Medidas de câmbio real como desvios de PPP
Tesis doctorales de Economía

POLÍTICA CAMBIAL E MACROECONOMIA DO DESENVOLVIMENTO

Paulo Gala

 

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Medidas de câmbio real como desvios de PPP

Muitos dos trabalhos apresentados acima sobre níveis de câmbio real e taxas de crescimento (Benaroya e Janci 1999, Easterly 2001, Fajnzylber et al 2002, Acemoglu et al 2002) estão baseados no pioneiro estudo de David Dollar (1992). O autor construiu uma metodologia para medir desequilíbrios cambiais com base em medidas de PPP. O conhecido relatório do Banco Mundial de 1993 que trata do “East Asian Miracle ” utiliza as medidas de Dollar (1992) nas análises sobre política cambial dos países asiáticos nos anos 70 e 80. A maioria dos dados apresentados ao longo desta pesquisa também se baseia nos estudos deste autor.

Dollar (1992) parte do trabalho de Heston e Summers sobre comparações internacionais de preços para calcular o nível relativo de preços RPLi de 95 países em desenvolvimento entre 1976 e 1985. O cálculo consiste em comparar o preço em dólares de uma mesma cesta de bens de consumo para vários países num dado período. Para tal, coleta-se o preço da cesta na moeda local Pie multiplica-se seu valor pelo câmbio da moeda local e em relação ao dólar (cotação dólar por unidades de moeda local). Compara-se então esse preço em dólar com o preço da mesma cesta em dólar nos Estados Unidos Puse multiplica-se o

resultado por 100 para a construção do índice RPLi = 100(ePi / Pus ) . Se a cesta tiver o mesmo valor em dólares do que nos Estados Unidos, diz-se que ocâmbio e preços relativos estão alinhados e o índice assume o valor de 100.

Se todos os bens fossem comercializáveis e não houvesse barreiras comerciais e custos de transporte, o valor relativo de preços entre países seria sempre 100 pois o processo de arbitragem de mercadorias garantiria a equalização de preços dos bens entre os diversos países (PPP). Nesse sentido, um nível de preços muito alto em dado país significaria, segundo o autor, protecionismo na medida em que o mecanismo de arbitragem seria impedido de funcionar. Um nível de preços muito baixo significaria que alguma forma de subsídio poderia estar presente.

Sabemos também que os níveis de preços relativos entre países devem variar em função do preço dos não comercializáveis, distintos ao redor do mundo. Uma boa maneira de avaliar essas diferenças é pensar na dotação de fatores de cada país. Se há escassez de um não comercializável num país A, provavelmente o preço do mesmo será mais elevado quando comparado ao país B. Se um país tem maior abundância de terras provavelmente o preço das mesmas será menor nesse país quando comparado a outro com escassez de terras. O mesmo se aplica para o fator de produção trabalho, quanto maior a disponibilidade menor o preço. Como o trabalho é um dos principais componentes dos be ns não comercializáveis, é razoável se esperar que países com abundância de trabalho tenham preços de não comercializáveis relativamente menores do que países com menor dotação de trabalho. Sabendo-se que países desenvolvidos têm dotações de trabalho menores do que países em desenvolvimento, parece razoável se supor que o preço dos não comercializáveis será relativamente mais elevado nesses últimos.

Uma relação positiva entre renda per capita e nível de preços relativos RPLi deve ser esperada de acordo com essa argumentação. Ao elevar o custo de produção dos bens em termos de salário, o maior preço dos não comercializáveis em países desenvolvidos faz com que o índice de preços relativos entre países RPLi seja sempre maior para estes últimos. A já clássica fundamentação teórica para essa relação positiva entre renda per capita e nível do câmbio real está na chamada hipótese Harrod-Balassa-Samuelson. Balassa formulou o argumento num artigo de 1964. Inicialmente parte do princípio de que há razoável arbitragem entre os bens comercializáveis no mercado internacional, o que resultaria em convergência entre os preços dos mesmos nos diversos países quando medidos na mesma moeda (lei do preço único). Assumindo-se que os salários no setor de comercializáveis são definidos a partir da produtividade do trabalho, observaremos que, em países ricos, com produtividade relativa mais elevada, os salários reais serão mais elevados. Assumindo-se, ademais, que o mercado de trabalho é razoavelmente integrado internamente, os salários pagos nos setores de comercializáveis e não comercializáveis terá de ser o mesmo para o mesmo nível de qualificação.

Para concluir que o câmbio em países desenvolvidos estará mais apreciado do que em países em desenvolvimento, Balassa (1964) assume que os aumentos de produtividade se concentram no setor de comercializáveis. Assumindo-se que o nível de produtividade no setor de não comercializáveis é razoavelmente igual para países pobres e ricos, a maior produtividade dos países desenvolvidos no setor de comercializáveis fará com que estes paguem salários mais elevados no setor de não comercializáveis quando comparados a países pobres. Os maiores salários pagos no setor de não comercializáveis nos países ricos fará com que o preço desses bens seja mais elevado em relação aos não comercializáveis nos países pobres. Em comparações internacionais entre cestas de bens que contenham componentes comercializáveis e não comercializáveis, os preços nos países pobres serão sempre menores por conta do menor preço relativo dos bens não comercializáveis. Menores preços relativos em comparações internacionais significam câmbios relativamente depreciados (Balassa 1964, pg.586).

Uma explicação próxima a de Balassa (1964) e Dollar (1992) é fornecida pelo que ficou conhecido na literatura como hipótese Bhagwati-Kravis-Lipsey. De acordo com a argumentação dos autores, o menor custo do trabalho em países pobres será responsável por um nível de preços relativamente reduzido no setor de não comercializáveis e, portanto, relativa depreciação cambial. Argumentam que países desenvolvidos contam com maiores proporções capital-trabalho, o que resulta em maior produtividade marginal do trabalho e salários reais. Os bens não comercializáveis, compostos majoritariamente por serviços e, portanto, intensivos em trabalho, serão, portanto, mais caros nos países desenvolvidos, fazendo com que o câmbio real, medido como a relação entre preços de comercializáveis e não comercializáveis, fique mais apreciado (Bhagwati 1984, pg.1). Em última análise, o aumento de produtividade do trabalho torna a apreciação do câmbio real possível.

Um senão aqui é importante. Muitos países em desenvolvimento têm adotado nos últimos anos uma estratégia de compras de reservas cambiais, evitando que aumentos de produtividade se transformem em apreciação cambial. Popov e Polterovich (2002), por exemplo, identificam essa postura em alguns países que têm crescido a taxas elevadas e argumentam que as autoridades monetárias podem influenciar as trajetórias do câmbio real a partir da acumulação de reservas. “If Balassa-Samuelson effect really holds, countries accumulating reserves, other conditions being equal, will experience smaller increases in real exchange rate since the policy of the central bank in this case would be to prevent the appreciation of the national currency” (Popov e Polterovich 2002, pg.8).

Em seu trabalho de 1992, David Dollar tenta captar essa diferença de preços relativos RPLi a partir de uma análise das dotações de fatores de produção nos diversos países. Como uma medida direta dos mesmos seria praticamente impossível, o autor opta por usar o PIB real

em PPP per capita como uma “proxy” da dotação relativa de fatores. O PIB per capita representa a disponibilidade de fatores de produção, especialmente capital, para cada indivíduo de um determinado país num dado momento do tempo. Quanto menor o PIB per capita, maior a abundância de trabalho e a escassez de capital. Regredindo o nível de preços relativos contra o PIB per capita real, o autor encontra o nível de preços “adequado” para cada país, dado seu nível de renda per capita. Quanto maior o PIB do país, maior deveria ser seu nível de preços relativos ou apreciação cambial. Uma comparação entre o nível de preços previsto pela regressão e o observado fornece, portanto, uma medida de distorção do nível de preços ou do câmbio do país em relação ao “benchmark” americano. Segundo o autor, níveis de preços muito elevados significariam, tudo mais constante, protecionismo ou sobrevalorização. Um novo índice com valor de 100 significa agora que o câmbio real está alinhado levando-se em consideração variações na renda per capita. Valores acima de 100 significam sobrevalorizações e abaixo subvalorizações.

Não é difícil demonstrar a equivalência entre a metodologia de Dollar (1992) e a tradicional definição de câmbio real computado como preço de comercializáveis Ptsobre o preço de não comercializáveis Pnt: Pt / Pnt . Partindo-se da definição de câmbio real medida a partir de preços em dois países, temos que: RER = eP */ P , ou seja, o câmbio real é fruto da divisão do nível de preços internacionais medidos na moeda doméstica pelo nível de preços doméstico. Um nível de preços internac ionais relativamente baixo significará sempre um câmbio nominal relativamente desvalorizado. Assumindo-se que os preços dos comercializáveis oscilam mais em função do câmbio nominal (arbitragem) do que os preços de não comercializáveis, teremos que quanto mais depreciado for o câmbio nominal, maior será o valor de P em relação à P , e, portanto, mais depreciado estará o câmbio real tnt medido pela expressão ntt PP / (para uma formalização desse argumento, ver La Marca 2004, pg.7).

O gráfico abaixo mostra os resultados encontrados por Dollar (1992) para uma série de 12 países. Os índices são uma média do período 1976-85 que, segundo o autor, seria capaz de anular variações de curto prazo e, portanto , representaria uma posição de equilíbrio de longo prazo. Os valores acima de 0 representam sobrevalorização em relação à posição de PPP e abaixo de 0 subvalorização. Os resultados se adequam razoavelmente, segundo o autor, aos estudos de caso conhecidos para esses países. Algumas exceções como Coréia e Taiwan aparecem. Dollar (1992) argumenta que a escassez de terras nesses países poderia contribuir na explicação para a pequena sobrevalorização encontrada na medida em que tornaria o preço de um importante bem não comercializável mais elevado.

Baseando-se no trabalho de Dollar (1992), William Easterly (2001) constrói uma série de câmbios reais de 1960 até 1999 para países desenvolvidos e em desenvolvimento. Aplica, inicialmente, a metodologia tradicional para cálculos de câmbio real: “(Domestic CPI)/(Exchange Rate Domestic Currency per Dollar*US CPI)”. Para tornar as séries dos diversos países comparáveis, centra seu resultado em números índices tendo como base o valor encontrado por Dollar (1992). Para cada país, o autor nivela a série de números índice de modo a tornar a média para o período 1976-1985 igual ao número encontrado por David Dollar no seu trabalho de 1992 (Easterly 2001, pg.9). A metodologia procura tornar possível uma comparação em termos de PPP para os diversos níveis de câmbios reais na média do período 1976-1985. Um câmbio real de 100 na série de Easterly (2001) significa uma posição exatamente equivalente a um câmbio de PPP ajustado pela renda per capita do país entre os anos 1976-1985 a partir da metodologia de Dollar (1992), ou seja, um câmbio neutro. Um índice de câmbio real maior do que 100 significa um nível relativamente apreciado e menor uma relativa subvalorização.

A tabela 1 do apêndice apresenta alguns resultados desse índice para países da América Latina e Ásia. Os dados parecem estar de acordo com experiências de alguns casos já conhecidos. A apreciação do peso mexicano no final dos 80. A depreciação da moeda brasileira na década de 80 e no final dos 90, bem como a apreciação durante o plano real. A apreciação do peso argentino na década de 90. A apreciação do peso chileno no início dos 80 e sua depreciação subseqüente. A relativa estabilidade das moedas asiáticas na década de 90 até a crise de 97 com decorrente depreciação e ainda a depreciação da moeda indiana ao longo da década de 90 (para uma análise da evolução de algumas das moedas citadas acima ver Palma 2003a). A tabela apresenta as médias para o período como um todo e a média entre os anos 1976 e 1985 para cada país que se ajusta ao cálculo de Dollar (1992). Nesse período, com a exceção de Taiwan e Coréia do Sul, as moedas asiáticas se encontravam mais depreciadas do que as latino-americanas. A primeira série de gráficos do apêndice apresenta os índices para três casos de mudança bem sucedida de patamar cambial destacados por Rodrik (2000): Turquia, Uganda e Ilhas Maurício. A série apresenta também cinco casos de “Dutch Disease” no início dos 80 decorrentes do choque do petróleo como destacado por Gelb (1988): Algéria, Nigéria, Venezuela, Equador, e Trinidad e Tobago.

As médias encontradas por Dollar (1992) entre os anos 76 e 85 representam posições comparáveis entre os diversos câmbios. Na tabela, o índice mostra que o câmbio da Argentina, por exemplo, estava nesse período 13% acima do que seria uma posição não distorcida ou neutra, dada a renda per capita argentina. O câmbio chileno não apresentava nenhuma distorção na média do período. Os outros números da série mostram as posições do câmbio em relação ao que significaria, em tese, um câmbio neutro para cada país. Por exemplo, no caso argentino, em 1976 o câmbio era 100,47, não apresentando nenhuma sobrevalorização ou subvalorização. Como a média dos câmbios de 1976-85 é igual a 113 para esse país, concluímos que havia no período uma sobrevalorização de 13% em relação ao câmbio neutro na média do período e 13% em relação ao ano de 1976, ano neutro para a Argentina. O câmbio de 1999 para a Argentina estava 55,9% sobreva lorizado em relação a 1976 (câmbio neutro) e 155,90/113=38% em relação à média 76-85.

O trabalho de Easterly não inclui o cálculo de uma série de câmbio real para o Brasil no período 1960-1980. A partir dos dados de câmbio nominal de Abreu (1990), calculamos abaixo uma série desse tipo para o Brasil no período 1965-1985. A conta baseia-se na metodologia de Easterly (2001), E =P / eP* e utiliza como dados o IPC da FGV, o CPI americano, e o câmbio nominal brasileiro cotado em moeda nacional/dólares.

Para que essa série possa se aproximar da série de Easterly pode-se fazer uma transformação que torne a média do índice para o Brasil no período 1976-1985 igual a média calculada por Dollar (1992). A partir da construção de uma nova série de números índices, chega-se a uma série próxima da série de Easterly para o período 1976-1985 como nos gráficos abaixo. A série completa foi construída a partir da combinação dos dados calculados entre 1965 e 1985 e pelos dados de Easterly para o período 1986-1999.


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