Do populismo cambial ao “real exchange rate targeting” no Chile
Tesis doctorales de Economía

POLÍTICA CAMBIAL E MACROECONOMIA DO DESENVOLVIMENTO

Paulo Gala

 

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Do populismo cambial ao “real exchange rate targeting” no Chile

Allende assume o poder em 1970 e implanta um intenso programa populista. Introduz um congelamento de câmbio, redução de tarifas públicas e forte aumento dos salários públicos financiados por emissões monetárias. Como conseqüência, o déficit orçamentário passa de 2,7% em 1970 para 10,7% do PIB em 1971. O crédito e os salários reais se expandem fortemente e, partindo da utilização de capacidade instalada ociosa, a economia chilena apresenta taxa de crescimento de 9% em 1971, comparada a apenas 2,1% em 1970. Em 1972, os desequilíbrios macroeconômicos decorrentes da política populista começam a surgir. O descasamento entre o lento crescimento da capacidade produtiva e o aumento da demanda acelera a inflação de 20% para 75% ao ano. As estatizações em diversos setores desestimulam a inversão privada. O excessivo aumento de importações esgota as reservas internacionais acumuladas até o início da década dos 70 levando a implantação de um sistema de controle cambial e aumento do mercado negro de divisas. Em 1973, a inflação atinge a marca de 361% e o PIB sofre uma queda de aproximadamente 5,0%. Numa situação de inúmeros desequilíbrios econômicos e baixa governabilidade Allende é derrubado por um golpe militar em Setembro de 1973. Os elementos clássicos do populismo aparecem de forma bastante intensa nesse episódio: descontrole fiscal e sobrevalorização cambial (ver Sachs 1991 pg.136 e Ffrench-Davis 2002, pg.24).

O governo militar que assume o poder põe em prática um forte ajuste recessivo para controlar o desequilíbrio interno e externo no conhecido período liberal da primeira fase do governo Pinochet. Implanta um amplo programa de abertura comercial e financeira e privatiza o sistema de pensões. Reduz o déficit público de 25% do PIB em 1973 para 2.5% já em 1975. Implementa, além do controle fiscal, grande desvalorização do câmbio real visando o ajuste externo. A queda do PIB em mais de 15 pontos percentuais no ano de 1975 com decorrente redução das importações e aumento das exportações colocam a conta corrente numa posição superavitária em 1976 (ver gráfico a seguir). Apesar do forte controle fiscal, a inflação não cede, o que exige novas medidas de estabilização. A partir de 1978 o Chile passa a usar também o câmbio para controlar a inflação. Adota uma sucessão de “tablitas”, anunciando e determinando previamente a trajetória da taxa de câmbio nominal com o objetivo de controlar a inflação via coordenação de expectativas. A política cambial passa a ser utilizada no combate a inflação através de apreciações periódicas (Agénor e Montiel 1999, pg.362). Em 1979, esse processo é intensificado com o congelamento taxa de câmbio em 39 pesos por dólar, paridade mantida até 1982. Devido aos aumentos residuais de preços internos, observa-se no período uma grande sobrevalorização da moeda chilena . O endividamento externo cresce rapidamente devido a queda de exportações e aumento de importações. A estratégia acaba por resultar em nova crise cambial e queda do PIB de 14% em 1982.

Na segunda fase do governo Pinochet, que vai de 1982 a 1990, a condução da política econômica assume um tom mais pragmatista, abandonando muito dos exageros ortodoxos do período anterior. O Banco Central passa a adotar uma política de minidesvalorizações cambiais que visava manter o câmbio em linha com o diferencial de inflação interna e externa, mantendo a competitividade da economia chilena. Introduz uma banda de variação cambial em 1984 que iria durar, apesar de diversos ajustes, até 1999 (para uma análise da bem sucedida administração do sistema de bandas cambiais no Chile e Colômbia nesse período ver Williamson 1996). Várias desvalorizações discretas ao longo dos 80 contribuíram para uma depreciação real do câmbio chileno de aproximadamente 130% entre 1982 e 1988. No final dos 80, observa-se uma pequena apreciação do câmbio decorrente de grandes aumentos do preço internacional do cobre. Com a aceleração do nível de atividade econômica, o balanço de pagamentos chileno passa a apresentar déficits em 1989 e 1990 que acabam por colocar de novo o câmbio no teto da banda (Ffrench-Davis 2002, pg.148).

Com o fluxo de capitais no início dos 90, a postura intervencionista do BC chileno se intensifica buscando evitar fortes apreciações reais. As compras de reservas cambiais aumentam e controles de capitais são introduzidos em 1991 para tentar conter a apreciação do peso. Segundo Ffrench-Davis (2004, pg.209), o resultado dessas políticas foi uma apreciação cambial relativa muito menor no Chile do que no resto da América Latina. Em 1994 a taxa de câmbio real chilena havia se apreciado em 3,6% em relação à média do período 1987-90 enquanto que para o resto da América Latina esse percentual era de 24%. Entretanto, no período 1995-1997, a continuidade do fluxo de capitais e um afrouxamento da postura de intervenção do BC fizeram com que o câmbio se apreciasse em termos acumulados 16% até que a crise asiática desencadeasse uma fuga de capitais com nova desvalorização do câ mbio real.

O agravamento de conflitos entre o sistema de metas de inflação (implantado originalmente em 1990) e o regime de bandas cambiais fez o governo abandonar o último a partir de 1999, se concentrando na busca de baixos níveis de inflação (Morandé 2001, pg.6). Ademais, a desvalorização observada durante a crise asiática contribuiu para reduzir os riscos de uma apreciação excessiva possivelmente resultante do abandono do regime de bandas. O câmbio chileno seguiu uma trajetória de depreciação até pelo menos 2003. Mais recentemente, entretanto, o choque positivo de termos de troca e bom desempenho da economia mundial têm causado fortes apreciações da moeda chilena.

Os gráficos abaixo apresentam a evolução das contas externas e do câmbio real chileno em relação ao dólar americano a partir dos dados de Easterly (2001) para o período 1970-1999. Posição acima de zero apontam para sobrevalorizações e abaixo para subvalorizações. A desvalorização no meio dos anos 70 e a apreciação do peso no início dos 80 aparecem claramente. A mudança de patamar ocorrida a partir de meados dos anos 80 fica também bastante clara.

A meta de déficit em contas correntes abaixo de 4% do PIB seguida nos anos 90 indica a estratégia do governo do Chile em relação às contas externas. Refletindo sobre a política cambial chilena, Morandé e Tapia (2002) destacam as preocupações das autoridades chilenas ao administrar a banda cambial nos 80 e 90. Apesar de ter sido alterada por várias vezes e de conter um componente de ajuste de produtividade, a banda mostra o objetivo das autoridades de administrar o nível do câmbio real. Tinha por objetivo evitar os problemas das estabilizações baseadas em âncoras nominais e coordenação de expectativas como no caso das “tablitas” do final dos 70 ou ainda da fixação do peso a partir de 1979. “The fact that the band’s center followed the difference between domestic and external inflation reveals that there was a concern with misalignments of the real exchange rate with respect to a PPP concept, as well as an attempt to manage -at least partially -the real exchange rate” (Morandé e Tapia 2002, pg.1).

Ao analisar três décadas de política econômica no Chile, Ffrench-Davis (2004) discute a evolução da política cambial. Trata da influência das duas grandes reformas comerciais dos anos 70 e 80 no desempenho exportador chileno e destaca a importância da depreciação relativa do câmbio real após a crise da dívida externa. Nos anos 70 e início dos 80, a moeda chilena passou por dois grandes ciclos de apreciação resultantes do período populista da primeira metade da década e dos esforços de estabilização da segunda como vimos. Apesar da abertura comercial e de políticas com vistas a melhorar o desempenho do setor externo,

o estímulo exportador foi fortemente prejudicado pelo comportamento da taxa de câmbio. Na segunda reforma comercial dos 80, a desvalorização real do câmbio contribuiu fortemente para o impulso exportador. Desde então, o Banco Central teria passado a adotar uma postura mais intervencionista no mercado cambial com vistas a evitar apreciações (Ffrench-Davis 2004, pg.205). Como destaca o autor, o setor de exportações não tradicional, ligado principalmente à indústria, atingiu um percentual de 20% no total das exportações em 1989 saindo da casa dos 8% em meados dos anos 70. Ainda sobre esse ponto, Ffrench-Davis conclui que o sucesso exportador dos últimos anos esteve fundamentalmente relacionado à política “heterodoxa” de câmbio relativamente desvalorizado. “Em suma, durante las três ultimas décadas Chile presenció um período de excepcional crecimiento de sus exportaciones. Tan notable desempeño estuvo asociado, durante lãs últimas dos décadas, a políticas heterodoxas más bien activas que procuraron preservar um tipo de cambio real competitivo y generar capacidad exportadora, en contraste com la implantación, unicamente, de reformas económicas ortodoxas, como ocurrió em los setenta” (Ffrench-Davis 2004, pg.225). O crescimento médio das exportações chilenas no período 1960-1973 foi de 3,5%, mantendo-se nesse nível entre 1973-1983 e saltando para 5,5% entre 1983-2002 (Alvarez 2004, pg.123).

Outros autores também destacam a superioridade da política cambial chilena. Montiel (2003, pg.427) chama a atenção para essa trajetória, ressaltando sua superioridade em relação ao episódio mexicano no início dos 90 e da Tailândia em meados da década. Cardoso (2003) destaca a proximidade entre a condução cambial na Coréia do Sul e no Chile mais recentemente e chama a atenção para a importância da manutenção de um câmbio competitivo nas estratégias de desenvolvimento de ambos. Dornbusch et al (1995) comparam o desempenho chileno com o mexicano depois da crise da dívida. Destacam à política cambial competitiva praticada pelo Chile como um dos principais fatores responsáveis pelo seu sucesso comparado ao relativo fracasso mexicano com novo episódio de apreciação e crise no início dos 90. As trajetórias de crescimento e de emprego de ambas as economias teriam sido fortemente afetadas pela política cambial (Dornbusch et al 1995, pg.259).

O gráfico abaixo construído a partir da base de dados de Easterly (2001) e do índice construído para o Brasil (ver último capítulo) mostra a evolução das taxas de câmbio real do Brasil, Argentina, México, Colômbia e Chile tomando por base o ano de 1979. A série mostra a diferença de condução de política cambial entre esses países nos últimos vinte anos. A crise da dívida no início dos 80 resultou em depreciações reais para as 5 economias. Em meados dos 80, o câmbio real chileno e colombiano começaram a se descolar da trajetória dos outros três países que ingressaram nos seus já conhecidos ciclos de apreciação e crise dos 90. Após a crise do final de 1994 e início de 1995 no México, os câmbios brasileiro e argentino seguem numa trajetória de apreciação e a partir de 97 o câmbio mexicano volta a se apreciar gradualmente. O câmbio chileno passa por uma leve apreciação até que volta a se depreciar na crise asiática.

Num livro que trata da viabilidade de “crawling bands” em países em desenvolvimento (ou ainda “Band Basket Crawls” (BBC), como ficou mais recentemente conhecida a proposta do autor), Williamson (1996) discute a importância da política cambial na “luta contra a Dutch Disease”. No estudo de caso que apresenta sobre o Chile, destaca a preocupação das autoridades com a administração do câmbio na presença de grandes influxos de capitais em meados dos anos 90. Nos temos do autor, “Chile emerged from the 1982 crisis with a strong national consensus that Dutch Disease is indeed dangerous. Although that consensus seems to be beginning to fray in the financial sector, it still dominates the thought of the policymaking community. The implication is that the Chilean authorities will not revise the target current account deficit upward, or at least not by enough to resolve the tension” (Williamson 1996, pg.30).

O gráfico abaixo mostra a evolução do PIB per capita chileno desde o início dos 60. Destacam-se as duas grandes crises em meados dos 70 e início dos 80 e o notável desempenho a partir da segunda metade dos 80.

O bom desempenho macroeconômico do Chile nos 80 e 90, não se deve, obviamente, apenas à política cambial. Uma análise mais detalhada de outros aspectos da economia chilena fugiria do escopo deste trabalho. Entretanto, a mudança de estratégia de política cambial ainda nos 80, migrando para o “modelo asiático” parece ter sido fundamental para o seu sucesso recente.


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