Kiara Lubick Silva Maldaner
Alberto Akama
Universidade Federal do Tocantins, Brasil
kiaralubick@yahoo.com.br
Resumo
A matriz energética brasileira destaca-se em nível mundial pelo predomínio de fontes renováveis, especialmente pela geração garantida pelas usinas hidrelétricas. No entanto, a implantação destes empreendimentos resulta em impactos socioambientais irreversíveis, afetando especialmente populações tradicionais, ribeirinhos e pequenos agricultores com o deslocamento compulsório das áreas onde vivem nas margens ou proximidades dos rios onde serão construídas as hidrelétricas. Este artigo analisa o processo de perdas materiais e simbólicas sofridas por famílias atingidas pela Usina Hidrelétrica-UHE-Peixe Angical e transferidas para os assentamentos Piabanha I e Piabanha II, localizados no município de São Salvador do Tocantins, no Estado do Tocantins, na região norte do Brasil. Os dados foram obtidos por meio de entrevistas com os impactados, o que permitiu identificar dificuldades na manutenção dos meios de subsistência, quebras de vínculos afetivos, além de alterações na relação com a natureza e das práticas cotidianas dos povos afetados.
Palavras-chave: Hidrelétricas; UHE Peixe Angical; Perdas simbólicas, reassentamentos; Atingidos por barragens, Estado do Tocantins.
The impacted by dams in the Tocantins river: symbolic and material losses of the affected people by the Peixe-Angical Hydroelectric Plant.
Abstract
The Brazilian energy matrix stands out in a worldwide level due to the prepoderance of renewable sources, mainly by the generation ensured by the hydroelectric plants. Nevertheless, the implementation of those enterprises result in irreversible socio-environmental impacts, affecting mostly the traditional populations, reparian communities and small farmers, with the compulsory displacement from the areas where they live, near or on the banks of the rivers, where the hydroelectric plants are going to be built. This article analyses the process of material and symbolic losses endured by the families who are affected by the Peixe-Angical -UHE – Hydroelectrical Plant and transferred to the Piabanha I and Piabanha II settlements, located in the town of São Salvador do Tocantins, in the state of Tocantins, in the north region of Brazil. The data were obtained through interviews with the ones who were impacted, what made it possible to identify the difficulties on the maintenance of the subsistence; the breaking of affectional bonds, besides the variances on the relationship with nature environment and the daily practices of the affected people.
Keywords: Hydroelectric; UHE Peixe Angical; Symbolic losses; resettlements; affected by dams, State of Tocantins
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Kiara Lubick Silva Maldaner y Alberto Akama (2019): “Os atingidos por barragens do rio Tocantins: perdas simbólicas e materiais dos afetados pela UHE Peixe Angical”, Revista DELOS Desarrollo Local Sostenible (junio 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/delos/34/uhe-peixe-angical.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/delos34uhe-peixe-angical
O ano de 2006 marcou o início de um processo de intensas mudanças na vida de 48 famílias ribeirinhas do rio Tocantins. Impactadas pela Usina Hidrelétrica Peixe Angical - UHE Peixe Angical, estes povos foram transferidos das áreas onde viviam, localizadas no entorno do povoado do Retiro, no município de São Salvador do Tocantins, no sudeste do Estado do Tocantins, Brasil, para dois assentamentos rurais organizados pelo consórcio construtor da hidrelétrica para acomodar os impactados.
A partir daí, ficou para traz toda uma relação social, cultural e com ambiente, especialmente com o rio Tocantins, construída ao longo dos anos nos quais os mecanismos de subsistência eram providos pelo trabalho na terra com a agropecuária de subsistência e a pesca artesanal. À frente, deslocadas do ambiente tido como seu homelad (Little, 2004), estas famílias se deparam com os inúmeros desafios de enfrentar o desconhecido em um lugar novo, de terras ainda por serem desbravadas, com solo e características que exigiam conhecimento técnico e adaptação. Não havia o que fazer, a não ser empenhar-se em reconstruir suas vidas nos assentamentos.
Vinte e seis famílias foram reassentadas no Piabanha I e outras 22 no assentamento Piabanha II, ambos localizados na zona rural do município de São Salvador. Este artigo analisa como estas famílias se adaptaram à nova realidade a que foram submetidas ao serem realocadas nestes assentamentos. Verificam-se os impactos sobre à relação com o ambiente, sobre os modos de subsistência e sobre o convívio social enfrentados pelos atingidos diante de uma mudança nos seus hábitos e condições de vida que não partiu de uma escolha pessoal, mas sim em função de um projeto de desenvolvimento que priorizou a implantação da UHE Peixe Angical.
A capacidade instalada para a geração de energia elétrica no Brasil em abril de 2018 atingiu 159.422 MW (BRASIL, 2018). A fonte hidráulica, historicamente a principal fonte produtora do país e responsável por 63,7% do total de energia elétrica gerada, apresentou neste período capacidade instalada para a produção de energia elétrica de 101.547MW, o que representa um acréscimo de 2,8% em relação à capacidade instalada de 2017 (BRASIL, 2018), fruto da entrada em operação de novos empreendimentos .
Atualmente, o Brasil conta com 1.391 usinas hidráulicas, sendo 222 UHEs - Usinas Hidrelétricas e 1.125 PCHs e CGH - Pequenas Centrais Hidrelétricas e Centrais Geradoras Hidrelétricas, além de 45 CGH GD – Centrais Geradoras Hidrelétricas de Geração Distribuída. Entre estas, as UHEs apresentam capacidade instalada de 95.794 MW (BRASIL, 2018).
Este desempenho das UHEs é resultado de uma política energética que orientou o planejamento e investimentos no setor. Bermann (2007) ressalta que a opção pela hidroeletricidade deu-se em função das vantagens comparativas das UHEs em relação a outras fontes geradoras de energia. Contribuiu para isso o fato do Brasil possuir um território com um vasto potencial hídrico para ser explorado. “O aproveitamento da água para a geração de energia elétrica encontrou no território brasileiro um importante campo para o desenvolvimento e consolidação da engenharia nacional” (BERMANN, 2007, p. 139).
Só que ao longo da história, junto com a energia elétrica, também foram gerados inúmeros impactos socioambientais. O deslocamento de pessoas, interferências sobre o modo de vida de populações indígenas e povos tradicionais, perdas de espécies de animais e modificações de paisagens (BANIHABIB & FORGHANI, 2017); (KIRCHHERR & CHARLES, 2016); (TUNDISI, 2007) entre diversos outros problemas, acumularam-se a cada implantação de uma nova UHE, pondo em xeque a sustentabilidade destes empreendimentos.
A princípio, os impactos socioambientais formaram-se como sequelas da inexistência de uma política ambiental voltada e atenta às peculiaridades do setor. Moretto et al frisam que até o final da década de 80 “as soluções para a implantação de usinas possíveis aos tomadores de decisão no período foram compostas por um alto potencial hidrelétrico amplamente disponível no espaço e por um baixo grau de disciplina e rigor do uso e ocupação do espaço” (MORETTO ET AL, 2012, p. 147).
Trecho de uma entrevista, resgatado pelo pesquisador Carlos Vainer (2007), concedida em 1988 por uma representante da Eletrobrás, empresa estatal então responsável pelo setor elétrico, evidencia a tragédia social provocada pela implantação das UHEs no País: “realmente as nossas hidrelétricas foram construídas sem qualquer preocupação com a qualidade de vida da população e com o meio ambiente, gerando dessa forma desastres calamitosos do ponto de vista social e ecológico” (JORNAL DA TARDE, 11.5.1988 apud VAINER, 2007, p. 121).
No entanto, mesmo mais adiante quando o governo, pressionado pela sociedade civil, passou a incorporar o debate quanto às questões sociais e ambientais criando conselhos e exigindo a obrigatoriedade de estudos técnicos (VAINER, 2007), (MORETTO ET AL, 2012), os impactos persistiram, uma vez que estes instrumentos mostraram-se ineficientes para proteger o ambiente e os povos ribeirinhos dos estragos físicos e psicológicos causados pelas construções das UHEs.
Sem uma legislação consistente a seu favor, a atenção ao meio ambiente e às populações encontrou pela frente um adversário poderoso e cruel caracterizado pelos eixos de desenvolvimento econômico adotado pela nação. Um modelo de natureza produtivista e consumista, ambientalmente insustentável e socialmente injusto que “desrespeita a vida humana e dos ecossistemas, bem como a cultura e os valores dos povos nos territórios onde os investimentos e as cadeias produtivas se realizam” (PORTO & MILANEZ, 2009, p.1984).
E como previsto, o desenvolvimento gerou energia, mesmo que dizimando ecossistemas e populações Brasil adentro. Benincá (2011) ressalta ser impossível quantificar ou qualificar a totalidade dos impactos sobre as pessoas, visto que estes envolvem danos materiais, sociais e simbólicos que resultam na desestruturação de comunidades e dos meios de subsistência, rompimentos de laços familiais e grupais, além de modificações culturais entre diversos outros problemas. São perdas irreparáveis que o desenvolvimento impõe a determinadas populações que, não raras vezes, nunca receberão em troca os benefícios do progresso. “Nesse cenário, é comum a constatação de vilas situadas debaixo das grandes linhas de transmissão sendo ainda iluminadas com a queima de diesel” (BENINCÁ, 2011, p. 53).
Ao longo da história, um milhão de pessoas foram atingidas pelas UHEs no Brasil, de acordo com estimativa do MAB – Movimento dos Atingidos por Barragens (BENINCÁ, 2011). São famílias que perderam suas terras, seus meios de sobrevivência e o contato com o ambiente a qual estavam física e culturalmente adaptadas em nome do desenvolvimento.
Até o ano de 2007, as bacias hidrográficas das regiões Norte e Centro-Oeste apresentavam, respectivamente, apenas 9% e 31% dos seus potenciais hidrelétricos desenvolvidos (EPE, 2007) (TUNDISI, 2007). Nesta primeira década do Século XXI, investimentos estratégicos foram realizados nestas regiões com a construção de novas usinas hidrelétricas estimuladas especialmente pelo PAC – Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal .
As usinas hidrelétricas Santo Antônio e Jirau, no Estado de Rondônia, e a Jirau, no Pará são marcas deste tempo. São exemplos emblemáticos de uma política voltada para atender aos interesses do mercado a qualquer preço, sob o pretexto da emergência de gerar energia para o desenvolvimento do País.
Negligenciando o debate sobre o lugar da natureza no desenvolvimento ou o significado do desenvolvimento para a sociedade (FLEURY & ALMEIDA, 2013), a política energética avançou agressivamente modificando a paisagens, fragilizando comunidades e os ecossistemas do bioma cerrado e da Amazônia brasileira.
Sobremaneira o rio Tocantins, com seus 2.416 quilômetros de extensão desde suas nascentes em Goiás e no Distrito Federal até sua foz no Estado do Pará passando pelos estados do Tocantins e Maranhão, sentiu os efeitos desse projeto de infraestrutura. O rio já contava com as UHEs Tucuruí, em operação desde 1984, e Serra da Mesa que, operando desde 1998, criou o maior reservatório em volume do País e controla o fluxo e o regime do rio Tocantins. Vieram, na sequência a UHE Cana Brava e a UHE Luís Eduardo Magalhães, que entraram em operação em 2002, seguidas da UHE Peixe Angical (2006), UHE São Salvador (2009) e UHE Estreito (2012), além da expansão do parque gerador da UHE Tucuruí (PA) concluída em 2006.
O Tocantins transformou-se em um rio gerador de energia elétrica com um conjunto de sete UHES produzindo 12.785 MW da energia que abastece o mercado nacional (EPE, 2007), sem mencionar a contribuição das dezenas de pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) instaladas neste curso hídrico.
Entretanto, assim como nas demais bacias hidrográficas, esta contribuição do setor elétrico resultou em impactos socioambientais já comprovados por estudos científicos (TUNDISI, 2007); (BANIHABIB & FORGHANI, 2017); (PULICE & MORETTO, 2017). Interferências sobre a estrutura do rio Tocantins caracterizadas por barramentos, alagamentos de corredeiras e cachoeiras para a formação dos reservatórios das hidrelétricas são alguns dos impactos mais perceptíveis, somados às interferências sobre os ecossistemas aquáticos e terrestres.
No aspecto social, contabilizam-se milhares de pessoas que tiveram que abandonar as suas moradias por conta de alagamentos das áreas onde moravam no entorno do rio Tocantins, num processo de desapropriação territorial que resultou na quebra de vínculos afetivos, culturais e dos meios de subsistência de povos indígenas, ribeirinhos e comunidades tradicionais.
Esta experiência foi, e ainda está sendo, vivenciada pelos impactados da UHE Peixe Angical, empreendimento com capacidade instalada de 452 MW localizada na região sul do Estado do Tocantins, entre os municípios de Peixe, São Salvador do Tocantins e Paranã em torno das coordenadas 12º 14' 16,6" S e 48º 23' 08,4" W (ENERPEIXE, 2017).
A publicação Barragens da Amazônia aponta que a UHE Peixe Angical atingiu de 279 famílias (de acordo com o Estudo de Impacto Ambiental) a 1000 famílias (segundo o MAB) (INTERNATIONAL RIVERS, FUNDACIÓN PROTEGER E ECOA, 2017).
Os povos ribeirinhos, que antes moravam comunidades rurais onde mantinham contato direto com o rio Tocantins, foram obrigados a abandonar suas casas para permitir a formação do reservatório da hidrelétrica.
Realocados nos assentamentos Piabanha I, Piabanha II, Buriti Piabanha, Santa Cruz e Jataí, além de glebas rurais, sofreram drásticas alterações em suas sistemáticas de vida, desde o contato com o ambiente às relações de trabalho, sociais e de lazer e culturais, afetando até mesmo seus hábitos alimentares.
O processo metodológico envolveu, em um primeiro momento, contato por telefone com lideranças locais das comunidades pesquisas, a fim de explicar o conteúdo e objetivos da investigação, visando também obter apoio e aprovação da pesquisa por parte destas lideranças.
Posteriormente foi realizada visita, nos dias 10, 11 e 12 de novembro de 2017, aos assentamentos, oportunidade na qual inicialmente os pesquisadores reforçaram a aceitação da pesquisa junto às lideranças comunitárias para, só então, prosseguir com a fase de entrevistas.
Para a produção das entrevistas, os pesquisadores foram ao encontro das famílias em suas residências localizadas em lotes rurais dos assentamentos Piabanha I e II, ambos criados em 05 de dezembro de 2006 e localizados no município de São Salvador do Tocantins (INCRA, 2017).
Foram entrevistados exclusivamente pessoas atingidas pela UHE Peixe Angical e reassentadas no Piabanha I ou no Piabanha II. Atendendo ao critério de exclusão, a pesquisa evitou entrevistar pessoas que moram em um destes dois assentamentos mas que não foram impactados pela usina, ou seja, tendo se instalado no local a convite de algum dos impactados ou após a compra de lotes de terceiros.
Os pesquisadores realizaram uma entrevista por residência, totalizando 18 entrevistas, sendo 10 entrevistados do assentamento Piabanha I e outros 08 do Piabanha II. Antes de começar os questionamentos, os entrevistados foram orientados quanto o direito ao sigilo de suas identidades e de interrupção da entrevista. Também foi lido o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e assinado pelos entrevistados.
A pesquisa optou pelo método de produção de entrevistas individuais em profundidade, também definida como entrevista aberta, conceituada por Duarte (2005) como “um recurso metodológico que busca, com bases em teorias e pressupostos definidos pelo investigador, recolher respostas a partir da experiência subjetiva de uma fonte, selecionada por deter informações que se deseja conhecer” (DUARTE, 2005, p. 62). Neste tipo de entrevista, as perguntas permitem explorar ou aprofundar um assunto, identificar problemas, entender o passado, analisar uma situação e outros objetivos a depender da finalidade e interpretação por parte do pesquisador.
Os entrevistados foram questionados sobre como eram suas vidas antes de serem desalojados por conta da UHE Peixe Angical e o que mudou após se instalarem nos assentamentos, bem como sobre alterações nas condições de subsistência e hábitos alimentares de suas famílias. Também foram questionados sobre alterações nas suas relações sociais e com o ambiente, traçando um panorama do grau e reflexos dos impactos sobre os grupos de pessoas atingidas. As entrevistas foram gravadas em aparelho celular Motorola MotoG5s. Na análise discussão dos resultados, os entrevistados são tratados por codinomes escolhidos pelos pesquisadores a fim de preservar suas identidades.
A execução de grandes projetos de desenvolvimento, como são as UHEs, desencadeia uma extensa lista de conflitos materiais e ideológicos pelo uso dos recursos (FLEURY & ALMEIDA, 2013). À frente do debate, estão pesquisadores, estudiosos que avaliam a implantação dos empreendimentos sob seus diferentes aspectos, sejam eles estruturais ou do ponto de vista dos impactos sobre o meio ambiente e sobre as populações. Mas na mira do conflito, estão seres humanos que têm suas vidas transformadas radicalmente ao serem afetados por uma UHE.
O uso do território para a implantação das UHE resulta em conflito entre as populações locais (PULICE & MORETTO, 2017). A desapropriação das terras é um dos primeiros dilemas, e talvez o mais complexo, enfrentados por gerar desequilíbrio das estruturas físicas e psicológicas dos impactados. Este embate foi constatado entre os moradores dos assentamentos Piabanha I e II que, na maioria, ainda se emocionam ao falar sobre a desapropriação de suas terras em 2006, sobre a perda de seus homelands.
“Tem hora que eu até choro de tanto sentir falta de lá, porque eu queria vê que eu criava meus fio, acabava de criar meus neto por lá mesmo. Mas num teve condução de ficar lá então. [Sandra]
“Minha vida lá era muito mais mió (melhor) que aqui bastante. Muito mais mió mesmo”, [Antônio].
A questão é que não se trata apenas da desapropriação do espaço físico. Estas pessoas antes habitavam em áreas rurais nas redondezas do povoado do Retiro, no município de São Salvador do Tocantins, onde mantinham com o rio Tocantins uma intensa relação de sobrevivência, cultural e com a natureza. E é do contato com o rio do que mais eles sentem falta, conforme depoimentos os colhidos.
“Eu tenho saudade muito é do rio. A gente ficar na beira daquele rio pescando, mas era bom demais. Dava vontade de pescar e a gente ia, tinha firmeza na água, porque tinha água permanente ali e aqui não tem. Aqui é do poço artesiano mesmo até pra beber, pra usar tudo e não era que nem lá” [Márcia]
“Muita falta para mim, eu sinto. Porque lá tinha as pedra, tinha o varedão aberto, né. Lavava roupa, tomava banho”. [Marta]
“O rio, é o seguinte: é que ali a gente estava na beira dele. Toda folguinha que a gente tinha, a gente ia lá dá uma pescadinha....Era uma vida muito boa que a gente tinha lá, sim, nesse sentido.[Pedro]
A fala da moradora Augusta resume um pouco como era rotina comum destas pessoas: “Eu gostava do rio, eu lavava roupa no rio, só lavava no rio. E eu gostava. E eu ia pescar, e eu ia andar, quando dava vontade, assim, eu andava para o mato... Tinha vez que eu ia pro rio e eu pegava tempero, o isqueiro, [xispava] nós ia pro rio, pescava e lá mesmo nós arranchava debaixo de um pau, aí passava um meio dia, assava peixe e comia lá. Quando o sol esfriava nós vinha embora” [Augusta]
A desapropriação das áreas a beira do rio Tocantins afetou, assim, sobremaneira uma das práticas mais importantes da rotina da comunidade: a pesca artesanal que, como apontam Santos & Santos (2005), exerce grande influência na subsistência das populações ribeirinhas. Este distanciamento do rio gerou alterações na dieta das famílias, tanto em termos da troca do peixe por outros tipos de proteína, quanto pela disponibilidade e fartura do alimento, como demonstram as falas abaixo:
“Antigamente pra lá a gente quase não comia carne de gado, comia carne de peixe, que tinha fartura mesmo. E era melhor toda a vida onde a gente nasceu, tudo criou, numa abundância boa” [Antônio]
“Era mais peixe. Nós pescava todo dia” [João]
“Tem dia que a gente não tem condição de comprar carne e lá a gente tinha condição de pescar um peixinho” [Cláudia]
“Comia muito peixe, muito, muito mesmo. Comi muito, peguei muito, sinto falta disso tudo, né. Sinto falta. Mas fazer o que? [Cláudio]
“Eu gostava de pescar para o consumo e aqui hoje nós temos que comprar pra comer e nós não tem dinheiro, não tem salário e muitas vezes cê depende das coisas. E a gente fica lembrando das coisas que ficou pra trás. Minha mãe, hoje ela reclama porque ficou mais difícil tudo, as coisas, a gente depende de dinheiro. [Arnaldo].
“Lá a gente comia peixe direto. A gente tinha e comia peixe lá direto. Agora aqui é difícil, só quando a gente compra ou então se alguém vai lá ou os amigos da gente dá algum peixinho pra gente. Mas a maioria a gente fica se comer o peixe mesmo [Pedro]
A falta do peixe na dieta foi só o começo. Os impactos sobre os meios de sobrevivência destas famílias foram ainda mais amplos. Isso porque suas terras nas proximidades do rio Tocantins eram propícias para a produção de culturas como arroz, milho, batata e mandioca, oferecendo condições para o sustento por meio das chamadas roças de toco.
“Era roça de tudo mesmo. Roçava e derrubava. Plantava arroz, plantava milho, plantava tudo” [Antônio].
Nos assentamentos a situação é diferente. A Enerpeixe entregou as propriedades já com as áreas plantadas. No entanto, os agricultores sentiram dificuldade em manter as safras seguintes, uma vez que o solo da região exigiu recursos técnicos e financeiros para como correção de solo e uso de adubos.
Sem maquinário próprio e sem recursos para contratar serviço particular, os produtores passaram a depender da Prefeitura Municipal de São Salvador para fazer o serviço de gradeamento, arcando, contudo, com as despesas do combustível usado pelo trator em suas terras.
“Tem que pagar, tem que pagar só o óleo. É desse tipinho e aí fica difícil” [Rubens].
“Lá era melhor que aqui. A terra era boa e só plantava na cultura. E aqui tem que plantar no adubo” [João].
“E aí não é fácil porque tem que ter os maquinários. E nem todo ano acha as máquinas pra preparar a terra, né. Só nos braços mesmo” [Marta].
“Senti, ixi, estranhei demais porque lá nós fazia roçar e derrubar com machado, né. E aqui e se não for trator nós num planta nada” [Rubens]
Bermann (2007) ressalta que com frequência a implantação de UHEs destrói os projetos de vida dos atingidos por barragens, sem lhes oferecer uma alternativa de compensação à expulsão de suas terras que garanta pelo menos as mesmas condições de sobrevivência de antes dos empreendimentos. Seguindo esta mesma linha de pensamento, Benincá (2011) acrescenta que raramente este povos têm seus meios de subsistência recuperados, “já que os programas de reassentamentos em geral concentram-se na mudança física, ignorando a recuperação econômica e social dos deslocados” (BENINCÁ, 2011, p. 44).
O distanciamento do rio Tocantins implicou ainda em dificuldade para a produção agrícola durante o período de estiagem, que compreende os meses de maio a setembro (Tocantins, 2012) . A seca é bastante sentida na região dos assentamentos, que possui os menores valores anuais de precipitação em relação a outras área do Estado do Tocantins (VIOLA et al, 2014) . Os assentados reclamam:
“Falta até água pra gente, pros bichos, que o verão aqui esse ano foi seco demais” [Rubens]
“A seca aqui é crescente, eu não sei se é porque a gente era acostumado lá, eu acho aqui muito seco” [Márcia]
“Sai de lá, meus pés de planta tava tudo dando, né, manga, laranja, mexerica. Tinha muita banana. Aqui a gente já plantou só que é seco demais, né. Porque lá era na beira do córrego, as coisas conservavam. Por isso, eu te falo, tinha muita fartura” [Márcia].
Além destas dificuldades concretas, os impactados sofreram perdas simbólicas, ou seja, com danos imateriais e, portanto, imensuráveis, sentidos especialmente pela perda dos vínculos afetivos com a vizinhança e do engajamento com a comunidade, como percebe-se nas falas dos reassentados.
Lá era muito bom, a gente ia nos vizinhos, tinha hora que os vizinhos pescava um peixinho dava pra gente, a gente também pegava dava pra eles e aqui não, aqui é mais difícil [Rosa]
A gente morava perto da igreja, perto do colégio, os meninos saía de casa e entrava no colégio [Francisca]
Tinha missa, o ponto era lá em casa, nós tínhamos a igreja, a escola, tudo lá construído em comunidade, era uma escola comunitária só que a prefeitura dava assistência assim de pagar os funcionários, mandar merenda e documentação, mais o resto era com a comunidade. Depois que chegou aqui ficou sendo dificuldade porque chegou aqui a Enerpeixe entregou na prefeitura e a prefeitura não fez como era antes. Mudou tudo, ficou tudo completamente diferente, até pela comunidade também eu achei uma mudança grande porque a gente não era acostumada aqui. A gente tem que andar até pra ir na celebração, e as coisas dificultaram mais um pouco.[Augusta]
Ferreira et al (2014) frisam que para os atingidos por barragens a mudança de suas moradias para a construção de uma UHE representa a quebra dos laços afetivos e da construção de identidades. Na visão dos autores, esta perda simbólica não é vista com a relevância que merece devido às disparidades das visões de mundo das partes integrantes do conflito. “De um lado, o empreendedor, com uma visão mercadológica do meio ambiente. Do outro, os atingidos, que encaram o meio ambiente como um provedor de bens necessários para a sua sobrevivência e de sua família e não como uma mercadoria para geração de lucro” (FERREIRA ET AL, 2014, p.82). Para os impactados pela UHE Peixe Angical, valores intrínsecos dos seus modos de vida e de suas relações com o ambiente foram reprimidos em função da geração de energia elétrica.
No processo de implantação de uma UHE resulta na apropriação de territórios, por vezes, ocupados por ribeirinhos e comunidades tradicionais. Os resultados desta pesquisa evidenciam que as famílias sofreram impactos significativos ao serem desapropriadas de suas terras, às margens do rio Tocantins, e reassentadas no assentamentos Piabanha I e Piabanha II, com dificuldades para garantir seus meios de subsistência e até mesmo por alterações na dieta pela falta do pescado que fazia parte constantemente de suas refeições. Ressalta-se, ainda, perdas simbólicas com alterações na dinâmica social da comunidade e em relação ao ambiente onde moravam, especialmente pelo distanciamento do rio Tocantins, que representava uma fonte de lazer e de sobrevivência para as famílias.
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