Elielson Oliveira Damascena (CV)
Francisco Vicente Sales Melo (CV)
Maria de Lourdes de Azevedo Barbosa (CV)
elielson27damascena@gmail.com
UFPE
Resumo
O desenvolvimento de ambientes que ofereçam, de forma satisfatória, possibilidades de inclusão a indivíduos que desejam exercer seu papel na sociedade é uma das formas de promover o bem-estar social. Neste sentido, este artigo objetiva discutir qualidade em ambientes de serviços sob a perspectiva dos consumidores com deficiência motora (cadeirantes). Buscou-se encontrar sujeitos de pesquisa em comunidades nas redes sociais, onde foram feitas oito entrevistas semi-estruturadas via e-mail. Realizou-se uma análise temática e discursiva das entrevistas. Observou-se que os deficientes analisam, prioritariamente, questões de acessibilidade antes de escolher os ambientes que irão frequentar. Além disso, esses ambientes geralmente estão ligados ao consumo hedônico e estes consumidores exercem forte influência sobre seus pares antes, durante e depois do consumo de serviços. Em termos de implicações gerenciais, apresenta-se como proposta pensar as barreiras do ambiente de serviços como patologias, assumindo que a deficiência está no ambiente e não no consumidor.
Palavras-chave: Ambientes de serviço, Qualidade de serviços, Cadeirantes, Bem-estar social.
IS THE DISABILITY IN THE SERVICE ENVIRONMENT OF IN THE CONSUMER? DISCUSSING QUALITY FROM THE PERSPECTIVE OF WHEELCHAIR USERS
Abstract
The development of environments that provide a satisfactory possibilities of inclusion for individuals who wish to exercise their role in society is one of the ways to promote social welfare.Thus, this article aims to discuss quality of services environments from the perspective of consumers with physical disabilities (wheelchair users). It was research subjects in social networks communities, where were implemented pre-structured interviews with eight consumers wheelchair users,via e-mail. It was conducted a thematic and discursive analysis of the interviews. It was observed that the disabled person analyze primarily accessibility issues before choosing environments that will attend.Moreover, these environments are typically connected to the hedonic consumption and these consumers have a strong influence on peers before, during and after consumption of services.In terms of management implications presents proposed to think environmental barriers as pathologies, assuming that the deficiency in the service environment, not the consumer.
Keywords:Service Environments.Service quality.Wheelchair users.Social welfare.
A atmosfera de um serviço se atribui a totalidade dos elementos físicos e não físicos que podem ser geridos com a finalidade de influenciar os comportamentos das pessoas, enquanto consumidores ou funcionários de uma organização. Estes fatores podem ser inúmeros e compreendem estímulos do ambiente como, iluminação, música, cheiro, equipamentos, cor e arquitetura. Esses itens, quando integrados, geram uma imagem da organização (BITNER, 1992).
Nas últimas décadas, vários estudos analisaram a influência de cada elemento que compõe o servicescape no comportamento dos consumidores. Por exemplo, avaliam a influência da luz ou cor (CROWLEY, 1993; SUMMERS; HEBERT, 2001; BABIN et al., 2003), música (BRUNER II, 1990; VACCARO et al, 2009), cheiro (REFERENCIA), dentre outros. Essas análises geralmente são feitas em diversos ambientes de varejo, como restaurantes e shopping centers (BITNER, 1992; BAKER et al., 2001). Cabe destacar que existe um caráter estratégico no desenvolvimento de um ambiente de serviços que é visto como vantagem competitiva (TULEY; CHEBAT, 2002). Isso porque a qualidade dos serviços prestados nesse ambiente é crucial para o processo de diferenciação em um macro-ambiente de alta concorrência (PARASURAMAN; ZEITHAML; BERRY, 1988; JAIN; GUPTA, 2004). Neste sentido, Baker et al. (2002) considera que todos os comerciantes buscam prestar serviços de qualidade para os seus clientes e que para isso é necessário entender seus comportamentos.
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) mais de um bilhão de pessoas com deficiências encontram dificuldades substanciais diariamente. A OMS (2011) entende que a deficiência é uma questão de direitos humanos e que não está apenas no corpo, mas também, no ambiente social, devendo ser entendida como a interação entre as características corporais de uma pessoa e as características da sociedade onde vive. No Brasil, 17,7 milhões de brasileiros, ou seja, 6,7% da população declararam possuir pelo menos uma deficiência ‘severa’, sendo que 2,3% são deficientes motores (IBGE, 2011).
As pessoas com deficiência (PcDs) vem, de forma crescente, buscando desenvolver e fortalecer mecanismos de inclusão e ampliar seus papéis sociais. No intuito de incluir as PcDs no mercado de trabalho, bem como estabelecer normas para garantir direitos civis, sociais e políticos, existem leis que estabelecem normas gerais e critérios básicos para a promoção da acessibilidade, por exemplo a Lei nº 10.098/00. Por outro lado, a Lei de Cotas (Lei nº 8.213/91) que determina a reserva de parte das vagas de empregos para pessoas com deficiência (PLANALTO, 2011).
Destarte, além de respeitar os aspectos legais da acessibilidade, comerciantes e prestadores de serviços devem buscar compreender quais as necessidades e anseios dos consumidores com deficiência e como desenvolver ambientes que possam gerar experiências satisfatórias para esse perfil de consumidor. Recentes pesquisas começam a estudar as PcDs no intuito de entender aspectos do comportamento de consumo desse público (MUELLER, 1990; KAUFMAN-SCARBOROUGH, 1999; BAKER; STEPHENS; HILL, 2001; BAKER; HOLLAND; KAUFMAN-SCARBOROUGH, 2007; FARIA; FERREIRA; CARVALHO, 2010; SHI; COLE; CHANCELLOR, 2012).
Para Mick (2006) viver e consumir estão interdependentes de forma tão complexa, que muitos sofrimentos e estresses são causados pelo comportamento de consumo ou poderiam ser amenizado com novos comportamentos. Assim, a Association for ConsumerResearch(ACR), discutindo a possibilidade de viabilizar pesquisas que focassem o bem-estar dos consumidores, observando desde aspectos como o consumo de álcool e drogas, violência em filmes, jogos e públicos desfavorecidos, fora dos interesses mercadológicos, como os deficientes físicos, gerou a expressão TransformativeConsumerResearch(TCR). Desse modo, acredita-se que está perspectiva representa o primeiro passo para que a pesquisa do consumidor seja desenvolvida para o benefício e bem-estar do ser humano.
Considerando a sociedade de consumo e que o desenvolvimento de ambientes que ofereçam, de forma satisfatória, possibilidades de inclusão a indivíduos que desejam exercer um papel social é uma das formas de promover bem-estar social, este artigo situa-se na perspectiva de TCR pelo fato de tentar contribuir com o melhor entendimento de um grupo específico de consumidores: os cadeirantes. A escolha deste perfil de pessoas se deu pelo fato de que é um grupo que habitualmente buscam viver experiências de consumo em seu cotidiano, além de ser um público que parte das empresas já se adaptou. Diante do exposto, este artigo objetiva discutir qualidade em ambientes de serviços sob a perspectiva dos consumidores com deficiência motora (cadeirantes).
Este artigo foi estruturado em três seções, além desta introdutória. Na seção seguinte, apresenta-se o referencial teórico sobre ambientes de serviços, qualidade de serviços e consumidores com deficiência. Na terceira parte são explanados os procedimentos metodológicos. Na quarta seção são expostos as análises e os resultados e em seguida as considerações finais.
Neste capítulo é apresentado o referencial teórico. Esta seção está divida em três partes onde serão abordados os seguintes temas: ambiente de serviços, apresentados os principais autores; breves considerações acerca da qualidade de serviços, primordialmente as dimensões do modelo SERVQUAL; os consumidores com deficiência motora, que sejam os cadeirantes e, por fim, expõe-se uma conexão entre os tópicos apresentados, de forma a facilitar as discussões. De acordo com Flick (2009) e Creswell (2010), a literatura na pesquisa qualitativa deve ser usada para dar suporte ao pesquisador.
Vive-se em ambientes artificiais e em uma sociedade de consumo focada do lucro máximo e na busca pelo prazer por meio da aquisição de bens e serviços. Desse modo, pressupõe-se que os ambientes no qual os serviços são ofertados, são preparados de modo a sanaros desejos e necessidades destas duas vertentes: empresa e consumidor.Nesse universo no qual o consumo é o personagem principal e o consumidor o coadjuvante, a influência do ambiente de consumo sobre as pessoas, clientes e funcionários, passou a ser estudada por diversos autores (KOTLER, 1973; BITNER, 1992; TURLEY; MILLIMAN, 2000; BAKER et al, 2001) por integrar parte deste cenário ilusório e reluzente.
Segundo Kotler (1973), a influencia do ambiente, no comportamento de compra, pode ocorrer em de três maneiras: a) gerando atenção (utilizando músicas, cores e outros elementos para se destacar entre os outros estabelecimentos), b) gerando mensagens (comunicando qual o público-alvo pretendido, qual o posicionamento da loja), e c) gerando afeto (os elementos da atmosfera podem ser trabalhados para despertar reações viscerais que influenciaram na probabilidade de compra). Na mesma linha de pensamento, Bitner (1992) afirma que o servicescapeé formado por uma complexa combinação de características ambientais que influenciam em comportamentos. Para a autora, existem três dimensões ambientais que podem ser controladas pela organização. São elas:
Baker et al. (2001) apresenta o ambiente físico como um composto de três fatores: a) ambientais: são condições que afetam os sentidos humanos como temperatura, iluminação, música, barulho e odor; b) funcionais: são mais visíveis que os fatores ambientais, podem ser funcionais (layout, conforto, privacidade) ou estéticos (arquitetura, cor, estilo); e c) sociais: são as pessoas dentro da loja, sejam vendedores ou clientes, e a forma como essas pessoas se vestem, se comportam ou interagem.
Turley e Milliman (2000, p. 194) revisaram diversos estudos sobre atmosfera e ambiente de loja e propuseram cinco variáveis que devem ser gerenciadas conjuntamente para contemplar os objetivos da estratégia do varejista:
Com a intensificação da concorrência, oferecer serviços de qualidade passa a ser um pré-requisito para o sucesso ― se não para a sobrevivência das organizações (PARASURAMAN; ZEITHAML; BERRY, 1988). O problema do conceito de qualidade em empresas de serviços relaciona-se às características inerentes aos próprios serviços e que os diferencia de produtos (JAIN; GUPTA, 2004). A qualidade neste setor surgiu como um conceito mais abstrato, diretamente relacionado à percepção do consumidor, logo difícil de ser mensurada.
Assim, o conceito de qualidade é entendido como a diferença entre a expectativa do consumidor “o que ele quer” e a percepção dos serviços efetivamente recebida, ou seja, “o que ele tem” (PARASURAMAN; ZEITHAML; BERRY, 1988). Para Lawthers et al. (2003), pensar a qualidade, em um contexto de cuidados com a saúde, como um conceito complexo e multi-dimensional é sempre relativo. Mas, acomodar-se com essa constatação é ingênuo, pois se deve ir além das fronteiras impostas pela polissemia do termo, tentando conceituá-lo em concordância com o objeto de pesquisa de cada estudo.
Considerando a importância da ideia de “qualidade”, Parasuraman, Zeithaml e Berry (1988) procuraram e elaboraram um instrumento que fosse capaz de mensurá-la. Assim, os autores propõem e validam em 1985 a SERVQUAL, uma escala para mensurar a percepção do consumidor acerca da qualidade de um determinado serviço. A SERVQUAL apresenta cinco dimensões, de acordo com Parasuraman, Zeithaml e Berry (1988, p. 23):
As pessoas com deficiência, historicamente, enfrentam um processo de estigmatização relacionado às suas deficiências e isso pode influenciar no acesso a serviços, bem como a comunicação e compreensão de desejos e necessidades (LAWTHERS et al., 2003). Link e Phelan (2001, p. 375) definem estigma como uma “... convergência de componentes inter-relacionados. Assim, o estigma existe quando elementos de rotulagem, os estereótipos, separação, perda de status, e a discriminação ocorrem juntos”. Esse processo de estigmatização com relação aos PcDs pode deixá-los à margem de processo de consumo ainda que eles frequentem ambientes de serviços.
Os consumidores com deficiência são um segmento de compra importante e cada vez mais poderoso (GOODRICH; RAMSEY, 2011). Em um setor específico, o de turismo, Shiet al. (2012) considera que o número de estudos desenvolvidos na última década destaca o potencial das PcDs como segmento de mercado. Os autores ainda ressaltam que é necessário o desenvolvimento de mais pesquisas para entender as motivações, atitudes e comportamentos desse público.
Com relação aos ambientes, os consumidores com deficiência, formularam respostas específicas baseadas na acessibilidade ou nas barreiras percebidas, ocorrendo ainda avaliações quanto à capacidade das organizações de se adaptarem ou perceberam os benefícios positivos e negativos com relação aos custos de participar de um determinado ambiente. Assim, os consumidores poderão avaliar os ambientes como sendo propícios ou adequados ou até mesmo “deficientes” (BAKER; HOLLAND; KAUFMAN-SCARBOROUGH, 2007), mostrando o uso desse termo também para evidenciar problemas estruturais de determinados estabelecimentos.
Por estes consumidores fazerem parte de um grupo de pessoas geralmente com a saúde mais frágil, necessitam de mais cuidados médicos e hospitalares. Partindo desta premissa,o tema transformou-se em um campo político de disputa de poder e surgimento de movimentos sociais em prol dos PcDs. Como por exemplo, o desenvolvimento de instrumentos legais que garantem os direitos dos deficientes, ocorrendo uma crescente preocupação com a qualidade dos serviços de saúde prestados às pessoas com deficiência (LAWTHERS et al. 2003).
A razão para a apresentação desse modelo (Figura 1) reside no fato de que ele foi criado em um contexto de serviços de saúde, onde a pessoa com deficiência é naturalmente vista como consumidora, abordando a criação de ambientes de serviços para que esse público possa ter acesso de forma satisfatória.
O processo tem início com um PcD acessando o ambiente para a aquisição de um determinado serviço; no caso do modelo apresentado por Lawthers et al. (2003), trata-se de um serviço de saúde. O acesso para a aquisição deste serviço pode ser afetado pelas barreiras, representadas pelos “X’s” ou pelos facilitadores, representados pelas setas. Segundo Lawthers et al. (2003) essas barreiras podem ser geográficas, financeiras, organizacionais ou culturais.
Sassaki (2003) assume que existem três tipos básicos de barreiras: as atitudinais e comunicacionais, referentes ao pessoal de contato, as arquitetônicas, referente ao desenho do ambiente físico e aos elementos que o compõem. O entendimento de como o consumidor com deficiente interpreta o ambiente e interage com ele é fundamental para anular ou minimizar essas barreiras (REICHEL; BRANDT, 2011; SHI; COLE; CHANCELLOR, 2012). Sempre que uma barreira deixa de existir, surge um facilitador de acesso que pode ser a adaptação do ambiente, criando designes universais, como foi destacado por Mueller (1990), bem como treinamento o pessoal de contato.
Após o acesso, o cliente então recebe o serviço e pode fornecer feedback acerca da qualidade do acesso para a coordenação ou gerência e, após a prestação do serviço, o consumidor pode oferecer feedback acerca do serviço per si, e das ações da organização, de maneira holística (LAWTHERS et al., 2003).
Acredita-se que os responsáveis por desenvolver os serviços em gerais deveriam observar esse modelo ao perceber a pessoa com deficiência como consumidor em potencial.
Na próxima seção, são apresentados os procedimentos metodológicos referentes à coleta e análise dos dados.
Na figura 2, ilustra-se a relação entre os tópicos apresentados no referencial teórico.As relações dos consumidores com o ambiente físico podem ser afetadas pelos elementos tangíveis do ambiente, bem como as relações entre os consumidores e o ambiente social podem ser afetadas pelas dimensões confiabilidade, responsividade, confiança e empatia. Considera-se que todas as dimensões do SERVQUAL podem ser afetadas por estigmas sofridos pelos consumidores cadeirantes. As dimensões do SERVQUAL relacionadas ao ambiente social podem ser afetadas pelos estigmas a partir do momento que podem causar barreiras comunicacionais e atitudinais (SASSAKI, 2003). A dimensão “elementos tangíveis” é afetada pelos estigmas, a partir do momento em que concepção do ambiente físico não se considera o cadeirante como um consumidor potencial, ocasionando desde a concepção do ambiente, as barreiras arquitetônicas. Por fim, considera-se que as dimensões do SERVQUAL podem se configurar como barreiras ao acesso dos serviços (X’s) ou facilitadores de acesso aos serviços (setas)(LAWTHERS et al., 2003).
Nesta seção do artigo são apresentados os procedimentos metodológicos e analíticos utilizados para compreender as nuances do fenômeno sob investigação. Dentre os vários métodos de pesquisa existentes, optou-se neste artigo por trilhar o caminho da pesquisa qualitativa básica. De acordo com Minayo (1998) e Merrian (1992), esse tipo de delineamento de pesquisa é indicado quando se objetiva compreender a subjetividade dos atores, no caso deste estudo, os consumidores cadeirantes.
Em linhas gerais, toda pesquisa social empírica demanda que seja realizada uma seleção de evidências, as quais servem como base da investigação, seja para fins de descrição, prova ou refutação do fenômeno em questão. Portanto, seguindo as recomendações propostas por Bauer e Gaskell (2002) e Sardinha (2000), foi construído um corpus de pesquisa como princípio norteador para coleta de dados. A análise de conteúdo, associada e a análise do discurso foram às metodologias utilizadas para descrever e interpretar o conteúdo dos documentos manipulados neste estudo.
A construção do corpus de pesquisa é considerada uma das etapas primordiais para consecução de uma investigação de cunho qualitativo (SARDINHA, 2000). De acordo com Bauer e Aarts (2002, p. 45) corpus, de forma mais específica, corpuslinguísticoé“um material escrito ou falado sobre o qual se fundamenta uma análise linguística” e, a construção do corpus é critério tanto de confiabilidade quanto de validade nas pesquisas sociais (MINAYO, 1998;SINCLAIR,1991;BAUER; AARTS, 2002).
O corpus dessa pesquisa foi constituído exclusivamente por entrevistas pré-estruturadas e via e-mail. Sendo realizada em consonância com Flick (2009) na qual uma das condições prévias para sua realização é o pesquisador ter acesso, conhecer e dominar os códigos do mundo online, gostar de trabalhar nele e o entrevistado tem que estar disponível e ser facilmente encontrado. Partindo deste ponto a primeira fase da pesquisa deu-se com a busca por site, blogs e comunidades nas redes sociais sobre os cadeirantes, efetuando-se uma busca por endereços de e-mail em 3 comunidades: “Deficientes do Brasil”, “Cadeirantes” e “Mão na Roda”. A escolha dessas três comunidades fundamentou-se nos seguintes critérios: são nacionais, com diversidade de gênero e formadas por deficientes motores, em sua maioria, cadeirantes.
Em seguida, fez-se o primeiro contato com 38 possíveis entrevistados informando-os o caráter do estudo, sua importância, objetivos e relevância para a área. A segunda fase ocorreu com os internautas que concordaram em participar da pesquisa e declararam acessar serviços com frequência, formando um grupo de 8 entrevistados. A caracterização dos sujeitos de pesquisa encontra-se no capítulo destinado aos resultados e discussões.
Elaborou-se um formulário contendo 12 questões abertas voltadas a busca de informações sobre: a) rotina de consumo em ambientes de serviços (frequência, companhia, tipos de serviços e formas de busca de informações acerca dos ambientes); b) relatos detalhados acerca de incidentes críticos, positivos e negativos, em ambientes de serviço; c) relatos acerca das emoções relacionadas às vivências em ambientes de serviços e; d)aspectos físicos dos ambientes onde os serviços eram acessados.
Concluída a primeira fase da pesquisa, os procedimentos de análise foram iniciados. As entrevistas foram analisadas pela ótica da analise temática e discursiva. Segundo Vergana (2005) a grade de análise mista pressupõe análise de categorias. As categorias foram definidas a posteriori, sendo elas: relações com o ambiente físico (elementos tangíveis) e relações com o ambiente social (confiabilidade, responsividade, confiança e empatia), assim, foram estabelecidas duas categorias que englobam as cinco dimensões da SERVQUAL, porém, na apresentação dos resultados e discussões, essas duas categorias são discutidas em um único tópico, por haver forte conexão entre as duas. Durante a análise das falas, surgiu a necessidade de criar uma categoria para discutir o “estigma”, uma vez que este se apresentou como uma possível barreira ou causa para barreiras relacionadas a aspectos da qualidade nos serviços acessados.
Consoante às recomendações de Bardin (1977), Miles e Hubberman (1994), Bauer e Aarts (2002), a operacionalização do processo de categorização das unidades de significado em cada entrevista baseou-se nas etapas descritas a seguir. Na primeira etapa, foi atribuída a cada entrevistado uma legenda própria composta pelas três primeiras letras de seus nomes. Esse procedimento visou facilitar a identificação de cada participante, por parte dos pesquisadores, bem como manter sigilo de suas identidades.
Na próxima seção, são apresentados os resultados e discussões do estudo.
Neste capítulo são apresentados os resultados e discussões. Inicialmente, são apresentadas as principais características dos sujeitos de pesquisa, bem como aspectos relacionados aos comportamentos de consumo dos entrevistados. Em seguida, são discutidos relações entre os indivíduos e os aspectos físicos e sociais dos ambientes de serviços, considerando que nessas duas divisões (físico/social) são discutidos as cinco dimensões do SERVQUAL. Por fim, discute-se o estigma sofrido pelo grupo estudado, em momento de consumo de serviços.
Com relação à caracterização dos sujeitos de pesquisa, destacam-se os seguintes aspectos: 4 do sexo masculino e 4 do sexo feminino, 4 são servidores público, 1 é profissional autônomo, 1 é promotor de vendas, 1 é estudante e 1 é aposentado. As idades variam entre 22 a 51 anos e as rendas familiares variam entre R$ 1.500,00 a R$ 6.000,00.
Para Goodrich e Ramsey (2011) os varejistastendem a definiracessibilidade comoestar prontopara reagir a um problema do consumidor, enquanto os consumidores com deficiênciaquerem que potenciais problemas sejam identificados eresolvidoscom antecedência. O fato é que a acessibilidade percebida torna-se um aspecto crucial para a escolha do estabelecimento onde se comprará o serviço, uma vez que a percepção de qualidade no serviço prestado depende da percepção do consumidor (PARASURAMAN; ZEITHAML; BERRY, 1988). Como identificado nas falas a seguir:
O principal critério é se tem acesso, me sinto muito incomodada quando chego no lugar e tem vários degraus e ficam tentando ajuda subir a cadeira nos braços isso é constrangedor[EN.3].
Acessibilidade em calçadas ou banheiros adequados. Chegar em um bar e ver que ele tem uma calçada adequada para um cadeirante e um banheiro que eu possa usar[EN.1].
Sim. Informo-me sobre a acessibilidade e formas de pagamento. Geralmente me informo por meio de site ou telefone [EN2].
A identificação de evidências que comuniquem acessibilidade garante a escolha de um ambiente em detrimento de outro, uma vez que essas evidências comunicam que o varejista identificou com antecedência uma necessidade do consumidor, demonstrando preocupação em oferecer um serviço de qualidade.
Pelos aspectos de comodidade e segurança apresentados pelo varejo virtual, os participantes indicam preferir comprar pela internet. No entanto, quando perguntados sobre os ambientes que mais costumam frequentar, observa-se uma predominância de ambientes que ofereçam serviços relacionados a consumo hedônico, como bares, restaurantes, pizzarias, sorveterias, logo, ambientes que não podem ser substituídos por uma loja virtual.
As compras utilitárias parecem ficar a cargo de outro membro da família, como mãe e irmão e os momento de compra, embora alguns apresentem como raros, parecem estar associados a sensações positivas, como pode ser observado na fala do EN2: saio “somente quando preciso de algo e quando outra pessoa não pode comprar para mim, embora goste de ‘bater perna’ pelas lojas”. Cabe ressaltar que alguns participantes declaram ter a necessidade de sair de casa para realizar compras utilitárias, pois nem sempre dispõem de alguém para fazê-las. Alguns relados mostram bem essa afirmativa:
Toda semana vou fazer compras, às vezes, é só para o dia-a-dia tipo consumo diário mesmo [EN3].
Todo o dia sozinho, cadeira motorizada. Dispenso auxílio pois só compro em empresas com acessibilidade [EN.7].
As barreiras arquitetônicas referentes ao desenho do ambiente físico e aos elementos que o compõem, de acordo com Sassaki (2003), podem influenciar a qualidade percebida pelos consumidores, uma vez que estão relacionados à dimensão “elementos tangíveis” do SERVQUAL.
Baker et al. (2007) assume que em ambientes de varejo “cumprimento não é sinônimo de boas-vindas”, ou seja, existe uma linguagem do ambiente de serviços que comunica se o consumidor com deficiência é bem vindo ou não. Essa capacidade de comunicação da atmosfera há muito já foi salientada por Kotler (1973).
Não gosto quando sinto que a presença causa uma “perturbação”, ou seja, quando muita coisa tem que ser mudada por causa da minha presença, mesmo sabendo que isso é o meu direito. Gosto quando sou bem recebido, assim como aos demais clientes, e quando o estabelecimento está pronto para me receber [EN.2].
No estudo de Reichel e Brandt (2011), os autores indicam que para que um ambiente seja notado como acolhedor ele deve passar a ideia de respeito com as pessoas com deficiência. O senso de respeito surge e é notado no ambiente físico tanto quanto no social.
Em muitos depoimentos é possível notar uma noção de desrespeito sendo causada por elementos do ambiente físico, para só depois culminar em um desrespeito na interação social. Ora, se de acordo com Bitner (1992) o ambiente é capaz de influenciar as ações dos funcionários, assim como dos clientes, logo não ter um ambiente físico que passe a ideia de que o cadeirante é bem-vindo influenciará na forma como o pessoal de contato trata esse consumidor. As falas seguintes ilustram como se dá esse processo de desrespeito em cadeia.
O participante 2, quando foi a um estúdio de fotografia tirar a foto de formatura com a turma, conta: “O estúdio da empresa era no 2º andar e, por isso, não pude tirar a foto junto com a turma. Para ‘resolver’ o problema, tiraram as minhas fotos separadamente para fazer a montagem posteriormente, o que já não seria de qualidade semelhante à foto normal”.
Há uma adaptação na prestação do serviço graças ao fato do ambiente não ser adaptado. Nota-se que essa adaptação não oferece um serviço de qualidade, já que o participante escreve resolver entre aspas.
O depoimento continua: “Na foto da placa, fizeram a montagem. Contudo, ‘esqueceram-se’ de fazer o mesmo com a foto da turma no álbum. Em todos os álbuns da turma, minha foto não apareceu. Isso foi revoltante, mas não exigi a reparação. Não gosto de me expor e de brigar”. Na segunda parte, pode-se observar uma prestação de serviços de baixa qualidade. Este teve inicio na inadequação de elementos tangíveisem duas dimensões, sendo a primeira ‘confiabilidade’, uma vez que o serviço não foi entregue com prometido, e, a segunda ‘responsividade’ pois, como o respondente escreve esqueceram-se entre aspas, entende-se que na percepção dele não houve boa vontade por parte dos prestadores do serviço.
Abaixo, é exposta outra fala que ilustra essa ligação ambiente físico/social.
Foi horrível, num Supermercado onde eu cai de uma calçada que tinha altura acima de 1 metro. O pior foi ver que o gerente nem me ajudou a me levantar do chão... [EN3].
Sassaki (2003) afirma que existem barreiras atitudinais e comunicacionais, que estão relacionadas ao pessoal de contato. Assume-se que estas barreiras podem afetar as seguintes dimensões do SERVQUAL: confiabilidade, responsividade, confiança e empatia.Embora empatia também possa ser discutida a partir da empresa como um todo, e logo, uma empresa que não prepara o seu ambiente físico para receber um consumidor com deficiência não estaria sendo empática. Nessa sessão, a empatia será abordada sob o aspecto social, mas relacionada ao pessoal de contato.
Em alguns depoimentos é perceptível a falta de empatia associada à falta de bom senso ou de despreparo do funcionário para lidar com a PcD.
... o que mais me incomoda é quando estou com outra pessoa eles me ignoram, perguntam para o meu acompanhante o que é que eu vou beber, comer... Como se eu não tivesse a opção de fazer a minha própria escolha [EN.4].
Em outros casos, é possível notar a empatia tanto no funcionário quanto no ambiente físico. O que pode gerar uma percepção de alta qualidade no serviço prestado. Essa percepção, segundo Mittalet al. (1998) gera boca-a-boca positivo e lealdade do consumidor.
Era bar (...) Tocava MPB ao vivo, eu gostava muito até que chegou a hora de esvaziar um pouco a bexiga. E pensei: “está na hora do constrangimento!” Chamei o garçom e pedi-lhe que me conduzisse até um carro que estava estacionado um pouco distante para eu urinar e ele me disse em seguida: “Aqui tem banheiro!” E o respondi com uma pergunta: “Eu sei. Mas, entra cadeira de rodas?” E para minha surpresa, ele respondeu: “Entra sim. Fui eu quem organizou tudo e pedi que o banheiro fosse também adequado para cadeirantes. Os donos não queriam, achavam o gasto maior. Mas, eu insisti e está aí um banheiro melhor para todos.” Hoje virei freguês do bar [EN.5].
Ainda quando existem barreiras arquitetônicas que dificultem a prestação de um serviço de qualidade para o cadeirante, é possível atenuar essa barreira com respostas rápidas e adequadas para o consumidor, como é exemplificado abaixo.
Em uma livraria de São Paulo, dentro do Shopping Santa Cruz, (...) [os vendedores] fizeram de tudo para que os livros que estavam em um acesso difícil ficassem a minha disposição o tempo que eu quisesse até escolher qual comprar e dispuseram dois funcionários para me ajudar [EN.4].
Além da responsividade, a cortesia dos funcionários criaram uma percepção de boa qualidade em um serviço que, a priori, seria prejudicado por aspectos ligados ao ambiente físico. O contrário ocorre na fala seguinte, onde é possível notar falta de responsividade, confiança e empatia.
... eu lhe disse: “Eu quero comprar um eletrônico destes”, mostrei meu pen drive velho para ele. E só me mostrou o caminho por onde eu devia ir: “É por ali senhor!”, mas em distâncias longas eu não consigo andar só, então pedi que ele me levasse e ele disse que iria buscar outro funcionário para me ajudar. Demorou tanto tempo, que não eu não podia mais esperar, até que resolvi pedir ajuda para pessoas que não tinham nada a ver comigo ou com o supermercado. Além de eu ficar esperando por uma ajuda deles (Funcionários), ainda pensaram que eu estava mendigando [EN.5].
Os estigmas podem funcionar como barreiras e dificultar a comunicação das necessidades do consumidor com deficiência, bem como o entendimento dessas necessidades (LAWTHERS et al. 2003). Embora autor elenque a questão financeira como uma barreira para a aquisição de serviços de saúde de qualidade, aqui a questão financeira surge como o resultado de um estigma sócio-histórico de que o deficiente vive, em termos econômicos, totalmente à margem da sociedade.
Quando a pessoa me colocou no local que pedi (...) logo veio um funcionário e disse-me que ali não era local de ficar minha cadeira de rodas. Acho que ele pensava que eu iria pedir esmolas [EN.5].
Quando um vendedor faz o seguinte comentário "você não quer ver esse produto é mais barato". Como só por eu ser deficientefísiconão tivesse condições de comprar coisas boas e caras [EN.4].
... me sinto bem é nas pousadas quando me hospedo, apesar de não serem adaptadas, a grande maioria, pelo menos não ficam me achando uma coitadinha, não sei se pelo fato de que se eu to hospedada é porque posso pagar, é o lugar onde me sinto melhor [EN.3].
Em um supermercado de grande porte, onde o tempo todo que eu estava fazendo as minhas compras, ficou um segurança do estabelecimento me seguindo onde quer que eu fosse [EN.4].
Assim, a barreira financeira, quando não existe efetivamente, existe como forma de estigmatizarão do deficiente como alguém incapaz de pagar pelos serviços. Como o deficiente é historicamente rotulado como alguém que está à margem da sociedade, há uma perda de status com relação à capacidade de assumir o papel de consumidor (LINK; PHELAN, 2001).
O estudo permitiu verificar que os consumidores cadeirantes analisam primordialmente a acessibilidade do ambiente de serviços, uma vez que as evidências físicas acabam por comunicar quando um ambiente de serviço é ou não ‘deficiente’ para receber um consumidor cadeirante. Logo, as evidências de acessibilidade são preponderantes para a escolha.
Com relação ao grupo estudado, os mesmos apresentam preferências por ambientes de serviços ligados ao consumo hedônico e quase sempre estão acompanhados por pares. Logo, um ambiente de serviços que seja escolhido por um cadeirante pode passar a ser escolhido por outros membros da família ou amigos. Portanto, a criação de um ambiente de serviço receptivo e adequado deve ser vista como uma forma estratégica de diferenciação que pode atrair e fidelizar não só os consumidores com deficiência, mas também seus pares.
Deve-se considerar a possibilidade de que um funcionário em um ambiente visivelmente adaptado para receber o PcD deve ser capacitado adequadamente, visto que suas atitudes voltadas a recepção e atendimento podem influenciar na avaliação desse consumidor, uma vez que é possível notar incidentes negativos ligados às relações com o ambiente social como sequência de um incidente negativo relacionado ao ambiente físico.
Em termos de implicações gerenciais, apresenta-se como proposta pensar as barreiras do ambiente de serviços como patologias, assumindo que a deficiência está no ambiente e não no consumidor. Essas patologias devem ser identificadas tanto no ambiente físico quanto no ambiente social, sabendo que esses dois ambientes encontram-se imbricados, e que as patologias de um acarretarão em novas patologias no outro. Se o cadeirante encontra um ambiente físico e social acessível poderá participar dele de forma eficiente.
Outro aspecto a ser considerado pelos varejistas é a possibilidade de pensar que algumas mudanças podem ser implementadas sem a necessidade de grandes orçamentos, uma vez que muitos incidentes negativos seriam evitados com pequenas ações como treinamento de pessoal de contato, para disseminar boas maneiras no trato com esse público, bem como minimizar o estigma relacionado ao PcD, ou ainda, pequenas adaptações no ambiente físico, como a construção de rampas ou adaptações no arranjo físico. Além de proporcionar satisfação, proporciona bem-estar social para os mesmos.
A limitação do estudo está relacionada ao método uma vez que Flick (2009) destaca que a entrevista on-line substitui a espontaneidade da troca verbal pela reflexividade de trocas escritas, perdendo-se partes não verbais ou paralinguísticas da comunicação. Por outro lado, acredita-se que esta estratégia metodológica adotada não reduz a relevância do estudo. Sugere-se a realização de novos estudos com a utilização de outros métodos e perspectivas objetivando aprofundar o conhecimento sobre o comportamento dos consumidores com diversos tipos de deficiência.
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