Nara Cristina Ferreira Mendes *
José Matias-Pereira **
Universidade de Brasília
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O presente artigo tem por objetivo analisar possíveis evidências de adoção de contabilidade criativa ao longo da execução orçamentária das Contas Federais no ano de 2014, que justificaram o posicioidnto do Tribunal de Contas da União pela não aprovação das Contas do Governo, de modo a ensejar no processo de impeachment presidencial no Brasil. A metodologia utilizada foi a pesquisa descritiva e documental, posto que o estudo se baseou em documentos normativos, relatório e parecer produzido pela Corte de Contas com fins de assessorar o Congresso Nacional no processo de apreciação das contas do governo brasileiro. Na análise dos dados identificou-se evidências de adoção da contabilidade criativa ao longo do exercício financeiro analisado.
Palavras-Chave: Contabilidade Criativa, Prestação de Contas, Impeachment, Brasil.
The objective of this article is to analyze possible evidences of adoption of creative accounting during the budgetary execution of the Federal Accounts at the year 2014, which justified the position of the Federal Audit Court for the non approval of the Government Accounts, so as to induce in the process of presidential impeachment in Brazil. The methodology used was the descriptive and documentary research, since the study was based on normative documents, report and legal opinion produced by the Court of Auditors in order to advise the National Congress in the process of appreciation of the accounts of the Brazilian government. In the data analysis, evidences of adoption of creative accounting during the financial year analyzed were identified.
Keywords: Creative Accounting, Accountability, Impeachment, Brazil.
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Nara Cristina Ferreira Mendes y José Matias-Pereira (2018): "A adoção de contabilidade criativa na execução orçamentária e financeira brasileira: uma prática que resultou em impeachment presidencial", Revista Observatorio de la Economía Latinoamericana, (febrero 2018). En línea:
//www.eumed.net/2/rev/oel/2018/02/adocao-contabilidade-criativa.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/oel1802adocao-contabilidade-criativa
Após 80 anos de apreciação de Contas Goveridntais, o Tribunal de Contas da União (TCU), em outubro de 2015, recomendou a reprovação das Contas referente ao exercício de 2014. Cabe ressaltar que desde 1937 o Tribunal não se posicionava pela reprovação das Contas Goveridntais, fato que se destaca no cenário político atual e enseja que pesquisas voltadas a área de contabilidade, finanças e gestão pública se fortaleçam com fins de estudar fenômenos que ocorrem nas contas públicas, com o enfoque acadêmico e sem viés político para contribuir efetivamente ao aperfeiçoamento da contabilidade pública brasileira.
Sendo assim, este artigo possui o objetivo de analisar possíveis evidências de adoção de contabilidade criativa ao longo da execução orçamentária e financeira das Contas Federais, referente ao exercício de 2014, tendo em vista o posicioidnto do TCU pela não aprovação das Contas do Governo, fato que ensejou no processo de impeachment presidencial brasileiro. Para Matias-Pereira (2006, p.4) uma boa governança pública, à semelhança da corporativa, está apoiada em quatro princípios: relações éticas; conformidade, em todas as suas dimensões; transparência; e prestação responsável de contas. Neste estudo, o foco será a prestação responsável de contas de modo a refletir a eficiência das contas públicas.
Conforme divulgado pela Corte de Contas, identificou-se cerca de 40 bilhões em pedaladas fiscais. O Governo utilizou de recursos do Banco do Brasil (BB), Caixa Econômica Federal (CEF) e Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) para financiar programas sociais do Governo. Ademais, o governo teria deixado de contingenciar cerca de 38 bilhões. Considerando que ao longo dos anos o TCU vinha posicionando-se pela aprovação das contas, mas sempre com ressalva, este trabalho pretende analisar se houve a utilização de contabilidade criativa ao longo da execução orçamentária do ano de 2014.
Segundo Relatório Técnico e Parecer TCU relativo às contas do ano de 2014, a Presidente teria afrontado a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), a Constituição Federal de 1988, a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) e o Decreto que rege as aplicações de recursos do Tesouro ao longo da execução orçamentária e financeira das contas públicas. Contudo, a má gestão fiscal do país precisa ser evitada, pois provocam sérios desajustes nas finanças públicas do país (MATIAS-PEREIRA, 2017, p. 3).
Tais fatos serão averiguados ao longo deste trabalho sob o enfoque contábil, posto que tais praticas, se ocorridas, podem ter se valido da contabilidade criativa para tal. Conforme relatório da Corte de Contas, o Governo atrasou repasse financeiro às instituições financeiras. Esses recursos seriam destinados ao pagamento de despesas de responsabilidade da União (bolsa família, abono salarial, seguro-desemprego, subsídios de financiamento e benefícios previdenciários).
Diante da necessidade de compreender, sob o aspecto técnico e contábil, os procedimentos adotados ao longo da execução orçamentaria-financeira, bem como o alcance da utilização da contabilidade criativa, este estudo se justifica pela necessidade da sociedade em compreender tal tema relacionado ao cenário econômico atual, a partir de manifestações da Corte de Contas. O escopo do Relatório Técnico e Parecer TCU abrangeu a dívida do Tesouro Nacional com bancos públicos e o Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), as chamadas “pedaladas fiscais”, bem como a edição de Decretos Orçamentários. Ambos os casos são tratados pela Lei n. 1.079/50 que define os crimes de responsabilidade e regula o respectivo processo de julgamento.
A LRF, Lei n. 101/00, proíbe a realização de operações de crédito entre o Governo e as Instituições Financeiras Federais (IFF). Já a Lei do Impeachment considera este fato como crime de responsabildiade, sujeito a impedimento caso efetue operação de crédito sem autorização legal. Outro tema amplamente discutido é a emissão de Decretos Orçamentários no ano de 2014, foram 7 (sete) Decretos autorizando créditos suplementares. Para o Tribunal houve violação da Lei Orçamentária Anual (LOA), que condicionava a autorização de abertura de créditos somente em caso de alcance da meta de resultado primário constante na LDO. Ademais, dentre os quesitos para caracterizar o crime de responsabilidade, encontrasse o fato de atentar contra a lei orçamentária.
O presente artigo encontra-se estruturado em 6 (seis) seções, quais sejam: introdução, referencial teórico, metodologia, logo após consta a quarta sessão que trata do Relatório e Parecer Técnico TCU, seguido da quinta sessão que detalha a análise quanto as evidências de contabilidade criativa. Por fim, a sexta sessão aborda as considerações finais.
Para Niyama et al. (2015) a maioria dos pesquisadores que tratam do tema utilizam os termos contabilidade criativa e gerenciamento de resultados como sinônimos. A expressão “contabilidade criativa” é preferida ou comumente utilizada na Europa, enquanto “gerenciamento de resultados” é utilizada com maior frequência nos Estados Unidos. O tema vem sendo difundindo nos últimos anos e recebido contribuições de vários pesquisadores, tais como: Jones (1991), Dechow (1995), Hribar e Collins (2002), kothari et al. (2005), dentre outros. Apesar de alguns teóricos defenderem que a contabilidade criativa está associada à fraude há um limiar entre ambos os termos.
Segundo Amat et al. (1997) a contabilidade criativa é utilizada para descrever um fato no qual contadores utilizam seus conhecimentos das normas contábeis para manipular as contas na contabilidade de uma empresa. Sendo assim, o gerenciamento de resultados ocorre quando os agentes usam julgamento sobre relatórios financeiros e na estruturação de operações contábeis para alterar os relatórios financeiros, com fins de aparentar situação financeira distinta da real. Tal fato pode ensejar em viés na avaliação dos stakeholders sobre o desempenho econômico da empresa e influenciar os resultados contratuais que dependem dos números contábeis reportados (HEALY; WAHLEN, 1999). Para Watts e Zimmerman (1986) e Healy e Palepu (1993) os gestores utilizam de seu poder discricionário para melhorar e aperfeiçoar o valor informativo dos números contábeis. O fenômeno da contabilidade criativa tem sido o resultado da flexibilidade de certas normas contábeis, a qual facilita a manipulação e engano da informação (KRAEMER, 2004, p. 3).
Quando os normativos legais abrem margem para a adoção de mais de um procedimento contábil, ambos respaldados por lei, há a possibilidade da aplicação da contabilidade criativa visto que existe mais de uma possibilidade de registro de determinado fato. Tal gerenciamento pode transparecer ao usuário um aspecto positivo para a empresa, seja ela do setor privado ou público. O processo decisório no governo é um processo político em que estão presentes jogos de interesse, conflitos de opiniões, negociações, atendimento a demandas de comunidades mais organizadas, entre outros aspectos (NIYAMA; SILVA, 2013). Sendo assim, os interesses individuais amplamente estudados por meio da teoria da agência devem ser geridos pelos agentes políticos para que suas tomadas de decisões alcancem benefícios para a sociedade de maneira estratégica, eficiente e transparente.
O esforço para controlar a corrupção deve ser uma política permanente do Estado brasileiro, suficientemente ágil para incorporar novas formas de ação e novos atores sempre que necessário. Esses esforços para terminar com a corrupção irão contribuir de maneira significativa para a preservação do Estado de Direito e da democracia no país (MATIAS-PEREIRA, 2003). Ao Poder Público cabe estabelecer normativos que regulem a execução orçamentária e financeira de forma transparente. Ademais, cabe ao governo estruturar e permitir o funcioidnto da sociedade de maneira adequada, através da manutenção de uma infraestrutura administrativa e de sistema legal (NIYAMA; SILVA, 2013).
A LRF representa um código de conduta aos agentes públicos com fins de aperfeiçoar a administração dos recursos públicos por seus gestores. Contudo, apesar de ter uma grande influência na execução orçamentária, não se pode afirmar que a LRF seja uma inovação na contabilidade pública. A introdução de mecanismos para evitar gastos públicos excessivos não afeta, de forma direta, a forma como se faz a contabilidade pública. Entretanto, isto afeta o comportamento dos administradores públicos (NIYAMA; SILVA, 2013).
Com a adoção nas normas internacionais de contabilidade, os países estão sendo obrigados a refletir sobre os procedimentos contábeis, deixando de apenas operacionalizar procedimentos preestabelecidos, por outro lado, tamanha reflexão e debate sobre a norma, de modo a preservar a essência sobre a forma, possibilita maneiras distintas de se efetuar os registros contábeis. Nesse sentido, há que acrescentar a própria flexibilidade presente nas normas contabilísticas a depender de um país ou outro, que permitem utilizar diversos critérios para contabilizar um mesmo fato econômico (LAÍNEZ; CALLAO, 1999).
Por fim, segundo Niyama (2014, p. 201), com o processo contínuo de convergência contábil, os modelos de mensuração da qualidade da informação contábil terão oportunidades de serem aprimorados, principalmente o que tange ao desenvolvimento de modelos mais explicativos sobre o gerenciamento de resultados contábeis.
O presente estudo trata de uma pesquisa descritiva e documental por observar e descrever fenômenos contábeis identificados no âmbito da contabilidade pública aplicada na administração pública, evidenciando a correlação entre tais fenômenos e a contabilidade criativa. O estudo apresenta caráter qualitativo e efetua uma análise de conteúdo dos dados constantes no Relatório e Parecer Técnico do TCU, associando tais informações com a teoria contábil.
No que tange à abordagem reflexiva entre a contabilidade criativa e as os procedimentos contábeis na administração pública, este estudo permitiu fortalecer o conhecimento contábil e as teorias inerentes para o desenvolvimento das pesquisas nesta área de atuação.
No que tange às competências do TCU, ressalta-se o disposto na Constituição Federal de 1988, art. 71, inciso I, no qual cabe à Corte de Contas apreciar as contas prestadas pelo Presidente da República e emitir Parecer Prévio, cuja manifestação se restringe a um aconselhamento ao Congresso Nacional, a quem compete julgar as contas prestadas pelo Presidente da Republica, conforme disposto no art. 49, inciso IX, da Carta Magna. Diante da análise do Relatório e Parecer Prévio sobre as Contas do Governo da República, o referido Parecer, p. 206, conclui pela ocorrência da seguinte irregularidade:
Inobservância do princípio da legalidade (art. 37, caput, da Constituição Federal), bem como dos pressupostos do planejamento, da transparência e da gestão fiscal responsável (art. 1º, §1º, da Lei Complementar 101/2000), em face da omissão de registro de transações primárias deficitárias da União junto ao Banco do Brasil, ao BNDES e ao FGTS nas estatísticas dos resultados fiscais de 2014.
Ademais, como conclusão da análise do TCU, p. 207, identificou-se:
Conforme demonstrado nos itens 2.3.5, 2.3.6, 3.3.3.7, 3.5.5.2, 3.5.3 e 3.5.4.1 deste Relatório, irregularidades graves – envolvendo o endividamento público, os resultados fiscais, a execução orçamentária da despesa, a limitação de empenho e movimentação financeira e a inscrição de despesas em restos a pagar no exercício de 2014 –, foram constatadas por este Tribunal no âmbito do Acórdão 825/2015, reiterado pelo Acórdão 992/2015, ambos do Plenário. Tais constatações denotam o descumprimento de normas, princípios e pressupostos essenciais preconizados na LRF (planejamento, transparência e gestão fiscal responsável), na Lei 4.320/1964 (universalidade orçamentária) e na Constituição Federal (legalidade e moralidade), o que enseja a emissão de alertas nas presentes Contas. No tocante ao achado abordado no item 3.5.3, relativo à omissão no dever de limitação de empenho e movimentação financeira (falta contingenciamento de despesas discricionárias da União), no montante de pelo menos R$ 28,54 bilhões, por ocasião da edição do Decreto 8.367/2014, importante registrar que se trata de irregularidade de responsabilidade direta da Presidente da República, no exercício do Poder Regulamentar, em vista do disposto no art. 84, inciso V, da Constituição Federal, segundo o qual compete privativamente à Presidente da República expedir decretos e regulamentos para a fiel execução da lei.
Diante do exposto, observa-se práticas inadequadas relacionadas a: operações de crédito, registros dos passivos e de transações primárias e deficitárias da União, execução de despesa sem autorização orçamentária, ausência de contingenciamento de despesas discricionárias quando necessário e inscrição de despesas em restos a pagar de forma irregular. Sendo assim, o estudo se restringirá aos itens do Relatório e Parecer Técnico TCU (2015) mencionados na manifestação final destacada acima.
Os fatos ora citados ocorrem mediante registros contábeis, que caso utilizados com o intuito de aparentar uma situação financeira positiva, podem caracterizar a prática de contabilidade criativa. Assim, ao longo deste artigo, tais itens serão analisados com o intuito de evidenciar indícios de procedimentos contábeis eivados de contabilidade criativa.
Ao analisar a Prestação de Contas da Republica, o TCU identificou em seu Relatório, p. 36, que a União deixou de registrar passivos no montante de R$ 40 bilhões, com instituições financeiras, quais sejam: Banco do Brasil - BB, Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS e Banco Nacional do Desenvolvimento - BNDES.
Ora, se a dívida existe, cabe ao gestor público efetuar o competente registro contábil como passivo da União, bem como registrar as condições de pagamento do débito. Além da ausência do registro ensejar no descumprimento da legislação, o fato de se omitir a informação gerou uma “impressão” que a dívida não existia, estando em principio as Contas Públicas em situação favorável ao não registrar o débito de R$ 40 bilhões, tendo em vista que tal registro impactaria diretamente no Resultado Fiscal e no Relatório de Gestão Fiscal, referente ao ano de 2014. Tal fato além de indicar a utilização de contabilidade criativa na gestão pública infringe à LRF ao faltar com a transparência, bem como fere o princípio constitucional da legalidade.
Conforme apurado pelo Acórdão n. 825/2015-TCU-Plenário, a União efetuou operações identificadas como operações de créditos (incluindo caracteristicas como período de duração e aplicação de juros e encargos), contudo, não cumpriu com os requisitos legais para tanto. Tais operações foram realizadas junto à CEF, FGTS e BNDES.
Foi identificado que a CEF concedeu adiantamentos à União com fins de cobrir despesas destinadas a manter as seguintes atividades sociais, quais sejam: bolsa família, seguro-desemprego e abono salarial. Os recursos do FGTS foram destinados a manter o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) e os recursos relativos ao BNDES foram destinados ao Programa de Sustentação do Investimento. Segundo manifestação do TCU, p. 39, em seu relatório:
De acordo com o TC 021.643/2014-8, entre agosto de 2013 e novembro de 2014, o saldo da conta de suprimento do Seguro Desemprego ficou negativa em quinze dos dezesseis meses analisados, e a conta de suprimento relativa ao Abono Salarial ficou negativa em onze dos dezesseis meses em questão. Dessa forma, a Caixa utilizou recursos próprios para realizar o pagamento desses benefícios. Mais uma vez, a União realizou operação de crédito, e mais especificamente, uma operação de crédito por antecipação de receita destinada a atender insuficiência de caixa (art. 38 da LRF), uma vez que não foi realizada com o objetivo de iniciar novos gastos orçamentários.
As operações realizadas se enquadraram no inciso III, art. 29 da LRF, ou seja, as operações foram definidas como operações de crédito. Contudo, não foram observados os requisitos legais para se efetivar as operações de crédito. Neste caso, também verificou-se a inobsevância do art. 37 da Constituição Federal de 1988, princípio da legalidade, bem como aos pressupostos do planejamento, transparência e da gestão fiscal responsável, conforme estabelecido pela LRF, art. 1º, §1º.
Quanto a evidência de contabilidade criativa, primeiramente, cabe destacar que apesar das contas de repasse da União terem ficado com saldo negativo, não houve interrupção do fornecimento do programa, fazendo com que os operadores deixassem de realizar suas operações de intermediação e assumissem a competência da União assumir a dívida não arcada pela União, ademais, o Contrato previa a inexecução caso o repasse da União não ocorresse.
Logo, considerando que tanto a CEF, como o FGTS e o BNDES mantiveram suas práticas, dessa forma, pode se considerar que tal medida ocorreu de forma a transparecer que os recursos estavam sendo repassados e/ou que não haviam problemas financeiros ao longo da execução dos programas e compromissos sociais. Dessa forma, pode-se afirmar a existência de indícios da prática da contabilidade criativa, tendo em vista que o fato não ocorreu apenas com um ente, mas com todos, o que pode levar a crer que tal prática ocorreu intencionalmente.
Neste item, consta no Relatório do TCU, p. 116, a identificação que o PMCMV manteve os subsídios goveridntais mesmo diante da ausência de repasse financeiro da União para tanto. Ocorre que a Lei n. 11.977/2009 de 07 de julho de 2009 dispõe, em seu art. 2, a necessidade de disponibilidade orçamentária e financeira ao determinar que “para a implementação do PMCMV, a União, observada a disponibilidade orçamentária e financeira [...]”. Contudo, não houve interrupção da oferta do subsídio habitacional diante da ausência de repasse financeiro da União. Ademais, houve registro de transações contábeis de forma equivocada, conforme segue trecho extraído do Relatório e Parecer Técnico do TCU (2015, p. 116):
Com efeito, a cada financiamento concedido no âmbito do PMCMV, surge, para a União, a obrigação de entregar recursos financeiros ao respectivo mutuário pessoa física. Como o pagamento dessa despesa tem sido custeado pelo FGTS, restou inquinada a destinação originária das dotações constantes das ações orçamentárias 00CW – Subvenção econômica destinada a implementação de projetos de interesse social em áreas urbanas, 00CX – Subvenção econômica destinada a implementação de projetos de interesse social em áreas rurais e 0E64 – Subvenção econômica destinada a implementação de projetos de interesse social em cidades com menos de 50.000 habitantes. Como consequência, tem-se o montante de R$ 1,367 bilhão inscrito em restos a pagar não processados ao final de 2014, cuja regularidade é analisada no item 3.5.4.1 deste Relatório. Considerando a sistemática adotada para pagamento dos subsídios do PMCMV, as dotações orçamentárias deveriam ter sido alocadas na fonte “46 – Operação de Crédito Interno”, que reflete adequadamente a origem dos recursos utilizados na cobertura das subvenções, qual seja, as disponibilidades do FGTS, adiantadas, em caráter oneroso, à União nos termos do art. 82-A da Lei 11.977/2009.
Diante de tal manifestação e da análise quanto a possível existência de contabilidade criativa, a ocorrência do registro de forma equivocada pode ser um indício da não contabilização de forma fidedigna ao fato ocorrido. O fato do PMCMV manter suas atividades, mesmo diante da ausência de recursos financeiros para tanto pode ser compreendida como intenção goveridntal de transparecer que os recursos estavam sendo repassados ou que não havia problema financeiro ao longo da execução dos programas e compromissos sociais. Tal medida também apresenta indícios da prática da contabilidade criativa.
Cabe ainda ressaltar que as operações de crédito decorrentes das atividades do PMCMV são de natureza orçamentária, logo, necessitam de autorização legislativa para sua execução. Diante de tal fato, identifica-se ainda o descumprimento da LRF, art. 32, inciso II, bem como a Lei n. 4.320/1964. Quanto aos princípios constitucionais, houve infração dos princípios da legalidade e do princípio orçamentário da universidade ao realizar despesa não autorizada em Lei Orçamentária.
Conforme evidenciado no Relatório e Parecer Técnico TCU (2015) o Banco Central do Brasil (BACEN) não evidenciou, no cálculo do resultado fiscal, as transações primárias e deficitárias da União incorridas em operações de crédito junto ao FGTS e às instituições financeiras: BB e BNDES. Destaca-se que tais registros causam impacto direto no cálculo da Dívida Líquida do Setor Público (DLSP), de modo que a DLSP, oficialmente divulgada para o ano de 2014, foi divulgada com subestimação de R$ 7,11 bilhões. Tal omissão ensejou no desequilíbrio das contas públicas diante da não prevensão de riscos. O detalhamento deste déficit segue na Tabela 1:
Tal passivo omitido provavelmente seria registrado em momento posterior, quando do pagamento, e não no momento em que o déficit foi incorrido obedecendo o fato gerador. Diante de tais irregularidades observa-se o descumprimento do princípio constitucional da legalidade, bem como dos pressupostos da LRF, quais sejam: planejamento, transparência e gestão fiscal responsável.
Diante de tal fato, o Ministério Público (MP) junto ao TCU considerou que o intuito foi o de “maquiar” as contas do resultado primário em cerca de R$ 7,11 bilhões. Ora, diante da literatura a maquiagem das contas públicas nada mais é do que a manipulação e gerenciamento de resultados, ou seja, o Poder Público reconhecer expressamente a existência de contabilidade criativa neste item do Relatório.
No que tange à Programação Orçamentária e Financeira e o Contingenciamento na Administração Pública, cabe citar o art. 9º, da LRF, que prevê medidas a serem adotadas sobre a execução orçamentária e o cumprimento das metas, conforme segue:
Art. 9o Se verificado, ao final de um bimestre, que a realização da receita poderá não comportar o cumprimento das metas de resultado primário ou nominal estabelecidas no Anexo de Metas Fiscais, os Poderes e o Ministério Público promoverão, por ato próprio e nos montantes necessários, nos trinta dias subseqüentes, limitação de empenho e movimentação financeira, segundo os critérios fixados pela lei de diretrizes orçamentárias.
[...]
§ 2o Não serão objeto de limitação as despesas que constituam obrigações constitucionais e legais do ente, inclusive aquelas destinadas ao pagamento do serviço da dívida, e as ressalvadas pela lei de diretrizes orçamentárias. (grifo nosso)
O dispositivo constitucional prevê os casos onde faz-se necessária a realização de limitação de empenho (contingenciamento), bem como estabelece como exceção apenas as despesas destinadas ao pagamento da dívida, dada a particularidade de determinada despesa. Cabe ressaltar que o art. 51 da LDO dispõe que nos casos de limitação de empenho e movimentação financeira cabe ao Poder Executivo apurar o montante necessário a ser contingenciado e informar os demais Poderes. Sendo assim, a Tabela 2 apresenta as programações executadas ao logo do ano de 2014, com fins de alcançar um superávit primário de R$ 116 bilhões de reais.
Conforme dados disponíveis na Tabela 2, observa-se que a receita e a despesa estabelecidas pela LOA 2014 foram maiores que as constantes nas demais colunas. A projeção para o PIB era de 3,8%, contudo, foi realizado apenas 0,1% ao final do exercício. Ressalta-se ainda que inicialmente o resultado da previdência apresentava um déficit estimado de 30 bilhões, as projeções foram indicando aumento no déficit, sendo que o valor incorrido foi de 57 bilhões de reais. A desoneração de tributos e despesas com o PAC foi estimada em 58 bilhões, contudo, tal redução poderia ter alcançado o limite máximo autorizado pela LDO de 67 bilhões.
Com a edição do Decreto n. 8.197/2014 de Programação Financeira do Poder Executivo o governo apresentou estimativas mais conservadoras, com previsão do PIB para 2,5%, com redução das receitas (em 10 bilhões) e das despesas (em 4 bilhões). A estimativa do déficit da previdência aumentou para 40 bilhões e nova desoneração de tributos e despesas do PAC em 35 bilhões, mantendo tal estimativa até o 5º Decreto, o qual alterou o valor para 106 bilhões.
Quanto ao contingenciamento, este foi estimado pela primeira vez, no montante de R$ 30,5 bilhões, contudo, somente para o Poder Executivo. Posteriormente, por meio do Decreto n. 8.216, de 24 de março de 2014, o contingenciamento aumentou em 0,3 bilhões para os demais Poderes, mantendo os 30,5 bilhões exclusivamente ao Poder Executivo. Cabe destacar que estes foram os únicos contingenciamentos ocorridos ao longo do ano de 2014, não se fazendo menção ao contingenciamento dos demais 4 (quatro) Decretos publicados ao longo do exercício financeiro.
Ressalta-se que segundo o Relatório e Parecer Técnico TCU (2015, p. 180), “o montante de contingenciamento de R$ 28,5 bilhões seria suficiente desde que as projeções de receitas e despesas primárias contidas nos relatórios de avaliação bimestrais fossem aderentes à realidade do cenário macroeconômico [...]. Caso o Executivo tivesse adotado tempestivamente as providências cabíveis, a restrição orçamentária e financeira poderia ter sido revertida em momento posterior, quando da publicação da Lei 13.053/2014”. Desse modo, resta claro que eventuais medidas estratégicas poderiam ter revertido, pelo menos em parte, a crise financeira instada no cenário brasileiro caso fossem tempestivas.
Neste item percebe-se que os dados contábeis refletiam o cenário econômico existente, posto que medidas técnicas, operacionais e especializadas se adotadas tempestivamente poderiam ter amenizado a crise atual, tratando-se de omissão do Poder Executivo ao deixar de promover a limitação de empenho e movimentação financeira, caracterizando infração administrativa prevista na Lei de Crimes Fiscais (inciso III, art. 5º, da Lei n. 10.028/2000). Quanto à análise de evidência de contabilidade criativa, o ato de não fazer o contingenciamento até certo ponto não se caracteriza como intenção de manipulação dos dados contábeis, contudo a decisão de fazer ou não reflete no gerenciamento de resultados de modo a apresentar indícios de ocorrência de gerenciamento neste caso, tanto que, mesmo ao extrapolar o limite para a necessidade de contingenciamento o gestor optou por não contingenciar mesmo obtendo o dever de fazê-lo.
Este item trata da inscrição irregular em restos a pagar não processados de valores a serem pagos ao PMCMV, no montante de R$ 1,367 bilhão. Esta ação deveria ser executada por meio do Programa Temático 2049 - Moradia Digna, por meio das ações 00CW 1, 00CX2 e 0E64 3, contudo, identificou-se que desde o ano de 2010 os repasses ao PMCMV ocorreram mediante operação de crédito interno junto ao FGTS. Ocorre que conforme registros no SIAFI gerencial houve inscrição em restos a pagar não processados nas ações dos programas, conforme Tabela 3:
A questão é o fato de inscrever, em restos a pagar, despesas já pagas com recursos do FGTS. Ora, a dívida da União não mais é com o PMCMV, posto que os recursos previstos foram repassados por meio de operação de crédito junto ao FGTS, cabendo a União restituir os valores a este Fundo.
Ressalta-se ainda que tais inscrições em restos a pagar não cumpriram os requisitos exigidos pelo art. 35 do Decreto n. 93.872/1986, ou seja, os registros foram efetuados sem respaldo legal. No que tange ao aspecto contábil, observa-se que houve grave infração as normas da despesa pública, bem como descumprimento de normativos legais relativos à gestão orçamentária. Quanto a evidência de contabilidade criativa, neste caso, pode-se afirmar que houve o intuito de registrar valores ao programa, o qual já havia recebido seus recursos integralmente, tal registro aparentou que o programa obtinha mais recursos a perceber, o que pode ter ocorrido de forma intencional como mecanismo de gerenciamento de resultados.
Este artigo buscou efetuar uma análise técnica e imparcial do Relatório e Parecer TCU (2015) relativo às contas públicas goveridntais do ano de 2014, observando aspectos contábeis analisados pelo Tribunal de Contas sobre as contas públicas, no intuito de identificar evidências de contabilidade criativa ao longo da execução orçamentária que ensejou no impeachment da Presidente da República.
Ao longo da análise dos itens que foras destacados pela Corte de Contas, bem como a recomendação pela não aprovação das contas goveridntais do ano de 2014, foram identificadas medidas administrativas que evidenciaram a prática da contabilidade criativa no âmbito da Contabilidade Pública, confirmando a hipótese de existência de gerenciamento de resultados estabelecida inicialmente. Algumas medidas extrapolaram o gerenciamento de resultados em si caracterizando descumprimento a normativos legais que respaldaram o processo de impeachment.
Sendo assim, este artigo evidenciou quais aspectos contábeis se encontram vulneráveis ao gerenciamento de resultados, posto que apesar o engessamento da máquina pública em todos os itens analisados do Relatório e Parecer Técnico (2015) ocorreram procedimentos sistêmicos que refletiram evidências de gerenciamento de resultados por parte do gestor público, no intuito de aparentar situação economicamente favorável ou desfavorável.
Para pesquisas futuras sugerimos a análise detalhada dos dados contábeis por meio de modelos empíricos, com fins de confirmar o volume de gerenciamento de resultados sobre os fatos contábeis evidenciados ao longo deste estudo.
REFERÊNCIAS
AMAT SALAS, O; MOYA, S; BLAKE, J. La Contabilidad Creativa, Partida Doble, n.79, p. 24-32, junio 1997.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 10 out 2017.
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