sujos de macarrão [grifo meu].

A Rua Água Doce ainda está às escuras, desde que o grupo armado atirou em postes. Ontem, o conjunto continuou ocupado por policiais do 16º BPM e do Batalhão de Operações Especiais (Bope). Os milicianos deixaram a Cidade Alta em direção à Favela Kelson’s, na Penha, de onde traficantes foram expulsos ano passado.

Nesta reportagem é possível perceber como não apenas os direitos de propriedade, mas também direitos individuais são flagrantemente desrespeitados em locais como as favelas. Além dos problemas pertinentes à maioria das comunidades carentes, a questão da violência e da constante ameaça aos direitos de propriedade reduz consideravelmente o valor do imóvel. Isto faz com que pessoas de fora da comunidade e que não conhecem as regras informais que vigoram nesta sejam resistentes a adquirir imóveis com tais características. Para RABELLO DE CASTRO (2002), os moradores de favelas são reféns de um estado criminoso dentro do próprio estado de direito. Como ressalta NERI (2003), além do valor, um ativo deve possuir determinadas qualidades para que possa ser utilizado como colateral. Caso um ativo sofra restrições de mercado, o empréstimo obtido por meio do mesmo representará um reduzido percentual do seu valor, tornando a operação desinteressante para o tomador.

O avanço das milícias em favelas do Rio de Janeiro também foi abordado pela revista VEJA versão on-line de 7 de dezembro de 2005:

As favelas passaram a ter donos, que, a pretexto de manter a ordem, exploram os serviços básicos, como a venda de botijões de gás ou o transporte alternativo, feito por vans e motocicletas. Veja-se o caso da favela do Rio das Pedras, na Zona Oeste da cidade, a 2 quilômetros do Autódromo Nelson Piquet. (FRANÇA; SOARES, 2005)

Os fatos relatados acima mostram que o espírito empreendedor das pessoas que residem nestas localidades seria restrito por regras informais que dificultam a realização dos negócios, afetando sua lucratividade. Aderir ao mundo formal implica seguir um comportamento o qual, não se sabe de antemão, até que ponto será adotado nas transações informais. Como exemplifica Masset em reportagem de ALBUQUERQUE (2005) para o Jornal do Brasil: “Quem aluga um apartamento por 400 reais na Rocinha é expulso no grito se não pagar”. As regras do setor imobiliário não se aplicariam na Rocinha pela ausência do poder público e, segundo este mesmo autor, a concessão de títulos de propriedade poderia estimular novas invasões de terra no Rio de Janeiro.

A disponibilidade de serviços públicos, principalmente aqueles relacionados à infra-estrutura, exerce grande influência sobre o valor dos imóveis. KRUECKEBERG (2004, p.3) relaciona alguns serviços que elevam o valor de um imóvel:

Real security in housing is buttressed by local schools and jobs, health care facilities, water and sewer services, and transportation networks. This whole complex of necessities and amenities gives value to property. Without auxiliary services and infrastructure, title alone has little meaning.

O fornecimento de serviços que possam melhorar o bem-estar das pessoas é fundamental para garantir parte do sucesso das idéias de De Soto. Mais do que possuírem um título isoladamente, os moradores destas comunidades necessitam aumentar seus indicadores sociais, o que em parte só é possível com investimentos públicos em serviços diversos, principalmente infra-estrutura.

Não apenas os serviços públicos são importantes, mas outros investimentos públicos são necessários para melhoras as condições de habitação das pessoas de baixa renda. Além disso, como sugere MARCUSE (2004, p.46), as pessoas devem ter seus direitos assegurados no lugar onde vivem, mesmo aquelas que moram em imóveis alugados:

protection against evictions for tenants and in mortgage foreclosure proceedings for owners, income/employment support for the poor, guaranteed provision of infrastructure , enforcement of enviromental standards, and guarantees of necessary services (not only utilities, but also schools, parks, playgrounds, safety accessibility) – all services that are part of the goal of decent shelter?

SCHAEFER (2004) tece críticas a este ponto de vista de Krueckeberg, enfatizando que qualquer serviço que seja disponibilizado para uma residência (telefonia, eletricidade, água, etc.) é um contrato implícito onde o dono do imóvel tem a propriedade assegurada. SCHAEFER (2004, p. 28) enfatiza que: “But if you do not know who owns the property, what do you do? If there is no party to the contract, the utilities cannot act if the contract is breached.”

Os países possuem realidades distintas, porém no Brasil o fato de não possuir o título de propriedade não restringe o acesso das famílias aos serviços públicos como água e energia elétrica. É evidente que muitas destas empresas são estatais, e nem sempre sua atuação é voltada para o lucro, contudo existem empresas privadas, como no setor de telecomunicações (telefonia e tv por assinatura), que ofertam seus serviços em favelas e assentamentos irregulares.

Ainda que uns poucos programas de concessão de títulos tenham sido bem sucedidos, também é possível notar que as falhas em um grande número dos mesmos ocorrem pelos mais diversos motivos. KRUECKEBERG (2004, p.3) aponta outros motivos pelos quais apenas os títulos de propriedade não melhoram o bem-estar das pessoas mais pobres:

Criminals, who have an interest in seeing that communities remain informal, illegal and undemocratic, often control illegal settlements, especially squatter settlements, and thwart tenure programs. Under these circumstances ownership alone will not bring tenure programs: political reform is required.

Mais uma vez, SCHAEFER (2004) rebate as críticas de Krueckeberg ao trabalho de De Soto. No caso do Peru, ainda que existam quadrilhas nos assentamentos legalizados, a situação era muito pior quando o Sendero Luminoso controlava essas áreas. O título de propriedade por si só não resolveu o problema da criminalidade, porém os outrora informais passaram a colaborar com o governo peruano e a relatar os movimentos do Sendero Luminoso, o que resultou no desmantelamento do grupo e na captura do seu líder (SCHAEFER, 2004).

MARCUSE (2004) também faz críticas ao trabalho de De Soto e corrobora com as idéias de Krueckeberg. Para MARCUSE (2004, p.42), ainda que as pessoas de baixa renda possam obter títulos de propriedade, seus imóveis não correspondem ao tipo de ativo que os bancos pretendem tem como garantia: “No bank or credit institution is going to lend a poor unemployment Haitian $500 with a shack as collateral; the simple cost of foreclosing, in a developed legal system such as De Soto visualizes, would far exceed what the sale of the shack would bring.”

Muito mais do que se tornarem empreendedores, o que muitos dos moradores informais dos países em desenvolvimento aspiram é um local seguro para residir. O desejo de realizar um empreendimento provavelmente faz parte do cotidiano de poucos. Contudo, o imóvel como colateral só poderá ser usado para tal finalidade em sua plenitude se as atividades possíveis de serem empreendidas no local onde o mesmo se situa não sofrerem as restrições informais exemplificadas anteriormente. Caso isto ocorra, os empreendimentos que venham a surgir nestas localidades serão altamente arriscados, o que dificultará o uso destes imóveis como garantias para a obtenção de crédito.

4.8 CONCLUSÃO

É possível afirmar que, além das restrições de acesso ao mercado de crédito, existem outros obstáculos que dificultam os negócios dos micro e pequenos empresários, principalmente aqueles que agem informalmente. O uso de imóveis outrora informais, que após serem legalmente registrados podem ser utilizados como colateral, parece ser uma alternativa viável para os países em desenvolvimento. Contudo, obstáculos de ordem econômica, altas taxas de juros, baixa capacidade gerencial, racionamento de crédito, insegurança e lentidão jurídica, reduzida qualidade dos ativos, entre outros, terminam por obscurecer parte dos efeitos positivos que poderiam ocorrer em grande escala após um processo de regularização em massa dos ativos dos informais. O capítulo seguinte analisará os resultados de estudos inspirados na obra de Hernando de Soto sobre a regularização de propriedades em áreas urbanas e seu impacto sobre o acesso ao mercado de crédito.


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