Marcos Mondardo
marcosmondardo@yahoo.com.br
Universidade Federal da Bahia
Resumo:
Na América Latina os novos movimentos sociais trazem à tona, por meio da disputas territoriais, a questão do nascimento de novas e insurgentes territorialidades. Se o mundo moderno-colonial inventou uma territorialidade moderna-ocidental avessa à diferença e alteridade, os movimentos de resistência e de luta latino-americanos que afloram trazem à luta pelo território como política de reconstrução e afirmação de identidades coletivas. No Brasil o trânsito identitário das populações tradicionais como os povos indígenas, comunidades quilombolas, caiçaras, pescadores, camponeses/agricultores familiares, extrativistas da seringa, da castanha, do babaçu, ribeirinhos, geraizeiros, cerradeiros, beiradeiros, apanhadores de flores trazem à agenda de discussões o devir de territorialidades pós-coloniais. Este artigo se propõe a problematizar essas questões.
Palavras-chaves: América Latina, sociedade moderna-colonial, novas territorialidades.
Resumen:
En América Latina los nuevos movimientos sociales sacan a la luz a través de las disputas territoriales, la cuestión del nacimiento de nuevas e insurgentes territorialidades. Si el mundo la territorialidad moderno-colonial inventó una moderna occidental de aversión a la diferencia y la alteridad, los movimientos de resistencia y de lucha que surgen en América Latina aportan a la lucha por la reconstrucción política y territorio y la afirmación de las identidades colectivas. En Brasil, el tránsito de la identidad tradicional de los pueblos indígenas, las comunidades quilombolas, caiçaras, pescadores, campesinos y campesinas, agricultores familiares, los recolectores de la jeringa, la tuerca, babasú, geraizeiros limítrofes, cerradeiros y beiradeiros, los recolectores de llevar flores a la agenda los debates de convertirse en la territorialidad post-colonial. Este artículo pretende discutir estos temas.
Palabras clave: América Latina, la sociedad colonial-moderna, nueva territorialidad.
Introdução
O mundo moderno-colonial inventou uma territorialidade moderna e ocidental por meio da ascenção da Europa como epicentro do comando da expansão do capitalismo (MIGNOLO, 2003). Essa territorialidade passou a ser construída pelo nascimento dos Estados nacionais, definida e delimitada pelo território soberano do Estado, foi produzida num longo e contínuo processo de definição de uma identidade que se impôs como homogênea e universalizante.
Nesse movimento outras territorialidades foram sendo ocultadas, dizimadas e invisibilizadas no processo de constituição da sociedade moderna-colonial em estruturas territoriais chamadas de Estados nacionais. A ideia-força da nação passou a ter como referência imprescindível um território concreto indivisível, com soberania e fronteiras claramente delimitadas e com uma identidade territorial construída por um sentimento nacionalista de pertencimento, inventada por símbolos e tradições, no sentido também de uma “comunidade imaginada” (ANDERSON, 2005).
Com essa expansão de um modo universal de construção do mundo, o modelo ocidental e eurocêntrico foi constituindo e dividindo o que é, de um lado, moderno, e o que é de outro, tradicional. Com isso, a modernidade foi se impondo como movimento universalizante, pois é definida como único caminho para o progresso e desenvolvimento da sociedade, do mundo, dos lugares. E é assim que em cada lugar, as territorialidades consideradas não modernas, tradicionais ou “arcaicas”, foram inferiorizadas, senão, dizimadas, no processo de constituição das sociedades estatais.
Desse modo, propomos rasgar alguns silêncios epistêmicos no que diz respeito à constituição da sociedade moderna-colonial, trazendo à agenda de discussão a negação da alteridade, da relação com o Outro, como foi construído o cânone fundante dos Estados nacionais. Como alternativa, é necessário pensar os movimentos sociais contemporâneos de luta e resistência na América Latina pelo acesso a terra e território pelas chamadas populações tradicionais, indígenas, quilombolas, cerradeiros, seringueiros dentre outros como forma de questionar a modernidade universalizante. Territorialidades insurgentes e alternativas que buscam a construção de uma terra plural e legítima reivindicando territórios para a reprodução de seus modos de vida.
Para isso, devemos “jogar” na contra luz os resíduos irredutíveis da modernidade-colonial para a construção ou reconstrução de uma nação mais porosa e com categorias de identidades mais abertas (ANZALDÚA, 1987 e 2000) por meio de novas e insurgentes territorialidades antropofágicas (HAESBAERT, 2011, HAESBAERT E MONDARDO, 2010), ou pós-coloniais (PORTO-GONCALVEZ, 2002) as quais devem ter como epicentro a construção de uma identidade em trânsito pela potencialização da alteridade, da diferença, como elementos constituintes de suas resistências e lutas sociais.
Encontro e coexistência espacial com o Outro no contexto latino-americano: da negação da diferença ao trânsito identitário
Torna-se comum, hoje, no contexto latino-americano discutir a diferença, a identidade, a alteridade, a cultura, a desterritorialização dentre outros termos/noções que emergem e transbordam na academia, na mídia e na sociedade para representar, via de regra, a “falta” de identificação das pessoas com as culturas e os lugares em um mundo em constante e acelerada mutação.
Essa mutabilidade de nosso tempo e espaço diz respeito a um conjunto de transformações econômicas, políticas e culturais vivenciadas, que alguns referendam como resultado da relação entre o local e global (SOUSA SANTOS, 2005), à reestruturação do capitalismo na sua “era de servidão financeira” (OLIVEIRA, 2007), ou, que estão associados às várias crises propaladas, seja do trabalho, financeira, ambiental, do Estado, da étnica, dos valores e, ainda, ligados aos fenômenos da globalização como a “compressão tempo-espaço” (HARVEY, 1994), “alongamento espaço-temporal” (GIDDENS, 1991) e “aceleração da história” (SANTOS, 2006).
Nesse “excesso” de transformações, da técnica, da ciência, da informação, da étnica, vivemos uma realidade que se complexifica a cada momento e que elege novos elementos tecnológicos e sociais como definidores/mediadores da nossa vida de relações. Alguns desses elementos dizem respeito à mobilidade e aos processos de desterritorialização e reterritorialização (HAESBAERT, 2004), ou seja, ao movimento de construção e desconstrução de fenômenos de identificação e pertencimento territorial. As nuanças são tão grandes, que se chega até a falar de “desidentificação” de pessoas em relação à suas culturas, seus lugares, seus grupos em um mundo repleto de variáveis e significantes sociais e/ou territoriais emaranhados em fluxos de relações cada vez mais ambivalentes.
Se, hoje, o território estaria sendo transformado de uma versão antiga estatatizada para uma situação pós-moderna transnacionalizada (SANTOS, 1996), novos conteúdos e relações são produzidos na sociedade para que ocorram essas mutações. Uma delas é que o território pode ser construído, como um fenômeno ligado a espacialidade humana e as relações de poder (nos seus múltiplos exercícios), desde a escala do corpo – o corpo como espaço político – produzido pelos novos movimentos sociais e que permite incorporação de valores, de ideias, de simbólicos, de performances, de lutas, de resistências de expressões das mais variadas até a escala do mundo. O mundo como um “grande território” de domínio político-administrativo de grandes corporações internacionais, de organismos mundiais como FMI, OMC, bolsas de valores, bancos dentre outros.
O território, assim, tem hoje sua natureza em transformação na medida em que a sociedade produz múltiplas relações de poder, onde “tudo” parece envolver política, formação de opinião, a construção multifacetada de pontos de vistas que são, sempre, ao mesmo tempo, materializados de alguma forma, em objetos e ações, em símbolos e expressões, em discursos de identificação com sujeitos, grupos, classes, movimentos, territórios. Por isso, desde o corpo, a casa, a rua, o bairro, a empresa, a escola, o ciberespaço, a propriedade privada, quase tudo vira sinônimo de intencionalidade, de interpretação, de questionamento, de abertura de possibilidades, de passagem de fluxos de ideias numa sociedade em que os valores mudam, quase que como do dia para a noite, na medida em que o capitalismo se reestrutura e que a sociedade se reinventa.
Se de um lado, é difundida a étnica dos ricos, estruturada em torno dos ideais ideológicos do progresso e do crescimento econômico, do outro lado, temos o florescimento, nos lugares ditos periféricos (mas até, hoje, nos centros frouxos como diria Milton Santos) de uma étnica “dos de baixo”, dos pobres, na medida em que os valores da sociedade moderna ocidental começam a ser questionados, rasurados, pichados, sobrepostos e ressignificados por grupos que buscam alternativas para a sobrevivência na adversidade.
Quando ajustamos o foco para o debate identitário, vemos que a luta dos novos movimentos sociais na América Latina transpassam as questões relacionadas à classe social, com o nascimento de vários grupos que, tendo por base uma luta particular, se articulam por meio de códigos de identificação e pertencimento. Isso gera uma série de movimentos de resistência e de luta com a afirmação de identidades sociais e territoriais coletivas. Os chamados direitos territoriais ganham cada vez mais campo nos movimentos de luta e reinvindicação das chamadas populações tradicionais. O acesso à terra, aos recursos naturais e ao modo diferenciado de relação com a natureza, de produção alimentar que propõem uma forma de “uso” mais integrado e menos agressiva ao meio ambiente, ganha corpo nas novas territorialidades alternativas (e antropofágicas) que desenham esse mundo em transição.
No Brasil, por exemplo, as populações tradicionais como os povos indígenas, comunidades quilombolas, caiçaras, pescadores, camponeses/agricultores familiares, extrativistas da seringa, da castanha, do babaçu, ribeirinhos, geraizeiros, cerradeiros, beiradeiros, apanhadores de flores os sentidos de território são muito mais complexos e ricos, pois nos convidam para um encantamento infinito das potencialidades da natureza (e, em alguns casos, da “sobrenatureza”, do mundo dos espíritos) e da relação com o homem.
Hoje, entre múltiplas direções e entradas, à lógica dos fluxos, das redes, das conexões, das trocas, das justaposições (FOUCAULT, 2001), das hibridizações e transculturações que produzem um ir e vir entre territórios, um movimento complexo de encontro com o outro (nem sempre de abertura), mas, no mínimo, gerador de novas possibilidades de trocas e comunicações. Nesse entrecruzar e entrepor de territórios, as territorialidades ganham conteúdo e sentido em lugares cada vez mais distintos e múltiplos, sobretudo, quando as pensamos no interior das questões identitárias emergentes.
Nesse cenário aberto, as identidades que foram negadas pelo processo de constituição da sociedade moderna no interior dos Estados nacionais, ganham, hoje, novos contornos com os movimentos que se articulam em torno das culturais híbridas, mestiças, transculturais, subalternas, alternativas dentre outras. As identidades bem como as territorialidades que as encarnam, são produzidas num trânsito espacial que alia um jogo entre múltiplos territórios, a ressignificação e as ambivalências de grupos, sujeitos, classes em constantes lutas e movimentos de resistências.
A cultura como um fenômeno multidimensional torna-se, a cada dia, mais definidora de um trânsito identitário. Na sociedade moderna que impulsiona a mobilidade de trabalhadores, a mobilidade para o turismo, a mobilidade virtual, a mobilidade como um valor, a mobilidade como uma condição de nosso tempo, transforma as identidades não só daqueles que estão em movimento, mas também dos que estão “presos” (no sentido de i-mobilidade) há algum lugar (HAESBAERT, 2004). Desse modo, o trânsito identitário não é produzido para todos, muito menos adotado como um modo de vida pelos maios variados grupos ou sujeitos. Devem-se considerar as desigualdades sociais e as diferenças culturais internas e inerentes aos grupos e fenômenos de construção/reconstrução dessas (novas) e insurgentes territorialidades.
Se para alguns a mobilidade torna-se um elemento constituinte na definição/construção de sua territorialidade, para outros, a mobilidade é apenas virtual – pelos novos meios de comunicação como a internet, a TV, o celular – que definem uma vida em meio aos fluxos, das redes técnicas e sociais, que produzem um “deslocamento espacial” imaginário ou à distância, sem a mobilidade física. Por outro lado, a mobilidade para aqueles grupos ou sujeitos que estão inseridos nesse mundo dos novos meios de comunicação, informação e transporte, da velocidade atroz da globalização, das grandes empresas multinacionais e do lucro acelerado que promove um intenso trânsito espacial de pessoas, informações e mercadorias.
Do trânsito identitário às novas territorialidades
Para Massey (2000, p. 177), vivemos “numa época em que as coisas estão se acelerando e se disseminando” ocorrendo a “aceleração” do tempo e a “disseminação” no espaço dos meios informativos e dos processos de comunicação afetando e influenciando nossas experiências individuais/coletivas:
A noção (idealizada) de uma época em que os lugares eram (supostamente) habitados por comunidades coerentes e homogêneas é contraposta à fragmentação e ruptura atuais... A compressão do tempo-espaço refere-se ao movimento e à comunicação através do espaço, à extensão geográfica das relações sociais e a nossa experiência de tudo isso (MASSEY, 2000, p. 178).
Na América Latina bem como no Brasil sendo delineados movimentos de homogeneização e de fragmentação no mundo contemporâneo (Santos, 2000), de relações que supõem a superação das diferenças pela igualdade dos gostos e do consumo que, ao contrário, fortalece e/ou evidencia a diferença; diferença cultural e diferença de projetos, de renda, de condições de desenvolvimento humano, dentre outros. Circunscrevem com a globalização, movimentos de “localização”, os chamados “glocalismos” ou “globalização particularizadora”. Por “localização”, em uma primeira aproximação, compreendemos os movimentos individuais e/ou coletivos que procuram valorizar ou até mesmo re-valorizar seus lugares de pertença, afirmando os lugares com a identidade social e/ou territorial (Haesbaert, 1999). São movimentos, portanto, de territorialização ou de re-territorialização através das relações de apego e afetividade ao território, frente os movimento de homogeneização das relações sociais mais globalizantes.
Entre as inúmeras tramas de relações sociais produzidas, pela interação entre estas duas linhas de força, podemos destacar os movimentos migratórios e a formação de culturas híbridas – também esses processos profundamente inter-relacionados. Portanto, uma marca diferencial dos movimentos migratórios, de transitividade de pessoas por Estados, municípios, por organizações, enfim, pelos mais variados lugares e relações nos dias de hoje é a das tecnologias de transporte que possibilitam cruzar grande parte do planeta em questão de horas “massificando” as viagens (não de maneira igual para todos). Outra diferença vem das tecnologias de comunicação/informação que permitem aos homens, mulheres e crianças se transportarem, não fisicamente, mas virtualmente, em busca de sites através do ciberespaço (Lévy, 1999).
É portanto, inserido nesse contexto que Canclini (2003, p. 17) considera que os processos de hibridação transformaram a forma de compreensão da sociedade. Os processos de hibridação modificaram o modo de ver, falar e pensar “sobre identidade, cultura, diferença, desigualdade, multiculturalismo e sobre pares organizadores dos conflitos nas ciências sociais: tradição-modernidade, norte-sul, local-global” e, também, podemos acrescentar, sobre os movimentos migratórios.
Com isso, a partir das transformações e do maior entrecruzamento de mercadorias e, por extensão, de pessoas, de cultura e de relações pelo mundo “adentro” e “afora” houve a necessidade de repensar as identidades e as territorialidades a partir dos processos de hibridação que, Canclini (2003, p. 19, [grifos totais do autor]) compreende por “processos socioculturais nos quais estruturas ou práticas discretas, que existiam de forma separada, se combinam para gerar novas estruturas, objetos e práticas”. E, para o autor “as estruturas chamadas discretas formam resultados de hibridações, razão pela qual não podem ser consideradas fontes puras”, isto é, através dos processos cotidianos, das relações de contato em diferentes grupos, classes e culturas é que se reproduzem o contraste e a alteridade. Essas relações produzem multiterritorialidades (HAESBAERT, 2006) e multiculturalidades (SANTOS, 2010) de tempos e de espaços que são contemporâneos, que coexistem, não de forma harmoniosa, com desigualdades de grau e de natureza, isto é, com desigualdades sociais (de classe, sobretudo, econômica), e de diferentes formas/relações de apropriação da natureza e de significação dos lugares e das relações por onde territorializam e/ou se re-territorializam os sujeitos, grupos e/ou classes sociais.
Com o conceito de cultura híbrida, Canclini (2003), nos permite construir uma visão transdisciplinar, para compreender os espaços fronteiriços, liminares, entre as divisões do espaço cultural, nos quais estão justapostos e entrecruzados, pois:
Assim como não funciona a oposição abrupta entre o tradicional e o moderno, o culto, o popular e o massivo não estão onde estamos habituados encontrá-los. É necessário demolir essa divisão em três pavimentos, essa concepção em camadas do mundo da cultura e averiguar se sua hibridização pode ser lida com as ferramentas das disciplinas que os estudam separadamente: a história da arte e a literatura que se ocupam do “culto”; folclore e a antropologia, consagrados ao popular; os trabalhos sobre comunicação, especializados na cultura massiva. Precisamos de ciências sociais nômades, capazes de circular pelas escadas que ligam esses pavimentos. Ou melhor: que redesenhem esses planos e comuniquem os níveis horizontalmente (CANCLINI, 2003, p. 19).
Pelos deslocamentos espaciais da população o que ocorre, mais do que mudanças físicas ou virtuais, são descentramentos de sujeitos, de culturas e de modos de vida; são mudanças que transformam o sujeito num ser trans-locado, num ser transterritorial (e de múltiplos pertencimentos), sentimentos e de territórios que são construídos e/ou transpassados no dia-a-dia da metrópole, das diversidades de grupos, das novas tribos da cidade como demonstrado, por exemplo, por Maffesoli (1987). Já não temos a certeza do lugar de onde falamos.
É a este sentimento que Stuart Hall (2003) descreve a “diáspora” e, no limite, que Said (2003) aponta como uma condição de exílio. A diáspora se relaciona, originalmente, à dispersão de um povo por lugares distantes ao seu de origem. Mas, contemporaneamente, diáspora não se refere necessariamente às migrações de longa distância, de um país a outro, de um continente a outro. O movimento pode “ser breve”, de um município para o outro, de um lugar para outro lugar. O que define essa condição “diaspórica” são as diferentes relações culturais, sociais e políticas (de poder) entre o aqui e o lá, que confere ao migrante um “viver no limite” (HAESBAERT, 2011), ou de entre-lugar (Bhabha, 1998), produto e produtor de hibridizações através dos encontros, confrontos, contrastes entre identidades, entre etnias, entre diferentes modos de viver e fazer a vida cotidiana e historicamente.
Nesse âmbito, quanto aos modos de vida experimentados por pessoas em situação de exílio, Edward Said explica que:
Para o exilado, os hábitos de vida, expressão ou atividade no novo ambiente ocorrem inevitavelmente contra o pano de fundo da memória dessas coisas em outro ambiente. Assim ambos os ambientes são vívidos, reais, ocorrem juntos como no contraponto. Há um prazer específico nesse tipo de apreensão, em especial se o exilado está consciente de outras justaposições contrapontísticas que reduzem o julgamento ortodoxo e elevam a simpatia compreensiva (SAID, 2001, p. 59)
Assim, com a globalização muitos de nós parecemos “não se sentir em casa”; o mundo parece ter se tornado estranho, os sujeitos se tornam estrangeiros nos seus “próprios lugares” – o que nos parece também uma nova forma de pertencimento –, fazendo com que algumas pessoas tornem-se sujeitos multi e transterritoriais (exemplarmente, o caso dos migrantes) através dos processos de entrecruzamentos de culturas, de linhas de forças que se sobrepõem e se articulam nos processos de hibridizações e, por extensão, da tensão que produz e é produzida no amálgama de territórios e de culturas, no transpassar, criar, recriar e até mesmo “destruir” territórios, culturas e relações sociais (sempre como possibilidade).
Observa-se que o mundo está sendo cada vez mais marcado por fluxos contínuos e intensos; por trânsitos materiais e imateriais acelerados de informações, pessoas e de mercadorias. Claro que esta mobilidade não se dá sem conflitos e nem de forma irrestrita e igual para todos os sujeitos e para as suas relações. Se os turistas, os trabalhadores qualificados e os investidores podem ser bem recebidos em terras estrangeiras, o mesmo não se pode dizer dos homens e das mulheres trabalhadores que, sem condição de permanecerem em seus lugares de pertença, têm que migrar para centros econômicos e tecnologicamente mais desenvolvidos, dentro ou fora de seus países, em busca de oportunidades de trabalho, ou simplesmente, como ocorre na maioria dos casos, de sobrevivência. Para estes sujeitos ou grupos, a condição de ser migrante significa, na maioria das vezes, “exclusões” e precarizações materiais e simbólicas; cotidianos marcados por preconceitos, indiferenças, hostilidades – mesmo que, como mão-de-obra barata, sejam imprescindíveis à produção. Daí que estes trabalhadores vivam na corda bamba entre uma integração e re-territorialização funcional, sempre parcial e relativa à sociedade “englobante” e a ameaça constante de expulsão, da restrição, do xenofobismo e heterofobismo.
Desse modo, migram junto com os homens e as mulheres suas culturas, suas diferenças, suas identidades que possibilitam a reinvenção de territórios e de territorialidades (PORTO-GONÇALVEZ, 2006). De modo que, se não podemos dizer que exista cultura pura, pois todas elas resultam de cruzamentos mais ou menos intensos umas com outras (Hall, 2003), é inegável que as tecnologias de transporte e de comunicação potencializam as interações culturais por quase todo o globo de maneira mais intensa no período atual pelas “aproximações” e “distanciamentos”. Assim, fica cada vez mais difícil operarmos com a idéia de cultura local arraigada em seus valores tradicionais, imunes, ou quase, aos contatos e influências de culturas exógenas, exteriores aos contextos e escalas amplas da sociedade e, portanto, do mundo no seu movimento global(izado).
A esta mistura de referentes culturais e vínculos espaciais originam-se novas matrizes simbólicas que, teóricos como Canclini (2003), Bhabha (1998) e Hall (2003) vêm denominando de “hibridação da cultura” ou de “culturas híbridas”, pois, estão em contato com bens simbólicos desterritoralizados pelo mercado, as culturas tradicionais, populares, étnicas, locais, regionais, nacionais, enfim, toda aquela estrutura de sentimento e de sentido, de significado e de significantes marcada por seu lugar de pertença que, passa a partir do movimento intenso de contato de culturas, a negociar/traduzir suas expressões e se transformar em algo que não é propriamente nem um, nem outro, mas um híbrido e, por extensão, um “entre-lugar” (conforme acepção de Bhabha, 1998).
Contudo, como questiona Canclini (2003, p. 22), “Como a hibridação funde estruturas ou práticas sociais discretas para gerar novas estruturas e novas práticas?” Para o autor, isso ocorre, às vezes, de modo não planejado ou é “resultado imprevisto de processos migratórios, turísticos e de intercâmbio econômico ou comunicacional”. Mas, segundo ele, “frequentemente a hibridação surge da criatividade individual e coletiva”. “Não só nas artes, mas também na vida cotidiana e no desenvolvimento tecnológico. Busca-se reconverter um patrimônio (uma fábrica, uma capacitação profissional, um conjunto de saberes e técnicas) para reinseri-lo em novas condições de produção e mercado” (p. 22).
Por meio dos processos de hibridação, os sujeitos, migrantes ou não, não seriam os mesmos; tornaram-se sujeitos formados pelo processo de apreensão de novas culturas, de novos processos tecnológicos, de novas crenças, valores e visões de mundo que podem romper, parcial ou “totalmente”, com o universo cultural anterior, ou, podem – através do contato e do contraste – fortalecer as visões de mundo até então praticadas – desencadeando um processo de reinvenção de culturas e, por extensão, de territorialidades. As relações desencadeadas pelos processos de hibridização são complexas na medida em que criam um sujeito novo, transterritorial, portador de um “terceiro espaço” (BHABHA, 1998), com uma estrutura espacial tripla, de um espaço que fica no entrelugar das relações sociais entre distintos lugares.
O sujeito híbrido parece ser, nesse mundo contemporâneo, multi e/ou transterritorial pois transita entre vários territórios, entre-territorialidades construindo e destruindo territórios e/ou transpassando por várias relações, por vários territórios, identidades e culturas diversas. Diversidade ou multiplicidade que enaltece, ou recria, a diferença, manifestando, portanto, as relações de poder e os conflitos na reinvenção de territórios e territorialidades. Como considera Arendt (2007, p. 21), “A política baseia-se na pluralidade dos homens” pois é fundamento para a produção do lugar e do mundo.
Como considera Deleuze (2006), a diversidade como diferença aumenta a potência de questionamento das coisas em si – ela própria aberta à mudança, alteração, diversificação, diferenciação – pois vai além de responder a simples oposições dadas. As identidades, portanto, nesse contexto contemporâneo de multiplicidade transitam entre ocupação e passagem, entre permanência e efemeridade, mudando também a concepção de espaço condicionado às relações e ao comportamento humano, estendendo seus limites através de novas possibilidades.
Neste contexto, tendo como pano de fundo esta confluência do global com o local, mais especificamente os processos migratórios e de hibridação cultural, o que interessa apreender – através do processo de multi e transterritorialidades – são os processos de “subjetivação dos sujeitos” que migram para outros lugares e se deparam com novas relações políticas, econômicas e culturais. Como afirma Morrin (2005, p. 74-75), “Ser sujeito implica situar-se no centro do mundo para conhecer e agir (...). a diferenciação decisiva, em relação ao outro” [está] “na ocupação do espaço egocêntrico por um Eu que unifica, integra, absorve e centraliza cerebral, mental e afetivamente as experiências de uma vida”. Assim, o migrante fica deslocado do seu lugar de pertença, onde viveu períodos consideráveis de um tempo e de um espaço (no lugar de origem) e passa a viver – após a migração – outro espaço e outro tempo, construindo um novo território e transitando por novas relações sociais, criando novas territorialidades e perpassando por múltiplos territórios através do processo – múltiplo, liminar e transfronteiriço – de transterritorialização.
A partir da migração, o universo simbólico e cultural tem que passar por uma re-organização, pois, os sujeitos saídos de um território marcado por uma cultura tradicional e/ou diferente do novo lugar têm que re-construir e re-significar suas relações sociais e seus referentes espaciais no contato com uma nova cultura, com múltiplos outros territórios até então “desconhecidos”. Os migrantes, por exemplo, que se deslocam de pequenas para grandes cidades, as metrópoles, se deparam com um contexto onde predomina a “implosão de sentido”, por conta do excesso de tudo: informação, publicidade, mercadorias, consumidores em uma “precessão de simulacros” (BAUDRILLARD, 1991).
Imersos neste novo meio geográfico, urbano-industrial e inflacionado de signos, os migrantes têm que negociar as referências espaciais (materiais e simbólicas) que trazem de sua terra natal com os novos valores simbólicos e materiais que se impõem. E o fazem por muitos anos, através do processo de re-territorialização. Através da re-territorialização de valores, de costumes e de maneiras de se relacionar com o outro, de traduzir o outro (Hall, 2003), os migrantes em um meio geográfico e histórico novo, negociam suas relações num processo amplo de re-significação territorial que compreende os aspectos culturais, políticos e econômicos.
Ford (1999) considera que os migrantes passam por um processo metafórico a partir de uma pluralidade cultural, a multiplicidade que produz “efeitos complexos e contraditórios”; que, ao contrário de uma transnacionalização única, gera “diferentes efeitos ou redes de transnacionalização. Várias transnacionalizações” (FORD, 1999, p. 66). Ou seja, não significa que o migrante assimile os novos referentes culturais, mas, significa que o migrante irá transitar por diferentes contextos histórico-geográficos, em uma cidade, com um universo cultural amplo e diversificado. O migrante, logo irá transitar e criar uma territorialidade trans-territorial pela possibilidade de compartilhar múltiplos territórios – criando uma multiterritorialidade – e, a partir daí, assimilar e tencionar em diferentes graus, aspectos diferentes de relações que se criam e re-criam, que se entrecruzam e se estabelecem através das redes de relações sociais cada vez mais complexas.
Como considera Jesús Martín-Barbero (1997), as leituras das informações dependem das mediações presentes nos múltiplos territórios que o migrante transita, da singularidade de suas experiências a partir dos múltiplos territórios que se articulam e se sobrepõem. O que leva aos migrantes a novas negociações, as novas territorializações e ao constante processo de transterritorialização, isto é, ao processo de convergência de múltiplas territorialidades (diferenciadas, desiguais e seletivas) na centralidade e na influência, e na alteridade que cada indivíduo irá constituir na sua re-construção identitária, na sua re-territorialização.
Por isso, o migrante não é um sujeito “totalmente” desterritorializado. Se ele não ocupa um território simbólico bem definido, ocupa, por certo, uma condição de fronteira (MONDARDO, 2010). Assim, os conflitos, na maioria das vezes, se ampliam para quem perde o chão familiar e vê-se de alguma forma obrigado a caminhar, a deixar física e simbolicamente a origem. Bhabha (1998) nos fala da sensação de distúrbio de direção e da necessidade da construção de referenciais materiais e simbólicas, de desorganização por se viver hoje nas “fronteiras do ‘presente’”: um “além”, um “entre-lugar”, pois estamos em um “momento de trânsito em que espaço e tempo se cruzam para produzir figuras complexas de diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (Bhabha, 1998, p. 19, [grifos nossos]). As perguntas que são necessárias ser compreendidas são: Como se formam os sujeitos nos “entre-lugares”? Como formulam estratégias de representação e/ou aquisição de poder, de negociação e de re-significação territorial e cultural no lugar de destino da migração?
Com a globalização e os processos de hibridação o migrante se torna um sujeito fronteiriço, no liminar de culturas distintas e de múltiplos territórios pelos quais transpassa. Os migrantes da classe trabalhadora (mas não só dela), são sujeitos que mais do que nunca estão em estado de “subalternidade” e que experimentam o movimento concomitantemente e, em múltiplas dimensões, de des-territorialização e re-territorializacão do mundo contemporâneo. Esses sujeitos constroem a partir das múltiplas experiências territoriais subjetividades fronteiriças e, portanto, visões de mundo, sensos-comuns totalmente diferentes daquele sujeito do lugar de origem que nunca saiu de sua localidade; o migrante que chegou ao novo lugar cruzou limites territoriais, políticos e culturais que, a partir das novas relações, farão parte da condição de entre-lugar do sujeito, portanto, transterritorial, ou seja, (de)marcado entre diferentes contextos histórico-geográficos e de poder.
Eles carregam consigo a experiência da diáspora, as “geografias imaginárias” (Said, 2003) e as “histórias de vida” (MASSEY, 2008), vivenciando uma condição paradoxal de entre-lugar: entre o aqui e o lá, entre a presença e a ausência. Logo, o dia-a-dia do migrante fronteiriço é marcado pela ambigüidade de relações e de pertença, pelo estranhamento, contato, confronto e alteridade com o outro sujeito e o outro território (construindo o outro geográfico). Como considera Morin (2005), “o outro já se encontra no âmago do sujeito”, pois, o sujeito só se constrói – construindo, portanto, sua identidade e territorialidade – na relação com o outro:
Outro significa, ao mesmo tempo, o semelhante e o dessemelhante; semelhante pelos traços humanos ou culturais comuns; dessemelhante pela singularidade individual ou pelas diferenças étnicas. O outro comporta, efetivamente, a estranheza e a similitude. A qualidade de sujeito permite-nos percebê-lo na semelhança e dessemelhança. O fechamento egocêntrico torna o outro estranho para nós; a abertura altruísta o torna simpático. O sujeito é por natureza fechado e aberto (MORIN, 2005, p. 77).
Assim, os migrantes criam, sutilmente, estratégias racionais e emocionais (muitas vezes provisórias) que ajudam no processo de re-construção simbólica e de significados no novo território, na relação com o outro. É este movimento de partir, de sair de seu lugar de pertença, ao mesmo tempo carregando-o junto, em suas memórias afetivas, é criar e estar no entre-lugar. Uma condição de quem pode “viver no limite”, entre dois mundos, trafegar entre territórios diferentes, múltiplos, e ser marcado (desigualmente) por ambos, tornando-se, portanto, nem sujeito do lugar de origem, nem sujeito do lugar de destino, mas, sim, um ser trans-territorial, no limiar entre um ou outro território.
Para além das territorialidades/identidades “geograficamente estabelecidas”, há que se considerar na contemporaneidade uma “geografia móvel” para compreender o papel dos vários lugares na construção de novas territorialidades através do decisivo componente identitário que o transitar permanente produz. Podemos imaginar, por exemplo, a seguinte situação: a/o sujeito tem “partes” de sua experiência de vida construída em diversos lugares; viveu até os 12 anos na zona rural de um pequeno município; depois migrou para uma cidade média onde começou a estudar e ter amigos de outros lugares; aos 18 anos foi para uma metrópole cursar a graduação pretendida; com 26 anos foi trabalhar em outro país pela oportunidade de emprego na sua área de formação; aos 32 anos casa-se com um “estrangeiro” e tem dois filhos em solo distinto da sua terra natal. Assim, a/o sujeito cria possibilidades de sua territorialidade ser construída, no tempo e no espaço, em inúmeras partes do mundo que, proporcionam encontrar-se de maneira convergente em espaços distintos cultural, política e economicamente.
Por isso, perguntamos: é possível um pertencimento múltiplo ou múltiplos pertencimentos? Ao que parece, hoje, as territorialidades e as identidades na mobilidade humana estão cada vez mais sendo produtos de processos de hibridização “geográfica” e “cultural” através dos múltiplos pertencimentos que ocorrem no processo de des-re-territorialização. O contato com vários espaços “geográficos” e “culturais” tão diversos entre si e a profunda consciência de si mesma enquanto ser em constante mutação, em movimento para dentro, para fora e sobre si, compõe a identidade e a territorialidade da/o migrante. Uma identidade e uma territorialidade que se quer incansavelmente em elaboração, em reacomodações e ajustes constantes pelo trânsito múltiplo entre contextos e lugares tão distintos. Na mobilidade o que ocorre é uma vivência na “margem” de vários lugares que comportam a ambiguidade de serem, ao mesmo tempo, lugares de pertencimento e de estranhamento.
Assim, a idéia de multiterritorialidade foi construída por Haesbaert (2006) para demonstrar, antes de tudo, a forma dominante contemporânea e/ou “pós-moderna” da reterritorialização, e para se “contrapor” ao que muitos equivocadamente acredita(va)m acontecer hoje, ou seja, a desterritorialização em favor de uma menor relação/mediação/referência dos indivíduos e/ou grupos com o espaço. A desterritorialização “é consequência direta da predominância, especialmente no âmbito do chamado capitalismo pós-fordista ou de acumulação flexível”, e “das relações sociais construídas através de territórios-rede, sobrepostos e descontínuos, e não mais através de territórios-zona, que marcam aquilo que podemos denominar modernidade clássica territorial-estatal” (2006, p. 338). O que não implica no desaparecimento, em hipótese alguma, de formas “antigas” de território que ainda continuam presentes, complexificando e formando novas organizações espaciais.
Essa “diversidade territorial”, para o autor, expressa uma multiterritorialidade em termos de dimensões sociais, dinâmicas (ritmos) e escalas, uma justaposição ou convivência (imbricada e/ou contraditória), lado a lado, de tipos territoriais distintos, correspondendo à existência de “múltiplos territórios” ou “múltiplas territorialidades”, de múltiplas experiências de vida mediadas sobre parcelas diversas de espaço, com variadas relações. Para Haesbaert (2006), essa multiplicidade territorial alterna significados, movimentos, ritmos e relações, segundo o contexto cultural, histórico e geográfico.
À escala do indivíduo, a multiterritorialidade se daria através das relações sociais que possibilitam uma nova experiência justaposta e “integrada” do espaço, constituindo-se diariamente na possibilidade de adentrarmos em vários territórios, construindo “(multi)territórios”. Nesse sentido, “produzir e habitar mais de um território, [envolve] um fenômeno de multipertencimento e superposição territorial” (HAESBAERT, 2006a, p. 344). Desse modo, entre a origem e a acolhida, entre os vários territórios percorridos, o migrante desenvolve um transitar no espaço, seja ele comprimido ou estendido, num movimento que produz ambivalências, no tempo e num lugar intermediário, nem cá nem lá: no interior de uma passagem. O lado interior, a subjetividade da mobilidade humana, talvez corresponda à consciência de si e do outro e/ou ao reconhecimento da transitoriedade do sujeito, no tempo e no espaço (GOETTERT, 2004).
Para terminar: dos trânsitos identitários ao nascimento de novas territorialidades
Este é o desafio: a história dos povos e coletividades, das nações e nacionalidades ou das culturas e civilizações pode ser lida como uma intrincada, contínua, reiterada, e contraditória história de um vasto processo de transculturação, de par com a ocidentalização, a orientalização, a africanização e a indigenização. Um processo sempre permeado de identidades [territorialidades] e alteridades, tanto quanto de diversidades e desigualdades, mas compreendendo sempre o contato e o intercâmbio, a tensão e a luta, a acomodação e a mutilação, reiteração e a transfiguração (IANNI, 2003, p. 99-100).
Hoje, as novas territorialidades em seus transbordamentos expõem situações de trânsito identitário na mobilidade humana, transmutando os territórios habituais em territórios de intercâmbio no momento em que suas ações se inserem na trama social e cultural múltipla. Como considera Haesbaert (2002, p. 49), devemos considerar na contemporaneidade um “território múltiplo, onde devemos implementar não uma identidade una e pouco permeável ou, ao contrário, a diluição de todas as identidades, mas ao convício entre várias construções identitárias, inclusive aquela que envolve a opção de compartilhar múltiplos territórios”.
Logo, para compreender a produção de novas territorialidades na mobilidade humana contemporânea por meio do trânsito identitário, vemos o espaço como possibilidade de encontro/desencontro/confronto de diferentes sujeitos, de uma multiplicidade e de uma coexistência pelo espaço (MASSEY, 2008), considerando a mobilidade e o intercâmbio de culturas por meio de práticas transculturais e de hibridismo, como potencializadores para a produção de identidades associadas ao processo inacabado de tornar-se(r).
Atentos à configuração de novas identidades que irrompem recentemente nos mapas culturais da contemporaneidade, e considerando o processo de hibridização como tradução inacabada, sempre inconclusa, em processo relacional de trans-formação, esses fenômenos de mescla cultural exploram novos espaços de criação de territorialidades múltiplas, entre a fricção de línguas e culturas, de espaços e de tempos por meio do caráter inacabado dos trânsitos identitários.
Sujeitos em trânsito que, diante das dificuldades de sobrevivência em seu lugar de origem, elegem outros lugares de enraizamento (SAYAD, 1998). Assim, como a experiência desorientada da desterritorialização (SAID, 2003), é também processo em trânsito – pela vivência da territorialidade múltipla em tempos de mobilidade humana e pela reinvenção de sua identidade, capaz de assegurar a criação de novos referentes espaciais. Sujeitos do “trans”, isto é, das transformações, transgressões e transferências, as novas territorialidades participam, partilham, co-existem em meio às perambulações identitárias vivenciadas desigualmente no mundo contemporâneo da mobilidade humana.
O trânsito identitário adota uma forma híbrida onde se mesclam territorialidades, nascidas nos interstícios do viver entre duas culturas, dois lugares, por relações circunscritas entre múltiplos “espaços”. Há, nesse sentido, cada vez mais a possibilidade de invenção e reinvenção das territorialidades no transito identitário. Essa se constitui numa territorialidade híbrida pois trata-se de uma territorialidade que interroga os imaginários e as práticas espaciais do pertencimento, levando em conta um estado de dissonâncias e de interferências de várias formas. Pode-se dizer que, em certos casos, estes efeitos de dissonância são o resultado de um processo de tradução inacabada, uma relação de transferência ou de passagem que não acaba em um produto naturalizado, “aculturado”, mas que deixa traços da primeira territorialidade na nova, se constituindo numa transterritorialidade (em aproximação a ideia de transculturação de Fernando Ortiz, 1978).
A territorialidade híbrida é portanto aquela que manifesta “efeitos de tradução” (Rama, 1982), pelas interferências culturais, pelos múltiplos pertencimentos territoriais. Esses efeitos são resultados da situação de fronteira vivida pelos sujeitos em trânsito identitário, consciente ou não da multiplicidade de territórios vividos, perpassados, transgredidos, atravessados pelas relações cotidianas. Territorialidades de fronteira que são construídas nas zonas entre “culturas” e “territórios”, como mediação espacial que explora as possibilidades das fronteiras culturais e políticas, e que elas, as territorialidades, não cessam de confrontar.
A fronteira política-administrativa é, hoje, um dos lugares que apresentam uma das maiores diversidades culturais, políticas e econômicas. Além das concepções de separação, está à ideia de junção, de união, de justaposição, de fluxo, de passagem, de hibridização que esse espaço-duplo e rizomático produz em seus habitantes, nas relações que são produzidas sempre entre múltiplos lados. Dupla existência, a dupla consciência, o entre-lugar do fronteiriço.
Nesse sentido, a hibridização é ao mesmo tempo um estado e um lugar, “o terceiro espaço” (BHABHA, 1998), onde a dinâmica do poder colonial pode ser frustrada, derrotada. Produz-se nesta zona de negociação, de contestação e de troca, uma “cultura transnacional” que se constrói pela tradução, não no seu sentido convencional, que descreve mais adequadamente a relação entre as culturas, mas enquanto zonas interterritoriais – espaço “entre” – torna-se um lugar de criação “cultural” e “socioespacial”, que exprime o caráter incabado e transitório das identidades e das territorialidades contemporâneas especialmente na mobilidade humana.
O trânsito des-contínuo e a mudança permanente de lugar, de contexto cultural, de certezas, condicionam as territorialidades dos migrantes, que se veem obrigados a assumir posições – criar territórios de posicionamento – diferentes de acordo com os lugares em que chegam, que passam, que se relacionam. Os migrantes precisam questionar o novo, precisam usar de cautela ao conhecer, precisam aceitar a fragmentação negociando e traduzindo o outro “sujeito” e o outro “geográfico”. Por isso, o indivíduo em movimento estabelece uma relação ambígua com os lugares: os espaços parecem ser definitivos na territorialização do sujeito e ao mesmo tempo “flutuantes” e incertos, porque as mudanças, os trânsitos e os conflitos, o modificam. Eis, as novas (múltiplas) territorialidades em trânsito.
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