Livio Sergio Dias Claudino *
Sirlei Glasenapp **
Universidade Federal do Pará (Brasil).
Email: livio.claudino@gmail.com
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Resumo
O trabalho tem o objetivo de aferir as principais contribuições de Caio Prado Junior e Ignácio Rangel, situando suas reflexões no contexto político e econômico mais amplo no Brasil. São apresentadas questões relacionadas ao método, o que se constitui a questão agrária e quais as propostas de cada autor para solucionar o que entendiam como “problema agrário”, inserindo essas análises na escala mais geral no conjunto de propostas ao desenvolvimento econômico nacional. Procura-se demonstrar que as principais propostas parecem convergir para uma melhor relação entre a população do campo e o mercado de trabalho em setores urbanos, e não necessariamente uma questão propriamente fundiária. Trata-se de avaliações complexas da realidade brasileira e indicam um recuo nas propostas mais revolucionárias de reforma agrária, para projetos “mais pertinentes” ao que era possível realizar em meios às condições de mudanças estruturais e profundas transformações perversas aos trabalhadores rurais mais pobres daquela época.
Palavras-chave: Questão agrária, Caio Prado Junior, Ignácio Rangel
Revisiting the Brazilian agrarian issues according to Caio Prado Junior and Ignácio Rangel's vision
Abstract
The objective of this work is to evaluate the main contributions of Caio Prado Junior and Ignácio Rangel, situating their reflections in the broader political and economic context in Brazil. Questions related to method, what is the agrarian question and what are the proposals of each author to solve what they understand as the "agrarian issue" are presented, inserting these analysis in the more general scale set of proposals for the national economic development. It is aimed to show that the main proposals seem to converge on a better relationship between the population and the labour market in urban sectors, and not necessarily a land issue itself. These are complex assessments of the Brazilian reality, and they seem to indicate the more revolutionary land reform proposals are receding to "more relevant" projects to what was possible to do in conditions of structural changes and profound transformations, which were very nasty to poor rural workers.
Keywords: Agrarian issue, Caio Prado Junior, Ignácio Rangel
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Livio Sergio Dias Claudino y Sirlei Glasenapp (2019): "Revisitando a questão agrária brasileira na visão de Caio Prado Junior e Ignácio Rangel", Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, (julio 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/oel/2019/07/questao-agraria-brasil.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/oel1907questao-agraria-brasil
Introdução1
O debate intelectual sobre a questão agrária no Brasil esteve bastante aquecido na academia e em diversos espaços de discussão política durante boa parte do século 20, especialmente em momentos que fervilhavam questioidntos sobre papel da agricultura ao desenvolvimento ou crescimento econômico do país. Após 1930 até 1970, o traço mais forte da economia brasileira foi a expansão do setor industrial que, ao preponderar na formação do emprego e renda substituía gradualmente o papel, na determinação do nível de renda do setor agroexportador, no período conhecido como processo de substituição de importações (FONSECA, 2003). A problemática principal era como construir e dinamizar o capitalismo em bases nacionais e modernizar os setores da economia nacional e, ao mesmo tempo, resolver a questão agrária em um país que há apenas uns 50 anos tinha abolido a escravidão, contando ainda com uma estrutura fundiária e meios de produção extremamente concentrados. Nesse contexto, a questão agrária emergente era tida como própria do desenvolvimento orgânico nacional.
Os debates principais gravitavam em torno da relação entre capital e trabalho na indústria e na agricultura, e como a agricultura respondia às novas demandas decorrentes da urbanização e também em relação aos investimentos feitos em prol da modernização do setor. Diversos intelectuais, que hoje são considerados clássicos na literatura nacional e até internacional, engajados na compreensão do país e nas bases para o desenvolvimento realizaram importantes trabalhos, especialmente nas décadas 1950 a 1970, apontando que a resolução da questão agrária era elemento central ao desenvolvimento do país.
Em tese, os setores agrário e industrial se inter-relacionam reciprocamente por diversos mecanismos. Por meio de fluxos de produtos e insumos, já que a agricultura ao mesmo tempo pode absorver (como fertilizantes e máquinas) e produzir insumos diretos para as indústrias (fibras, produtos animais); pelo consumo, devido às indústrias gerarem salários e demanda por alimentos, constituindo-se mercado consumidor. No que concerne às relações de oferta de empregos, em tese, o excedente de mão de obra rural pode ser absorvido pelas indústrias ou serviços urbanos, dependendo do aumento na produtividade da agricultura, para que não altere negativamente a oferta e preços dos alimentos.
O crescimento da urbanização e do setor industrial aumentam a demanda por alimentos, que pode ser suprida pelo crescimento da produtividade e expansão da produção ou por meio de aquisições exteriores, via importações de alimentos, ou redução do consumo de alimentos. No Brasil, durante o processo de industrialização, ocorreu a distribuição desigual do desenvolvimento técnico do setor agrícola, caracterizado pelo baixo investimento na produção doméstica de alimentos e elevados investimentos para os produtos de agroexportação, devido a estratégia política e econômica de modernizar a agricultura de exportação, provocando aumento no preço dos alimentos, pressão sobre os salários urbanos e inflação (CACCIAMALI, 1988).
Posta tal contextualização, nesse trabalho aferimos as principais contribuições de Caio Prado Junior e Ignácio Rangel, dois autores clássicos que discutiram a questão agrária brasileira na metade do século passado, situando suas reflexões no contexto político e econômico mais amplo no Brasil. Serão apresentadas questões relacionadas ao método, o que se constitui a questão agrária e quais as propostas de cada autor para solucionar o que entendiam como “problema agrário”, inserindo essas análises na escala mais geral no conjunto de propostas ao desenvolvimento econômico nacional. Procuraremos demonstrar que as principais propostas parecem convergir para uma melhor relação entre a população do campo e o mercado de trabalho em setores urbanos, e não necessariamente uma questão propriamente fundiária. Pois, de acordo com os estudos de Pedrão (2001, p.130), a “questão agrária não é um problema rural, senão um componente do movimento do capital, tal como ele se desdobra no espaço nacional e como se apoia nas estruturas tradicionais de poder”, destacando que não há apenas um problema agrário determinado, mas um espaço de conflitos que se modifica, envolvendo as relações de trabalho e acesso a recursos ambientais.
Caio Prado Junior e a questão agrária
Descendente de família paulista tradicional, nascido em 1907, Caio Prado Junior ficou conhecido como intelectual da década de 30 – geração da “redescoberta do Brasil” – tendo construído suas reflexões no período “pós semana da arte moderna”. Seus trabalhos influenciaram fortemente economistas da área da História Econômica. Partidário do Partido Comunista Brasileiro (PCB), foi responsável por boa parte das interpretações das obras de Marx e Engels para o partido. O período inicial de seu pensamento acadêmico é caracterizado por uma crise do liberalismo, durante o qual floresciam distintas concepções nacionalistas e intervencionistas. Sua primeira grande obra foi publicada ainda em 1933 (Evolução Política do Brasil), trazendo uma novidade metodológica pela utilização do materialismo histórico, o que a diferenciava das demais concomitantes lançadas como interpretações do Brasil, de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda. Nesse trabalho, desmistifica a imagem do brasileiro cordial e pacífico, ressaltando as revoltas populares como parte importante da história brasileira (FONSECA, 1991).
Recorrendo a fatos empíricos, demonstrou, em sua obra História Econômica do Brasil (PRADO JUNIOR, 1945), uma nova periodização para a formação histórica do país, evidenciando o caráter cíclico e dependente da agroexportação que caracterizaram os quatro primeiros séculos de história do país. Essa obra revolucionou o ensino de economia e história, ao contrariar os estudos que apontavam o passado feudal para explicar o subdesenvolvimento nacional. Elaborou duras críticas metodológicas do PCB, devido à apropriação teórica constituída à priori seguida da tentativa de enquadramento posterior das teorias à realidade. Para ele, isso deformou a compressão necessária para que ocorresse um processo adequado (da teoria) da revolução brasileira, pois, os esquemas de Marx, quando elaborados, não pretendiam ser extrapolados a outras situações distintas da Europa (PRADO JUNIOR, 1987).
Caio Prado considerava engano pensar que os portugueses vieram criar uma nação, uma vez que a colonização se dera por conta dos negócios do rei, o que explica a escravidão, o latifúndio e os monocultivos, já que a relação fundante do Brasil é ser uma colônia comercial, como expresso abaixo:
Para os fins mercantis que se tinham em vista, a ocupação não se podia fazer como nas simples feitorias, com um reduzido pessoal incumbido apenas do negócio, sua administração e defesa armada; era preciso ampliar estas bases, criar um povoamento capaz de abastecer e manter as feitorias que se fundassem, e organizar a produção dos gêneros que interessavam seu comércio. A ideia de povoar surge daí e só daí (PRADO JUNIOR, 1945, p.8).
Seu intuito é mostrar que existe uma continuidade no qual o Brasil já nasce capitalista desde o início da colonização, sendo que o sistema colonial não é incompatível com o capitalismo já que é inserido neste internacionalmente. Isso diverge de autores que defendem a tese do capitalismo tardio - como a obra de João Manuel Cardoso de Mello (1995) e a de Maria Conceição Tavares (1998) -, que apresentam temporalidades distintas do capitalismo no Brasil.
A problemática geral do autor é a do desenvolvimento do Brasil, que é percebida como a “condição precípua para assegurar ao país e à generalidade de seu povo o conforto e bem-estar material e moral que a civilização e cultura modernas são capazes de proporcionar”, sendo que, o “desenvolvimento, que sem dúvida há de se alicerçar no crescimento econômico” (...) “se constituindo tema essencialmente histórico”. Especialmente devido ao país ainda não ter rompido com as amarras do passado, vistas pelas instituições em formas rudimentares quando analisadas em profundidade, mescladas com formas institucionais modernas. A eficácia da historiografia é também prática, pois permite a lida com os dados do passado que possibilitam a busca de proposições adequadas para o presente, sendo o desenvolvimento iminentemente um desses problemas (PRADO JUNIOR, 1968, p5-9).
Em relação à questão agrária, pode-se dividir o pensamento de Prado Junior em dois momentos, antes e depois de 1964. No primeiro momento, o autor concentra suas críticas ao monopólio da terra predominante no país, atribuindo essa condição à abundância de terras e de mão de obra que, ao mesmo tempo garante o sucesso da agropecuária brasileira e é um dos fatos decisivos para explicar da pobreza e miséria dos trabalhadores rurais, impossibilitados de acessarem a terra, resumindo a questão agrária ao:
(...) que a grande maioria da população brasileira, a sua quase totalidade, com exclusão unicamente de uma pequena minoria de grandes proprietários e fazendeiros, embora ligada à terra e obrigada a nela exercer sua atividade, tirando daí seu sustento se encontra privada da livre disposição da mesma terra em quantidade que baste para lhe assegurar um nível adequado de subsistência. Vê-se assim forçada a exercer sua atividade em proveito dos empreendimentos agromercantis de iniciativa daquela mesma minoria privilegiada que detém o monopólio virtual da terra (PRADO JÚNIOR, 1979, p. 32).
Prado Junior combate com veemência as teses de que houvera no Brasil um passado feudal, se preocupando principalmente com as implicações teóricas e práticas de se acreditar na existência pretérita do feudalismo no Brasil. Para ele:
(...) certas relações de trabalho presentes na agropecuária brasileira, embora se revistam formalmente de caracteres que as assemelham a instituições que encontramos no feudalismo europeu onde se foi buscar a designação, não constituem senão modalidades de pagamento que correspondem ao salário. (...) salvo algumas raras situações que no conjunto são excepcionais. (...) o que se apresenta no terreno das relações de proprietários e trabalhadores da agropecuária brasileira, é um mercado livre de trabalho (...). proprietários e trabalhadores, na posição respectiva de pretendentes e ofertantes de força de trabalho (PRADO JUNIOR, 1979, p.66-7).
As implicações dessa interpretação de passado feudal e de “restos feudais” - assumida por Alberto Passos Guimarães (1981) e também por Nelson Werneck Sodré (1976) - afetaram diretamente o processo de revolução, já que o foco de ataques, advindos dessa interpretação, seriam os latifúndios improdutivos e os “restos feudais” (em relação aos índices de produtividade, Prado Junior indica que é impossível mensurar o grau de aproveitamento da terra, sem incorrer em sérios inconvenientes sociais por privilegiar algumas culturas em detrimento de outras). Além disso, a leitura da realidade com essa matriz teórica de feudalismo contribuía para camuflar os problemas reais no campo, que derivam do próprio capitalismo, como a exploração dos trabalhadores pelos baixos salários e condições de trabalho e a concentração fundiária, que, para o autor demandam soluções no plano jurídico.
Para Prado Junior (1979, p. 67), seria mais adequado tratar como restos escravagistas ou restos servis, em analogia ao trabalho escravo, ainda muito recentemente abolido da Constituição. A intervenção política na questão agrária, deveria, segundo ele, atacar principalmente os aspectos jurídicos dos direitos de propriedade da terra e do mercado de trabalho, sendo que a reforma agrária consistiria na garantia para desconcentração fundiária e assegurar que as relações trabalhistas fossem reguladas por normas mercantis no contexto do próprio capitalismo, e não relações de outra natureza, reconhecendo a dificuldade de superar as relações escravagistas, uma vez que a escravidão serviu de base para uma economia mercantil durante o processo de colonização.
Um segundo momento de sua obra, no período pós 1964, o autor concentra-se ainda mais nas questões trabalhistas, desviando o foco da questão propriamente fundiária. Caio Prado percebia a economia camponesa apenas como residual da estrutura agrária, com forte tendência a aparecer um segmento de assalariados rurais. Isso mudou o centro de suas propostas de intervenção política, e também a matriz da sua questão agrária. Para ele, onde ainda predominavam relações análogas à escravidão, ou seja, à margem do regime legal de trabalho, o capitalista se beneficiava:
Longe de constituírem obstáculo ao progresso e desenvolvimento do capitalismo, lhe têm sido altamente favoráveis, pois contribuem para a compressão da remuneração do trabalhador, ampliando com isso a parte da mais-valia, e favorecendo por conseguinte a acumulação capitalista. O que sobra do escravismo representa assim um elemento de que o capitalismo se prevalece, e em que freqüentemente se apóia, uma vez que o baixo custo da mão de obra torna possível em muitos casos a sobrevivência de empreendimentos de outra forma deficitários (PRADO JUNIOR, 1966, p.141).
A questão central passou a ser os baixos salários e as condições de trabalho, e não necessariamente a distribuição da terra, pois: este não seria mais o caminho para superar a pobreza dos trabalhadores rurais. Essa leitura resulta de seu entendimento de que o Brasil já nascera como sociedade capitalista, em que pesem as relações de classes antagônicas (empresários/capitalistas dominantes e trabalhadores/assalariados dominados), estando no cerne de sua interpretação as relações sociais características desse modo de produção. Por isso, o autor ressalta o resgate e a construção histórica da economia brasileira, revigorando que as continuidades predominantes e a força das velhas relações coloniais (uma macroestrutura) como pontos a serem superados.
É na aplicação efetiva da legislação trabalhista, sua ampliação e necessária correção em muitos pontos em que se vem mostrando insuficiente e defeituosa, bem como na adoção de providências complementares destinadas a consolidar e tirar todos os efeitos econômicos e sociais da nova situação criada pela melhoria das condições de vida do trabalhador obtidas com a aplicação daquela legislação trabalhista, é nisso sobretudo que deve consistir, no momento atual, a luta pela reforma e renovação de nossa economia agrária. É daí que se poderão esperar os melhores e mais profundos e imediatos reflexos de ordem econômica e social e mesmo política, no conjunto da situação brasileira (PRADO JUNIOR, 1979, p.162).
A conclusão significativa para a questão agrária, que é central ao desenvolvimento do país pela relação com a industrialização e melhoria das condições de vida de boa parte da população, resume-se em torno de “reivindicação, pelos trabalhadores empregados, de condições mais favoráveis de trabalho, como sejam melhor remuneração, segurança no emprego, tratamento adequado, etc” (1966, p. 204). Isso impulsionava, inclusive, o crescimento econômico e a superação do atraso brasileiro.
Ignácio Rangel e a questão agrária
Nascido no Maranhão, em 1914, Rangel formou-se em direito, sendo autodidata em economia. Viveu num período em que se discutiam os planos de desenvolvimento do país, assim como Caio Prado. Uma peculiaridade de sua obra foi integrar de maneira interessante e original Marx, Schumpeter e Keynes em suas análises. Embora atualmente suas contribuições sejam consideradas relevantes no Brasil, fora um intelectual pouco reconhecido em alguns períodos, principalmente devido às divergências políticas. Em 1952, trabalhando como assessor de Vargas, escreve seu livro “A dualidade básica da economia brasileira” (lançado em 1957), após o qual vai para o Chile realizar pós-graduação no âmbito da Cepal (Comissão Econômica para América Latina e Caribe) (BRESSER-PEREIRA, RÊGO, 1993).
Utiliza o método histórico e dialético com base em Marx, mas com liberdade expressiva que lhe permite observar a burguesia sem transpor as fases europeias para a interpretação do Brasil. Ressalta a importância de se entender a ciência econômica como vinculada a processos históricos, nos quais a própria ciência deve passar por atualização, seja dos fatos obscuros ou daqueles que se transformaram em função das mudanças na própria realidade, sem desconsiderar que os antigos escritos, mesmo que errôneos, tinham verdades que serviam àquele tempo, se vistas em seu contexto. Em relação à dialética, percebia o desenvolvimento econômico como eminentemente conflituoso que, ao se desenrolar, traz consigo a síntese nos processos de ciclos e superação das dualidades econômicas e sociais anteriores (BRESSER-PEREIRA, RÊGO, 1993).
Rangel desenvolve suas definições sobre dualidade na sociedade e na economia partindo do modo de produção europeu, à época da empreitada de colonização da América, ao considerar que “no seio de uma sociedade feudal, haviam-se desenvolvido fulcros de capitalismo” (RANGEL, 1981, p.5). Em construção abstrata, o autor encontra a dualidade brasileira na constatação de existência de polos interno e externo, cada um com um lado interno e externo (como uma subdivisão do conceito marxista de relações externa e internas). Essa configuração dualística fundamentava-se essencialmente no seguinte esquema: o polo externo sempre tentar alcançar o nível de desenvolvimento do centro dinâmico, enquanto que o polo interno tentava se igualar ao polo externo, gerando os movimentos dinâmicos de transformação da economia e da sociedade, em forma dialética.
Rangel (1981, p.12) define cinco leis específicas que determinavam as transformações e configurações dos polos às mudanças no modo e nas relações de produção da dualidade brasileira: i) ao se alcançarem as condições para mudanças no modo de produção, o polo externo muda e conserva-se o polo interno com o modo menos evoluído; ii) de maneira alternada, mudam o polo interno e o externo; iii) o polo externo passa para o interno o modo de produção que se transformou anteriormente; iv) o lado externo passa a adotar instituições de um modo de produção mais evoluído, compondo uma união dialética com o lado interno recém criado; v) devido sua formação periférica, as mudanças sempre são provocadas por evoluções no centro dinâmico, afetadas principalmente pelas importações e exportações, caracterizando ciclos. Ressalte-se a importância das classes dirigentes (cada uma em um dos polos dentro do país) que se alternam dinamicamente segundo as cinco leis, interferindo nas relações de comércio com o exterior, como um motor da dualidade polo interno-externo brasileira. Em sua interpretação, o país teve acesso ao primeiro estágio de capitalismo, por meio do polo externo, o mercantil europeu, tendo-se alterado devido a mutações partidas do centro dinâmico para criação do capitalismo mercantil próprio, seguida de rompimento com aquele e se orientando para a formação mais avançada e dinâmica do mundo, a Inglaterra (RANGEL, 1981).
Distintamente de Caio Prado Junior, Ignácio Rangel assume que o Brasil tenha sido feudal quando da colonização. “Visto pelo seu lado interno, o feudo europeu, ao tempo da nossa descoberta, já não mais era feudal, mas uma economia capitalista – o que fazia da Europa uma dualidade –, também o emergente feudo brasileiro não era interidnte feudal, isto é, ainda não era feudal. O Brasil nascia, pois, como uma formação feudal, que associava, em união dialética, um lado feudal com outro pré-feudal” (RANGEL, 1981, p.8). O pré-feudal se devia às relações primitivas existentes (indígenas, quilombolas negros). Nessas condições e nesse período, as fazendas de escravos eram as formas mais dinâmicas de organização do trabalho social da época, sendo essa essencial para o desenvolvimento de atividades produtivas, posto que, não havia ainda condições econômicas para as pequenas explorações agrícolas.
Rangel constrói seu pensamento sobre o Brasil em meio à efervescência dos projetos de industrialização por meio processo da substituição das importações, que na época já se mostrava carente de renovação. Sua análise central está assentada nos termos de acumulação capitalistas e a questão agrária consistia em relacionar campo e indústria ao processo de modernização capitalista. Rangel via duas funções básicas do setor agrícola:
(i) suprir, na quantidade e nas especificações necessárias, os bens agrícolas de que carece o sistema, consideradas as necessidades do seu comércio exterior; e (ii), liberar, reter ou liberar, reter ou mesmo reabsorver mão de obra, conforme as circunstâncias, de acordo com as necessidades das próprias atividades agrícolas e as dos demais setores do sistema econômico (RANGEL, 2000, p.67).
A agricultura era vista, nesses termos, como setor produtivo com fluxos de conhecimentos, técnicas, dentre outras e, ao mesmo tempo, como reguladora da oferta de mão de obra. Rangel via, na primeira função, um conflito com o desenvolvimento ao perceber que aos poucos as funções de transformação eram retiradas do setor agrícola, impulsionando o mesmo a se especializar no fornecimento de bens primários, retirando a autossuficiência característica do setor agrícola, notadamente o camponês em algumas regiões específicas e menos dinâmicas economicamente do país. A especialização e a própria forma como se deu o processo de industrialização tornava muitos agricultores inativos, indo buscar trabalho nas cidades, provocando desequilíbrios na função básica dois, que é de equilibrar oferta de mão de obra para o sistema econômico (RANGEL, 2000).
O autor define a questão agrária como:
(...) algo que acontece no processo de industrialização, que coroa o processo da divisão social do trabalho. Noutros termos, coisas que tradicionalmente a família camponesa – patriarcal ou em condições de servidão em glebas – faziam para seu próprio consumo, devem ser agora compradas com a renda auferida da venda de produtos agrícolas, dado que ela foi privada das condições para cuidar de atividades não agrícolas” A divisão do trabalho traz consigo um enérgico acréscimo da produtividade do trabalho, mas isso não quer dizer que todos os ganhos obtidos através dela e do seu coroamento, isto é, da industrialização, sejam líquidos. Isso somente aconteceria se todos os dias poupados pelo aumento da produtividade do trabalho fossem efetivamente empregados, o que nem sempre acontece (RANGEL, 1986, p.71).
Esse contexto de passagem de uma economia natural e fechada ou mesmo a mudança do mercado externo para o mercado interno, movimentando os centros dinâmicos da economia, requeriam realocações dos fatores de produção para que houvesse adequação nas estruturas de oferta e demanda do sistema econômico. Quer dizer, a questão agrária é relativa principalmente à alocação de mão de obra, liberação ou não para outros setores, e como esses setores respondem por esse excedente. Como os novos setores criados pelo desenvolvimento da indústria capitalista não conseguem absorver a população rural, essa fica deslocada de seu meio produtivo, gerando problemas relativos ao mercado de trabalho e das condições de trabalho.
O autor divide os problemas da crise agrária como próprios da crise e aqueles impróprios da crise agrária. Os próprios da crise agrária são aqueles da superprodução agrícola e superpopulação rural, convergindo em desemprego, e os problemas impróprios estão ligados às questões agrícolas, como a abundância de determinados produtos e falta de outros decorrentes da especialização, desequilíbrios sazonais de mão de obra ocasionados pelo êxodo rural, altos preços das terras devido à busca especulativa (2000). Cabe ressaltar que o autor percebia a existência de diferentes situações nas formações das diversas regiões do país, havendo predominantemente excedente de mão de obra no Nordeste e excedentes de produtos agrícolas em regiões do Sul e Sudeste, devido ao aumento na produtividade e avanço da modernização do campo (1979).
Como soluções para superar os problemas propriamente agrários, Rangel aponta:
i) a mudança na estrutura agrária, como fito de criar condições para mais propícias para a expansão das atividades secundarias e terciarias do complexo rural, reduzindo assim o excedente médio de bens agrícolas levados ao mercado por cada família. ii) Incremento, alternativo ou concomitante, do comercio exterior e da procura urbana por mão de obra, com o objetivo de absorver a superprodução e superpopulação rural (RANGEL, 2000, p.73).
E para os problemas impróprios da crise agrária, propõe:
i) para os problemas da escassez sazonal de mão de obra, nas áreas de monocultura muito desenvolvidas, criar fora das fazendas mas próximas a essas uma propriedade minifundiária familiar, para o assalariado agrícola, destinada a assegurar emprego produtivo; ii) fortalecimento da posição do agricultor frente ao monopsônio-monopólio dos bens agrícolas, por meio de preços mínimos, assistência técnica e infraestrutura; iii) organizar o povoamento das terras em processo de incorporação à economia, usando terras públicas ou pela cobrança de uma razoável contribuição de melhoria (RANGEL, 2000, p.97-98).
A centralidade da questão agrária para Rangel permanece no tempo disponível excedente e não necessariamente nos aspectos fundiários, embora suas propostas convirjam para a recomposição do lote familiar, a fim de devolver a autossuficiência das famílias para produção de autoconsumo, ao mesmo tempo que permite a inserção das mesmas no sistema econômico de outros setores. Também aponta para o problema da especulação do preço da terra como um problema a ser resolvido.
Considerações finais
O tema do desenvolvimento do capitalismo no Brasil em bases nacionais se constituía na pauta principal durante as décadas de 1930 até 1970, quando o liberalismo esteve em relativa crise, dando espaço para debates de projetos nacionais de desenvolvimento. Discutia-se também uma identidade do brasileiro, evidenciada pela crise nacional que caracterizou a Semana de Arte Moderna de 1922. No bojo dessas problemáticas, a questão agrária aparece com central, especialmente devido às relações intrínsecas com o processo de industrialização, que se desenrolava por meio do processo conhecido como substituição das importações. As interpretações dessa relação entre questão agrária e industrialização, bem como as influências positivas e negativas que eram geradas pela agricultura e quais os caminhos a serem tomados davam a tônica das discussões.
A agricultura se mostrava um setor altamente atrasado, com enormes desigualdades, tanto entre classes como entre regiões, expressas pela forte concentração de terras nas mãos de alguns poucos proprietários, esses mesmos detendo os principais recursos públicos e também progresso técnico, que estivera fortemente direcionado para o setor da exportação. As regiões mais dinâmicas economicamente concentravam os avanços, enquanto as regiões mais atrasadas serviam como bolsões de pobreza. As crises de alocação de força de trabalho, e o relativo empecilho da agricultura para a industrialização caracterizavam a questão agrária naquele momento.
Entre os diversos intelectuais envolvidos com as interpretações do Brasil naquele período, Caio Prado Junior e Ignácio Rangel são, sem dúvidas, destaques, tanto pela originalidade metodológica e conceitual, quanto pelos seus pontos de vista divergirem das correntes hegemônicas em sua época.
Caio Prado, bem como Rangel, adota um método de análises marxista, fundamentado nas relações sociais de produção, e teve dois momentos de interpretação da questão agrária, divididos em antes e após 1964. No primeiro momento, interpreta a questão como relativa à estrutura agrária, devida à concentração de terras como sendo principal fonte de problemas, para o qual a questão se resolveria em termos fundiários. No segundo momento, passa a focar as formas de relações de trabalho existentes, ao qual requer tratamento jurídico dentro das normas e regulações da oferta de empregos nos diversos setores e das condições de trabalho. Esse autor foi enfático em afirmar que não houvera no Brasil um sistema que pudesse ser característico de feudalismo e, portanto, não havia “restos feudais”.
Ignácio Rangel deu sua contribuição mais relevante à questão agrária ao desenvolver a teoria da dualidade brasileira. Seu método de análises se assentou nos complexos industriais, pois percebia as mudanças de um sistema fechado de economia para um sistema aberto e especializado voltado para o mercado. Preocupou-se fundamentalmente em estabelecer as funções do meio rural e como essas poderiam contribuir ao processo de desenvolvimento do país, via industrialização. Em sua interpretação, a questão agrária estava relacionada à liberação ou não de mão de obra da agricultura para outros setores da economia. O autor preocupou-se com a superprodução de produtos agrícolas e a superpopulação de trabalhadores rurais sem ocupação, ou com tempo ocioso, ocasionada pelas mudanças estruturais provocadas pelo desenvolvimento das forças produtivas capitalistas no campo.
As contribuições desses autores mostraram-se relevantes, ao longo da história, para compreensão da questão agrária, não só pelas revelações que trazem, mas também pela riqueza dos métodos utilizados. Trata-se de avaliações complexas da realidade brasileira e, como afirmado no início do artigo, parecem indicar um recuo nas propostas mais revolucionárias de reforma agrária, para projetos “mais pertinentes” ao que era possível realizar em meios às condições de mudanças estruturais e profundas transformações muito perversas aos trabalhadores rurais mais pobres.
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