Revista: TURYDES
Turismo y Desarrollo local sostenible / ISSN: 1988-5261


FEIRAS DE ALIMENTOS: ESPAÇO DE MEMÓRIA E DESENVOLVIMENTO LOCAL NO ALGARVE*

Autores e infomación del artículo

Yolanda Flores e Silva**

Felipe Borborema Cunha-Lima***

Ivani Stello Farias****

Universidade do Vale do Itajaí, Brasil

yolanda@univali.br


RESUMO: esta comunicação tem por base uma investigação sobre uma feira de alimentos no Algarve cujo objetivo foi o de ‘descrever a feira de alimentos de Loulé no Algarve, enquanto espaço patrimonial turístico que retrata a memória alimentar e atua como arranjo produtivo desencadeador do desenvolvimento local’. O percurso metodológico foi qualitativo com observações, conversas informais e formais com 200 pessoas (120 residentes e 80 turistas) durante três meses do ano de 2018. Os resultados apresentados em um relato descritivo com abordagem antropológica apontam que as pessoas (residentes e turistas) que compram os produtos alimentares algarvios na feira de Loulé, conseguem proporcionar aos produtores a possibilidade de continuar apostando nas produções alimentares tradicionais mediterrânicas com suas memórias e sabores das tradições locais. Nesse sentido, o turismo mostrou-se um aliado no crescimento e desenvolvimento local, preservação e sustentabilidade de patrimônios culturais materiais e imateriais deste território graças a um programa denominado de Loulé Criativo. Também foi possível constatar que esta feira proporciona experiências criativas voltadas a convivência e sociabilidade entre o turista e a população de Loulé. Também é um evento semanal e um recurso capaz de gerar a criação de empregos voltados ao turismo criativo e de experiência com foco gastronômico.

Palavras-chave: Desenvolvimento Local. Feira de Alimentos. Memórias Culturais. Turismo Gastronômico.

Food fairs: memory space and local development in the Algarve

ABSTRACT: this communication is based on an investigation about a food fair in the Algarve, whose objective was to 'describe the Loulé food fair in the Algarve as a tourist heritage area that portrays the food memory and acts as a productive arrangement triggering local development'. The methodological course was qualitative with observations, informal and formal conversations with 200 people (120 residents and 80 tourists) during three months of the year 2018. The results presented in a descriptive report with an anthropological approach point out that people (residents and tourists) who buy the Algarve food products at the Loulé fair, they are able to give producers the possibility to continue betting on the traditional Mediterranean food productions with their memories and flavors of the local traditions. In this sense, tourism has shown itself to be an ally in local growth and development, preservation and sustainability of cultural and intangible cultural heritage of this territory thanks to a program called Loulé Criativo. It was also possible to verify that this fair provides creative experiences aimed at the coexistence and sociability between the tourist and the population of Loulé. It is also a weekly event and a resource capable of generating job creation aimed at creative tourism and experience with a gastronomic focus.

Key-words: Local Development. Food Fair. Cultural Memories. Gastronomic Tourism.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Yolanda Flores e Silva, Felipe Borborema Cunha-Lima e Ivani Stello Farias (2018): “Feiras de alimentos: espaço de memória e desenvolvimento local no Algarve”, Revista Turydes: Turismo y Desarrollo, n. 25 (diciembre / dezembro 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/turydes/25/feiras-alimentos.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/turydes25feiras-alimentos


1 INTRODUÇÃO

Ir a uma feira enquanto fazemos turismo? Fazer turismo na feira? Que turismo é este?
Para algumas pessoas, quando falamos em turismo, as imagens que chegam são aquelas que evocam o deslocamento em pacotes de viagem ou fora deles, mas, com o propósito de conhecer os espaços de um roteiro em que se pensa transitar por ruas e lojas, museus, praças, praias e, no final de tudo uma ida a um mercado público para compra de artesanatos.

A dinâmica deste formato de turismo pode ser feita via pacote de viagens. A ideia, na maioria das vezes é que se possam visitar vários lugares em um único dia, correndo de um lugar a outro, olhando rapidamente o que está ao redor e depois partir. Este tipo de dinâmica, comum em muitas viagens turísticas são criticadas por alguns pesquisadores porque os produtos e serviços ofertados são realizados sem uma preocupação com o lugar, as pessoas e suas necessidades. Este formato de turismo conforme o roteiro e a organização da agência que o realiza e seus profissionais, pode comprometer vários setores de uma comunidade (social, ambiental e cultural) causando danos e descaracterizando o viver cultural das pessoas visitadas, sem as vezes sequer contribuir economicamente para suas necessidades (Bursztyn, Bartholo & Delamaro, 2009).

O turismo tem várias veredas e em muitos destinos, não se leva em consideração os riscos e impactos negativos das atividades turísticas.  O turismo, embora para muitos seja considerado uma indústria de grande potencial, não é uma panaceia que consiga resolver os problemas econômicos dos territórios mais pobres. Entretanto, quando é planejado com perspectivas mais éticas num contexto solidário, pode a médio e longo prazo atenuar, melhorar e inclusive apoiar o desenvolvimento de pequenos territórios. Mesmo em lugares como o Algarve, conhecido pelo seu turismo de sol e praia, o desenvolvimento territorial se restringe ao litoral, com muitas lacunas nas regiões mais pobres que se situam no Barrocal e serra Algarvias (Cunha-Lima & Silva, 2017). Ainda que existam grandes empreendimentos na região, estes por si só não promovem o desenvolvimento das localidades que estão próximas aos campos de golfe e grandes conglomerados hoteleiros. Este é um modelo de turismo que cumpre com alguns requisitos de empregabilidade e renda nas cidades maiores, mas, como bem afirmam Coriolano (2009) e Max-Neef (2005), não atendem e não contribuem de forma efetiva nas pequenas, vilas e aldeias considerando o desenvolvimento na escala humana.

Para Kastenholz (2006) a gestão de destinos turísticos, em particular os que estão no meio rural, são complexos e tem grandes riscos que devem ser reconhecidos para que se possa efetivamente ter um turismo que responda as necessidades locais. O mais difícil, segundo a pesquisadora, é que qualquer que seja o caminho a ser adotado, nada se pode dar como garantias, e, embora, na maioria das vezes, as populações criem expectativas e desejos que nem sempre conseguem ser contemplados, é possível se chegar a um consenso, a um produto que satisfaça as populações e aos consumidores dos serviços turísticos.
Sobre esta possibilidade de fazer turismo com foco no desenvolvimento dos pequenos territórios, é que trata este artigo, considerando um exemplo em Portugal. Para este artigo, apresentam-se alguns resultados de pesquisa em que um dos objetivos foi o de “descrever a feira de alimentos de Loulé no Algarve, enquanto espaço patrimonial turístico que retrata a memória alimentar e atua como arranjo produtivo desencadeador do desenvolvimento local”. Embora o estudo ‘guarda-chuva’ esteja ocorrendo no Brasil e em Portugal, selecionou-se para discussão e reflexão acerca das feiras como experiências locais e turísticas, a feira realizada aos sábados no Concelho de Loulé - Algarve.

O percurso metodológico para inserção neste universo foi qualitativo com observações, conversas informais e formais com um total de 200 pessoas, 120 residentes e 80 turistas. A análise final é apresentada na forma de uma estrutura descritiva mostrando a feira com algumas experiências sobre a venda dos produtos da região, a socialização de conhecimentos voltadas para a cultura alimentar local e o significado desta empreitada para o desenvolvimento do território de Loulé e pessoas.

Assim, o trabalho apresentado, tem esta introdução, o percurso metodológico adotado, uma revisão teórica, os resultados, as considerações finais e por fim, as referências que deram suporte científico ao trabalho.

2 PERCURSO METODOLÓGICO

A base desta pesquisa e as motivações relacionadas a ela se iniciaram no ano de 2013 na Universidade do Algarve, durante pesquisa de pós-doutoramento na Faculdade de Economia – Programa de Doutoramento em Turismo, com estudos que tinham como interesse básico o turismo comunitário desenvolvido no sul do Brasil e Portugal. Neste período, foi possível ter acesso a informações sobre os problemas relacionados com a baixa densidade demográfica dos pequenos territórios algarvios e os problemas oriundos desta questão, tais como o êxodo de jovens para as cidades maiores, a falta de arranjos produtivos econômicos que pudessem sustentar estes lugares e é claro, o desaparecimento gradativo de vilas e aldeias (Silva, 2013a).

Ainda que o pós-doutoramento tenha se encerrado no final do ano de 2013, a pesquisa teve continuidade e para a sua realização se fixou um calendário de convivência com a realidade portuguesa de quatro meses por ano, o que resultou até a presente data num total de vinte e quatro (24) meses de convivência em alguns territórios de baixa densidade populacional algarvios. Em 2016, como forma de se obter financiamento para a continuidade das investigações no Brasil e em Portugal, se atualizou a proposta de pesquisa que se tinha e com ela se concorreu ao Edital Produtividade do CNPq neste mesmo ano, com aprovação de bolsa para continuidade da mesma. Esta proposta e outras menores financiadas por entidades portuguesas como a Universidade do Algarve e Agência Proactivetur é que sustentam o que se apresenta neste artigo (Silva, 2016).
Para este estudo em particular, a entrada no campo ocorreu após a realização de alguns seminários temáticos realizados no Brasil e em Portugal com pesquisadores dos dois países que estão fazendo investigações com arcabouço semelhantes desde 2016. Estes seminários foram realizados com o objetivo de compartilhamento das propostas de pesquisa, os objetivos das mesmas e a definição dos territórios investigados. Estes seminários ocorreram por videoconferência no primeiro semestre de 2017. Após a seleção dos Municípios (Brasil) e Concelhos (Portugal) se fez uma agenda do período e etapas do trabalho documental, bibliográfico e de campo (visitas aos territórios selecionados no sul do Brasil e de Portugal).

O percurso metodológico adotado teve base antropológica. Segundo Denzin e Lincoln (2006; 2003) as pesquisas com abordagem antropológica compreendem um conjunto de atividades interpretativas que podem dispor de distintos modelos metodológicos para sua realização.  As estratégias também são variadas e para a proposta apresentada, se fez uso de instrumentos etnográficos para coleta e análise de dados. Ou seja, não se fez uma etnografia clássica por excelência de permanência fixa nas localidades. Como este é um método de investigação que permite trabalhar com uma ampla gama de fontes de informações durante um período de longa duração que pode ser contínuo ou com algumas pausas para atingir um contato direto com o objeto de estudo, foi esta última possibilidade que foi adotada.

No caso desta pesquisa, embora os cenários e objetos de interesse investigativos tenham sido palcos da presença de vários pesquisadores de 2013 aos dias atuais, para esta etapa da pesquisa com foco nas feiras, se fez a coleta de informações de novembro de 2017 a fevereiro de 2018, período de imersão no espaço temático das feiras de alimentos do Concelho de Loulé. Outras feiras foram visitadas na região do Algarve e no sul do Brasil, mas, para esta comunicação elencamos a feira de Loulé como a mais representativa de todas as demais visitadas pela equipe de pesquisa.

Os contatos para as entrevistas foram realizados com o uso de roteiros com questões abertas. Entrevistou-se informantes que aceitaram participar do estudo, conforme os seguintes critérios de seleção: pessoas envolvidas com as propostas e arranjos produtivos voltados para alimentação nos territórios selecionados para a pesquisa; moradores destes territórios que colaboram diretamente com a proposta; moradores que não participam, mas, são consumidores; visitantes/turistas que se deslocam para as atividades relacionadas as feiras; técnicos e profissionais ligados as secretarias de agricultura, cultura e turismo do território.

As questões desta entrevista com residentes e turistas consistiam de perguntas abertas sobre as motivações para a ida a feira, o que faziam durante a feira, o que gostavam e o que não gostavam e suas impressões acerca do território, das pessoas, da convivência, necessidades entre outros elementos. Com os gestores também trabalhamos com questões abertas ainda que direcionadas as motivações públicas, sociais, econômicas, entre outros elementos. Considerando este contexto, as etapas do trabalho em campo compreenderam, portanto:

Etapa 1 - Atividade de campo para a coleta de informações via entrevistas formais e informais com 200 informantes (120 moradores e 80 turistas) entrevistados em períodos diferentes ao longo de quatro meses de acompanhamento da feira de Loulé de novembro de 2017 – fevereiro de 2018, no período de outono e inverno no Algarve;

Etapa 2 - Atividade de campo com entrevistas a informantes gestores e/ou colaboradores dos arranjos produtivos organizados durante as feiras. Estas entrevistas foram realizadas na semana, fora do dia da feira.

Em concomitância com as etapas descritas, iniciou-se a construção dos critérios de análise dos dados coletados. Esta etapa envolveu a seleção de outras informações contidas em dados documentais e bibliográficos. Neste primeiro momento de análise, seguindo o modelo de Minayo (2007) fez-se necessário: realizar a transcrição dos dados (entrevistas, observação e leituras documentais e bibliográficas), leitura sistemática do material coletado, categorização ou codificação segundo o objetivo da proposta, e, finalmente a análise interpretativa dos conteúdos e discursos segundo Geertz (2008) por comparação com todos os dados: bibliográficos, documentais, observacionais e dos discursos dos informantes.

Para Geertz (idem) o objetivo da análise é compreender em que perspectivas este plano discursivo se constrói, portanto, a concepção do texto é a materialidade do discurso e o pesquisador é um agente participante. Por outro lado, a análise também visa captar o saber que está por trás da superfície do texto com suas ‘intenções’ considerando a linguagem utilizada e a sua relação com a realidade. Os resultados são apresentados no formato de um texto descritivo com viés etnográfico associando a descrição a interpretação do pesquisador e referenciais teóricos selecionados para uma crítica reflexiva das respostas obtidas (Angrosino, 2009). O uso de imagens, diagramas e quadros explicativos podem ser utilizados quando se considerar a sua necessidade para a compreensão dos resultados1 .

3 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE TURISMO E DESENVOLVIMENTO LOCAL

Um turismo cujo foco possam ser feiras ou outras variantes do cotidiano de pessoas em regiões como o Algarve ou pequenas comunidades do litoral ou da serra no sul do Brasil é algo que em parte começou a ser considerado algo importante e viável em função do turismo comunitário incluso em um turismo cultural criativo associado a perspectiva de trocas culturais e apoio solidário as pequenas comunidades. No Brasil e em países da América do Sul, particularmente pesquisas como a de Malaver Copara (2015), mostram exemplos da feira de alimentos no Peru como um espaço para se fazer turismo, uma boa refeição e ao mesmo tempo conhecer a cultura alimentar da população visitada (Poulain, 2013).

Os exemplos, oriundos dos trabalhos sobre turismo comunitário na vertente cultural criativa no Brasil descrevem experiências com pescadores artesanais (Silva, Cruz, Christoffoli, Cunha-Lima & Conceição, 2015) e agricultores familiares (Cunha-Lima, Oliveira e Silva, 2011) cujas bases de comercialização de seus produtos é a venda dos mesmos em espaços que convencionalmente não se faz turismo, mas, que começam a ser frequentados por turistas que desejam conhecer e viver um pouco mais o cotidiano dos territórios que visitam.

Nesse sentido, poucos investigadores se dão conta que o Turismo Comunitário com um olhar mais criativo e cultural, passa a ser procurado cada dia mais por alguns consumidores cansados de encontrar sempre os mesmos ambientes culturais para visitas contemplativas. Estes, em diferentes destinos, estão a buscar atividades e propostas alternativas de visitas com um enfoque cultural que lhes permitam ir além da contemplação passiva. Como sucessor ao modelo convencional e contemplativo do turismo cultural, por exemplo, segundo Richards e Wilson (2006), as sociedades pós-modernas atualizaram o turismo cultural e criaram seu sucessor que é o turismo criativo. Esta modalidade de turismo, para Gonçalves (2008), somente é possível quando as cidades, principalmente as de pequeno porte, se reinventam de forma criativa e se tornam elas próprias espaços criativos, inclusive para seus moradores.

Por isso, fazer o turismo comunitário voltado para a cultura dos territórios visitados, termina por nos levar a pensar na sustentabilidade das pequenas comunidades, que estão localizadas nas praias, nos bairros distantes das periferias urbanas ou no meio rural. Isto também nos remete a Carta da Terra e aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) reconhecidos pela Unesco em sua Conferência Geral de 2003, como uma referência de sobrevivência dos povos que em pleno século XXI ainda lutam pela vida na terra (Onu, 2016; Unesco, 2013; 2007). Embora vários países tenham assinado esta carta, comprometendo-se a iniciar uma série de ações voltadas ao empoderamento e inclusão dos povos mais pobres e menos desenvolvidos economicamente, existem poucas realizações concretas, em função da ganância de grande parte dos governantes do mundo, pouco preocupados com os povos mais sofridos (Gadotti, 2008).

Dentre as muitas possibilidades de desenvolvimento pensado com um olhar cultural e na escala humana (Max-Neef, 2003), estão as propostas voltadas ao consumo e vendas de produtos alimentares saudáveis em espaços territoriais que fiquem próximos a rede de produção. Para a Unesco (2003) a sustentabilidade se inicia na base de produção até chegar as feiras alimentares, espaço destinado a venda de produtos locais, que na maioria das vezes se destina a uma culinária mais tradicional e cotidiana (Björk & Kauppinen-Räisänen, 2014).

Este é um recurso e patrimônio imaterial de valor inestimável em função do saber-fazer das pessoas envolvidas, dos conhecimentos, técnicas e representações de identidade das culturas comunitárias tradicionais. Se é associado os patrimônios alimentares aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e a Carta da Terra, consegue-se perceber ser possível tornar o turismo um aliado da Unesco voltado a diminuição da pobreza e fome (ODS1), saúde e bem-estar (ODS2), cidades e comunidades sustentáveis (ODS11) e consumo e produção responsável (ODS12). Este contexto coloca o turismo como um parceiro e não como um elemento que somente leva impactos negativos as pequenas comunidades. Com foco nesta premissa, observa-se ser esta uma possibilidade de oferecer propostas de turismo originais, apresentando objetivos e metas que proponham a solução de alguns problemas que estão sob a responsabilidade das pessoas e governos de forma individual e coletiva (Silva, Cunha Lima & Christoffoli, 2016).

No Algarve, um dos territórios onde foram visitadas as feiras de alimentação, observou-se que estas estão se tornando atrativos turísticos em função da associação das mesmas com outros arranjos econômicos que envolve a realização de oficinas de sensibilização voltadas a aprendizados e práticas ‘in loco’ de degustação, elaboração de pratos, etc.  Nesse sentido, também foi possível observar que os produtores de alimentos, as culinaristas tradicionais e os promotores turísticos, entenderam ser possível dar prazer ao turista, e, ao mesmo tempo, desenvolver as economias locais com a venda de produtos tradicionais aos residentes e visitantes. Estes promotores turísticos perceberam também que o turista que viaja fora dos períodos considerados mais aprazíveis (por exemplo o verão para o turismo de sol e mar), deseja viver outras experiências, algo que fuja do convencional tour voltados para as praias seguidas de museus e casas de cultura (que têm o seu valor), mas, que muitas vezes não representa a vida cotidiana do morador dos territórios visitados (Köhler, 2013).

O Algarve, um dos 20 destinos mais procurados no mundo, tem na sazonalidade um problema porque seu turismo fica concentrado na zona litorânea com pouca procura das zonas ligadas ao campo e serra (Santos, Pinto & Guerreiro, 2016; Silva & Silva, 2016). Para fazer frente a este descompasso, alguns Concelhos portugueses iniciaram com o apoio de entidades privadas, governamentais e universidades, estudos cuja ênfase é a elaboração de propostas que apontem possibilidades de criação de arranjos turísticos alternativos. Nesse sentido, as zonas serranas passaram a ganhar espaço e a alimentação mediterrânica (bastante divulgada e aplaudida), da sua produção ao consumo, ganhou maior visibilidade e tornou-se um atrativo (Santos, Pinto & Guerreiro, 2016; Henrique & Custódio, 2010).

As feiras, tema deste artigo, ainda não são atrativos reconhecidos formalmente no turismo, mas, já se discute este espaço como um elemento que tem perspectivas (Björk & Kauppinen-Räisänen, 2014). Cidades ou Concelhos como o de Loulé, tem um histórico reconhecido com relação aos seus mercados de alimentação. Mas, o foco que atrai os turistas, além dos moradores locais e de outros Concelhos, aldeias, vilas e freguesias vizinhas, são as feiras dos sábados com barracas de alimentos diversificados cujos donos em sua maioria são os próprios produtores. Nestas barracas, o atrativo são os produtos e os produtores, que oferecem degustação, oficinas, compras e conversas entre ‘compadres’, são espaços de observação, troca de experiências, educação dos sentidos e admiração de moradores e turistas (Silva & Cunha Lima, 2016).

5 RESULTADOS

5.1 O Algarve
O Algarve tem diferenças marcantes com relação ao que se conhece sobre o sul do Brasil e com relação ao restante de Portugal. Contudo, algo é comum a todos estes espaços geográficos quando se trata de falar do meio rural e dos territórios serranos. A desertificação pelo êxodo rural, envelhecimento e morte das pessoas mais velhas, assim como a falta de alternativas e atrativos que possam em um curto espaço de tempo reverter esta situação é a realidade comum a alguns territórios do sul de Portugal e também no sul do Brasil (Silva, 2013; Covas & Covas, 2010).

Ainda que o Algarve tenha um litoral que atraia turistas oriundos da Europa e de vários outros lugares do mundo, o interior e a região de serra são pouco conhecidas e visitadas pelos turistas que buscam o verão e as praias. Ainda assim, é importante que se diga que a amenidade do inverno associada a uma conformação climática agradável durante todo o ano, traduz-se em uma diversidade de patrimônios agroalimentares, culturais e ambientais capazes de atrair pessoas que desejem ter experiências turísticas mais tradicionais e originais (Silva & Silva, 2016; Silva, 2013).

O Algarve fica na região sul de Portugal e até 1889 era uma região isolada do restante de Portugal com comunicação via mar e através do comboio (“caminho de ferro”). A época era como se fosse uma região a parte de Portugal e era denominada ‘Reino do Algarve’. Esta situação aliada a natureza em solo mais árido, as lutas internas ou externas e uma industrialização tardia, tornou a região pobre e reconhecida como de baixa perspectiva de crescimento econômico. Ainda que a produção agrícola sempre mostrasse potencial, como fonte econômica não conseguiu sustentar o interior e evitar a desertificação humana ocorrida por conta do êxodo rural, envelhecimento populacional e baixo índice de natalidade (Cunha-Lima & Silva, 2017).

Nos Concelhos do Algarve, particularmente na região de serra e proximidades as localidades selecionadas como campo de investigação foram os Concelhos de Tavira (Monte das Mariposas), Olhão (Moncarapacho), Loulé (Serra do Barrocal), Silves (Messines e Monte das Almas), Aljezur (Costa Vicentina), Alcoutim (Monte das Laranjeiras e Furnazinhas) e Castro Marim (Zambujal). A característica destes territórios é a pouca densidade populacional, baixa natalidade (dois deles tiveram apenas duas crianças nascidas em 2014 e os demais sem nascimento) e mais de 60% da população acima de 60 anos. O que os torna bons objetos de estudo? O incentivo público e privado da comunidade europeia que mesmo em época de crises tem editais e propostas para a formação de arranjos produtivos de distintas naturezas. A abertura de editais para incentivar que jovens naturais e estrangeiros participem destas propostas e se fixem na região e a presença da universidade como parte da rede institucional e educacional orientando os debates e a organização das propostas voltadas ao desenvolvimento local, fazem da região um território com amplas perspectivas de reorganização humana e econômica (Covas & Covas, 2008).

A reunião destes elementos foi decisiva para a escolha de Loulé como ponto de partida para o estudo das feiras de alimentos (embora os demais Concelhos tenham sido investigados também). Entendeu-se que existe neste Concelho um potencial com capital social e econômico capaz de dinamizar e desenvolver o interior e regiões agrícolas mais esquecidas. As sensibilizações realizadas via oficinas do Programa Loulé Criativo, vem conseguindo integrar residentes e visitantes, através de uma partilha criativa da cultura local, do patrimônio histórico e natural e do contato com o estilo de vida do homem do Barrocal, da Serra e Litoral, originando novos produtos e serviços (alguns de natureza turística) e, portanto servindo de ponte para reduzir a distância entre o turista e o contexto social do destino (Kastenholz et al., 2011). Iniciativas como estas também são poderosas ações para a concretização dos ODS em Portugal e no futuro em nosso país.

4.2 Loulé: o território e sua feira
Para compreender o trabalho realizado em Loulé é preciso conhecer um pouco mais deste Concelho que está localizado no Algarve sendo sede do mais extenso e populoso município algarvio, com cerca de 70.000 mil habitantes e 763,67 km², dividido em 11 freguesias: Almancil, Alte, Ameixal, Benafim, Boliqueime, Quarteira, Querença, Salir, São Clemente, São Sebastião e Tôr. É uma região conhecida por suas praias, resorts e condomínios de luxo, sendo a terceira região mais rica de Portugal e a primeira no Distrito de Faro (Cunha-Lima, 2016).

Loulé possui um território com litoral com paisagens em que se inclui o Parque Nacional da Ria Formosa. Tem no Barrocal e serra sítios arqueológicos como o da Rocha da Pena e o local em que nasce o lençol aquífero algarvio denominado de Fonte Benémola (Cunha Lima; Silva, 2017). Sua zona histórica compreende a Alcaidaria do Castelo, o Museu Municipal, o interior das muralhas com as suas ruas estreitas e tortuosas, a Igreja Matriz, a Galeria de Arte do Convento do Espírito Santo, o Edifício Engenheiro Duarte Pacheco, os Paços do Concelho e o Mercado Municipal onde diariamente das sete ao meio dia é possível fazer compras de frutas, verduras, peixes e carnes. É também ao lado deste mercado que aos sábados se tem a feira dos produtores locais. Em meio a toda esta gama de lugares para visitação, existem também muitos comércios, alguns inclusive como oficinas de artes que já estavam esquecidas, tais como a latoaria, a empreita e a olaria (Silva, 2016; Silva 2013b).

Na semana tudo é muito intenso em Loulé, mas, é durante todo o dia de sábado, que na feira e no mercado se é possível conversar, trocar receitas, encontrar e fazer amigos, sejam moradores locais ou visitantes aproveitando o dia para aprender e degustar a culinária do Algarve e mais especificamente os pratos de Loulé. Neste dia o interior do mercado fica lotado, assim como as barracas externas que estão ao seu redor. Do pescador ao agricultor, seja natural de Loulé ou morando a alguns anos nesta parte do mundo, todos tem algo a dizer, a vender, a ofertar, a preparar e demonstrar publicamente o que sabe fazer e o que pode ofertar como produto ou serviço.

Do litoral vem o peixe fresco grelhado, a caldeirada, o carapau de tomatada, o arroz de polvo, a cataplana e as sardinhas assadas. Todas estas delícias são colocadas para degustação dos apreciadores, preparados ao natural com um pouco de flor de sal ou fortemente temperados como é comum nas casas dos pescadores locais. Do Barrocal e Serra toma-se contato com os alimentos de produção agrícola, tais como os animais de criação que dominam a cozinha regional: a galinha cerejada, a carne de porco preto frita temperada com alecrim e/ou tomilho, os enchidos, o javali no forno, o galo de cabidela, as receitas à base de ervilhas, grãos, favas, feijão e milho, alimentos próprios da culinária local. Como entrada pode-se ter azeitonas britadas com oréganos, cenouras cozidas e servidas com azeite de oliva e ainda queijo fresco barrado a mel. Para fechar a refeição come-se bolo de amêndoa, acompanhado pelos deliciosos licores de variados sabores ou pela aguardente destilada do medronho. Todos estes quitutes podem também ser comidos em restaurantes, mas, são nas oficinas de degustação nesta feira (e em outras do Algarve também), que os moradores e turistas se sentem parte de uma confraria cuja grife maior é o certificado da UNESCO que informa ser esta região uma das que produz e prepara a alimentação mediterrânica.

Mas, não é somente esta certificação que atrai as pessoas residentes ou os turistas. A variedade de alimentos e a garantia de que os mesmos são biológicos (orgânicos), além da solidariedade junto aos produtores também fazem parte deste ‘pacote’ e arranjo econômico. Para os produtores, a feira auxilia e proporciona novas parcerias para vendas diretas do que está excedente. Muitas pessoas se deslocam até as pequenas vilas e aldeias para compras, porém, é a ida a feira que garante aos mesmos o dinheiro básico do sustento cotidiano. Estes grupos, mesmo na Europa, vivem em situação de pobreza, já passaram fome e o que ameniza neste momento este quadro são as políticas públicas organizadas para levar os produtores ao encontro dos consumidores via feiras e ‘mercadinhos’ itinerantes. Foi esta a forma do governo português garantir o sustento dos que estão fora do circuito comercial das grandes cidades. Uma parte destes produtores não conseguem na venda normal, aquela realizada na própria moradia, mais do que duzentos euros (£ 200,00) por mês, algo insipiente para as despesas com a família. Contudo, a ida a feira aos sábados garante para a maioria, conforme as entrevistas realizadas, este mesmo valor a cada sábado o que significa oitocentos euros (£800,00) no mês.

Toda esta movimentação ocorre via Programa “Loulé Criativo”, uma iniciativa que aposta na valorização da identidade deste território tendo como força motriz a criatividade e a inovação em várias atividades. No início apoiava apenas a formação e atividade de artesãos, contudo, os gestores envolvidos com as dinâmicas e oficinas do programa entenderam que na revitalização das artes tradicionais do patrimônio imaterial, deveria se incluir a produção de alimentos e a culinária algarvia considerada a mais mediterrânica de Portugal.

Este programa promovido pela Câmara Municipal de Loulé conseguiu desde a sua criação em 2014, prestar um conjunto de serviços aos residentes e visitantes com: atualizada formação nas artes e ofícios tradicionais com indução contínua na inovação dos produtos e processos de trabalho dos profissionais; apoio à instalação e negócio de artesãos, produtores e culinaristas para que possam ofertar experiências criativas que coloquem os moradores e turistas em contato com a identidade e patrimônio regional baseadas na filosofia do “do it yourself”; e finalmente, uma programação cultural que promova eventos relacionados com temas que remetam ao patrimônio, as artes e ofícios locais. No caso da culinária local, as experiências já são relatadas em diversos trabalhos acadêmicos, mostrando a importância deste modelo de divulgação (Henrique et al, 2014; Henrique & Custódio, 2010).

4.3 Conversas, observações e socialização na feira de Loulé
Além de sanar os problemas de sobrevivência econômica, nesta feira foi possível observar vários discursos importantes que remetem as políticas públicas internacionais da Carta da Terra, dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) e também dos Direitos Humanos e Fundamentais dos povos da terra. No trabalho de campo foi possível participar da experiência vivida por produtores, moradores e turistas nas feiras de alimentos do Algarve enquanto espaços de vendas, educação responsável e socialização - observando e conversando com o produtor, o residente (morador / gestor) ou o turista. Foi possível também perceber a ânsia de todos em promover algo prático voltado ao bem-estar e sustentabilidade das pessoas e consequentemente do território onde estávamos.

“Venho a feira sempre que posso, tudo aqui é mais saudável, além de fazer oficinas de ‘provas’, compro alimentos para a semana, todos biológicos, sem venenos, algo bom para a terra e para nós. Também é importante saber que ajudo no sustento de nossos camponeses e pescadores, eles não precisam morar em lares de velhotes enquanto puderem se manter em suas terras plantando pouco ou pescando, mas, ainda assim o suficiente para nós e eles” (Residente, 68 anos).

“Vivo da agricultura, sou do Algarve, já morei fora e voltei, aqui é minha terra e meu lugar. Quando não tinha feira, vivia da venda de ‘cabazes’ de verduras nos mercados ou de compradores fixos que encomendavam. Dava para viver. Agora está melhor, passei por um curso e aprendi como ofertar meu produto. Com minha mãe e avó aprendi como fazer algumas receitas simples para degustação e ensino aos que vão a minha barraca. É um sucesso! Os turistas fazem festa e para eles sempre tenho uma prenda, alguns elogiam, fazem perguntas e todos amam mais ainda o Algarve quando aprendem sobre a história dos alimentos que vendo” (Produtor, 55 anos).

“Estou no Loulé Jardim Hotel, moro em Amsterdão e sempre que posso venho passar o inverno no Algarve onde as temperaturas são mais amenas do que lá. Aqui fico 30 dias e mesmo que esteja no hotel, compro frutas ou faço minhas refeições de sábado nesta feira ou na feira de Olhão. Os alimentos são biológicos, sem venenos, e para minha família isto é essencial. Aqui consumimos o que precisamos para o dia e isto também é bom, nada é colocado fora, compramos o que comemos. Acho que Loulé está fazendo o que é correto, este modelo de feira com tantos workshops e espaços de encontros e conversas é o que precisamos para que as pessoas se sintam responsáveis pelo futuro do planeta” (Turista, 70 anos).

Como afirmam Ribeiro-Martins e Silveira Martins (2018:17) algumas pesquisas realizadas nos últimos anos envolvendo a alimentação e mais especificamente a gastronomia demonstram que o turismo voltado para a culinária local é importante porque fomenta rotas e regiões do ponto de vista econômico, social e cultural em função do “ressurgimento/manutenção de receitas/hábitos culturais típicos das localidades e/ou de ancestrais. Ainda, o contexto é visto como alternativa para a manutenção de propriedades rurais, implementando atividade acessória a principal”. Este é o lado positivo que os autores observam em seus estudos, contudo alertam:

Não obstante, quando o turismo gastronômico não é implementado e/ou executado com responsabilidade, muitas consequências negativas também são ressaltadas, como a exploração econômica das comunidades; desvirtuação dos valores originais; geração de cinturões de pobreza no entorno, entre outros. Logo, o turismo gastronômico é uma atividade considerada importante, mas, como outras, deve ser desenvolvida com estratégia, planejamento e responsabilidade, principalmente com relação às pessoas e à sua história (Ribeiro-Martins & Silveira-Martins, 2018:17).

 

Este é um cuidado que se percebe nos gestores de Loulé, sejam os ligados aos órgãos públicos ou a empresas como a Proactivetur que atuam com turismo numa perspectiva de respeito a natureza e aos territórios cujas comunidades vivem com costumes e valores mais tradicionais:

“Nosso Concelho passa por períodos difíceis, a crise econômica de 2010 e 2011 ainda se fazem refletir em Portugal e aqui no Algarve não é diferente. Por isto tivemos que buscar alternativas e modelos fora de Portugal para implementar e observar se funcionaria aqui também. A proposta do Programa Loulé Criativo é parte de algo maior que tem na Espanha a sua base. Inicialmente a ideia era fomentar as artes e ofícios artesanais apenas, mas, vimos que não podíamos deixar de fora os ofícios voltados as tradições das cozinhas do Algarve, cujas bases têm histórias mediterrânicas. Temos como atualizar (se preciso), inovar e/ou aprender a partir de nossa história. As feiras remetem a nossa história e também as nossas tradições que podem ser recursos importante para o momento presente” (Gestor Público, 60 anos).

“A agência que represento, tem desde 2010 um compromisso com a população e com os visitantes que buscam Loulé. Oferecemos pacotes turísticos que possam atender as nossas necessidades enquanto agência que emprega várias pessoas em uma época de crise econômica, e que também pretende ser capaz de ofertar ao nosso povo a possibilidade de vender serviços e produtos de qualidade principalmente os de natureza alimentar. A nossa parceria com o Programa Loulé Criativo é possível porque acreditamos na proposta. Queremos incentivar as pessoas a comprar o que melhor produzimos diretamente dos produtores. Queremos induzir as pessoas a fazerem compras conscientes que se voltem ao mercado local e a elas próprias” (Gestor Privado, 50 anos).

Kocaman e Kocaman (2014) ressaltam a importância do turismo gastronômico para o desenvolvimento local, o que na prática implica atender a vários objetivos voltados a sustentabilidade, algo somente possível se os gestores trabalharem voltados a realidade dos seus Concelhos e produtores locais. As feiras e todas as atividades em torno da mesma podem servir também para a divulgação dos produtos agrícolas e artesanais nos restaurantes, pousadas, hotéis e espaços de exposição, bem como os pequenos mercadinhos e mercearias das aldeias, vilas e freguesias. As tradições de um espaço como o Algarve, multicultural por excelência com alimentos que remetem as culturas árabes e romanas com uma base mediterrânica ainda que seu oceano seja o Atlântico, são instrumentos importantes que favorecem a inserção de um modelo alimentar para moradores e turistas voltados ao território, aos recursos e aos legados culturais da Diaita Mediterrânica, reconhecimento da UNESCO a sete países, entre eles Portugal (Unesco, 2013).

Estas possibilidades e mais o fato de que existe uma consciência da necessidade de promover a sustentabilidade das cidades mais urbanizadas sem perder o vínculo com o litoral onde vive o pescador e a serra em que o agricultor também reside, são fatores que traduzem o valor de um trabalho em que se consideram aspectos individuais e coletivos de subsistência, consumo responsável e sustentável.

“Cada vez que venho ao Algarve e particularmente a Loulé, sinto que existe uma união entre as pessoas no sentido de promover e ofertar o que de melhor é produzido no Barrocal e região serrana. E não há uma competição explícita entre os produtores de uma forma geral. Há um espírito de solidariedade que nos faz acreditar em um futuro melhor e mais justo para todos nós. É algo bonito de se ver... dona vá aqui ao lado, eles têm o que procuras.... veja que bonito, é da minha colega, coloquei na minha tenda para divulgar, se quiseres é só visitar está após a tenda azul...gostas da nossa comida? Quer aprender a prepara-la? Hoje teremos um pequeno curso que nossa amiga J. vai dar com produtos nossos em vosso hotel. Não é bonito? Todos se ajudam e nós ganhamos amigos, bom papo e boa comida. Não deixo de vir e o hotel onde fico divulga também logo no pequeno almoço” (Turista, 62 anos).

“Aqui temos muitos produtos biológicos e isto é importante. Não adianta fazer propaganda da dieta mediterrânica com produtos cheios de pesticidas. O valor de um alimento está na produção sadia a moda antiga. Sou conservador, sou uma pessoa que viveu toda a vida no Algarve, sou da Vila do Bispo e sempre que posso venho a Loulé. Os festivais do Loulé Criativo são uma inspiração. Venho de autocarro logo cedo e depois passeio, faço compras, encontro amigos, participo de cursos...e pronto! Tem coisa melhor do que comer uma cataplana preparada com bons produtos? E o pão? Dona F. tem trigo de sementes originais, nós não temos problemas de glúten, nada disto. O pão começa a fermentar no início da semana naturalmente e depois é assado aqui mesmo, compramos um pão tão bom quanto o pão alentejano! Bom para todos e as pessoas se sustentam e nos sustentam também e ninguém precisa ter uma velhice miserável! (Residente, 78 anos).

“As feiras têm sido de uma importância grandiosa. Hoje, além das feiras dos sábados, temos na semana movimentos variados com eventos relacionados, como por exemplo, a mostra de filmes com lançamentos de livros sobre os patrimônios alimentares algarvios, o workshop de latoaria para mostrar como são feitas as cataplanas que preparam as receitas com o mesmo nome da panela, a exposição de azeitonas britadas, azeites, licor de medronho, pães feitos com farinha de bolotas, figos secos, amêndoas para petiscos, entre outros produtos únicos da nossa dieta. Também teremos ainda esta semana a venda de produtos artesanais utilitários, que muitas pessoas vêm em exposição nos hotéis e querem levar para casa. A ideia é mostrar nossa história e memória e ao mesmo tempo criar formas de melhorar a vida dos velhotes e dos jovens. Que eles não precisem sair daqui para ganhar o seu sustento! (Gestora Pública, 43 anos).

Considerando todo o contexto apresentado, o papel mais destacado das feiras no Algarve é a agregação de valor à produção agrícola e à transformação desta em produtos e serviços que circulam em nível local para moradores e visitantes. E este efeito torna-se bastante significativo, porque além dos impactos diretos podem haver ou ocorrer o que os economistas chamam de externalidades territoriais, ou seja, vantagens que saem do território em que se localiza o arranjo econômico. Esta é uma realidade que torna possível o que se denomina de cadeias de comercialização agroalimentares curtas.

Estas cadeias são formas de comercialização que expressam proximidade entre produtores e consumidores, do ponto de vista espacial e também emocional, porque se criam uma espécie de conexão que permite a interatividade cooperadora e solidária, facilitando que ambos conheçam os propósitos um do outro. Essas iniciativas são modelos inovadores de natureza social que oportunizam e contribuem para novos processos de desenvolvimento local (Darolt, 2012; Ferrari, 2011).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Tendo em vista o objetivo proposto para esta comunicação, conseguiu-se atender ao que foi preconizado como meta final. Embora, se tenham visitado diversas feiras no Brasil e em Portugal, destaca-se nesta comunicação a de Loulé porque a mesma é realizada através de parceria entre poder público, privado e comunidade. Para os pesquisadores envolvidos esta feira tornou-se um modelo com relação a outras também visitadas em outros países da Europa, no Brasil e até mesmo em países da América do Sul como o Peru, cujas tradições alimentares são hoje bastante ressaltadas em um movimento com reconhecimento internacional.

Desta forma fica a questão: o que difere a feira de Loulé de outras feiras visitadas? Em primeiro lugar o protagonismo dos produtores, a facilidade com que os mesmos se comunicam com moradores e estrangeiros, a vocação que parece ser natural de demonstrar com orgulho o que sabem fazer e o que estão vendendo. Mesmo que tudo envolva simplicidade, estes tratam de cada detalhe como mestres em uma grande sala de aula ou auditório aberto de conferência. A alimentação ali apresentada se mostra como um patrimônio alimentar, fruto de uma empreita familiar, com associação de distintos ingredientes, uso de recursos e utilitários tradicionais, trazidos a feira no período e época apropriados e confeccionados através de procedimentos simples, seguros e saudáveis. As barracas desta feira se destacam pela oferta de produtos biológicos (ou orgânicos, que é como se denomina no Brasil).

Graças a todos os envolvidos – poder público e privado – as pessoas inseridas em todo este processo conseguem vender seus produtos e com isto garantir salários melhores e uma vida com maior bem-estar e qualidade. Ao mesmo tempo, quem compra seus produtos (moradores e turistas), atendem a premissa de praticar um consumo local, sustentável e responsável. Ainda que muitas das pessoas que circulam pela feira não tenha um cartaz que diga: estamos cumprindo a Carta da Terra e os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, estas praticam e atendem aos princípios estabelecidos pelas Nações Unidas e o governo português. Como retorno deste envolvimento residentes e turistas têm acesso a bons produtos, hospitalidade com a convivialidade ou sociabilidade inerente a este tipo de contato.

Na prática é possível perceber como o turismo e o turista podem ser parceiros no crescimento e desenvolvimento local sustentável das pequenas comunidades, bem como aliados dos patrimônios culturais materiais e imateriais, sua continuidade e preservação, principalmente quando conseguem ter uma convivência e sociabilidade com a população do território visitado. Também foi possível entender que apenas em situações de uma vivência democrática é que as pessoas concebem este pensar mais humano e comunitário. E que isto é uma construção, não significa que culturalmente estes são melhores ou mais civilizados do que outros países em outros continentes. É uma construção cotidiana de séculos de existência, de guerras, calamidades, fomes e aprendizados que acontecem quando as pessoas assumem sua história, acreditam e lutam por ela. A feira de Loulé em vários aspectos apresenta um cenário onde as pessoas – sejam residentes ou turistas, aprendem o valor de suas próprias histórias através da experiência vivida e trocada em mesas da feira com pratos que simbolizam a possibilidade de uma cultura de paz nascida pela hospitalidade, acolhimento e..... comensalidade!

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* Esta comunicação descreve um dos objetivos da pesquisa ‘Turismo Comunitário: contribuições para a diminuição da desertificação populacional e desenvolvimento local no Sul do Brasil e Portugal’, uma investigação financiada pelo CNPq (Edital Bolsa Pesquisa Produtividade-PQ2), Universidade do Algarve e Agência de turismo criativo comunitário Proactivetur. Os coautores que assinam o texto são colaboradores da pesquisa e do grupo de pesquisa Turismo, Espaço e Sociedade (TES) onde atuo como coordenadora.
** Doutora em Filosofia da Saúde (UFSC / Brasil – 1999) com Estudos pós-doutorais em Turismo (UALg / Portugal – 2013). Docente e Pesquisadora na Escola de Artes, Comunicação e Hospitalidade e Escola de Saúde da Universidade do Vale do Itajaí (UNIVALI). CV Lattes: http://lattes.cnpq.br/5344296091176496 . ORCID: 0000-0003-0585-8789. E-mail: yolanda@univali.br.
*** Doutor em Turismo e Hotelaria (UNIVALI / Brasil – 2016). Realizando Pós-Doutoramento em Patrimônio e Cultura pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE) como bolsista da CAPES. E-mail: felipebcl2@hotmail.com .
**** Doutoranda na Universidade de Coimbra no Doutorado sobre Patrimônios Alimentares: Culturas e Identidades. Mestre em Saúde (UNIVALI/Brasil 2016). E-mail: nutricionistaivani@gmail.com .
1 No relatório foram inclusos imagens e diagramas de todas as feiras visitadas/investigadas no Brasil e em Portugal.


Recibido: Noviembre 2018 Aceptado: Diciembre 2018 Publicado: Diciembre 2018

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