Amanda Maciel Carneiro*
Fabiano Maury Raupp**
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC) Brasil
amandamcarneiro@hotmail.com .
Resumo: O presente artigo tem por objetivo analisar a possibilidade ou não de efeito de confisco na atuação do auditor fiscal frente ao conceito de legalidade, posicionando-se acerca do assunto. Busca compreender os institutos relacionados, elucidando conceitos e manifestando-se a favor da legalidade da correta atuação legislativa, da representatividade e do poder do povo, tendo como uma de suas consequências o impacto na delimitação da atuação do Poder Executivo. Para atingir esse objetivo, faz-se a análise teórica dos elementos à luz da legislação e dos referenciais teóricos, caracterizando-se o estudo como descritivo e analítico, de abordagem qualitativa, com apoio bibliográfico e documental. A análise fundamenta a conclusão da impossibilidade jurídica de efeito de confisco na atuação do auditor fiscal frente ao conceito de legalidade, cabendo ao Executivo o respeito aos mandamentos legais e constitucionais e atuação conforme a lei em atividade vinculada. Nesta seara, o efeito de confisco, ferindo princípio tributário brasileiro, só poderia ser eventualmente configurado em análise pelo Poder Judiciário do caso concreto e da própria legalidade da lei que rege o tributo em questão, mas nunca dentro da atividade executiva corretamente realizada.
Palavras-chaves: Efeito de confisco. Auditor fiscal. Impossibilidade jurídica. Legalidade.
Resumen: El propósito de este artículo es analizar la posibilidad o no del efecto de la confiscación en el desempeño del auditor fiscal con respecto al concepto de legalidad, tomando una posición sobre el tema. Busca comprender los institutos relacionados, dilucidando conceptos y expresándose a favor de la legalidad de la acción legislativa correcta, de la representatividad y del poder de las personas, teniendo como una de sus consecuencias el impacto en la delimitación del desempeño del Poder Ejecutivo. Para lograr este objetivo, se realiza un análisis teórico de los elementos a la luz de la legislación y las referencias teóricas, caracterizando el estudio como descriptivo y analítico, con un enfoque cualitativo, con soporte bibliográfico y documental. El análisis respalda la conclusión de la imposibilidad legal del efecto de la confiscación en el desempeño del auditor fiscal con respecto al concepto de legalidad, siendo el Ejecutivo responsable de respetar los mandatos legales y constitucionales y actuar de acuerdo con la ley en la actividad vinculada. En esta área, el efecto de confiscación, que viola el principio tributario brasileño, solo podría configurarse en el análisis por parte del Poder Judicial del caso específico y la legalidad de la ley que rige el impuesto en cuestión, pero nunca dentro de la actividad ejecutiva realizada correctamente.
Palabras clave: Efecto de confiscación. Auditor fiscal. Imposibilidad legal. Legalidad
Para citar este artículo puede uitlizar el siguiente formato:
Amanda Maciel Carneiro y Fabiano Maury Raupp (2020): "A (IM) possibilidade jurídica de efeito de confisco na atuação do auditor fiscal frente ao conceito de legalidade", Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, (mayo 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/oel/2020/05/atuacao-auditor-fiscal.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/oel2005atuacao-auditor-fiscal
1 INTRODUÇÃO
No sistema constitucional vigente, a República Federativa Brasileira foi estruturada, dentre outros pilares, na separação de poderes entre o Judiciário, o Legislativo e o Executivo. Cada um desses Poderes atua, segundo mandamento constitucional, de forma independente e harmônica, em um sistema de freios e contrapesos, de forma a alcançar as finalidades estatais e atender aos anseios do povo, o real titular do poder (BRASIL, 1988).
Neste desenho de atribuições e funções, competências são relacionadas a cada poder, e todo um sistema de interações é previsto em suas funções típicas e atípicas. Quanto a estas, ocorrem, por exemplo, quando o Poder Legislativo julga contas prestadas pelo Presidente da República (artigo 49, inciso IX, da Constituição Federal Brasileira vigente) – atuando em função julgadora – , e quando o Judiciário organiza suas secretarias (artigo 96, I, b) – atuando em função executiva, dentre outras (BRASIL, 1988).
Já em suas funções típicas, coube ao Poder Judiciário atribuições de manutenção da justiça brasileira, com a função precípua de julgar; ao Legislativo, funções de legislar sobre a ordem vigente, e; ao Executivo, funções administrativas de execução dos mandamentos legais e constitucionais. A este último Poder, dentre as variadas atividades típicas exercidas, incumbe as relacionadas à auditoria fiscal de tributos.
A atividade de auditoria fiscal de tributos, parte da fiscalização tributária, é atividade vinculada essencial para o recolhimento de valores devidos aos cofres públicos pelos contribuintes, amparada na lógica tributária brasileira e nos ditames dos dispositivos da Constituição Federal (CF) a respeito da tributação, bem como do Código Tributário Nacional (CTN) e leis tributárias. É com base nessas leis e, portanto, na vontade do povo, haja vista o princípio da representatividade que permeia a elaboração e aprovação das leis no Poder Legislativo, que é circundada a atuação executiva da auditoria fiscal.
A legalidade pode aqui ser compreendida em mais de um aspecto: inicialmente, tanto como princípio de necessidade de existência de leis para que o particular seja obrigado a algo quanto para limitar a atuação pública; sob outro prisma, pelo respeito ao devido processo legal e à validade das leis frente a presunção de legalidade que permeia o processo de elaboração das leis.
A tese que aqui se apresenta, com foco na atuação do auditor fiscal, sustentada pelos fundamentos que serão abordados no desenvolvimento deste estudo, é a de que, uma vez que a lei é elaborada pelo processo regular devido e pelo órgão competente, cabe aos funcionários do Executivo respeitá-la e executá-la fielmente. Em se tratando de atividade tributária, de grande atenção constitucional e atuação expressamente vinculada à lei, o aspecto discricionário existente em alguns dos atos administrativos não encontra espaço. Assim, não se poderia aventar a hipótese de efeito de confisco causado pela atuação do auditor fiscal, posto que qualquer entendimento diferente feriria os preceitos de legalidade e interferiria diretamente na função legislativa, em usurpação do poder do povo pelo órgão Executivo.
O estudo, descritivo e analítico, tem metodologia de abordagem qualitativa e apoio bibliográfico e documental. Estrutura-se nesta Introdução, seguida de referenciais de separação constitucional de Poderes e suas funções, princípio da legalidade, poder de tributar e atenção à limitação da tributação quanto ao efeito de confisco e auditoria fiscal no Poder Executivo e sua eventual relação entre atuação e efeito de confisco, tópicos da onde se embasam as considerações finais e o posicionamento dos autores. Por fim, apresentam-se as referências utilizadas.
2 A SEPARAÇÃO CONSTITUCIONAL DE PODERES E O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE
A separação constitucional de Poderes na Constituição Brasileira é expressamente determinada em seu artigo 2º, que rege: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário.” (BRASIL, 1988). Esses poderes são estruturais do Estado Brasileiro, e representam uma partilha de funções complementares, todas voltadas para o alcance das finalidades estatais – o alcance do bem comum.
O fim do Estado é assegurar a vida humana em sociedade, pelo fato de que o homem não vive isoladamente e necessita de normas que disciplinem comportamentos. Tem o Estado por objetivo básico a realização do bem comum.
O Estado deve garantir a ordem interna, governando as pessoas que estão em seu território. Assegura a soberania na ordem internacional. Faz as regras de conduta. Distribui justiça. (MARTINS, 2009, p. 14-15).
O sentido de bem comum, porém, não pode ser atribuído unilateralmente pelo Estado. As três funções estatais, Legislativo, Executivo e Judiciário, assim, são distribuídas de forma a que possibilite a expressão social na definição dos objetivos e necessidades sociais, posicionando o Estado como o facilitador e promotor dos anseios coletivos. No título IV da CF, “Da Organização dos Poderes”, vê-se claramente a atribuição de competências a cada um dos Poderes: Legislativo, Executivo e Judiciário (BRASIL, 1988).
A teoria, inaugurada por Aristóteles (2009), indica a presença de três elementos constitutivos na estruturação dos Estados, e mais tarde, aprimorada por Montesquieu (1996), gerou a divisão do poder da maneira como a conhecemos hoje. Assim, vê-se na separação do poder político uma divisão de funções, a contenção de excessos e um sistema de freios e contrapesos através da especialização funcional e da independência orgânica, com funções típicas e atípicas (SILVA, 2010).
Ao chamado Poder Legislativo, este foi encarregado de elaborar as leis em conformidade com a vontade do povo; ao Poder Judiciário, restou a função judicante, resolvedora de conflitos e ao Executivo, a função tanto de executar os mandamentos legais como de governança da máquina estatal e gestão da Administração Pública (SILVA, 2010). Todas essas atividades compreendem as funções típicas de cada Poder, que também podem exercer funções atípicas, que ocorrem, por exemplo, quando o Poder Legislativo julga contas prestadas pelo Presidente da República (artigo 49, inciso IX, da Constituição Federal Brasileira vigente) – atuando em função julgadora – , e quando o Judiciário organiza suas secretarias (artigo 96, I, b) – atuando em função executiva, dentre outras (BRASIL, 1988).
Essas divisões de atuação compreendem um intrincado sistema que tem em sua finalidade o alcance do bem comum e dos anseios sociais que, por sua vez, são legitimados pela própria coletividade, já que na República Federativa do Brasil não é o Estado o detentor do poder, e sim o povo – expressão que pode ser compreendida como coletivo de cidadão (FERREIRA, 1962). Assim, toda a estrutura mencionada faz parte da estruturação e representação de um poder uno: o do povo.
De estados tiranos aos estados democráticos atuais, muitas mudanças se deram ao longo da história, culminando, até o momento, em uma maioria de nações que conta com estruturas democráticas e representativas, em estados baseados no Direito e na vontade popular. Em “um governo de leis e não um governo de homens” (MACHADO, 2011, p. 96). No Brasil, pode-se falar ainda em uma Constituição Social, tanto pelas normas dirigidas a este fim espalhadas pela CF quanto pela própria história brasileira que culmina na introdução, via preâmbulo, da carta dirigente e lei suprema do País, que vê no cidadão e em sua existência digna um de seus principais fundamentos, e na liberdade, um de seus principais objetivos (BRASIL, 1988).
Nas relações Estado-sociedade essencialmente democráticas, a busca da igualdade e a proteção da sociedade ocorrem em um contexto de prevalência da lei sobre o poder e do consenso sobre o comando, e trazem aspectos fundamentais de liberdade, poder do povo, direitos, deveres e justiça e legalidade, com base no Direito e na Constituição (KERSTENETZKY, 2012).
Importa para esse estudo atenção especial ao princípio da legalidade, aquele que vincula a atividade estatal à existência de lei e ao mesmo tempo limita sua interferência na vida privada – conquista do Estado de Direito (FIGUEIREDO, 2003), estabelecido dentre o conhecido rol dos princípios constitucionais regentes da Administração Pública do art. 37 da CF.
Vê-se sua origem na Magna Carta, assinada por Rei João, da Inglaterra, em 2012, um símbolo de limitação do poder estatal. Ao ser obrigado a negociar com os barões da época, o Rei, que afirmou que após a assinatura as consequências eram as mesmas do que lhe tirarem a coroa e seus poderes (CARDOSO, 1986), inaugura um movimento constitucional de proteção à liberdade e instrumento contra a arbitrariedade estatal que inspirou tantos outros a seguir, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (ONU, 1948), assim como a Constituição Brasileira (BRASIL, 1988).
Além de comprometer-se a autoridade estatal em cumprir direitos de ir e vir, de julgamento regular e de acesso à justiça, os primórdios de legalidade se veem estampados na disposição: “Nenhuma cidade e nenhum homem livre serão obrigados a construir pontes e diques, salvo se isso constar de um uso antigo e de direito.” (COMPARATO, 1999, apud BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS).
Além da parte dispositiva relativa à Administração Pública regendo a conduta dos entes públicos frente à sociedade, na CF, o princípio da legalidade também pode ser encontrado em seu art. 5o, segundo o qual “ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei”, dispositivo que rege a conduta dos particulares. Vê-se, então, a legalidade em uma de suas características como forma de defesa dos interesses individuais dos cidadãos, limitando a interferência estatal na vida privada. Daí a se dizer que aos particulares, pode tudo que a lei não proíbe, a à Administração Pública, somente o que a lei permite.
Neste sentido, a estrutura constitucional, ao prever a exigência de lei para determinadas condutas, quis, em termos populares, dispor o seguinte: por se tratar de assuntos que se julgam importantes, quem deve estruturar essa relação é o povo, por seus manifestantes. Com o respeito ao devido processo legal e aos princípios e leis que regem a temática, atua assim o Legislativo, representante democrático do povo brasileiro, ditando as normas que vão reger as relações jurídicas.
Além da compreensão da legalidade como supraexposta, pode-se verificar então relação intrínseca entre a legalidade e a existência de uma lei, dentro de todo o seu processo formal e material de construção. Isso implica reconhecer no Legislativo o poder essencialmente competente para transformar em lei os interesses sociais.
Daí a associar-se o princípio da legalidade à função típica legislativa, pois nela está centrada a manifestação da vontade popular. E é o povo, soberano, o titular do poder na estrutura jurídica brasileira, que exerce esse poder diretamente ou mediante representação (por seus vereadores, deputados e senadores elegidos e eleitos), como se depreende do parágrafo único do primeiro artigo da CF: “Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição.” (BRASIL, 1988).
Assim, ao respeitar o devido processo legal, consoante as normas constitucionais de processo legislativo, tanto em formalidades quanto no próprio mérito, diz-se de uma lei, após encerrado seu ciclo que geralmente se compõe de iniciativa, discussão e aprovação, sanção e veto e promulgação (esses últimos atos do Chefe do Executivo), bem como publicação, que ela é válida (BRASIL, 1988). Respeitados princípios basilares e toda a estrutura do ramo a que se destina, até que declarada ao contrário, a lei é legal e constitucional, e espelha a vontade social.
Permeando toda a atividade estatal, vê-se relações entre a legalidade e os poderes, não se olvidando de que a todos cumprem os preceitos do art. 37 da CF. Na repartição dos Poderes, caberia então ao Poder Executivo a fiel execução da vontade popular; ao Poder Judiciário, a análise de controvérsias e o julgamento das demandas – sempre pautados pelo liame constitucional. A análise da legalidade dos dispositivos legais faz parte das atribuições judiciárias, e não administrativas, eis que somente de execução. O Executivo não contesta a vontade do povo; é o Judiciário que, incitado, analisa as leis e verifica sua conformidade e adequação. Essa é a arquitetura de toda uma estrutura configurada para que alcance o Estado a finalidade de sua criação: a satisfação do bem comum (AMARO, 2013; CARRAZZA, 2015).
O que se infere é que, ao mesmo tempo em que a Constituição brasileira prevê direitos e garantias, esta também prevê limitadores da atuação, tanto estatal quanto privada. É que o Estado de Direito, quando pautado na democracia, é representador da soberania popular – e justifica a organização social brasileira, do povo como detentor dos poder e da legalidade como limitadora e libertadora, concomitantemente (LENZA, 2011).
Importantes que são ambos os assuntos, a legalidade também tem sua aplicação no Direito Tributário, “ramo do direito público que rege as relações jurídicas entre o Estado e os particulares, decorrentes da atividade financeira do Estado no que se refere à obtenção de receitas que correspondam ao conceito de tributos” (SOUZA, 1975, p. 40) – o ramo que permite o custeamento dos direitos sociais e da manutenção da máquina pública. Nesse, a legalidade se configura-se limitação ao poder de tributar disposta constitucionalmente. Como se vê no art. 150, I, da CF: “Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I - exigir ou aumentar tributo sem lei que o estabeleça” (BRASIL, 1988).
A legalidade no direito tributário implica tanto na necessidade de lei quanto na reserva de lei para dispor sobre, sob o qual se manifesta Carlos Henrique Machado:
Desta forma, somente por meio de lei – ato emanado da representação do próprio povo –, a Constituição autoriza a criação ou majoração da obrigação fiscal, ou seja, de transferir parcela do patrimônio particular para o Estado, sem a necessidade de indenização direta. (MACHADO, 2011, p. 98).
Já Hugo de Brito Machado (2009) a reconhece no conceito de tributo quando se menciona que é uma obrigação instituída por lei, o que significa que, além de sua criação, cabe também ao escopo da legalidade a definição de seus elementos, como hipótese de incidência e sujeitos, base de cálculo e alíquota, dentre outros.
Defendidos os interesses comuns por aquele de direito titular, o povo, através das leis, é por meio delas também que se permite grande parte do custeamento dos direitos inerentes à cidadania e à dignidade do ser humano na República Federativa do Brasil. Essa é a justificativa atual para a existência da tributação, embora com histórico muito mais impositivo do que colaborativo (GRZYBOVSKI; HAHN, 2006; NUNES, 2016), sobre a qual se discorrerá de forma mais detalhada no tópico a seguir.
3 O PODER DE TRIUTAR E PRINCÍPIO DO NÃO CONFISCO NO DIREITO TRIBUTÁRIO
O poder de tributar tem amparo no dever de solidariedade social (SIQUEIRA, 2010) e nos deveres sociais garantidores dos direitos sociais – reconhecidos como garantidores da liberdade (SANTOS, 2010). Advém da prerrogativa estatal de direito público de fazer cumprir a cobrança de um preço para se ter a sociedade que se quer (NABAIS, 2012) – o “preço da cidadania” (MARIA; LUCHIEZI JÚNIOR, 2010).
Assim, o cerne do estudo tributário perpassa a noção de tributo, motivo pelo qual se traz o tradicional conceito atribuído a tributo pelo CTN:
Art. 3º Tributo é toda prestação pecuniária compulsória, em moeda ou cujo valor nela se possa exprimir, que não constitua sanção de ato ilícito, instituída em lei e cobrada mediante atividade administrativa plenamente vinculada. (BRASIL, 1966).
A fim de compreender da onde deriva o poder de tributar, e o porquê da existência de suas limitações, há que se entender o porquê de existir a tributação - “o principal meio de o Estado se financiar, isto é, de obter os recursos necessários ao atingimento dos fins que justificam a sua própria existência (propiciar segurança, lazer, cultura, bem-estar social, etc.).” (CARRAZZA, 2015, p. 797). É assim que, pela obtenção de receitas derivadas dos contribuintes, o Estado edita leis e obriga os particulares a determinados atos, como o de entregar valores para possibilitar os fins estatais (ALEXANDRE, 2015).
Folloni e Dib (2015) veem na tributação uma tríade relação de objetivos fundamentais, direitos e deveres, sendo os primeiros determinados pela Constituição e que, em tese, representam os anseios coletivos, possibilitados pelos últimos e pela gestão estatal, os quais se direcionam a transformar a realidade social e permitir a promoção dos direitos.
Em sendo atividade que tira do contribuinte parcela do seu patrimônio, evidente que são necessárias proteções contra o arbítrio estatal, encontradas na própria Constituição Federal, demarcando sua atuação e constituindo a pilastra de sustentação da atividade tributária (AMARO, 2013).
Da Magna Carta, já mencionada, encontram-se as raízes das limitações do poder de tributar, como se percebe pelo excerto de seu original que, pela importância umbilical, vale a transcrição:
[...] Não lançaremos taxas ou tributos sem o consentimento do conselho geral do reino (commue concilium regni), a não ser para resgate da nossa pessoa, para armar cavaleiro nosso filho mais velho e para celebrar, mas uma única vez, o casamento da nossa filha mais velha; e esses tributos não excederão limites razoáveis. De igual maneira se procederá quanto aos impostos da cidade de Londres,
[...]
E, quando o conselho geral do reino tiver de reunir para se ocupar do lançamento dos impostos, exceto nos três casos indicados, e do lançamento de taxas, convocaremos por carta, individualmente, os arcebispos, abades, condes e os principais barões do reino; além disso, convocaremos para dia e lugar determinados, com a antecedência, pelo menos, de quarenta dias, por meio dos nossos xerifes e bailios, todas as outras pessoas que nos têm por suserano; e em todas as cartas de convocatória exporemos a causa da convocação; e proceder-se-á à deliberação do dia designado em conformidade com o conselho dos que não tenham comparecido todos os convocados. [...] (COMPARATO, 1999, apud BIBLIOTECA VIRTUAL DE DIREITOS HUMANOS).
Na internalização desses princípios pelo direito brasileiro, o “não confisco” é princípio do direito tributário alicerçado constitucionalmente (artigo 150, IV, da CF), encontrado na seção “das limitações do poder de tributar”. É cláusula que visa proteger o contribuinte do excesso da interferência estatal no patrimônio particular, “um instrumento hermenêutico destinado à efetivação de um sistema fiscal justo, capaz de conformar o exercício das competências tributárias com as garantias de propriedade e liberdade” (MACHADO, 2011, p. 19).
Para Machado, o não confisco seria uma forma de proteção de direitos fundamentais frente ao poder de tributar, não necessariamente confundido com uma prática excessivamente onerosa ou extorsiva – ao dar o exemplo de alíquotas de IPI de mais de 300% sobre os cigarros, cuja justificativa se encontra na extrafiscalidade e na seletividade (MACHADO, 2011). Em outras situações, por sua vez, já se manifestou o STF sobre o efeito confiscatório de multas de 100% o valor do imposto (ARE 1058987) (STF, 2017), bem como de multas superiores a 30% do valor do tributo devido (ARE 989691) (STF, 2015).
Na seara tributária, o Supremo Tribunal Federal (STF) já teve, ainda, a oportunidade de se manifestar que o não confisco deve ser analisado tanto na cobrança dos tributos quanto na aplicação de multas tributárias (ver, por exemplo, decisão monocrática de 2017 no Recurso Extraordinário com Agravo 989.691 de Pernambuco) (STF, 2017), posição da qual discorda Machado (2011), que afirma expressamente que a multa pode ser confiscatória, e que a interpretação da limitação do artigo 150, IV, da CF, é restritiva aos tributos. Pela discussão, se traz à tona a redação ipsis litteris: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: […] IV - utilizar tributo com efeito de confisco” (BRASIL, 1988).
Quanto ao posicionamento jurisprudencial acerca do significado da proibição de confisco, no Recurso Extraordinário 736090 RG/SC, ao citar a ADI 1075-MC, assim lecionou a mais alta corte do País:
A proibição constitucional do confisco em matéria tributária - ainda que se trate de multa fiscal resultante do inadimplemento, pelo contribuinte, de suas obrigações tributárias - nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais básicas. (STF, 2015).
De toda sorte, o não confisco é princípio que visa proteger a sobrevivência e subsistência do contribuinte, mantendo intocável parcela necessária para tal, que não poderia ser alvo do poder de império estatal. Essa proteção ao mínimo existencial tanto direciona os esforços estatais quanto, na seara do não confisco, preserva, além da própria propriedade, a vida e a dignidade da pessoa humana em seus direitos básicos (ANSELMINI; BUFFON, 2018).
Além disso, vale ressaltar que além da condição pessoal do contribuinte e do caso concreto, também a própria noção dos direitos fundamentais e essenciais pode se alterar com o tempo; motivo pelo qual sempre será válida a apreciação judiciária. Nesse sentido:
O elenco dos direitos fundamentais varia de época para época, de povo para povo, e por isso não se pode fixar um elenco de uma vez por todas: pode-se apenas dizer que são fundamentais os direitos que numa determinada constituição são atribuídos a todos os cidadãos indistintamente, em suma, aqueles diante dos quais todos os cidadãos são iguais. (BOBBIO, 1997, p. 41).
Ademais, valendo o adendo, explica Machado (2011), em apertada síntese, que o que é vedado pelas limitações de tributar é o efeito confiscatório aos tributos, o que, caso desrespeitado, geraria uma punição não condizente com o ato lícito (já que a tributação deriva de ato lícito, e não ilícito, conforme o artigo 3o do CTN) (BRASIL, 1966). O confisco, na CF, é permitido, por exemplo, em caso de uso de terras para cultivo de plantas psicotrópicas e também relativo a penas do direito penal (BRASIL, 1988), como medida assim de perdimento de bens em casos considerados ilícitos – ainda assim, em casos específicos, com previsão legislativa para tal, e que fogem da função do auditor fiscal, alvo deste estudo, pelo qual se esclarecem a seguir suas atribuições dentro do Poder Executivo.
4 A AUDITORIA FISCAL DENTRO DO PODER EXECUTIVO E A IMPOSSIBILIDADE DE CONFISCO EM SUA ATUAÇÃO
A atividade de auditoria fiscal é realizada, dentro do Poder Executivo, em todas as suas instâncias: federal, estadual e municipal. Feita por funcionário público competente, por força de lei, e dotada de especial atenção constitucional, geralmente é exercida por cargo de nome “Auditor Fiscal”, a quem incumbe a verificação do correto cumprimento tributário pelos contribuintes (MARIA; LUCHIEZI JÚNIOR, 2010).
Percebe-se, neste contexto, que o recolhimento de tributos depende diretamente da atuação da Administração Fiscal e de seus funcionários. Suas ações encontram direcionamentos constitucionais e legais, com atenção especial ao CTN, que em seus artigos 194 a 200, determina as ações das Autoridades Administrativas com base no princípio da legalidade.
Do próprio conceito de tributo do CTN se depreende que é atividade vinculada, o que pode ser compreendido como:
... aquela em cujo desempenho a autoridade administrativa não goza de liberdade para apreciar a conveniência nem a oportunidade de agir. A lei não estabelece apenas um fim a ser alcançado, a forma a ser observada e a competência da autoridade para agir. Estabelece, além disto, o momento, vale dizer, o quando agir, e o conteúdo mesmo da atividade. Não deixa margem à apreciação da autoridade, que fica inteiramente vinculada ao comando legal. (MACHADO, 2009, p. 124).
É a autoridade fiscal, assim, sob a figura de seus auditores fiscais, a responsável por esforços visando a correta arrecadação dos tributos necessários à atuação estatal pelo lançamento de valores, homologação e cobranças em atuações fiscais; pelo combate da sonegação fiscal, pela viabilização da justiça fiscal no que tange à correta cobrança dos valores, em ações preventivas e educativas de cidadania fiscal e pela resposta de questionamentos dos contribuintes e participação em processos administrativos fiscais (MARIA; LUCHIEZI JÚNIOR, 2010).
A vinculação da atuação dos auditores fiscais se dá exatamente pelo fato de que a estes resta a incumbência de zelar pela cobrança de valores públicos essenciais para a vida em sociedade. Assim, não caberia ao funcionário decidir ou não pela cobrança, nem por realizá-la integralmente ou em partes, nem por optar em cobrar de um mas não de outro contribuinte. Sua ação, administrativa, impera em, com responsabilidade e diligência, executar os mandamentos legais relacionados à estrutura tributária dentro de sua competência. Nesse sentido:
O agente público não difere dos demais indivíduos sociais, todos devem cumprir o texto legal [...] O agente público, tanto quanto o gestor da empresa privada, atuam dentro de um contexto legal, pois caso contrário ambos sofrerão os impactos decorrentes da legislação. (COSTA, 2010, p. 18).
Atuando de forma legal com o correto cumprimento da lei, o agente público, no caso, o auditor fiscal, representa em sua atuação o Estado de Direito na prática (COSTA, 2010). Daí a se verificar a impossibilidade de efeito de confisco na atuação do auditor fiscal.
Embora a forma de conferência e os meios e procedimentos adotados para verificação do cumprimento legal possam adentrar uma esfera discricionária de atuação, é imperioso que essa atuação ocorra entro dos limites legais. Mais do que isso, é obrigatório que ela assim ocorra, executando fielmente preceitos legalmente constituídos.
Luciano Amaro, acertadamente, ao dispor sobre a análise do efeito confiscatório nos tributos sob o prisma do princípio limitador da atuação tributária, manifesta-se que este é “critério informador da atividade do legislador e é, além disso, preceito dirigido ao intérprete e ao julgador” (AMARO, 2013, p. 168). Assim, somente na atuação concreta e na análise judicial seria possível apreciar eventual efeito confiscatório, o que também deveria ser levado em consideração pelo Legislativo ao discutir as leis tributárias.
Para Conti (1997, p. 104), “é muito difícil caracterizar precisamente quando um determinado tributo tem ou não efeito de confisco. Tanto doutrina quanto jurisprudência não fornecem uma solução satisfatória para esta questão...”, dificuldade que ele atribui até mesmo à conceituação do que seria confisco e seus alcances – dizeres que datam mais de vinte anos e continuam atuais, conforme se vê nos excertos jurídicos trazidos ao estudo.
O que se vê é que, embora proporcionalidade e razoabilidade são fatores geralmente analisados quando da verificação dos tribunais acerca do efeito de confisco, bem como devem ser norteadores na formulação das leis tributárias (CARVALHO FILHO, 2004; MEDAUAR, 2006), estes não alcançam a atividade fiscalizatória realizada pelos auditores fiscais.
Em síntese, pode-se afirmar que na estrutura tributária brasileira o efeito de confisco caberia à análise de tribunais e da atuação legislativa:
A interpretação jurídica do efeito de confisco tributário compete, sobretudo, aos juízes e Tribunais nos casos concretos. O postulado do neoconstitucionalismo amplia a esfera de atuação do Judiciário, como uma garantia de efetivação do enunciado da Constituição. Todavia, constituindo a justiça social um dos fins da tributação, também é um pressuposto de legitimidade da atividade do legislador. Os esforços do intérprete consistem em encontrar a compreensão adequada do fenômeno da incidência, primando pelo uso correto da linguagem jurídica. (MACHADO, 2011, p. 171-172).
Por esses motivos, resta a compreensão de que a atuação de auditores fiscais, funcionários públicos cuja esfera de competência têm relação com atividade vinculada estatal de cumprimento de obrigações tributárias, não encontra espaço para balizamento com efeito confiscatório, sob pena de usurpação do poder do povo manifesto nas criações legais.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esse estudo se propôs a analisar a (im)possibilidade de confisco na atuação dos auditores fiscais. Para tanto, fez uso de referencial teórico e jurisprudencial que permitiu a compreensão de institutos de divisão de Poderes, legalidade, tributação, limites à tributação com foco no efeito de confisco e atuação executiva de auditoria fiscal.
Da separação dos poderes, pode-se perceber funções típicas e atípicas de cada um deles, independentes e harmônicos e inter-relacionados em seus freios e contrapesos, voltados à satisfação dos anseios coletivos permitida pelo Estado. Da legalidade, tanto em forma quanto em matéria, extraiu-se, sucintamente, que esta implica tanto na limitação da atuação do Estado quanto no respeito ao devido processo legal, a fim de que, representando a vontade do povo na figura de seus legisladores eleitos, os diplomas legais sejam elaborados e norteiem a vida em sociedade.
Da tributação, pode-se enxergá-la como a forma pela qual a sociedade contribui para a materialização dos direitos. É o preço a ser pago para que estes possam ser disponibilizados, e inclui em si a solidariedade e a cidadania fiscal. Por configurar-se apropriação de patrimônio particular para que se volte ao público, e por razões histórias de arbítrio estatal, impôs-se à atividade tributária limitações de seu poder. O princípio do não confisco, assim chamado pela doutrina, cuja redação constitucional expressa a vedação à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios de “utilizar tributo com efeito de confisco” (BRASIL, 1988), é uma das limitações que se vê na atividade tributária brasileira, protegendo o mínimo existencial, o patrimônio do particular e a dignidade da pessoa humana.
Da mesma maneira e com a mesma cautela, a função realizada pelos auditores fiscais, funcionários de carreira da Administração Pública responsáveis pela conferência do correto cumprimento tributário e ações de cobrança dos valores devidos é também contornada pelos limites dados à tributação. Responsáveis por conferir e trazer essas receitas ao Poder Público, sua atuação é pautada na legalidade, na vinculação, em preceitos de justiça fiscal, em combate à evasão e sonegação, em educação fiscal e na eficiência para maximização do cumprimento pelos contribuintes.
Por se tratar de valores públicos, a discricionariedade em sua atuação atinge esfera mínima atinente a meios e procedimentos. Toda a configuração de tributos e obrigatoriedade da cobrança são direcionamentos legais, advindos de leis elaboradas em consonância com o processo legislativo e pelos representantes competentes eleitos pelo povo. A ideia da democracia representativa está aí alicerçada, e não coube a este estudo analisar se esta é a forma mais eficaz de manifestação da vontade popular, assumindo a forma atual como, se não a melhor, a possível dentro do contexto atual da República Brasileira.
A proteção frente ao possível efeito de confisco, assim, não encontraria espaço na atuação do auditor fiscal. Responsável pelo recolhimento e cobrança dos valores dos tributos cuja estrutura vêm definida em lei, cumpre a este sua fiel execução. Qualquer questionamento referente aos mandamentos tributários poderia ser feito dentro da sua condição de também cidadão, mas não de forma a usurpar o poder público manifesto nas leis e agir de maneira distinta ao que rege o mandamento legal. Do estudo, pode-se perceber que eventual efeito de confisco poderia ser reduzido em duas atuações: a legislativa, quando da elaboração das leis, e a judiciária, quando da análise do caso concreto. A participação do Executivo na sanção ou veto dos projetos é componente do processo legislativo, e ainda que isso se considere, não abrange a atuação dos funcionários públicos ocupantes dos cargos de auditor fiscal.
É evidente que, como parte do Executivo, em contato direto com o cidadão, tenham os auditores fiscais percepções acerca de como a tributação interfere na vida dos contribuintes, e capacidade de intermediar e relatar conflitos. Ainda, podem atuar em diversas outras frentes relacionadas à tributação, desde a educação até a promoção da justiça social, assim como na fiscalização e na arrecadação eficiente.
Uma boa relação entre Executivo, Judiciário e Legislativo, tanto entre si quanto em aproximação com o povo, verdadeiro titular do poder, pode elevar cada vez mais as limitações constitucionais do poder de tributar à sequer desnecessidade de a elas recorrer, posto que lógicas. A análise do efeito de confisco, de toda forma, advirá da percepção judiciária acerca dos casos, e da vontade do povo estampada nas legislações; ao Executivo, restará, sempre, as balizas constitucionais da boa gerência e condução da máquina pública da melhor maneira possível ao alcance desta vontade.
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