A SOMBRA DE UM FANTASMA: UMA EDUCAÇÃO PARA A EMANCIPAÇÃO
Paulo Alves de Lima Filho
IBEC-Instituto Brasileiro de Estudos Contemporâneos
palf@uol.com.br
“ Aprendió el alfabeto del relámpago.
Olfateó las cenizas esparcidas.
Envolvió el corazón con pieles negras.
Descifró el espiral hilo del humo.
Se construyó de fibras taciturnas.
Se aceitó como el alma de la oliva.
Se hizo cristal de transparencia dura.
Estudió para viento huracanado.
Se combatió hasta apagar la sangre.
Sólo entonces fué digno de su pueblo.”
(Canto General, IX, Pablo Neruda)
Introdução
Gastou-se muita tinta, e continua a gastar-se, com a suposta necessidade de colocar-se a universidade pública na prateleira das mercadorias vendáveis. Faz-se admiráveis malabarismos para convencer-nos de que a república ainda mais brilhará nas passarelas do mundo, alíás, lugar de onde ela nunca mais deveria baixar, vestida com os panos do capital. Poderosos senhores da mídia ou outros grandes proprietários com acesso a ela tornam-se beatos fresquinhos da silva, fiéis da educação, tornada gazua das agruras capitalistas. Choram pitangas semanais sobre o inventado corpo balofo de um terceiro grau supostamente inepto, perdulário e não adequado às exigências do mercado. Enfim, são outros tempos, outras as razões, outros são os inimigos a apostar-se para conter o avanço do ensino público. Transformado este, nos primeiro e segundo graus, em vasta senzala decadente, amotinada, pútrida, irrecuperável, um trambolho com o qual não se sabe bem o que fazer, volta-se a bronca sanha privatista, imediatista, ancestral, quinhentista, para o filão suculento, em carne viva, do terceiro grau.
Nunca se imaginou que os pudores dos donos da terra fossem tão pequenos, esquecidos de nós que somos. Se as alturas da civilização do capital, em seus pontos mais altos, só puderam ser galgadas pelas vastas escadarias da educação pública em todos os níveis, o sendeiro construído e a nós legado pelos barões da terra não passa de um amontoado de destroços inúteis. Essa a mais desumana herança da aventura militar da democracia restrita das minorias opulentas. Esta a cara com que nos fazem desfilar pelas vitrines do mundo, os mesmos lacrimosos senhores amantes do ensino não-público. É necessário, portanto, inventarmos formas de minimizar os efeitos da regressão civilizacional que nos impingem.
O saber emancipador e seus limites
Um saber crítico, criador, imanentemente transformador, em âmbito nacional, deveria conceber-se como expressão de todas as suas formas interligadas. Estas revelariam, assim, sua unidade imanente, melhor capacitando-se para multiplicar seus logros. Expressariam um saber auto-emancipado e assim, naturalmente, emancipador. Ao visar-se esse objetivo, é redundante falar-se sobre a necessidade do estudo e formação permanentes, a ocupação virtuosa, propriamente eficaz, das capacidades intelectuais nacionais, de tal forma a gestar um novo coletivo produtor e reprodutor do saber, um novo trabalhador coletivo intelectual, capaz de realizar-se através do incremento da sua produtividade específica. Esta difere e opõe-se à produtividade burra, concebida e realizada sob critérios impróprios, sejam os diretamente emanados do capital ou de alguma burocracia auto-erigida em instância normativa. Tal saber crítico, exige, portanto, uma revolução científica e tecnológica, uma revolução pedagógica, uma revolução nos seus objetivos estratégicos, uma revolução ética. A mais plena realização desse saber repousa na criação de um único corpo científico-tecnológico, educacional, um único corpo político e pedagógico, capaz de efetivar uma sua dinâmica produção e reprodução. A máxima plenitude desse corpo seria, sem dúvida, sua realização humana global, a própria humanidade. Estes dois momentos ontológicos centrais do saber poderiam, desse modo, realizar-se com sua produtividade específica plena somente através de uma estável sustentação financeira estratégica, também esta só capaz de afirmar-se com uma nova administração do orçamento destinado a esse fim. Isto é, um novo Estado, onde o controle social esteja radical e várias cotas acima do atual descalabro capitalista. Este resulta do avanço do descontrole social sobre o capital da nova civilização que se ergue sobre as cinzas daquela vigente durante o curto século XX. Estas, em poucas palavras, as premissas de um complexo emancipatório, absolutamente necessário para a humanidade poder ir além do capital, para ela reconstruir-se conscientemente, igualmente essencial, nestas plagas ex-coloniais, para saltar da subalternidade capitalista a graus crescentes de autodeterminação nacional.
A questão da produtividade do trabalho intelectual
Os professores estão colocados de forma privilegiada no complexo emancipatório. Neste, são camada social insubstituível, intelectuais no exercício de funções essenciais. É evidente que sob o obscurantismo oficial da ditadura, a ausência de liberdade intelectual plena infestou o terceiro grau de funcionários públicos comprometidos com a ordem, professores que puderam entrar na academia pelas frestas do descaso com a função maior do ensino (tal processo, a bem da verdade, em não menor medida ocorria nas universidades privadas). Também é óbvia a baixa produtividade desse contingente no que respeita às três ordens de funções específicas à educação: criação, repetição, divulgação. Falamos aqui de uma produtividade determinada pela sua posição frente à emancipação humana, radicalmente contrária àquela concebida pelo capital - o qual só pode pensar a educação e a produção e reprodução do saber enquanto mercadorias. Por isso chamamos virtuosa, específica, própria, eficaz e socialmente adequada, a produtividade concebida sob a óptica da emancipação e, capitalista, aquela sob a óptica do capital.
Ao adotar-se um desses enfoques, um contingente pedagógico medíocre e obscurantista poderia estar muito melhor avaliado pelos critérios da produtividade inespecífica do que um brilhante núcleo emancipador. Sob a óptica da emancipação, a produção e reprodução do saber exige estudo continuado, permanente e autodeterminado. Esse estudo poderá levar à transformação e revolução teóricas, com a conseqüente notificação do público propriamente científico sobre os resultados das pesquisas sob a forma de livros, palestras, artigos, etc, assim como à capacidade de informar os alunos do processo de debates sobre os temas em pauta. Temos, nesse caso, uma criação e repetição virtuosas. Contudo, podemos ter antiemancipação em ambos os momentos. Isto é, podemos ter produção e reprodução do saber como formas de não-saber, desrazão. A produtividade inadequada não pode nem se dispõe a captar a qualidade desse processo. Um olhar crítico sobre os cursos de ciências humanas, por exemplo, evidenciaria tal observação. Como sabemos, o irracionalismo é funcional para o capital, expressão de sua desumanidade. O mesmo raciocínio se pode usar para tratar da divulgação - escrita, falada, televisiva, etc. Dessa forma, um processo pedagógico emancipador ou uma educação emancipadora se atém ao caráter imanente às formas da produção e reprodução criadoras do saber. Por sua vez, a produtividade capitalista se atém aos produtos desse processo enquanto mercadorias reais ou virtuais. Ou seja, quão mais o capital se apropria da produção do saber, menos humanamente agudo ele se torna.
O capital e o terceiro grau
A educação de terceiro grau é o último bastião de fato democrático a estar sendo capturado pelo capital, o último marco da soberania nacional e de uma ciência potencialmente humana, emancipada, de uma tecnologia de igual teor. Privatizada esta, ou melhor, subsumida pelo capital privado, o regime de liberdades da nossa real antidemocracia ver-se-á privado da liberdade essencial, aquela que permite aos povos autodeterminarem-se, dotarem-se de meios de escolher o seu destino. A privatização da produção e reprodução intelectual é absolutamente incompatível com a emancipação nacional ou da humanidade. A privatização da produção e reprodução do saber é simultaneamente, poder decisivo do capital sobre este. Ao instituir um saber do e para o capital, não determinado pelas reais necessidades humanas, a privatização do trabalho intelectual significa liberdade acrescentada para um saber desumano, para a destruição da vida, para as guerras e indiferença para com a sorte real da humanidade. Esta é capaz de ser pensada como gado humano clonado, ao passo que as populações reais definham e perecem.
Os níveis de ensino
A educação exige ser pensada como interação eficaz dos seus quatro ou cinco níveis de ensino. Esta se determina historicamente, ou seja, vê-se projetada a fins específicos, dado seu estágio (ou seus estágios) no processo da emancipação. Isso significa dizer que ela exige-se realizar nacionalmente - sua dimensão nacional é irredutível.
A produção de um saber emancipador, nos espaços ex-coloniais, exige o surgimento de uma educação popular enquanto projeto social autônomo, já que o Estado pôs-se como privilegiado coadjuvante do capital privado.
Sob o capital, nos capitalismos imperialistas, também nunca teremos a plenitude desse saber emancipado. Neles, é uma realidade o definhamento do intelectual em contraposição ao acadêmico, este entendido como ser social alheio à centralidade da causa pública, à radicalidade emancipadora (Jacoby, 1996). No entanto, no que concerne à causa própria do capital - sua acumulação ampliada a mais universal e acelerada possível-, é possível vislumbrarmos diferenças radicais entre seus pólos hegemônicos e subordinados. Nos países capitalistas que não optaram por produzir a maior parte de suas mercadorias com seus capitais nativos não só não se universalizarão os ensinos básicos e médios, como tampouco desenvolverão o destino tecnológico da pouca ciência básica que se produza no terceiro grau. Este, por sua vez, gira em falso no precipício de seu planejado isolamento. A produção e a reprodução do saber terá, nesses países, nessa órbita secundária, subordinada e incompleta do capital, um seu limite estatalmente intransponível. O limite ontológico particular a esses capitalismos conferirá ao circuito emancipador do saber uma dramaticidade crônica e costumeira, a qual não deixa de manter-nos permanentemente perplexos, atônitos, irados, extenuados e desesperançados. Nesses pagos, a luta contra o obscurantismo regressista, restaurador, não tem fim. Alienado o Estado de qualquer veleidade emancipadora, explode no terceiro grau uma guerra surda, feroz, entre as forças regressistas - fantasiadas de defensoras de uma eficácia imprópria-, e as dispersas hostes do pensamento crítico, até o momento na defensiva.
Situação brasileira do saber emancipador
Vivemos uma situação de entropia estratégica. Em parte motivada por vinte e um anos de ditadura civil-militar, o saber emancipador foi apanhado em processo de decadência, pela ruptura histórica inesperada, motivada pela fantástica autoexpansão do capital financeiro. Esta, multiplicadora das potencialidades universais do capital e sua potência nacional máxima- os EUA-, assim como do novo capital produtivo de base microeletrônica, arrastou para a cova o baluarte da primeira experiência socialista mundial. Isto desencadeia a regressão social universal, promovida pela inaudita força e caráter global do novo capital. Primordialmente aninhado entre as forças populares, socialistas e democratas sociais, o saber emancipador deixou de operar o seu complexo social civilizatório específico. Incapaz de se reproduzir nos antigos moldes, viu diminuída a sua força coesiva e o rio da vida exasperar as carências antigas encavaladas nas suas novas e possantes irmãs. Recuemos, entretanto, um pouco no tempo.
É preciso não nos esquecermos de que em 1964, no Brasil, conforma-se uma ruptura no processo histórico de evolução da centro-esquerda republicana, a qual, no que respeita a educação, centrava-se na expansão qualitativa e quantitativa do ensino público gratuito em todos os níveis. Nele se estavam formando os quadros técnicos e intelectuais da revolução democrática em marcha, a contaminar os filhos das classes médias abastadas, inclusos os filhos da burguesia nativa. O acordo MEC-USAID, firmado após o golpe, projetou-se, assim, como ruptura desse processo, cujo sentido é, via destruição qualitativa da escola pública, canalizar os filhos das classes médias para a indústria privada da educação, alterando substantivamente as condições da reprodução social do saber emancipado, da concorrência entre os filhos desigualmente protegidos de uma sociedade profundamente assimétrica, ao destruir as condições igualitárias anteriores, de monopólio estatal da educação de massas. Desse modo, afirmar-se-á uma nova assimetria de classe na educação pública: os filhos dos setores mais abastados da população passam a fazer pender para o seu lado a balança do percentual de vagas de fato usadas no terceiro grau, enquanto expandem-se o primeiro e segundo graus privados e dessangra-se o ensino público. Neste, convém não nos esquecermos,o avanço neoliberal tem uma de suas primeiras vítimas( Rama, 1995).
Ao transformar o terceiro grau em apêndice da crescente desigualdade social instituída, aprofundada com o modelo econômico da ditadura, preparava-se, assim, o último passo, ou seja, a privatização dos últimos redutos de soberania intelectual brasileira, o terceiro grau público (Maar, 1985). Tal processo conforma, nos capitalismos por via colonial, uma regressão obscurantista. Nada, nele, a partir de então, sustenta naturalmente a marcha do saber emancipador, a não ser a autoorganização deste, seu movimento autônomo contra a maré montante de suas profundas correntes glaciais. A expansão do mercado privado da educação apresenta-se como puro irracionalismo fantasiado de hipermodernidade, regressismo restaurador, expressão da expansão da subalternidade nacional, agora caracterizada como recolonização da reprodução social capitalista, operada pelo acelerado potenciamento do capital financeiro e novo capital produtivo dos centros capitalistas hegemônicos, antes de tudo dos EUA. Com a aceleração da subsunção do terceiro grau ao capital, sob o influxo da homogeneização das políticas econômicas imposta pela construção da nova civilização capitalista, configura-se uma nova situação colonial, quando o centro estratégico da produção científico-tecnológica para fins nacionais cada vez mais decisivamente encontra-se fora do espaço nacional.
Uma breve digressão sobre o sentido histórico das transformações econômicas recentes - o retorno à hiperexploração do trabalho e à pauperização absoluta.
Antes de nos aproximarmos de uma proposta alternativa para o novo relançamento da expansão do saber emancipador, convém traçarmos as linhas destinadas à apreensão do sentido histórico das transformações econômicas recentes. No Brasil dos anos 90, as indagações sobre o destino e conteúdo da desmontagem do tripé dos capitais que expressaram a forma anterior do assim chamado padrão de acumulação já podem ser respondidas com algum grau de segurança.
Em primeiro lugar, ela expressa a linha de continuidade entre o passado ditatorial e o futuro em construção no plano da reprodução material de nosso capitalismo. Se a democracia restrita dos poderosos, sob tutela militar, como se costuma chamar a ditadura militar que se estendeu entre 1964 e 1985, era restrita exatamente porque se reproduzia como e através da necessidade de exclusão das maiorias, o regime de liberdades do pós-85 prossegue-a através da readequação capitalista para um novo ciclo expansivo de acumulação global, universal.
A economia política da nova ordem, nacional e internacionalmente, tem como eixo desse novo ciclo a multiplicação da subordinação do Estado, enquanto capitalista coletivo, às determinações da nova aliança entre as grandes burguesias internacionalizadas, nacional e forânea, com seus apêndices tradicionais. Transfere-se à propriedade destas burguesias os complexos industriais mais capazes de dinamizar sua ação internacional e revalorizar seus capitais na nova ordem emergente, assim como se procede à recapacitação industrial e financeira do novo padrão, através de um novo caráter da tributação desejada e incremento substancial da abertura do comércio externo. O eixo dessa nova tributação caminha no sentido de desonerar o capital de encargos trabalhistas da fase anterior, assim como de reduzir ao mínimo os gastos estatais com esses mesmos encargos, ou seja, maximizar a taxa e a massa de lucros privados e minimizar os gastos estatais com a reprodução da força de trabalho, conformando simultaneamente a expansão da hiperexploração do trabalho e o retorno massivo da pauperização absoluta. A abertura externa, por sua vez, evidencia política industrial passiva, acentuando-se a desindustrialização e fortalecendo o domínio dos capitais monopolistas, antes de tudo os internacionalizados, sobre o mercado interno, assim como sobre todos os novos complexos sociais acoplados direta ou indiretamente às novas exigências da acumulação.
Essas linhas gerais da nova reprodução material do novo capital global fazem necessárias toda uma série de manobras, escaramuças, acordos e desacordos políticos (e financeiros), destinados tanto à conquista do poder executivo quanto à forja de maiorias midiáticas e parlamentares. Estas, verdadeiros frentões burgueses, predestinados a servir de instrumentos do arrastão social requerido, cuja eficácia repousa na consentida, conivente e solidária alienação, pelo Executivo, dos podêres do Legislativo e Judiciário, conformando uma situação de ditadura de-fato, seja através da reedição das medidas provisórias ou reinterpretando a seu favor e com consentimento dos demais poderes, a Constituição de 88, uma peça ficcional (Comparato, 1998).
O novo padrão de acumulação aprofunda o controle do capital, sobretudo privado, sobre a reprodução social, via incremento da superexploração do trabalho. Ele é, simultaneamente, expressão de opção preferencial pelos capitais globais norte-americanos, na busca de inserção heteronômica, porém especial, na rehierarquisação das hegemonias mundiais. Continuidade da fase anterior, o desmonte do Estado aprofunda a opção das classes dominantes nativas pelo fortalecimento dos laços da subordinação ampliada, elevados à hipersubordinação para a aventura global, cuja inflexão decisiva deu-se no governo JK.
Três questões intrigantes caracterizam este processo: a) o seu móvel, e a rapidez dele exigida; b) a capacidade de resistência social à sua implantação e, por último, c) as suas mais recônditas razões.
Antes de tudo, estamos diante de um processo de longa duração. Assim, esta nova fase da subordinação ampliada reafirma a tendência aprofundada durante a democracia restrita sob tutela militar: confirma o languidescimento do projeto nacional varguista, de subordinação restrita ou crescentemente restringida. É assim que, sem titubeios, a operação de atropelo das consolidações constitucionais firmadas em 1988 se inicia desde os primeiros vagidos da nova Carta, direcionando-se pelas linhas ditadas nos centros da hegemonia coligada das maiores potências, FMI, Banco Mundial, OMC, sob a expressão teórica daquilo que posteriormente viria a se chamar “Consenso de Washington”. Confirmando a opção histórica das classes dominantes nativas, o aprofundar-se das condições de controle do capital sobre a reprodução social - agora alcançando pólos estratégicos da reprodução material-, o forcejar e o trânsito para a consecução desse projeto se dá por dentro da norma histórica de evolução desse capitalismo, momento de sua continuidade. O móvel, o agente inicialmente catalizador desse processo é o PSDB.
É ele o excipiente necessário para a realização das novas alianças de classe e, simultaneamente, a expressão da emergência de uma nova classe, coadjuvante do modelo de concentração dinâmica da renda e propriedade, sob as condições de empuxe essencial da nova incontida multiplicação das forças produtivas do novo capital em escala mundial e sistemática aniquilação da legalidade protetora do trabalho contra o capital, herdada da fase anterior dessa civilização. Fernando Henrique Serra e Malan compõem a tríade limite, ao lado de Maciel, ACM e Sarney; são os Ashton Hawkins, Thomas Hoving e Diana Vreeland da nova ordem, a realizar a estupefaciente combinação dos poderes econômicos e políticos velhos e novos ao esplendor intelectual dos adventícios das camadas médias, a transformar o Palácio da Alvorada no Temple of Dendur ( Taylor, 1993 ). Nos EUA e no Brasil, havia muito dinheiro a se ganhar nos anos oitenta e noventa e a transição por dentro da norma era a forma exata de fazê-lo. Os reais ou supostos socialistas de cátedra transformar-se-ão em reais e virtuais banqueiros e capitalistas de cátedra, nova oligarquia capitalista do saber, imanente à nova ordem mundial. Passa-se a reconstruir uma nova economia mundial de caráter colonial sob a hegemonia do capital financeiro. Esta nova elite transforma-se em instrumento, em todo o orbe, do poder colonial, em força capitalista parasitaria (Negrete, 1997; Ahumada, 1996).
O complexo civilizatório do saber emancipado, ao contrário do complexo capitalista do saber instrumental, não tem mais um centro dinâmico autodeterminado. Necessita criá-lo. Impossível, outrossim, recriá-lo à imagem daquele recém falecido. O dinamismo ideológico deste descansava, em grande medida, nas linhas da imantação exercida pelas revoluções proletárias e populares vitoriosas, desejosas de aparecer como construtoras dos socialismos os mais socialistas. Quando esse centro cosmopolita se esvanece, afogado nas incompreendidas contradições particulares de suas sociedades, ocorrerá a revoada de boa parte da intelectualidade socialista aos pombais conservadores, da social-democracia à direita tradicional. Quando, no Brasil, o proletariado industrial sacode o modelo econômico do arrocho, a partir de 1979, o movimento que dali se desencadeará estará zelosamente circunscrito nos marcos sociais e democráticos, sob forte influência católica, abandonadas as históricas bandeiras nacional e socialista. Essa espécie de democracia cristã trabalhista, clivando fortemente as classes médias assalariadas, sem o querer, permitirá, em grande medida, o avanço da direita tradicional, bloqueando os rios nacionalistas e socialistas, característicos da centro - esquerda republicana desde o século XIX (Ribeiro, 1997). Somente mais tarde, em 1998, quando a hegemonia burguesa se reconstrói decisivamente com dom Fernando II, candidato de si próprio e de todos os capitais à reeleição, esse braço desgarrado do anticonservadorismo mergulha nas sendas da história da centro esquerda republicana, apoiando a chapa Lula- Brizola. Mas já estamos sob o refluxo do movimento de massas e enfraquecimento do bloco anticonservador. Para mal dos pesares, o programa econômico anticonservador é requentamento desenvolvimentista. Pró-capitalista, quando os setores capitalistas decisivos já o abandonaram desde muito antes de 1964. Pró-capitalista, quando as burguesias e camadas médias e altas abraçam ferozmente a política econômica de descontrole da reprodução social. Põe-se, portanto, assincronicamente na história, a nova centro-esquerda republicana. Postula um capitalismo indesejado pela maioria dos capitalistas. Reproduz o mesmo equívoco essencial da autodenominada social-democracia nativa, a qual alguma vez pensou reformar a universidade destruída pela democracia restrita do regime militar sem questionar-se ou medir forças com os projetos transformadores aniquilados por este, nem com o sentido histórico dessa destruição (Giannotti, 1991). Quando se dá conta de que a pretendida reforma não passava de uma volição etérea no ventre pantagruélico do todo-poderoso projeto do capital financeiro mundial, volta a terçar armas, mas estas já estão reduzidas à sua real dimensão (Giannotti, 1998). Essa aventura, caso alcance o poder, tem grandes chances de resultar em fracasso e desprestígio de alternativa social, democrática e socialista. O que fortalecerá tanto a direita nacionalista fascistóide quanto o conservadorismo tradicional, acelerando o antidemocratismo já acentuado da “revolução silenciosa” neocapitalista. Esmagada entre tais disjuntivas, a política emancipadora necessita traçar para si o caminho o mais rápido e eficaz possível, em condições de forte fragmentação, desprestígio, perplexidade e desnorteamento. Autoliquidados os sóis invernais de antanho, cabe construir as bases para tal movimento. Isso não será nunca mais tarefa dos práticos, em cujas mãos repousou o malfadado destino das principais forças da transformação social no país. Para isso, a intelectualidade para a emancipação necessita tomar-se a sério, criar as condições para a sua autodeterminação coletiva, único modo de por em movimento uma práxis revolucionária. A ela e somente a ela caberá criar, em decisiva instância, o novo complexo civilizatório da emancipação.
O projeto emancipador há tempos, não poderá mais passar pela criação de um capitalismo social e democrático, econômica e politicamente soberano. A atual hipersubalternidade, que se segue à subalternidade ampliada sistematicamente construída na democracia restrita sob tutela militar, é uma forma histórica consagrada pelas burguesias mundiais e brasileira. Uma nação política e economicamente soberana, centrada no atendimento das seculares assimetrias sócio-econômicas das maiorias, crescentemente determinada por estas, não poderá ser uma sociedade propriamente capitalista (Ribeiro,1997;”Ideologias”). O grau de controle social necessário para manter e expandir social e democraticamente essa sociedade exigirá, natural e inexoravelmente, bloquear as aspirações propriamente burguesas, negá-las, marchar contra elas, redirecionando-as no sentido comunitário, solidário e cooperativo, ou seja, socialista e comunista-emancipacionista. Será este o sentido da construção de um saber emancipador. Revela-se óbvio o porque de as novas e antigas classes dominantes sempre terem mantido em quarentena o ensino público tratado como caso de polícia. Nele se aninham, elas sabem disso, as víboras socialistas e comunistas, nacionalistas e democráticas que sempre e desde sempre ameaçaram a reprodução do status-quo deste capitalismo da miséria das maiorias.
O complexo civilizatório do saber emancipado
Diferentemente da fase histórica precedente, não teremos mais a iniciativa estatal a capturar e arrastar os impulsos emancipadores para materializá-lo sob a forma de universidades e outros experimentos educacionais cruciais. Eventualmente teremos o Estado como coadjuvante, mas essa não será mais a regra. A partir de agora é essencial criar-se um complexo autônomo do saber emancipador. Ele terá de alimentar-se das necessidades nacionais e internacionais por autodeterminação, inventando para si um experimento social crucial, capaz de congregar o campo transformador, fazê-lo incorporar e militar por uma proposta social emancipadora, antes de tudo criadora do instrumento central da produção de saber emancipado, um complexo educacional capaz de vincular-se simultânea e preferencialmente às lacunas da emancipação nacional e internacional. Ele construirá e nesse processo solidificará as solidariedades perenes entre todas as forças emancipadoras e dará sentido ao partido intelectual da emancipação, capaz, então, de colocar a produção e reprodução do saber como momento universalmente indiscutível, autônomo e central para a emancipação coletiva.
Esse complexo educacional deverá primar por cinco características marcantes, a distingui-lo dos complexos estatal e privado tradicionais: ele nasce explicitamente voltado para a maior qualidade possível; é experimento modelo para o ensino público e deve sustentar-se, financeira e politicamente, pelas forças sociais comprometidas com os interesses das maiorias, porém, tem com estas, relações de independência. Por último, ela terá de desenvolver campos do saber comprometidos com a emancipação. Em outras palavras, a produção do saber para a emancipação transforma-se em necessidade prática para todas as forças da transformação social, as quais dispõem-se a propiciar as condições para a sua realização ao mesmo tempo em que confirmam os intelectuais como reitores autônomos desse complexo educacional, compreendido por todos como atividade permanente.
Aos intelectuais cabe a criação de um saber capaz de servir universalmente à causa da emancipação, e o processo de sua sistemática gestação cria um solo comum, um território coletivo, uma nação mundial dos deserdados. O partido intelectual da emancipação constrói as premissas desta. Este é o sentido histórico da construção do complexo educacional.
A sombra de um fantasma: materializar uma nova universidade
“Se a ciência e a organização conseguirem satisfazer as necessidades materiais do homem e abolir a crueldade e as guerras, a busca da verdade e do belo deverá persistir para podermos exercitar o nosso amor pelas árduas criações. Os poetas, os pintores, os compositores e os matemáticos não se devem preocupar com o remoto efeito das suas atividades no mundo da prática. Devem entregar-se à procura de uma visão, à captura e fixação de alguma coisa que eles viram por um momento e que os impressionou de tal forma que, diante dela, todas as alegrias do mundo empalidecem. A grande arte e a grande ciência nascem do desejo de materializar a sombra de um fantasma, uma beleza atraente que afasta os homens da segurança e da comodidade, arrastando-os para um glorioso tormento. Os homens em quem esta paixão existe, não devem ficar tolhidos pelos grilhões de uma filosofia utilitarista, pois é ao seu ardor que devemos tudo quanto temos de grande na humanidade”.(Bertrand Russel, 1969)
Uma nova Universidade, um novo ensino.
É necessário construirmos uma nova Universidade. Que ela esteja mergulhada nas necessidades imperiosas das maiorias, se nacionalize. Que construa um circuito científico-pedagógico unificador dos cinco graus de ensino (do pré à terceira idade), solidarizando-os indissoluvelmente, garantindo-lhes autonomia frente ao capital ao proporcionar carreira decente e continuidade à formação dos professores de todos os níveis. Ao emancipar o terceiro grau da alienação a que está submetido, este poderá, em médio prazo, reformar – em sentido emancipador -o ensino público, ao mesmo tempo em que, ao nacionalizá-lo propicia o surgimento de uma criatividade e produtividade próprias a um saber humanamente adequado. Ao nacionalizar o terceiro grau e todo o ensino público, coloca-se a educação no rumo da transformação social, único modo de garantir o desenvolvimento do saber, seu caráter emancipatório, universal, humano.
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