INDÚSTRIAS CENTRAIS, DESENVOLVIMENTO E POLÍTICAS PÚBLICAS
Por Rodrigo Loureiro Medeiros, Gustavo Antônio Galvão dos Santos, Bruno Galvão dos Santos y Eduardo Kaplan Barbosa
Introdução
O retorno do debate sobre as políticas públicas de desenvolvimento econômico é vivido com intensidade nas sociedades organizadas após o desastre do capitalismo neoliberal. A queda de Wall Street no segundo semestre de 2008 e seus imediatos efeitos no campo da produção de bens e serviços demandam discussões e propostas para o enfrentamento da crise.
No Brasil, assim como em outros países, esse debate costuma influenciar um conjunto expressivo de políticas públicas (IEDI, 2009). As políticas de pesquisa e inovação buscam atualmente responder a necessidades domésticas de emprego, educação e saúde, assim como os desafios globais de mudança climática e segurança energética.
Nesse novo tempo de merecido desprestígio dos financistas e dos apólogos das virtudes da auto-regulação dos mercados, alguns pensadores mais conservadores chegam a dizer que mundo caminha para uma nova servidão. Para os mesmos, bastaria paciência para esperar que a crise se resolva por si só, enquanto os agentes “irracionais”, supostamente os principais culpados pela poluição do mercado, sejam varridos da arena econômica. Se as recorrentes crises financeiras do capitalismo desregulado não conseguem provocar reflexões e críticas honestas da parte de alguns agentes econômicos, felizmente as exitosas experiências keynesianas ensinaram algo aos governos.
Este artigo defende a tese de que o Brasil deve persistir na busca pela consolidação de indústrias centrais, compreendidas pelas firmas que operam nos setores metal-mecânico, químico e eletroeletrônico. As indústrias centrais se situam basicamente nos países mais desenvolvidos e possuem um forte enraizamento nacional. Elas se concentram geograficamente de forma combinada, atraindo-se mutuamente. Os efeitos multiplicadores e as conexões ao longo das cadeias produtivas de bens e serviços de elevado valor agregado que se manifestam nessas respectivas indústrias justificam a atenção dos formuladores de políticas públicas progressistas. Ao analisar os superávits comerciais dos países desenvolvidos, Fernando Fajnzylber notou o peso da indústria de bens de capital nas exportações dos países superavitários e nas importações dos países deficitários (TORRES, 2006). A indústria metal-mecânica alcançava nos países centrais cerca de 40% de toda a atividade manufatureira.
As indústrias centrais são merecedoras de atenção por conta de um déficit comercial que girou na casa dos cinqüenta bilhões de dólares em 2008. Qual seria o efeito provocado pela elasticidade-renda da demanda por produtos e serviços oriundos desses setores se houver uma expansão mais vigorosa dos gastos públicos no Brasil para compensar os efeitos da crise internacional? Quanto tempo as reservas brasileiras agüentariam a pressão? Sabe-se que são limitados os casos dos países capitalistas que apresentaram expansão forte da economia sem que haja, concomitantemente, aumento proporcional das importações.
Não se poderia deixar de ressaltar que o presente artigo busca retomar elementos do debate proposto por um dos mais importantes estudos realizados no Brasil sobre competitividade industrial: Estudo da competitividade da indústria brasileira, coordenado por Coutinho e Ferraz (1994). O Brasil estaria passando por outros momentos se as recomendações sugeridas pelo Estudo houvessem sido então escutadas. No entanto, imperou o tempo do pensamento único e a fé na “mão invisível”. A crise global do capitalismo neoliberal e o retorno do pêndulo ideológico abrem espaços efetivos para uma nova agenda de políticas desenvolvimentistas.
Barreiras ao desenvolvimento
No Brasil pode-se facilmente constatar a seguinte crença difundida pela sabedoria convencional estabelecida: “O custo da mão-de-obra é caro neste país e, por isso, não se tem competitividade global, Vejam como crescem a China e a Índia”. Para os adeptos mais ortodoxos dessa crença, pouco importa se a grande maioria das ineficiências está pulverizada ao longo da infra-estrutura logística brasileira. Informações disponibilizadas anualmente pela Confederação Nacional do Transporte (CNT) indicam que um volume enorme de recursos é desperdiçado, algo superior aos R$100 bilhões em excesso de estoques apenas para cobrir as ineficiências dos diferentes modais do transporte de cargas no Brasil.
Percebe-se no Brasil que, além da reduzida disponibilidade da infra-estrutura de transportes, sua qualidade é precária. Alguns setores, por não enfrentarem elevada concorrência, podem operar pela lógica da contabilidade de custos, empurrando suas ineficiências para os consumidores pagarem. Eles podem inclusive realizar uma retirada consciente da eficiência, regulando o output e mantendo os preços e os respectivos lucros estavelmente elevados. Outros setores, aqueles mais expostos a elevados níveis de concorrência, precisam evoluir.
A aposta no “fim da história” ao longo da década de 1990 não se revelou profícua. O bom senso foi penalizado em favor da ideologia e dos grandes interesses pecuniários depositados na auto-regulação do mercado. As conseqüências não demoraram a aparecer após a desregulamentação financeira. Livre de restrições, o capital tende a fluir dos mais pobres para os mais ricos, sendo consumido ao invés de investido em projetos produtivos (KINDLEBERGER, 1987). A particularidade do fenômeno ibero-americano se pautou historicamente no fato de que o Estado tomava dinheiro emprestado para financiar a fuga de capitais.
Não se precisa de muito esforço para se demonstrar que os custos médios do fator trabalho nos EUA, na União Européia e no Japão, por exemplo, são mais elevados do que os praticados no Brasil. O trabalho é apenas um dos três fatores de produção concebidos pelos economistas clássicos. O nó górdio do processo evolucionário das organizações está na busca pelo desenvolvimento de sistemas produtivos mais eficientes (grau de utilização dos recursos de produção) e eficazes (alcance dos objetivos a partir da utilização dos recursos de produção). Criatividade, habilidades gerenciais e capacidade inovadora são qualidades necessárias para os gestores dos processos produtivos de bens e serviços. O crescimento das firmas não está limitado pela demanda corrente.
Mas onde estariam as chaves para o sucesso organizacional? Segundo Stigler (1968), há geralmente diferenças nas habilidades dos empreendedores e, portanto, tal fato se manifesta nas curvas de custo médio de longo prazo das organizações produtivas. Mesmo operando com deseconomias de escalas, uma organização pode ainda ser mais eficiente do que seus competidores e monopolizar uma indústria. O acesso ao crédito se manifesta como um fator importante no desenvolvimento das firmas. Crédito não é disponibilizado pelo sistema financeiro em condições similares para os diferentes portes de organizações produtivas. No geral, quanto maior a firma e mais consolidada ela se encontrar, maiores as facilidades de acesso ao crédito. O custo de capital representa um fator importante quando se avalia a viabilidade de projetos industriais. Caso a eficiência marginal do capital seja inferior ao custo do crédito, o projeto industrial encontra-se inviabilizado, ou momentaneamente “engavetado”, e quando a política monetária se torna restritiva por períodos prolongados de tempo, as firmas menores têm suas chances de sucesso reduzidas.
O crescimento econômico é importante, pois as oportunidades de expansão para as firmas menores ocorrem nos interstícios deixados pelas grandes empresas nos períodos de expansão (PENROSE, 1995). Não se pode estranhar, portanto, que o bom desempenho global da economia seja fundamental para que sejam ofertadas sistemicamente condições mínimas para o sucesso dos agentes emergentes. Na medida em que o conhecimento tecnológico cresce e se torna mais difuso, pode-se esperar que, inevitavelmente, sejam criadas inúmeras oportunidades para as firmas menores.
Se deve esperar encontrar o controle de ativos estratégicos no âmbito das indústrias por parte das empresas transnacionais. As patentes, por exemplo, são calorosamente debatidas na Organização Mundial do Comércio (OMC). Qual seria o tempo em que elas deveriam ser respeitadas num país em desenvolvimento? Até que ponto os países mais ricos não estariam chutando a escada do desenvolvimento econômico ao defenderem prazos longos para as patentes de suas empresas transnacionais? Para complicar ainda mais o jogo para os países menos desenvolvidos, não se pode olvidar que o ciclo de vida de diversos produtos foi reduzido, fato que inviabiliza atualmente o processo clássico de substituição de importações centradas exclusivamente no mercado interno.
A arena econômica global, por sua vez, não costuma ofertar efetivamente muitos espaços para a penetração de atores emergentes. Gomory e Baumol (2000) avaliam que os interesses nacionais podem entrar em conflito com o comércio global e que não há nenhuma garantia de que um sistema de trocas baseado no livre-comércio possa atender, ou mesmo conciliar, os interesses de todos os participantes da arena econômica quando o assunto é desenvolvimento. A captura de indústrias e empregos detentores de capacidades tecnológicas dinâmicas representa um relevante ponto de conflito mapeado pelos respectivos autores. Nesse sentido, a frustrada Rodada de Doha, da OMC, traduz, em uma larga medida, a tendência de que a primazia da política das nações se re-estabeleça nos próximos tempos sobre os interesses pecuniários imediatos dos grandes grupos econômicos e financeiros transnacionais. Investimentos mais lucrativos não necessariamente são socialmente benéficos. A crise endógena do capitalismo neoliberal abre uma nova janela de oportunidades para as políticas democrático-desenvolvimentistas.
Lições da história
Após a Segunda Guerra, o Japão era um país derrotado. Duas bombas atômicas haviam destruído vidas e deixado marcas profundas de humilhação. No início da década de 1950, grupos de engenheiros e técnicos da Toyota viajaram para os EUA com o intuito de observar como se poderia ser competitivo na fabricação do automóvel. O jogo já era global naquele tempo. Eles visitaram as instalações da Ford e perceberam que não teriam condições de adotar ortodoxamente tal paradigma de organização da produção. As condições de contorno japonesas - demografia, território e instituições - diferenciavam-se do caso norte-americano.
Não havia, ademais, espaço para desperdícios no Japão do pós-guerra e os trabalhadores não aceitavam ser tratados como custos variáveis (cf. WOMACK, JONES e ROOS, 2004). A força de ocupação norte-americana, por sua vez, temendo o avanço das idéias comunistas, apoiou as reivindicações dos trabalhadores. O jeito era repensar os sistemas japoneses de produção e organização industrial. As idéias de Shewhart, Deming e Juran, formuladores das bases teóricas do Gerenciamento da Qualidade Total, seriam úteis para o novo momento. Edith Penrose e Joseph Schumpeter também foram influências importantes.
Combinando automação de baixo custo com trabalhadores multifuncionais, o Sistema Toyota de Produção revolucionou a forma de se produzir bens e serviços mundo afora. Variações desse sistema difundiram-se pelo globo e alargaram o escopo de estudo da gestão estratégica das organizações. Os japoneses poderiam simplesmente ter aceitado “a realidade” emitida pelos sinais de mercado de que não eram competitivos na fabricação de automóveis naquele momento. No entanto, não foi isso que se sucedeu. Eles desafiaram o mercado e a partir de esforços e investimentos, um novo paradigma de produção mais eficiente do que o fordismo emergiu.
A documentada evolução sul-coreana revela que o caminho para o desenvolvimento sustentado não mudou tanto assim (KIM, 2005). No início da década de 1960, o Produto Nacional Bruto (PNB) per capita sul-coreano era menor do que o do Sudão e não ultrapassava as casa dos 33% do produto mexicano. A rápida industrialização da Coréia do Sul derivou em grande parte da imitação (engenharia reversa, por exemplo), legal ou não, e no desenvolvimento de aptidões tecnológicas, que compreendem investimentos combinados nos sistemas de produção e na inovação. O Estado jogou um papel-chave ao longo do processo de mudança econômica no momento em que os agentes econômicos nacionais mostravam-se frágeis frente aos riscos e às incertezas do desafio do desenvolvimento. Controles estatais sobre o sistema de crédito nacional e sobre as importações fizeram parte das medidas adotadas. O processo de desenvolvimento sul-coreano resultou de um esforço exportador sistemático coordenado pelo seu Estado. O mercado internacional, por sua vez, pautou a necessidade dos ganhos graduais de eficiência e produtividade. Não foi obra do acaso, dádivas dos sinais de mercado, a transformação na estrutura produtiva ocorrida na Coréia do Sul.
Desde Adam Smith algumas pessoas ficaram acostumadas a associar a divisão do trabalho ao desenvolvimento do mercado. No entanto, constata Hicks (1972), essa não foi a sua origem. A especialização é um problema da economia de escala. O comando, ou seja, a concentração de poder para a tomada de decisões representa uma alternativa historicamente adotada pelas sociedades retardatárias para quebrar a inércia do tradicionalismo.
Seguindo a linha de raciocínio de List (1909), pode-se argumentar que as empresas nacionais possuem sérias dificuldades de desenvolvimento se o mercado já estiver ocupado por empresas de países estrangeiros economicamente mais avançados. Deve-se considerar que os países não partem do mesmo estágio de desenvolvimento econômico. A proteção seletiva às indústrias nascentes faz parte de um conjunto clássico de políticas desenvolvimentistas. Desde então, os paradigmas produtivos evoluíram. No entanto, a relação de complementaridade estratégica entre Estado e mercado nacional mostra-se permanente nos países mais desenvolvidos.
Nos EUA, por exemplo, a revisão pelo Congresso das leis de patentes de 1898 estendeu a duração da proteção concedida pelas patentes norte-americanas cobrindo invenções patenteadas em outros países (MOWERY e ROSENGERG, 2005). Essa revisão indica o crescente papel dos EUA como fonte de tecnologia industrial e a mudança de sua condição de mutuário de tecnologias industriais estrangeiras. As patentes permitiram desde então a algumas firmas manter seu poder de mercado sem infringir a legislação antitruste. O uso das patentes para a manutenção do poder de mercado criou incentivos adicionais para a promoção de atividades de pesquisa e desenvolvimento (P&D). Direitos de propriedade intelectual protegidos facilitaram o desenvolvimento do mercado de tecnologias industriais.
A partir da Segunda Guerra Mundial, as relações de cooperação entre Estado, universidades e agentes econômicos privados foi fortalecida. Não se pode deixar de observar que, para o caso dos EUA, os contratos federais de compras e o financiamento federal para P&D na indústria privada induziram a emergência de novas indústrias de alta tecnologia no pós-guerra. Os gastos federais financiaram algo entre a metade e dois terços do total de P&D inicialmente. Mesmo nos tempos mais recentes, mais especificamente em 1995, os recursos federais responderam por 58% do total empreendido na pesquisa básica norte-americana. No entanto, os estabelecimentos de pesquisas federais realizaram apenas 9% da pesquisa básica dos EUA. Ao longo da década de 1950, mais de 90% dos gastos federais norte-americanos em P&D foram administrados pelo Departamento de Defesa e pela Agência de Energia Atômica. O mercado de capitais, por sua vez, desempenhou um papel complementar no desenvolvimento de muitas empresas de microeletrônica durante as décadas de 1950 e 1960, além de ter contribuído também para o crescimento das indústrias de biotecnologia e de computadores. Os gastos militares em P&D, incluindo a política de compras federais, contribuíram para a intensificação das transferências tecnológicas na indústria norte-americana.
A suposta separação entre Estado e mercado nacional não se sustenta como um fato nas realidades vividas pelas sociedades organizadas mais desenvolvidas. Nota-se, ademais, que a cooperação pelo desenvolvimento econômico sustentado estrutura os relacionamentos duradouros entre ambos, pouco importando em alguns casos qual agremiação política encontra-se à frente do governo nacional. A respectiva divisão do trabalho e a coordenação dos processos inovadores extrapolam, portanto, a frágil perspectiva do equilíbrio involuntário.
Não se pode deixar de ressaltar, portanto, que o sistema econômico norte-americano viabilizou-se na primeira metade do século XX pela integração vertical e pela transformação do seu modelo gerencial, algo que modificou os principais aspectos organizacionais da produção de bens e serviços naquele país. Se a aposta houvesse sido a aceitação passiva da imprevisibilidade da “mão invisível”, há sérias dúvidas quanto ao que se poderia ter evoluído naquele país. Retornos decrescentes de gestão fizeram com que certas firmas optassem posteriormente por utilizar o mercado, que se desenvolveu a posteriori.
Afinal, o que determinaria a produção da firma? Penrose (1995) propõe a visão baseada em recursos para explicar como as firmas enxergam o ambiente de forma distinta e percebem diferentes oportunidades de utilização desses recursos. Coase (1988) alega que se trata de um problema administrativo de decisões internas à firma quando os custos são inferiores às transações no mercado. A firma é mais do que uma unidade transformadora de inputs em outputs operando a partir dos sinais de mercado. Em muitos momentos, o processo de desenvolvimento econômico dos países exige “desafiar o mercado” e a realização de políticas heterodoxas (CHANG, 2009). Curvas de aprendizado precisam de tempo para se manifestar. A constituição da Petrobras e a Embraer no passado, por exemplo, não foi louvada pela ortodoxia neoclássica tupiniquim. Como se pode observar na prática, os mercados são instituições que podem facilitar as transações ou dificultar a organização da produção. Para os países menos desenvolvidos, os mercados provavelmente sinalizarão inicialmente que a produção nativa seria ineficiente e, portanto, um ato irracional.
Como os mercados são, em alguma medida, imperfeitos, as transações geram necessariamente um processo concentrador de riquezas e poder. A formação de grandes empresas representa, portanto, uma tendência estrutural do sistema capitalista. As conseqüências desse processo se manifestam para os países menos desenvolvidos pelas vias de difusão do progresso técnico, que se manifesta de forma distinta no centro e na periferia do sistema capitalista. No primeiro, ele engendra novos processos produtivos e a diversificação da oferta de produtos e serviços, enquanto na periferia o progresso técnico se manifesta pelo lado da diversificação da demanda dos grupos sociais mais privilegiados, agravando a estratificação social e causando, em alguns momentos, crises no balanço de pagamentos. Como centros cíclicos do sistema econômico global, os países mais desenvolvidos difundem padrões de consumo pelas vias do progresso técnico endógeno. Incompatíveis com as realidades de consumo da periferia do sistema, os países mais pobres vivem ciclicamente processos inflacionários, endividamento do Estado e crises cambiais.
No campo da geografia econômica, pode-se dizer que a interdependência entre regiões opera no sentido de estruturar um crescimento polarizado. Os graves desequilíbrios regionais, em um país ou mesmo no concerto das nações, não podem ser atenuados por sinais de mercado. As economias de aglomeração das indústrias geram processos cumulativos de inovação e aprendizado organizacional no centro, causando efeitos de drenagem de recursos na periferia. Os investimentos produtivos podem até transbordar para a periferia quando as deseconomias de aglomeração surgem. No entanto, a lógica da concentração do capital reforça a polarização.
A intervenção dos governos a partir de investimentos em infra-estrutura, educação e saúde, por exemplo, permite alargar o espaço econômico para a realização de investimentos. Incentivos fiscais e creditícios podem complementar esse quadro de estímulo à difusão dos investimentos produtivos.
O Estado nacional ainda precisa cumprir papéis importantes no desenvolvimento das sociedades organizadas. Bancos públicos, com destaque para os bancos de desenvolvimento, podem jogar um papel importante na garantia do acesso ao crédito para empresas que desejarem realizar investimentos produtivos. À luz da experiência passada, deve-se esperar escutar argumentos de que esses bancos não são governados pela “disciplina do mercado” e que, por isso, estão sujeitos à corrupção. Os bancos privados não são imunes à corrupção, especialmente quando os vínculos entre conglomerados econômicos estão assentados sobre o financiamento barato. A recente crise financeira internacional demonstra como os instrumentos financeiros complexos, ao invés de reduzirem os riscos operacionais, serviram para espalhar os efeitos dos riscos por países e mercados. Quando seguem suas estratégias e metas corporativas, as instituições financeiras influenciam os rumos das atividades econômicas.
Como, afinal, se pode buscar competitividade internacional no Brasil com taxas de captação de recursos junto às instituições financeiras girando na casa de dois dígitos, incluindo spreads de dois dígitos, quando as taxas são de um dígito em outros países, inclusive em sociedades de nível de desenvolvimento similar? E se o Estado gastasse menos, as taxas de juros cairiam efetivamente? Não, pois a taxa de juros não é o preço que equilibra a demanda por recursos para investir e a propensão de abster-se do consumo imediato; trata-se do preço mediante o qual o desejo de manter a riqueza em forma líquida se concilia com a quantidade de moeda disponível.
Vantagens comparativas dinâmicas
O conceito de eficiência adaptativa desenvolvido por North (2005) contempla importante reflexão para as sociedades retardatárias. Segundo o respectivo acadêmico, a teoria neoclássica não foi construída para explicar o processo de mudança econômica porque desconsiderou historicamente o papel das instituições, compreendidas como o sistema coletivo de crenças, valores, práticas, rotinas organizacionais e conhecimentos acumulados. A chave para explicar o processo de mudança econômica encontra-se na intencionalidade dos agentes, algo que não é naturalmente espontâneo e tampouco racional.
Os ganhos de produtividade não ocorrem por acaso. Eles resultam de esforços e processos de aprendizado coletivo. Nesse contexto de esforços para o desenvolvimento, dificilmente o Estado poderá se dedicar apenas as áreas básicas da vida nacional. Os esforços para o desenvolvimento demandam coordenações institucionais que extrapolam a lógica dos sinais dos mercados.
Para os que ainda sustentam a tese de que o Brasil deve explorar suas vantagens comparativas naturais e negligenciar a construção de “indústrias artificiais” a história aponta para uma perspectiva bem diferente. Conforme se pode conferir no gráfico que segue logo abaixo, a evolução do comércio global aponta para o destacado desempenho dos produtos de alta tecnologia. As implicações são claras para os países menos desenvolvidos, pois as possibilidades de construção democrática de uma sociedade mais próspera e equitativa estão constantemente em jogo. Mas então em quais setores devem ser alocados recursos para a construção de vantagens comparativas dinâmicas?
Fonte: Carta IEDI n. 331 - Crescimento e Transformação Produtiva na América Latina.
Para aqueles que defendem a emergência de uma era pós-industrial, uma suposta “desmaterialização da economia”, o gráfico que segue logo abaixo revela que a indústria de transformação não está perdendo importância no comércio mundial para os serviços.
Fonte: dados da OMC.
Além da complementaridade entre manufaturas e serviços, deve-se destacar que a produtividade costuma ser mais elevada nas manufaturas, tendendo a aumentar mais rapidamente do que na agricultura ou nos serviços. Portanto, sem um setor de manufatura forte, trata-se de algo praticamente impossível desenvolver serviços de alta produtividade.
A importância das indústrias centrais para o desenvolvimento econômico das sociedades torna-se clara. Mas o Brasil teria condições de ser competitivo em “setores consolidados”? Este artigo busca defender a tese de que se pode lograr êxito com esforços, condições macroeconômicas adequadas, capacitação tecnológica e investimentos. Pode-se aceitar o fato de que o País não investe adequadamente em ciência básica como um entrave? Dados dos EUA informam que aproximadamente dois terços da P&D estão no D, ou seja, são empregados no planejamento, no teste do produto, no re-design e na melhoria do processo de produção. O desenvolvimento científico se tornou cada vez mais dependente do progresso tecnológico, e este, por sua vez, do desenvolvimento econômico das sociedades. Esse fato deveria abrir um novo campo reflexões no Brasil.
Em outros tempos, o Brasil esteve muito preocupado com a nacionalização de tecnologias e competências. Havia uma avidez por projetos na década de 1970 (DIAS, 2002). Havia uma visão naquele tempo, certamente não compartilhada por muitos, de que a construção de multinacionais brasileiras seria um processo que não dependeria apenas dos sinais de mercado. A crise da dívida vivida na década de 1980 provocaria uma mudança nos corações e mentes da intelligentsia brasileira. O retorno da visão da sociedade centrada no mercado imperaria na década de 1990. Como resultado da hegemonia do pensamento neoliberal, as políticas industriais pró-ativas seriam simploriamente taxadas como jurássicas e ineficazes.
Mas os mercados estariam efetivamente sempre certos para sinalizar a alocação eficiente de recursos escassos? Dificilmente se pode apelar para a soberania dos consumidores para alegar a superioridade intrínseca dos mercados na decisão de questões estratégicas de alocação de recursos. Além disso, sabe-se que quanto maior a abundância econômica, maior a ineficiência social. Uma pessoa com fome não precisa ser informada sobre a sua necessidade de alimento. Ela simplesmente sente uma necessidade. Para as necessidades de segunda classe, ou seja, aquelas resultantes do esforço de manter-se adiante ou acima do seu próximo, quanto maior o seu nível, mais altas elas serão. Elas são praticamente insaciáveis.
Em sociedades brutalmente desiguais em termos de distribuição de renda, o quadro torna-se ainda mais dramático. Até que ponto a modernidade associada aos padrões de consumo propagados pelos grandes interesses pecuniários estabelecidos está em consonância com as reais necessidades das sociedades retardatárias e em que medida ela se associa a uma estratégia de desenvolvimento sustentado para essas respectivas sociedades? Qual a margem de exercício da soberania do consumidor em ambientes conformados por grandes empresas, oligopólios, que controlam ativos estratégicos, estimulam desejos pelas vias da propaganda e do marketing e influenciam o nível de preços no mercado?
As grandes empresas não estão presas à disciplina do mercado. Elas não ficam expostas a um ambiente próximo à competição perfeita, onde a receita marginal tenderia ao custo marginal de produção e o lucro seria praticamente nulo. Os oligopólios, portanto, não são males a serem combatidos a todo custo. O sistema capitalista estaria fadado a revolucionar permanentemente as suas estruturas produtivas, destruindo elementos antigos e criando novos? Os oligopólios seriam as estruturas de mercado que reuniriam as melhores condições para inovar e criar novas oportunidades de negócios, inclusive ofertando constantemente novas oportunidades para as firmas menores. Eles poderiam inclusive ser utilizados como motor de crescimento e desenvolvimento.
Mas por onde se deveria começar a aplicar políticas públicas para que o retorno social fosse acelerado? Das três indústrias centrais, a eletroeletrônica é a que possui menores barreiras de entrada. Não se está querendo dizer microeletrônica, mas sim os produtos eletrônicos finais, ou seja, bens de consumo durável e de capital eletrônicos. Onde se poderia pensar em instalar um complexo eletroeletrônico de capacidade tecnológica internacional? Se o Brasil desejar se tornar uma federação mais equilibrada, o Nordeste deveria ser contemplado. Certamente que a Zona Franca de Manaus, uma maquiladora de importação, precisa ser rediscutida à luz de um novo pacto federativo. Um aprofundamento institucional no âmbito do Mercosul, por sua vez, alargaria o escopo do debate. O que poderia ser dividido em termos de produção industrial no bloco? Essa discussão foi perdida quando o neoliberalismo se instalou na Argentina e no Brasil na década de 1990. A crise atual oferta novas janelas de oportunidade para que esse debate seja retomado.
A teoria tradicional sobre política industrial para eletroeletrônicos defende, há muitos anos, que o foco da política deve estar centrado em P&D, pesquisa universitária, produção de semicondutores, como circuitos integrados, displays e memórias. Todavia, essa não foi a prioridade da exitosa estratégia asiática. A estratégia asiática se baseou primeiramente na produção em massa de produtos finais. Ela aproveitou o fato de que os produtos eletrônicos não sofriam do protecionismo dos países centrais e, além disso, possuíam baixas barreiras de entrada para focar boa parte de suas exportações. Eles começaram importando e até hoje importam semicondutores dos EUA. A capacitação técnica da força de trabalho asiática, por sua vez, foi sendo construída ao longo do processo de melhorias contínuas na produção e na gradual agregação de valor local. Ela não foi um fator majoritariamente constituído a priori. Guardadas as devidas proporções, o Nordeste brasileiro pode viver uma experiência similar.
Alguns alertas precisam ser acionados. Caso essa proposta caia refém das “livres forças de mercado”, o peso econômico do Centro-Sul pode triplicar devido a economias de aglomeração dos principais centros industriais de São Paulo e do Sul. O esforço inovador ainda é baixo na Ibero-América e a qualificação de recursos humanos revela-se insuficiente. Eis dois pontos a serem melhorados pelas vias das políticas públicas brasileiras de ciência, tecnologia e inovação.
Os países detentores de sustentabilidade no seu desempenho econômico após a Segunda Guerra foram aqueles que conseguiram combinar a formulação de estratégias domésticas de investimento pró-crescimento com instituições capazes de lidar com choques externos adversos, não os países que confiaram na redução das barreiras alfandegárias e nos fluxos de capitais. Nesse sentido, o gráfico que segue logo abaixo revela a vulnerabilidade externa da Ibero-América e como a região ainda não conseguiu estruturar políticas anticíclicas capazes de absorver os choques provocados pelos ciclos econômicos globais. As indústrias centrais podem jogar um papel importante no campo das políticas anticíclicas.
Nesse contexto, espera-se ainda que o Estado cumpra papéis importantes no desenvolvimento democrático das sociedades retardatárias. As promessas de que os países que aderissem incondicionalmente à modernidade pregada pelo neoliberalismo caminhariam pelas vias da prosperidade social e da convergência econômica não se confirmaram. A história não terminou.
Conclusão
O bonde do Brasil ainda não passou. Como o Brasil abriga uma indústria metal-mecânica relativamente competitiva, uma indústria petroquímica relativamente diversificada e possui custos da mão-de-obra compatíveis, especialmente no Nordeste, há potencial endógeno para que o país se torne um grande produtor de eletroeletrônicos.
Tratar a temática do desenvolvimento das sociedades retardatárias não é uma tarefa simples. Além das questões teóricas, há certamente ingredientes de ordem sociológica. Em sociedades com elevados níveis de desigualdade e baixa coesão social, como é o caso ibero-americano, o empreendimento se torna um grande desafio.
Ao longo da década de 1990, a ideologia do equilíbrio involuntário buscou difundir a visão de que o Estado deveria se retirar da arena econômica para cuidar apenas das áreas básicas da vida nacional. Os mercados, diziam seus adeptos mais fundamentalistas, iriam se encarregar de conduzir essas sociedades a um estágio de desenvolvimento superior. Com a metade da sua população economicamente ativa precarizada (desempregada ou subempregada), os efeitos do pensamento neoliberal se fizeram sentir na Ibero-América. Para re-equilibrar o jogo na arena econômica, o Estado é chamado novamente para mediar tensões e as demais relações nessas sociedades.
No Brasil, os desdobramentos da Política de Desenvolvimento Produtivo lançada pelo Governo Federal em 2008 são imprevisíveis. De certo, destaca-se que o Estado democrático precisará estar à altura das tarefas institucionais de regulação, coordenação e indução do desenvolvimento sustentado. Para tanto, precisa-se contar com quadros técnicos capacitados e comprometidos com o desenvolvimento sustentado brasileiro. Um empresariado arrojado, progressista e capacitado também se faz um elemento necessário.
O presente artigo buscou indicar um caminho factível para a alocação de recursos. Em termos de políticas públicas, não se mostra sábio esperar que a crise financeira transborde de forma acelerada para o campo da produção de bens e serviços, enquanto as expectativas dos agentes econômicos se deterioram.
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