Ana Cristina Maia de Araújo Acosta (CV)
acris.acosta@gmail.com
Universidade do Sagrado Coração
Sênia Regina Bastos (CV)
bseniab@terra.com.br
Universidade Anhembi Morumbi
RESUMO
A proposta deste trabalho é estudar a relação entre a etiqueta e a hospitalidade nos banquetes comemorativos familiares baseados no calendário cristão. A partir de uma pesquisa de natureza qualitativa sobre o modo como se recebe nas reuniões festivas familiares, o trabalho fundamenta-se em pesquisa bibliográfica com teóricos que abordam o tema, tendo como corpus documental a realização de cinco entrevistas com roteiro semiestruturado e perguntas abertas. Constatou-se uma relação direta entre a etiqueta e a hospitalidade no comportamento do anfitrião e do convidado nas recepções familiares oferecidas nas residências das entrevistadas por ocasião da Páscoa ou do Natal. Conclui-se que as regras de etiqueta estão presentes nas recepções sociais de caráter doméstico, manifestadas através dos códigos verbais e não verbais, contribuindo, assim, para o sucesso da hospitalidade.
Palavras-chave: Hospitalidade, Comensalidade, Etiqueta, Banquete.
Abstract
This paper aims at studying the relationship between the etiquette and the hospitality present in family celebratory feasts based on the Christian calendar. Based on a qualitative research on how people host during festive family meetings, this paper is founded on a bibliographical research with theorists who approach this issue, and its corpus consists of conducting five semi-structured questionnaires with open questions. The outcomes point to a direct relationship between etiquette and hospitality in the behavior of both the host and the guests in family receptions offered in the residence of the interviewed people at Easter or Christmas. The study concludes that the rules of etiquette are present in domestic social receptions, expressed through verbal and nonverbal codes, thus contributing to the success of hospitality.
Key-words: Hospitality. Commensality. Etiquette. Feast.
O comportamento social tem referência histórica na França em meados do século XVII. Justifica esse ponto de partida em virtude do grande volume de informações que valorizavam as boas maneiras e aquilo que era considerado comportamento socialmente aceitável na época (ELIAS, 1994).
Elias (1994) nos faz compreender as boas maneiras como mediação social e como uma prática (re)definidora dos padrões comportamentais no âmbito das relações sociais. Para o autor houve um longo “processo civilizador” de aprendizagem e transformação de hábitos e costumes ao qual a aristocracia europeia se submeteu a fim de controlar suas pulsões. Ele argumenta que a estrutura da sociedade se modificou concomitantemente ao padrão de comportamento. O senso do que fazer ou não fazer tornou-se significativo em conjunto com as novas relações de poder que emergiam. A abordagem de Elias (1994) é de suma importância para o entendimento do modo como se formou a noção de etiqueta e, também, como essa prática cultural alcançou camadas sociais mais populares, tornando-se um bem a ser consumido, na sociedade contemporânea.
Todos os grupos sociais possuem regras de etiqueta, cabendo a cada integrante respeitá-las para que seja aceito e, desta forma, fazer parte de determinado grupo. Porém, inicialmente, somente as regras de conduta da elite foram descritas e publicadas, sendo agregadas a quem as dominava, à imagem da distinção, educação e elegância. Justifica-se, assim, o desejo na busca do conhecimento da etiqueta, inclusive na forma como ela é entendida atualmente (FIGUEIREDO, 2007).
Pensar a etiqueta implica contextualizá-la no tempo e no espaço, pelo modo como cada grupo social expressa seu respeito às leis universais e não escritas da hospitalidade (MONTANDON, 2011).
Receber bem o hóspede é um dever do anfitrião, gesto valorizado em todas as sociedades. Porém, a forma como cada sociedade recomenda o tratamento ao hóspede/convidado, é domínio da etiqueta.
A etiqueta tem seu papel destacado por fazer parte dos “significados mais profundos dos gestos e rituais que envolvem o contato humano” (CAMARGO, 2004, p. 55), facilitando o convívio e possibilitando o equilíbrio entre os vínculos humanos.
“A hospitalidade é uma maneira de se viver em conjunto, regida por regras, ritos e leis” não se restringindo a “bens de consumo, mas gentilezas, festins, ritos, danças e festas” (MONTANDON, 2003, p. 132).
Se hospitalidade associa-se, também às manifestações gentis expressas entre anfitrião e convidado, seja no modo de falar (agradecer um convite, elogiar um prato bem feito, por exemplo), seja no modo de agir (um cumprimento caloroso, um aperto de mão firme manifestando a satisfação do encontro ou reencontro, a disponibilidade manifesta em ofertar o lugar para outro sentar-se, entre outros), todos esses códigos verbais e não-verbais resultam em uma relação harmônica e saudável entre os convivas, na qual se prioriza a preocupação com o outro e o seu bem estar.
Dessa forma, percebe-se que a hospitalidade está entrelaçada com a etiqueta a qual nos oferece códigos e regras uniformes, tornando o receber mais previsível, agradável e inesquecível.
Para refletir sobre a etiqueta e a hospitalidade, privilegiou-se a comensalidade que tem como papel o compartilhamento à mesa, onde o comer juntos assume um significado superior à simples necessidade de se alimentar.
Assim, esta pesquisa tem por objetivo estudar a etiqueta e hospitalidade nos banquetes comemorativos, mais especificamente os banquetes de Natal e de Páscoa que são as duas principais festas do calendário cristão.
Para tanto, elegeu-se como campo de análise as recepções familiares oferecidas nas residências de cinco alunas do Curso de Tecnologia em Gastronomia em uma Instituição de Ensino Superior do Estado de São Paulo, caracterizando-se como uma pesquisa de caráter qualitativo, realizadas por meio de entrevistas semi-estruturadas. Tendo em vista a cultura e a tradição específicas presentes no receber em uma cidade do interior do Estado de São Paulo, acredita-se que os resultados apresentados poderão suscitar interesses de outros pesquisadores que trabalham com o tema.
Independentemente das regras sociais que a circundaram durante a história da humanidade, a etiqueta transparece em códigos de conduta que versam sobre o bem agir em sociedade para um melhor convívio social, baseado em regras que apontam para os modos à mesa de refeição, vestuário e linguagens verbais e não-verbais presentes no relacionamento humano.
A etiqueta, ontem e hoje, trata de regras que regem o comportamento das pessoas. É a maneira de se conduzir de acordo com regras pré-estabelecidas em uma sociedade com o intuito de ser agradável e se inserir no contexto.
Tais regras são válidas também no cenário à mesa que tem um papel fundamental no processo civilizatório do homem. As boas maneiras à mesa são tão antigas quanto à própria sociedade humana, e que por esse motivo não existe nenhuma sociedade que possa viver sem elas (VISSER, 1998).
Na contemporaneidade, o ato de alimentar-se adquire novo estilo decorrente das necessidades vigentes. Os costumes naturais são banidos e normas e regras são modificadas e recodificadas para atenderem às necessidades do homem atual.
Mantém-se a isenção de questionamento do ritual à mesa e respeitam-se formas pré-estabelecidas como corretas (VISSER, 1998). Cita-se como exemplo, aguardar a anfitriã levantar os seus talheres sinalizando aos outros comensais que a refeição está aberta e que todos podem iniciá-la, satisfazendo o apetite, porém atentos às regras de boas maneiras.
Atualmente, a etiqueta pode ser interpretada como um instrumento de competição e elitização social. Mas em outra vertente, ela está ligada ao respeito ao próximo, amabilidade, gestos corteses que enfatizam a importância do outro (alteridade) para o homem contemporâneo, pontuando e regendo normas de conduta que vislumbram adaptações a novos hábitos mundanos, pautados num relacionamento mais harmônico e agradável em sociedade.
À luz desse cenário, onde pessoas convivem com a pluralidade social, a partir de seus contextos históricos, e compartilham suas singularidades (realidade vivida e experimentada por cada indivíduo, no seu grupo social), explícitas ou implícitas no ato de receber, privilegia-se a hospitalidade que consolida as estruturas de relações, sendo considerada como uma relação social (GOTMAN, 2008).
Desta forma, as leis da hospitalidade vêm ao encontro às regras de etiqueta, ou vice-versa, delineando o cenário social das recepções domésticas.
Hospitalidade é fundamentalmente o ato de acolher e prestar serviços a alguém que, por qualquer motivo, esteja fora de seu local de domicílio. A hospitalidade é uma relação especializada entre dois protagonistas, aquele que recebe e aquele que é recebido, mas não é só isso (GOTMAN, 2008).
No cenário da hospitalidade, sugerido por Gotman (2008), surge o elo que vai estabelecer a relação entre o receber, que nesta pesquisa trata-se do espaço doméstico, e o como se recebe, levando-se em consideração a linguagem verbal e não-verbal presentes nas regras de etiqueta. Dessa forma, para refletir sobre a etiqueta e a hospitalidade nos banquetes comemorativos, sugere-se uma relação frutuosa entre os protagonistas (anfitrião e convidado), a fim de que os códigos sejam compreendidos mutuamente para que se estabeleça uma relação de troca e harmonia.
Pensar em receber pessoas, seja no âmbito doméstico ou comercial, requer sensibilidade para colocar-se no lugar do outro, sair de si (doação) e atender às necessidades do outro, contemplando seus desejos e expectativas.
Delimitando o cenário para esta pesquisa - o receber em casa de família - reflete-se sobre a incondicionalidade do ato de receber em prol daquele que se recebe, assumindo para si, o anfitrião, todas as responsabilidades, não só com a arrumação da casa e com as despesas financeiras, mas, sobretudo, em ser um fiel depositário de todas as expectativas do convidado, mesmo que para isso seja necessário colocar-se de lado e assumir os riscos provenientes de tal papel.
Receber transcende as regras escritas, sendo a hospitalidade uma estratégia para combater o “esvaziamento das relações humanas”, esclarece Camargo (2004).O autor aborda o assunto sobre as “leis tácitas” que compõem o ritual da hospitalidade desde as sociedades primitivas até os dias atuais, tendo como base a “tríade” - “dar, receber e retribuir”, constituída como dádiva para melhor entendimento das relações humanas.
A tríade da dádiva, sugerida por Mauss, e as leis não escritas da hospitalidade sugeridas por Camargo (2004) compõem o ambiente do receber no espaço doméstico e sustentam-se na medida em que a retribuição do convite feito gera outro
Na recepção doméstica, seja um convite para um almoço de domingo ou para uma ceia de Natal, presencia-se como eixo central da hospitalidade a oferta de alimentos e bebidas, pois estar à mesa suscita no ser humano um motivo para conviver e compartilhar com o outro suas alegrias, conquistas e histórias, esse é o primeiro ponto. Momento de comensalidade e de compartilhamento no qual a etiqueta e a hospitalidade se relacionam e, em muitos casos, o sucesso ou o fracasso de uma, define o destino da outra.
Se a hospitalidade se abre para o acolhimento e remete-se ao bem-estar do outro, necessário se faz o conhecimento das regras que norteiam o espaço onde se realiza, uma vez que, como frisado anteriormente, o receber se estabelece positivamente quando a linguagem verbal e não-verbal das regras da etiqueta se manifestam satisfatoriamente em ambos os lados (anfitrião e convidado).
Percebe-se que a etiqueta está imbricada nas recepções de hospitalidade, onde a sua essência se aproxima da hospitalidade por meio de um código social também não escrito, baseado no bom senso, na educação, na sensibilidade com o próximo. Dessa forma, parte-se do pressuposto que tais códigos se fazem presentes nas reuniões festivas em família.
Associadas às mudanças sociais da família, ao longo dos séculos, as festas cumprem seu papel na sociedade tradicional francesa, bem como na atual.
É oportuna uma reflexão acerca das práticas festivas que se produzem cada vez mais no sistema das relações de multidão, de grupo, com visibilidade das relações sociais criadas pela divisão do trabalho, pelas estruturas familiares e pelas estruturas políticas, ou religiosas (DUMAZEDIER, 1994).
Dumazedier (1994, p. 52) aponta novas características das festas religiosas ou políticas:
Hoje são mais fracionadas, mais voluntárias, menos ritualizadas. Percebendo, contudo, o desenvolvimento das reuniões festivas pequenas ou grandes, de todos os tipos, que acompanharam o aumento de tempo livre ao lado das festas rituais que, mesmo se mantendo, adquiriram novos caracteres de distração.
O autor contribui, para um melhor entendimento do assunto, ao citar que a palavra festa engloba aquilo que as festas se tornaram, não se podendo reduzi-la apenas às particularidades do passado, pois elas podem estar presentes ou ausentes.
A festa supõe uma reelaboração que ultrapassa o passado, ou então, é uma reprodução conformista de um velho rito social... A festa é uma luta entre “a criatividade que brota e a construção formal ou institucional inerente a toda e qualquer cultura” ou “ é uma simples sobrevivência ou persistência tradicional”. Ela pode afrontar as proibições ou consolidá-las [...] (DUMAZEDIER, 1994, p. 52).
Em outra vertente, nota-se que na sociedade atual a festa é associada cada vez mais ao divertimento coletivo como forma para melhor desenvolver sua defesa em um mundo difícil de viver, objetivando-se uma ligação mais humana, mais direta, mais afetiva.
A festa independente desligou-se da festa sagrada, assumindo, assim, um caráter de divertimento. O espetáculo torna-se fundamental ao lazer cotidiano. O lazer é mais valorizado, sendo possível uma expressão mais livre de si nas festas de todos os tipos, não somente das festas tradicionais.
Jesus Cristo é o grande protagonista das festas religiosas cristãs e, através Dele, exemplificam-se inúmeras cenas em que Ele está à mesa, compartilhando com as demais pessoas a visão igualitária da comunidade, apontando para a comensalidade e não para a caridade.
Orti (2007) cita que Jesus propunha aos seus discípulos aceitar a hospitalidade da casa que os recebe, comendo daquilo e da quantidade que lhes for oferecido, sendo este o “salário”, o alimento necessário para sustentar a missão. Ressalta, ainda, que esta seria uma das retribuições à interação do dar (a cura) e do receber (a libertação). Desta forma, o comer juntos e compartilhar a comida tornam-se uma transação que envolve uma série de obrigações mútuas e dá origem a um complexo interconectado de mutualidade e reciprocidade. Na possibilidade de compartilhamento da comida está implícita uma série de obrigações do dar, receber e retribuir. Percebe-se, nessa prática, a comensalidade como interação no ato de compartilhar comida e não esmola.
Para Jesus, a comensalidade era mais do que uma simples estratégia para sustentar a missão. Isso podia ser feito através de esmolas, da cobrança de uma remuneração ou da obtenção de um salário. [...]. A comensalidade na verdade, era uma estratégia para reconstruir a comunidade camponesa sobre princípios radicalmente diferentes daqueles citados pelo sistema de honra e vergonha, apadrinhamento e clientelismo.Ela estava baseada no ato de compartilhar de forma igualitária o poder espiritual e material, no nível mais popular (CROSSAN, 1994apud ORTI, 2001, p. 111).
Para Strong (2004, p. 53) “a Bíblia oferece uma grande quantidade de exemplos, das Bodas de Canaã ao milagre dos peixes, em que comer em conjunto constitui uma profunda expressão de amor, comunhão e companheirismo.”
A máxima da comensalidade na vida de Jesus é representada pela última ceia com seus doze apóstolos.
Por ser judeu, Jesus tinha a obrigação de celebrar a Páscoa seguindo os rituais próprios dos israelitas, conforme descreve Carmo Filho (2003, p.42-43):
Foi à mesa, num banquete judaico, que Jesus compartilhou os seus últimos momentos e despediu-se de seus apóstolos e, foi através dela, que fez da sua última refeição um banquete espiritual para os homens.Ao longo da história, os homens se reúnem à mesa para celebrar a Vida e a Morte, segundo as crenças religiosas cristãs. A mesa tem um papel simbólico no sagrado: lugar de respeito, ritualização, meditação, adoração, sacrifício e entrega.É no banquete de Cristo que se pode provar o seu “corpo e sangue”; é à mesa do Senhor que nos religamos a Ele e nos unimos como irmãos.
A mesa remete à partilha, e também à alimentação. Nesse sentido, o que se pode ou não comer se torna uma linguagem efetiva no calendário cristão e, sendo assim, é obedecida pelos fiéis que compartilham uma refeição de caráter sagrado.
Brito (2004, p.147) analisa as questões da alimentação num cenário diverso, mas também religioso:
[...] a ritualidade alimentar, culinária, gastronômica que marca os dias do calendário. Essa fortíssima ritualização está ligada tanto a proibições – coisas que não se podem comer – como as prescrições – coisas que se devem comer em certos dias. Períodos que são inaugurados, celebrados ou encerrados com “manjares cerimoniais” [...]. Manjar dá uma idéia de fartura, de sápido, de paladar acentuado, de excepcionalidade, enfim, de uma sensorialidade construída e exaltada. [...] deparamos com a poderosa linguagem da cozinha elaborada pelos calendários. [...]. Trata-se dos modos de comer, de avaliar os alimentos e de os organizar socialmente.
Para o presente estudo, é importante frisar, ainda, a associação de alguns animais às festas sagradas do Natal e da Páscoa, conforme destaca Brito (2004, p. 150):
[...] Mas a outros animais que aparecem com outra simbologia e se tornam os manjares de dias ou períodos marcados por interditos alimentares. Por exemplo, nas quaresmas não é permitido comer carne. São os períodos que antecedem as mais importantes festas do ano cristão, o Natal e a Páscoa. Nas vésperas, pode se comer a comida mais sólida e sápida possível, próprias de dias magros; então surgem o bacalhau e o polvo. [...] Em alguns lugares, na véspera do Natal, serve-se o polvo em vez do bacalhau. Na véspera, porque havia uma quaresma tão importante como a da Páscoa; quarenta dias de jejum antes do Natal.
Contata-se que essa preocupação sustenta-se nos banquetes comemorativos em casas de famílias, ou seja, todo o cardápio é preparado cuidadosamente para atender aos preceitos sagrados.
A preocupação com o hóspede, a preparação da mesa, a ornamentação do local da refeição, os cuidados com os utensílios constituem na sociedade atual uma preocupação do anfitrião que recebe para um banquete comemorativo, ainda mais quando se trata de banquetes de cunho religioso tão significativo para os cristãos.
As recepções familiares envolvem a família e, mesmo tendo sofrido significativas mudanças, não perderam o seu sentido maior: o de celebrar a união e a consolidação das relações entre os entes familiares e convidados externos a ela.
Como lembra Durkheim (1989 apud FIGUEIREDO, 2007) a festa ou recepção remete à troca, à partilha, à comunhão e à comensalidade. Em uma festa sempre estreita-se o ritual da sociabilidade, da doação, do aceitar e do retribuir em um vínculo infinito da hospitalidade.
Esse cenário contextualizado por Durkheim (2007) é percebido também nas recepções familiares buscando-se, através da hospitalidade no espaço doméstico, incluir os pequenos gestos do cotidiano que se processam em tal ambiente, buscando a contínua atenção aos convidados. (Camargo, 2004)
Camargo (2004, p. 53) salienta que “do ponto de vista histórico, o ato de receber em casa é o mais típico da hospitalidade e o que envolve maior complexidade do ponto de vista de ritos e significados”.
No receber, a preparação do espaço da casa, mobília, utensílios de mesa, decoração, higiene, entre outros são extremamente relevantes. Acrescenta-se a atenção dispensada pelo anfitrião aos seus convidados, tendo em vista que eles são o ponto máximo da festa. Nesse sentido, destaca-se que o saber receber constitui uma arte.
A recepção não se reduz a acolher os convidados e a dirigir a conversação, a comensalidade constitui o centro do evento. Nesse momento, os banquetes comemorativos, à Páscoa e o Natal, ocupam um lugar de destaque, uma vez que, à mesa será oportunizado ou acentuado o relacionamento entre os convivas, em um cenário envolto por encontros e reencontros, carregado de alegria, amizade e espírito fraterno.
Para a reflexão do papel da etiqueta nas reuniões festivas de como se recebe, no âmbito doméstico, o presente estudo, de natureza qualitativa, apoia-se na realização de entrevista semiestruturada, pautada em um instrumento de pesquisa, a fim de obter, por meio de narrativas, informações sobre etiqueta e hospitalidade nos banquetes comemorativos familiares baseados no calendário cristão.
Para tanto, a seleção das entrevistadas foi realizada por conveniência e pautou-se no seguinte perfil: alunas do Curso de Tecnologia em Gastronomia que cursaram a disciplina “Serviço de Sala e Bar”, casadas e que gostam e têm o hábito de receber em casa.
Tal escolha tem como justificativa o fato de a mulher ter um papel fundamental no contexto da hospitalidade no espaço doméstico, conforme evidencia Pilla (2004, p. 164) ao citar que:
A dona da casa deve, antes de tudo, usar de bondade e de indulgência para com todos os convidados, misturando sabedoria e elegância à simplicidade e ao tato, virtude que caracterizam os que são dotados de alma nobre e generosa [...]. Ela deve comer pouco, observar muito e não deixar que ninguém tenha tempo de formular um desejo. Deve entreter o espírito dos convivas que o tem, e não deixar os inteligentes se expandirem demais. Não deve se esquecer do conjunto geral e, sobretudo da harmonia das flores na ornamentação da mesa. Num jantar pode haver modéstia, mas nunca falta de gosto nem de gentileza.
Para a presente pesquisa, definiu-se o âmbito de cada categoria para facilitar a interpretação do corpus de pesquisa, focando-se em duas grandes áreas: hospitalidade e etiqueta.
Na grande área da hospitalidade, delimitaram-se as seguintes categorias pertinentes para análise, a saber:
- O convite
Esta categoria procurou verificar como é feito o convite pelo anfitrião e a leitura da receptividade sentida por parte do convidado. Portanto, as declarações abrangem descritivos da hospitalidade a partir do primeiro contato com o convidado, através do convite. A partir dos depoimentos aferidos observou-se que o convite proporciona uma expectativa, tanto por parte do anfitrião como do convidado, gerando um sentimento prazeroso de ambos os lados, uma vez que a oportunidade do encontro gerado pelo convite oportuniza uma experiência única e agradável.
- A preparação da casa
Esta categoria aborda a temática específica de como o arrumar a casa reveste-se de simbologias da hospitalidade que propõe a dádiva do sacrifício e doação por parte do anfitrião. Desta forma, selecionaram-se as declarações que contemplam os vieses para o bem receber no espaço doméstico. Detectou-se, a partir dos relatos, o esforço das entrevistadas em deixar a casa organizada, bonita, cheirosa e pronta para receber os seus convidados. Todos os detalhes, do arranjo de mesa à limpeza do banheiro, são pensados com esmero e atenção, a fim de que o espaço reservado ao acolhimento seja um cenário que traga conforto, satisfação e encantamento aos convidados.
- “Sinta-se em casa”
Esta categoria está envolta na cena hospitaleira, uma vez que o receber em casa sugere uma acolhida de modo a deixar o convidado o mais a vontade possível, a fim de que possa usufruir de tudo o que lhe será ofertado. Sendo assim, inclui citações sobre as atitudes, gestos e palavras das anfitriãs que sugerem um ambiente descontraído, a fim de atender aos anseios e necessidades do convidado. Evidenciou-se, através dos depoimentos, um acolhimento que vai ao encontro das necessidades do visitante, criando um ambiente de aproximação e descontração entre anfitrião e convidado. Porém, evidenciou-se, ainda, que as depoentes esperam atitudes, por parte dos seus convidados, que aliviem a sua sobrecarga como dona de casa.
Para análise da presença das regras da etiqueta nas recepções familiares, as categorias foram divididas em:
- Comportamento do convidado
Esta categoria avalia o olhar das anfitriãs para com o comportamento dos seus convidados. Portanto, as declarações abrangem o gestual, palavras e atitudes do visitante durante a hospitalidade recebida, com o intuito de verificar se os mesmos respeitam os códigos verbais e não verbais da etiqueta. Ao longo dos depoimentos, percebeu-se que os convidados das depoentes são pessoas que se preocupam em agirem de acordo com as regras da etiqueta, alguns em maior escala do que outros, porém todos são cuidadosos com o seu comportamento, revelando ao mesmo tempo a ética e a estética da conduta do homem em suas relações com seu semelhante.
- Arrumação da mesa e identificação de lugares à mesa
Esta categoria preocupa-se em verificar se as anfitriãs arrumam à mesa dos banquetes comemorativos a partir das regras de etiqueta. Desta forma, ressaltaram-se as declarações que evidenciaram o cuidado com a preparação da mesa de Natal e Páscoa, ressaltando as particularidades e personalidade de cada anfitriã. Ficou evidenciado, a partir dos relatos das depoentes, que nada foge aos olhares das anfitriãs para que tudo saia conforme planejado. À beleza de uma mesa bem posta à escolha dos lugares de cada convidado sugere que a hospitalidade e a etiqueta se unem com o objetivo de viabilizar a acolhida, proporcionando uma aliança entre anfitriões e convidados.
- Retribuição do convite
Esta categoria averigua a reciprocidade por parte do convidado com relação ao convite recebido, seja através da retribuição do convite gerado, ou mesmo, por um gesto gentil, através de um presente ofertado ao anfitrião ou palavras de agradecimento ou elogio por toda a hospitalidade recebida. Desta forma, os relatos transcritos expressam as obrigações recíprocas, conferidas nas regras de etiqueta. Percebeu-se, através dos depoimentos, que não há uma regra acentuada com relação aos presentes ofertados à anfitriã. Evidenciou-se também a retribuição do convite gerado por outro convite e, ainda, a retribuição em forma de ajuda durante a estadia na casa da anfitriã, numa devolutiva da hospitalidade. Observou-se, ainda, que todas as depoentes ficam felizes com tal retribuição, independente da forma como ela é expressa. Primeiramente, porque acreditam que a retribuição demonstra o sentimento de satisfação do convidado com o que lhe foi ofertado e, em segundo lugar, porque se sentem amadas e respeitadas.
- Apresentação pessoal
Esta última categoria avalia o que as entrevistadas declaram a respeito da preocupação com a imagem pessoal quando recebem no espaço doméstico. Procura-se identificar se existe, de fato, um espaço de tempo reservado, após terem preparado toda a casa e refeição, para dedicarem-se exclusivamente para uma apresentação pessoal condizente com o motivo da recepção. Portanto, buscou-se relatos que identificassem tais preocupações para acolher os convidados. Nos relatos das depoentes fica explícito que o visual, o belo está ligado também à preocupação com a roupa a ser usada no dia da festa como forma de homenagem ao convidado e à comemoração em si.
Diante dos depoimentos aferidos, as experiências descritas com relação ao receber, demonstram que tal prática associa-se a uma arte, pois todo artista precisa ser sensível a ponto de interpretar na essência o papel que desempenha, fazendo fluir toda magia e encantamento advindos do seu conhecimento e treino.
Nos relatos das depoentes fica explícita a ideia de doação, do entregar-se em prol de uma causa - a satisfação do convidado - envolto por um clima de festa, onde se comemora uma data significativa, seja de cunho social ou religioso, que requer cuidado e atenção do anfitrião em todos os aspectos (comida, bebida, decoração etc.). O entregar-se exige sacrifícios, mas este se reverte em prazer quando há a constatação de um ambiente acolhedor e recíproco, promovendo o estreitamento de laços, a partir do significado do que se comemora, neste caso, o Natal. Percebe-se, ainda, que o visual, o belo está ligado também à preocupação com a roupa a ser usada no dia da festa como forma de homenagem ao convidado e à comemoração em si. O doar-se advém da crença que é sempre possível fazer e dar mais em prol do outro e daquilo que se crê.
As manifestações das regras de etiqueta e de hospitalidade, referentes ao comportamento do homem em sociedade, estão diretamente relacionadas aos padrões de conduta de uma determinada época, ora com o papel de distinção social, como na corte francesa de Luís XIV, garantindo o poder e a soberania, ora como balizadora de uma convivência mais harmônica e respeitosa entre os seres humanos.
Evidencia-se uma estreita relação entre a etiqueta e a hospitalidade a partir de um comportamento uníssono entre anfitrião e convidado, resgatado pela tríade da dádiva, sugerida por Mauss (dar – receber – retribuir). Etiqueta e hospitalidade são conceitos que se inter-relacionam nessa tríade.
Nos relatos das depoentes, observou-se que, durante as festas comemorativas que são realizadas em suas residências, há, sempre, uma preocupação acentuada, enquanto anfitriãs, em atender e satisfazer plenamente seus convidados, oferecendo a eles o melhor possível, quer seja na qualidade ou quantidade material (comida, bebida e espaço físico), quer seja nas suas atitudes e palavras. Pode-se perceber, pelas entrevistas, que existe um retorno (retribuição) por parte dos convidados, forma de agradecimento por tudo o que está sendo a eles oferecido, fechando-se, assim o ritual que caracteriza a tríade da dádiva concluída.
Concluiu-se, ainda, a partir dos relatos das entrevistadas, que as regras de etiqueta permeiam as recepções sociais, mesmo aquelas de caráter doméstico. Tais regras não se manifestam pela rigidez de comportamento, mas por uma preocupação em atender alguns códigos de conduta em prol de um convívio mais harmônico e respeitoso.
A preocupação com o outro, o respeito, a doação, o sacrifícios se manifestam na etiqueta e na hospitalidade, da mesma forma que a cordialidade, mesmo por parte daqueles que são desprovidos de conhecimentos profundos sobre o assunto. Assim, atitudes de etiqueta, cordialidade e hospitalidade prevalecem, ainda, no campo das recepções em família. A busca pelo bem estar do outro aparece, continuamente, nas relações entre anfitrião e convidado, com destaque para o papel da etiqueta no respeito às regras não escritas da hospitalidade. Os diferentes grupos sociais podem ter diferentes regras de etiqueta e hospitalidade, mas elas, formal ou informalmente, estão presentes nas formas de receber de cada um.
Acreditamos que a principal contribuição deste estudo é, a partir da análise das entrevistas, entender que as regras da etiqueta e da hospitalidade ainda permeiam as atitudes sociais a elas relacionadas, desde as recepções mais complexas (aquelas que se caracterizam por acontecerem em meio às classes sociais mais altas ou aos cerimoniais políticos) e, particularmente, as que caracterizem os acontecimentos festivos comumente comemorados no meio familiar, mesmo que mais informais.
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