Laura Schemes Prodanov*
Margarete Fagundes Nunes**
Universidade Feevale, Brasil
E-mail: lauraprodanov@gmail.com
Resumo:
Este artigo tem como temáticas o envelhecimento, o corpo feminino e a moda. A problemática da pesquisa centra-se em compreender como se dá esta relação entre corpo e moda com mulheres entre 65 a 79 anos. Trata-se de uma pesquisa de abordagem qualitativa que se apoia na etnografia, utilizando-se de procedimentos e técnicas tais como a observação-participante e o registro de narrativas biográficas. Foi possível evidenciar as características da autopercepção do corpo feminino no processo de envelhecimento e sua influência sobre as decisões de compra do vestuário, abrindo o espaço para discussão e contribuições para os profissionais que atuam no segmento, bem como para os pesquisadores dos temas gênero, envelhecimento e moda.
Palavras-chave: Corpo; Gênero; Envelhecimento; Narrativa Biográfica; Moda.
Resumen:
Este artículo se centra en el envejecimiento, el cuerpo femenino y la moda. El problema de investigación se centra en comprender cómo se produce esta relación entre el cuerpo y la moda con mujeres entre 65 y 79 años. Es una investigación cualitativa basada en la etnografía, que utiliza procedimientos y técnicas como la observación participante y el registro de narraciones biográficas. Fue posible resaltar las características de la autopercepción del cuerpo femenino en el proceso de envejecimiento y su influencia en las decisiones de compra de ropa, abriendo el espacio para la discusión y las contribuciones para los profesionales que trabajan en el segmento, así como para los investigadores sobre los temas de género, envejecimiento. y moda.
Palabras clave: Cuerpo; Género; Envejecimiento Narrativa Biográfica; Moda.
Abstract:
This article is about aging, the female body and fashion. The research problem focuses on understanding how this relationship between body and fashion occurs to women over 65 years of age. It is a qualitative research based on ethnography, using procedures such as participant observation and record of the biographical narratives. It was possible to show the characteristics of the female body's self-perception in the aging process and its influence on clothing purchasing decisions, opening the space for discussion and contributions to professionals working in the segment, as well as for the researchers of the themes gender, aging and fashion.
Keywords: Body; Genre; Aging; Biographical Narrative; Fashion.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Laura Schemes Prodanov y Margarete Fagundes Nunes (2020): “Narrativas sobre envelhecimento, corpo e moda”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/04/narrativas-envelhecimento.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2004narrativas-envelhecimento
Introdução
Na sociedade contemporânea manter-se jovem é um imperativo, ao passo que o envelhecer é, muitas vezes, visto como “um fardo”, principalmente para as mulheres. Nosso interesse neste artigo é discutir este fenômeno e, mais precisamente, verificar como as mulheres encaram a ideia da velhice, tendo como foco de análise a relação que elas estabelecem com o universo da moda. Nosso interesse investigativo procurou responder à seguinte problemática: como se dão as relações entre corpo, envelhecimento e mercado de moda com mulheres entre 65 a 79 anos? Para isso, estabelecemos uma interlocução com mulheres dessa faixa etária, pertencentes às camadas médias urbanas e residentes na região metropolitana de Porto Alegre, no estado do Rio Grande do Sul.
Os ensinamentos da etnografia, advindos da Antropologia, são os fundamentos pelos quais se interpretou a inserção em campo, o diálogo estabelecido com as interlocutoras da pesquisa e os questionamentos inerentes à experiência de campo. Portanto, este artigo dá visibilidade a relatos e a descrições etnográficas que são frutos da observação participante e do registro de narrativas biográficas coletadas por meio de entrevistas semiestruturadas com nossas interlocutoras da pesquisa. O diálogo estabelecido em campo pautou-se pelo objetivo de analisar de que modo estas mulheres, de camadas médias urbanas, percebem e dão significado ao corpo, ao envelhecimento e à moda. Nesta perspectiva, buscamos investigar algumas questões acerca do processo de envelhecimento, visando a um melhor entendimento de como as mulheres percebem o seu corpo nessa fase da vida. Outrossim, procuramos verificar de que maneira o mercado de moda brasileiro pode se aproximar dos interesses e dos desejos desse público específico.
Optou-se por utilizar, neste trabalho, prioritariamente, a expressão “velhas” e/ou “velhice” para denominação das mulheres com idade entre 65 a 79 anos, concordando com Motta (2012, p. 96) no sentido de “reabilitar a palavra velho/velha proscrita pela ânsia da sociedade de consumo em eufemizar a ‘idade’ e disfarçar a fobia social a essa etapa da vida (...)”.
Geertz (1989), ao discorrer sobre a “interpretação das culturas”, define a cultura como uma “teia de significados”, sendo o antropólogo aquele pesquisador que está interessado em compreender e interpretar estes significados. Ao dialogar com a antropologia, esforçamo-nos, aqui, para perseguir os “significados” atribuídos ao corpo, ao envelhecimento e à moda por nossas interlocutoras da pesquisa. Além do procedimento da observação participante para a apreensão desses significados, optou-se pela escuta e análise das narrativas biográficas dessas mulheres.
Segundo Rocha e Eckert (2013), por meio da narrativa biográfica o sujeito se situa nos contextos sociais vividos e os reinterpreta no presente, o que lhe permite fazer inferências a respeito do lugar de onde o discurso é produzido na atualidade. Para Maluf (1999), em toda narrativa de vida há uma problemática central e encontrar esse fio é também um dos propósitos do empreendimento antropológico. O objetivo é buscar os sentidos, os significados da narrativa e da situação narrativa. Interpretar não somente o que foi dito, mas o que foi dito naquela situação, buscando inseri-lo no contexto mais amplo de itinerários pessoais e coletivos.
O roteiro de entrevista que balizou o registro da narrativa consistiu em quatro grandes blocos em que categorizamos biografia e trajetória, envelhecimento, corpo e moda. A análise das entrevistas nos permitiu criar pelo menos doze subcategorias às quais elencamos neste artigo. Da categoria biografia e trajetória, criamos 3 subcategorias: escolaridade dos pais, trabalho e casamento; da categoria corpo, identificamos 3 subcategorias: rotina diária, cuidados com o corpo e mudanças corporais; da categoria envelhecimento, destacamos mais 3: nomenclatura da idade, diferenças de gênero na velhice, o ser e o sentir-se velha; da categoria Moda, identificamos as últimas 3 subcategorias: mudanças da moda, a noção do vestir, a relação com o dinheiro. As categorias auxiliaram no trabalho de sistematização e agrupamento de ideias e concepções. Magnani (2009) chama esses agrupamentos de “totalidades”, mas afirma que não se trata, evidentemente, daquela totalidade que evoca um todo orgânico, funcional, sem conflitos. De forma mais sucinta, Magnani (2009, p. 20) explica: “Uma totalidade consistente em termos da etnografia é aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores sociais, é identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais”.
Iniciamos discorrendo sobre os conceitos de gênero, envelhecimento e moda e, posteriormente, trazemos as narrativas de nossas interlocutoras da pesquisa acompanhadas de algumas interpretações.
Fundamentação teórica: Gênero, Envelhecimento e Moda
Segundo Scott (2012, p. 332), “gênero é a lente de percepção através da qual nós ensinamos os significados de macho/fêmea, masculino/feminino”. A autora afirma que a palavra e o conceito de gênero recusam a ideia de que a anatomia da mulher é o seu destino e, ao contrário, anunciam que os papéis alocados para as mulheres são convenções sociais, não ditames biológicos. Scott (2012) salienta que os primeiros estudos feministas acerca da noção de gênero como uma construção social tiveram como objetivo analisar a relação de mulheres e homens em termos de desigualdade e poder.
Scott (2012) assevera que os papéis atribuídos às mulheres (mesmo as mães) diferem conforme o tempo e o lugar e não possuem relação significativa com a biologia delas. A autora defende uma visão ampla do conceito de gênero, capaz de abarcar questões relacionadas ao mercado de trabalho, que, conforme a autora, é também sexualmente segregado, tal qual a educação e o sistema político (SCOTT, 1995). Então, segundo a autora, gênero é uma construção social, mas isso ainda diz muito pouco, pois não explica como as relações são construídas e por que são construídas de forma desigual, privilegiando o masculino. Ela chega à conclusão de que só essa constatação, ou seja, de que o gênero é construído socialmente, não tem força suficiente para integrar ou mudar os paradigmas históricos existentes (SCOTT, 1995).
Segundo Butler (2003), gênero é a identidade das pessoas em si, pois elas só se tornam inteligíveis a partir do momento em que entendem qual é o seu gênero e, consequentemente, qual é o seu papel. Para Butler (2003) o gênero é construído a partir de uma relação entre sujeitos socialmente constituídos em contextos específicos. Isso quer dizer que gênero é uma construção a partir de um ponto de convergência entre conjuntos de relações, cultura e história. É por isso que não se pode enxergar o gênero como constituição de identidade fixa, pois ele depende das construções culturais e das identidades sociais (BUTLER, 2003).
Para Butler (1993), a nomeação de gênero é, ao mesmo tempo, o estabelecimento de uma fronteira e uma norma. Essa representação política e linguística apresenta duas opções: o homem e a mulher. E somente esses sujeitos construídos e conformados de acordo com as normas são representados politicamente. Com isso, para Butler dizer que gênero existe é pensar e aceitar as normas culturais que governam a interpretação dos próprios corpos e, nessa busca pela constituição do eu, inventam-se uma identidade e uma coerência que não são senão ficcionais (BUTLER apud FEMENIAS, 2006).
Segundo Butler (1992), por meio de um conceito unificado de mulher, a política feminista parece perder a base de suas próprias afirmações, afinal, quem constitui o sujeito para o qual o feminismo busca uma libertação? Segundo ela, se não existe esse sujeito, quem o feminismo busca emancipar? Com isso, a autora chama atenção para a falsa estabilidade da categoria mulher (BUTLER apud FEMENIAS, 2006).
A discussão de gênero ajuda a pensar a construção do corpo feminino, já que refletir sobre moda também é refletir sobre uma determinada construção e expressão de um corpo, neste caso, o corpo feminino A concepção de normatização do corpo, que, a partir de um padrão urbano e ocidental, fundamentado pela sociedade capitalista, constitui-se de um modo de vida considerado normal e, por isso, estereotipado, tende a se estender pelo mundo, sobrepondo-se à riqueza da diversidade cultural (LASCH, 1983). Junto a isso, os estudos da área médica reforçaram esse novo padrão associando as doenças consideradas femininas com características instáveis e histéricas (ROHDEN, 2009). O “ser normal” era associado à saúde e tudo o que fugisse a essa regra ligava-se à doença, tendo um valor negativo que deveria sofrer intervenção (FOUCAULT,1989). A mulher que apresentava algum desses sintomas era considerada uma anormal, que precisava ser tratada, medicada, para ‘curar’ esse problema.
Por isso, o corpo da mulher se tornou um lócus do exercício dos micropoderes, que investem, modelam e constroem o gênero (SWAIN, 2000). Para isso, foram criadas maneiras -sociais sobre as ideias do que era ser homem e o que era ser mulher, a fim de que cada um pudesse se enquadrar nesses papéis socialmente adequados. Essas ideias também cabiam sobre a sexualidade e a situação histórica e cultural (SCOTT, 1995). Mathieu (2009) também relaciona essa diferenciação dos gêneros nas sociedades humanas se manifestando em duas áreas: na divisão sociossexual do trabalho e na procriação.
A construção social de gênero, junto com a concepção de normatização do corpo, passou a ditar também o que era certo e errado na vida da mulher em questões de beleza. Foi a partir do conceito do corpo normal, saudável, que o corpo da mulher envelhecida passou a ser considerado errado, pois não possuía os sinais de juventude e, consequentemente, os sinais de saúde, vitalidade e sexualidade idealizados. Segundo Monteiro (2008), esses códigos estão tão bem-estruturados que elas se tornam presas fáceis do mercado, normalizando a ideia de que é correto a mulher mais velha sentir inveja da mais nova. Esses códigos, muitas vezes disseminados por ideias como conto de fadas, propagandas e programas de televisão, instigam a mulher a ser/estar sempre bonita, jovem e sensual, a fim de achar um marido, um ‘príncipe’.
Eco conta, no seu livro A História da Beleza, que a beleza das donzelas, ao longo da história, sempre foi traduzida em seios fartos, movimentos graciosos, curvas sensíveis, pele lisa, mãos delicadas, cabelos com reflexos dourados, lábios úmidos (ECO, 2013). Já no livro A História da Feiura, ele faz relação do feio com o velho, em que o velho é a beleza em declínio, que provoca dor e maldade, pois as bruxas geralmente são representadas como velhas e decrépitas (ECO, 2007).
Em sociedades modernas contemporâneas, como a sociedade brasileira, à medida que as mulheres envelhecem elas se tornam vulneráveis às críticas porque se distanciam das concepções idealizadas de corpo feminino. Isto se acentua na meia idade, quando as condições da menopausa se apresentam concomitantemente ao processo natural do envelhecimento físico (MORI; COELHO, 2004). Os autores dizem que a mulher que se encontra no processo de envelhecimento conceitua sua própria imagem diante do espelho como algo negativo. Essa visão a denuncia sob o ponto de vista estético, relacionando a funcionalidade do corpo e o significado social que cada cultura tem sobre essa fase da vida. É importante ressaltar o caráter heterogêneo da categoria envelhecimento nas sociedades modernas contemporâneas, que devem ser analisadas considerando-se outras variáveis como o conceito de classe social, raça/etnia, religiosidade etc. Nesta pesquisa, atentamos para a demarcação de mulheres de camadas médias urbanas, brancas e escolarizadas,
Apesar de se notar a dificuldade do mercado de moda em inserir pessoas mais velhas no seu público-alvo, também se nota uma dificuldade na sociedade em aceitar o ‘velho’, mas, dessa vez, no vocabulário, mesmo sabendo que, “No Brasil, o termo usado até os anos 60 era, sobretudo, velho. Esse termo não possuía caráter especificamente pejorativo, o emprego se distinguia pela entonação ou contexto em que era utilizado” (PEIXOTO, 2007, p. 77).
Para suprir essa falta de nomenclatura, foi resgatada a expressão terceira idade, que, recentemente e com muita rapidez, popularizou-se no vocabulário brasileiro (DEBERT, 1996). Assim como terceira idade, também foi recuperado o termo idoso, que sempre fez parte do vocabulário português, entretanto não era palavra de muito uso no Brasil (PEIXOTO, 2007). Debert diz que “a categoria idoso (a) invade todos os domínios e o termo ‘velho’ passa a ser sinônimo de decadência” (1996, p. 78). A disseminação do termo idoso se amplia, sobretudo, nos anos 2000, não apenas na academia, mas em documentos oficiais do Estado nacional por decorrência da criação do Estatuto do Idoso, a partir da Lei 10.741, de 2003. (BRASIL, MINISTÉRIO DA SAÚDE, 2013).
Aceita a categoria terceira idade pela sociedade, também foram criados termos como a quarta idade, conforme diz Peixoto (2007), quando ela fala que o que sobressai, no sistema de representações da velhice, é que o prolongamento da vida das pessoas envelhecidas pressiona o alargamento das faixas de idade mais jovens e, assim, a criação de novas denominações, como quarta idade. Para finalizar, deve-se entender que, pela visão da antropologia, a velhice é “uma categoria socialmente produzida” (DEBERT, 2004, p. 50).
Debert (2004) afirma que a “terceira idade” é uma criação recente das sociedades ocidentais contemporâneas, a qual implica a criação de uma nova etapa na vida que se interpõe entre a idade adulta e a velhice e é acompanhada de um conjunto de práticas, instituições e agentes especializados, encarregados de definir e atender as necessidades dessa população.
A antropologia mostra que as fases da vida não se constituem em propriedades substanciais que os indivíduos adquirem com o avanço da idade cronológica. Pelo contrário, o processo biológico é elaborado simbolicamente com rituais que definem fronteiras entre idades pelas quais os indivíduos passam e que não são necessariamente as mesmas em todas as sociedades (DEBERT, 1994). Em outras palavras, a ideia do que é ser velho varia de sociedade para sociedade. Essa autora destaca as décadas de 60 e 70 como o segundo período mais marcante para a história da velhice, pois foi nesse momento que ela passou a ser um problema para a sociedade e adquiriu visibilidade. Esse fato é resultado do aumento demográfico da população de velhos. Neste caso, o termo velhice, conforme propõe a autora, se constitui enquanto uma construção sociocultural.
Em nossa sociedade, a imagem da velhice é associada ao declínio de vitalidade, não só porque já se ultrapassou o ponto mais alto da capacidade produtiva, mas porque essa perda de capacidade é ligada à perda da condição de controle do corpo e da mente (FEATHERSTONE, 1994). Para Laslett (1991), o aumento da longevidade e da qualidade de vida com base nos avanços tecnológicos e o surgimento da aposentadoria são os dois principais fatores que garantem o ingresso dos sujeitos na chamada terceira idade. Por sua vez, Norbert Elias (2001) diz que existe, em nossa sociedade, uma tendência ao isolamento social dos velhos, e esse isolamento pode ser ligado à perda da posição de trabalho.
Já no campo da saúde, o médico norte-americano Ignatz Nascher foi o primeiro a estabelecer uma identificação da velhice. Por meio da observação do corpo dos indivíduos velhos, ele formulou as características biológicas da velhice, conceituou o tratamento médico a ser dispensado aos velhos e introduziu, na literatura médica, o termo ‘geriatria’ (HAREVEN, 1995). Segundo Laslett (1991), a importância, em termos de imaginário cultural, da metáfora médica da velhice foi produzir a identificação entre velhice e doença. Pode-se imaginar que esse conceito foi calcado na ideia de que o médico e a medicina sempre lembram doença e, associando-se a velhice ao campo da medicina, ela fica com o estigma de falta de saúde. Featherstone (1994) complementa essa visão citando que o argumento central da gerontologia é fundamentado na compreensão do envelhecimento como uma construção social particularmente atrelada a uma imagem negativa, cuja alteração pode ceder espaço para uma imagem positiva do mesmo processo.
Compreende-se que a velhice é criada socialmente e depende de variáveis culturais e cronológicas; também que ela acaba sendo muito ligada a questões de doença na sociedade ocidental. A aposentadoria é um fator que serve como porta de entrada, em que os indivíduos passam a perceber que, a partir daquele ponto, eles estão envelhecendo ou já estão velhos.
Segundo Carvalho e Wong (2008), no ano de 2000, para cada 100 mulheres idosas, havia 81 homens idosos. Em 2050, essa relação sofrerá alterações, quando existirão 100 idosas para 76 idosos do sexo masculino. Entre os mais velhos, que têm 80 anos ou mais, para cada 100 mulheres, o número de homens deverá cair, entre 2000 e 2050, de 71 para 61. Essa diferença entre as pessoas que estão em estágio mais avançado da velhice é por causa da expectativa de vida ao nascer, que se localiza acima de 60 anos. Segundo Garrido e Menezes (2002, p. 4), “a expectativa de vida ao atingir 60 anos também acompanha o sexo, com mais 19,3 anos de vida, em média, para as mulheres contra 16,8 anos para os homens”.
São as mulheres, todavia, que, apesar de terem uma expectativa de vida maior, vivem maior declínio ao longo do envelhecimento. Elas apresentam altas taxas de dependência e declínio da capacidade funcional, o que as leva a maior fragilidade, perda de autonomia e as impede de realizarem suas atividades cotidianas (PAZ; SANTOS; EIDT, 2006).
Outra questão a ser considerada é que, há alguns anos, as mulheres consideravam seus papéis de mães e avós como os mais importantes de suas vidas, já, hoje, o envelhecimento tem sido para algumas mulheres o tempo de realização de sonhos e desejos que tinham sido esquecidos (MORI; COELHO, 2004).
Atualmente, as mulheres e os homens permanecem saudáveis durante mais tempo, ganhando cada vez mais qualidade de vida, e isso faz com que se apresentem com força e energia incomparáveis em relação aos idosos das outras gerações (REIS, 2006). Em outras palavras, o projeto de vida e a velhice bem-sucedida são planos novos, modernos, que vêm atingindo os velhos de hoje em dia, os quais não querem mais viver a vida que tinham quando faziam coisas por obrigação, pois entendem que já cumpriram suas funções com a família e a sociedade e podem dedicar seu tempo, seu último tempo, às suas próprias vontades.
Essa mudança na visão da velhice, principalmente da velhice feminina, acaba atingindo também outras esferas. A moda é um desses fatores que sempre procura se adaptar às novas demandas e aos gostos do público, principalmente das mulheres, que, apesar de sofrerem as diversas represálias aqui comentadas, ao mesmo tempo, vêm se reinventando nessa época da sua vida.
Para Michel Maffesoli (1996, p.341) a moda é onipresente. “Não há nenhum domínio que lhe escape: do mais frívolo àquele tido como o mais sério, encontra-se a necessidade de se identificar.” Ele ainda fala que a moda é imitação, o desejo de reconhecimento pelo outro, a procura de um apoio ou de proteção social e o fato de seguir uma via comum (MAFFESOLI, 1996). Assim, “a moda pode ser considerada um bom exemplo de imitação-identificação, cuja periferia está em todo lugar, e o centro em lugar nenhum” (MAFFESOLI, 1996, p. 342).
Segundo Simmel (2008), a posição social a que as mulheres estiveram “condenadas” durante a maior parte da história gera nelas uma estreita relação com tudo o que é costume, com aquilo que fica bem, mas as mulheres também aspiram fortemente à relativa individualização e à caracterização da personalidade individual que ainda lhes são possíveis (SIMMEL, 2008). Simmel enfatiza a ideia de dualidade. A mulher quer fazer parte do grupo, mas também quer preservar um pouco a sua individualidade. Simmel (2008) diz que a moda proporciona justamente esta combinação: por um lado, um recinto de imitação geral, um nadar tranquilamente nos amplos canais da sociedade, por outro, uma caracterização, um realce, um adorno individual da personalidade (SIMMEL, 2008).
Indagamo-nos de que modo esta dualidade presente no mundo da moda, enfatizada por Simmel, dialoga com o grupo aqui pesquisado, mulheres acima de 60 anos. Em que medida há espaço para a construção de uma identidade de grupo a partir da moda, ao mesmo tempo em que se deixa espaço para a expressão da individualidade? Quais representações de gênero e concepções de corpo feminino, em relação às mulheres acima de 60 anos, estão presentes no universo da moda? A criatividade do setor da moda leva em conta a história de luta das mulheres, no transcorrer do século XX, marcada pela autonomia e emancipação?
Metodologia: Diálogos em Campo
Para o objetivo deste artigo, apresentamos alguns trechos das narrativas biográficas e relatos da observação participante relacionados à pesquisa desenvolvida. As interlocutoras, em número de cinco, são apresentadas por codinomes, a fim de preservar sua identidade e anonimato. Por se tratar de uma pesquisa qualitativa, não definimos percentual de amostra. À medida que realizamos as entrevistas e demos início à análise e a construção das subcategorias, entendemos que as cinco entrevistas já ofereciam material suficiente para as nossas indagações. Todas as entrevistas foram realizadas na moradia dessas mulheres. Alguns encontros foram desmarcados e remarcados devido à agenda das interlocutoras. Todas, sem exceção, mostraram-se extremamente solícitas e, principalmente, felizes com a ideia de participar da pesquisa. Nesse mesmo sentido, prepararam-se para o encontro, oferecendo chás, tortas, entre outros itens, comprados especialmente para a ocasião. As narrativas foram filmadas por meio de câmera digital. Quando indagadas sobre a possibilidade da gravação, todas pediram um tempo para se arrumarem, principalmente o cabelo. Também perguntaram sobre o propósito do vídeo, se seria divulgado e se outras pessoas chegariam a vê-lo. Após a afirmação de que o vídeo seria usado exclusivamente para relembrar o diálogo e de que não seria veiculado em outros espaços, todas autorizaram sem nenhum empecilho e assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.
Resultados e análise
Na ocasião das entrevistas, todas apresentavam as unhas feitas e estavam maquiadas de maneira leve. Vestiam-se de maneira sóbria, elegante. Apesar disso, mesmo dentro de suas próprias casas, todas usavam sapatos formais, algumas inclusive de salto. Quando encontradas em outras ocasiões, fora de suas casas, usavam roupas com design moderno, as quais poderiam ser facilmente usadas por mulheres de qualquer idade, roupas essas que não as faziam parecer “inadequadas para a idade”, conforme a expressão usada por uma delas. Estes outros encontros, fora das situações formais de entrevista, deram-se em eventos sociais, como coquetéis e lançamentos, onde elas circulavam principalmente entre pessoas mais novas do que elas, pessoas essas por volta dos 30 ou 40 anos. Nessas ocasiões, havia certo cuidado com a aparência, quando iam ao salão de beleza e atentavam para a escolha do sapato, de salto alto. Alguns encontros foram marcados propositadamente no salão de beleza, onde era possível notar uma preferência clara por certos tipos de penteados, maquiagens e cores de esmalte. Todas costumam pintar os cabelos, escondendo os fios brancos.
Rosa, ao ser indagada se conhecia uma marca de sapato específica, que foca no conforto e atende principalmente mulheres mais velhas, contou que conhecia e inclusive usava este tipo de sapato, mas sempre acompanhado de uma saia longa, para escondê-lo, já que ele não possui design moderno e atraente. Essa frase, apesar de ser dita em forma de brincadeira, demonstra como as duas coisas são importantes para elas: o conforto e o design.
Quando na condição de entrevista gravada, todas propuseram que o diálogo acontecesse em suas salas de estar, onde ficamos conversando por mais de uma hora. Hortência fez questão de mostrar um lugar em sua casa reservado aos objetos antigos dos hotéis que a família de seu marido possuía, como penicos e bacias. Ela ainda comentou que sabia que, quando falecesse, nenhum de seus filhos iria querer aquelas ‘velharias’, como ela mesmo se referiu, apesar de mostrar apreço aos objetos. Ainda que as entrevistas tenham acontecido no interior de suas casas, o espaço permitido à circulação da pesquisadora fora limitado. O convite não foi estendido para conhecer outros cômodos, mostrando um certo senso de privacidade e demarcação do que seria socializado. Apesar de apenas Orquídea e Hortência morarem sozinhas, não obtivemos contato com nenhuma outra pessoa, com exceção do marido de Margarida, que ela pediu que se retirasse no momento da entrevista.
Todas elas possuíam páginas no Facebook, e algumas inclusive no Instagram, rede social ligada principalmente a pessoas mais jovens. Apesar de demonstrarem que não entendem completamente como essas redes sociais funcionam, elas se mostraram usuárias bastante ativas. Orquídea, inclusive, comentou como gostava do que Tulipa costumava compartilhar em sua página no Facebook. Enquanto a própria Tulipa contou que é uma usuária ativa de jogos online, assim como Rosa demonstrou gostar muito de assistir a séries por meio do Netflix.
Todas as cinco entrevistadas comentaram sobre a diferença que pairava entre seus pais nos quesitos estudo e trabalho. Isso nos remete a Scott (1995), a qual, ao conceituar gênero, propõe uma relação com o mundo do trabalho, a educação e o sistema político. Nas narrativas, fica nítida a diferença no campo dos estudos e do trabalho, especialmente por volta dos anos 1950, ano em que essas mulheres eram crianças e relataram de que maneira seus pais viviam. Especificamente sobre os pais, elas comentaram que eles estudaram até onde foi possível, na época. Já sobre as mães, foi consenso que elas tiveram menos estudo que os pais. Pelos depoimentos dados por essas mulheres, fica nítido como a mulher, naquela época, estava sujeita ao papel de mãe como o principal – e muitas vezes o único – de sua vida. Esse cenário só sofreu mudanças depois da revolução sexual nos anos 60, com a vinda de métodos contraceptivos ao Brasil. As mulheres aqui entrevistadas também deram seus depoimentos acerca disso, demonstrando que entendem que o lugar que sua mãe ocupava era claramente inferior ao lugar do pai e inferior ao lugar que elas mesmas ocupam hoje em dia, como mãe de família e profissional, uma mulher muito mais independente.
Orquídea contou que seu pai era dono de uma livraria e tipografia, e frisou: “a minha mãe sempre ajudando, na tipografia e na livraria”. Já Hortência falou: “ela não trabalhava, mas queria trabalhar, então ela começou a aprender a costurar o sapato”. Ou seja, seu pai trabalhava em uma fábrica de sapatos e a mãe ajudava nesse trabalho, porém, em casa, ao mesmo tempo que cuidava dos filhos. Ela também contou que a sua mãe lhe ensinou o ofício que ela tinha e que ela recorda esses ensinamentos até hoje. Ou seja, a valorização do trabalho manual feminino, evidenciando-se o quão importante era passar conhecimentos por parte das mães para suas filhas. Aqui também cabe relacionar o papel da mulher ao de dona de casa, pois seu papel principal era o de cuidar dos filhos e do lar. Qualquer outra atividade era considerada secundária, provavelmente por isso Orquídea fez uso da palavra ‘ajudando’, pois era assim que se considerava o trabalho da mulher, uma ajuda ao sustento fornecido pelo homem, pelo marido. Ela não ‘trabalhava’ como ele, ela apenas ‘ajudava’.
Simone de Beauvoir (1980) destaca o papel histórico da mulher, que se encontrava restrito ao âmbito familiar. A autora diz que a mesma causa que assegura à mulher sua autoridade dentro de casa e seu confinamento nos trabalhos domésticos assegura também a preponderância do homem. Assim, o trabalho doméstico da mulher desaparece ao lado do trabalho do homem. “O segundo era tudo, o primeiro um anexo insignificante” (BEAUVOIR, 1980, v. I, p. 74).
As mulheres pesquisadas levantaram um ponto bastante em comum: a vida ocupada que levam. Entre todas, somente Margarida ainda trabalha fora de casa e ela afirmou: “a partir de 1992 eu virei profissional, e não mais dona de casa”. Ela explicou que foi nesse ano que todos seus filhos saíram de casa e, por isso, ela pôde se dedicar exclusivamente ao trabalho. Tulipa contou que ainda faz encomendas para conhecidos, como bordados e costuras, mas respeitando seu próprio tempo. Já Rosa e Orquídea falaram, respectivamente: “levo uma vida aposentada, mas bastante ocupada”; e “praticamente eu tenho todo dia uma ocupação”. Hortência ainda contou: “eu sou super ocupada”. Todas demonstraram isso como motivo de orgulho, afastando-se de representações comuns sobre velhos no imaginário social, de pessoas reclusas em suas casas, com poucas atividades.
Entre os compromissos diários que elas possuem, muitos estão relacionados ao corpo: os exercícios físicos. Tulipa disse: “de manhã eu dou um jeito de dar uma caminhada”. Hortência disse: “faço Pilates, coisa que eu nunca me dediquei foi pro corpo, sabe, nunca, agora eu faço isso”. Segundo Debert (2004), as mulheres velhas enxergam na velhice a possibilidade “para concretização de sonhos adiados em outros momentos da vida” (DEBERT, 2004, p. 19). A frase de Hortência demonstra exatamente isso, quando ela diz que anteriormente nunca tinha se dedicado ao seu próprio corpo, mas que hoje em dia, com o tempo que possui, passou a fazer aulas de Pilates regularmente. Elas também falaram sobre aulas que frequentam e os cursos que fazem, além das atividades diárias com o corpo, por exemplo, fazem cursos de idiomas e, no caso de uma delas, curso de estudos bíblicos. Elas também comentaram como ainda se ocupam com a família, os amigos e os maridos.
Todas essas atividades realizadas pelas mulheres demonstram uma quebra na ideia tradicional de que o velho, quando atinge idade avançada, fica em casa, recluso e solitário. Debert (1994) diz que, quando foi definido, na cultura ocidental, o que era ser velho, essa invenção veio acompanhada de um conjunto de práticas, instituições e agentes especializados encarregados de determinar e atender às necessidades dessa população, que, a partir dos anos 1970, passou a ser caracterizada como vítima da marginalização e da solidão. Fica claro que isso não se aplica a essas mulheres entrevistadas, que se empenham em levar uma vida ocupada, recheada de atividades por vezes ligadas a exercícios físicos e, por outras, a estudos, o que faz com que elas se mantenham ativas de diversas formas e em contato com outras pessoas, permitindo-lhes, assim, estar constantemente ligadas ao mundo exterior.
Elas relataram que os cuidados com o corpo se mantêm os mesmos de sempre e não aumentaram por causa da velhice. Todas elas comentaram sobre as atividades físicas que realizam, antes mesmo das aulas, dos cursos ou demais atividades. Debert (1994) diz que os controles sobre a mulher na velhice são afrouxados, posto que ela já não precisa mais ser produtiva. Isso pode vir a ser um fator explicativo de o porquê as mulheres, nessa fase de suas vidas, sentem que não necessitam mais se cuidar tanto ou serem tão vaidosas como eram antigamente. Talvez seja justamente pelo afrouxamento de cobrança que a sociedade entende que pode dar a essas mulheres que então elas se permitem a, de certa forma, relaxam acerca de seu corpo.
Apesar de as entrevistadas terem afirmado que seus cuidados com o corpo pouco mudaram e não demonstrarem muitas preocupações a respeito disso, quando falaram sobre o que mais as incomodou entre essas mudanças, ficou claro o principal problema que elas acreditam que enfrentam: o aumento de peso, principalmente na área da barriga. Foram todas as entrevistadas, sem exceção, que falaram sobre o aumento do tamanho de seu corpo nessa região. Elas começaram falando sobre como era seu corpo antigamente, sempre magro, como hoje em dia essa realidade mudou e elas não conseguem mais voltar ao peso antigo. Assim, Rosa comentou: “eu sempre fui muito magra, e a alimentação, mais ou menos, tinha bons hábitos, mas hábitos como se tinha na época, não se tinha muitos conhecimentos”. Já Orquídea destacou: “não é que eu mudei, as coisas não acontecem mais como aconteciam antes, porque antes eu cuidava, e agora o corpo está deformando, eu nunca tinha gordurinha aqui, ó, agora instalou e não sai mais, aumenta o tamanho do corpo, o volume corporal, isso foi o que mais mudou”, ela contou apontando para a parte da barriga.
Margarida ainda falou sobre a questão do corpo em relação à moda e como isso afetou seu modo de vestir: “o que mais me incomoda eu acho que é a barriga, me incomoda, vai botar uma blusa, um cinto, e antes eu não tinha, eu realmente não tinha, então me incomoda”. Hortência ressaltou o fato de antigamente seu corpo ser diferente do que é hoje em dia: “desce o peito, a gravidade é um horror, e eu noto aqui que a gente fica mais arredondada, sem cintura, porque eu era muito magrinha, então agora eu, comparada comigo, sou gorda”. Todas elas comentaram que hoje em dia se consideram gordas em comparação a antigamente e falaram isso de maneira extremamente pejorativa, mostrando que, apesar de seus esforços, isso é algo que elas não conseguem evitar.
Elas também falaram sobre quando perceberam as mudanças corporais. Margarida citou: “minha cintura mudou muito, depois dos 46 de uma hora pra outra a minha cintura quase que sumiu, isso é uma coisa que me incomodou, porque eu tinha muito, eu gostava disso, de coisa bem acinturada, e a cintura foi com a idade, depois da menopausa, é a única coisa”. Já Orquídea ressaltou: “eu despenquei depois dos 70”.
Depois dessas afirmações, elas manifestaram que passaram a entender essa mudança como algo que devem aceitar, como quando Rosa disse: “daí, eu acho que relaxei mesmo, não dei mais atenção pra isso, e atualmente eu estou muito acima do meu peso e não consigo mais perder, não consigo mesmo, o máximo que eu consigo, com muito esforço, eu perco dois quilos e quando eu vejo já engordei”. Orquídea seguiu pela mesma linha, quando afirmou: “o formato, sabe, perdi a cintura, aumentou aqui e aqui, me incomoda, mas agora eu já aceitei, não adianta, não quero passar fome, mas a gente tenta se conservar, eu antes tinha força de vontade, com a maior facilidade eu me controlava, fechava a boca e emagrecia e agora não”.
Esse desconforto, por parte das mulheres, sobre o quanto elas engordaram com o passar dos anos e se diferenciaram do corpo que tinham antigamente vai ao encontro da abordagem de Monteiro (2008), a qual diz que existe um ideal de beleza jovem que forma a crença popular de que a mulher bonita é sempre a jovem. Se ela já for velha, ainda assim poderá ser considerada jovem se utilizar os artefatos corretos. Giddens (2005) diz que o velho de hoje em dia é menos propenso a aceitar o envelhecimento como um processo inevitável de deterioração do corpo, pois cada vez mais a velhice não tem sido encarada como algo natural, quando os avanços da medicina e da nutrição vêm mostrando que muito do que um dia foi considerado inevitável sobre o envelhecimento pode ser contestado.
Tulipa, quando questionada sobre o uso do termo “velho”, disse: “é real, é o termo usado faz muito tempo, é um conceito, é velho, vai dizer ‘ah, é usado’, nem todos, ‘é experiente’, nem todos, mas velho sim”. Foi comentado, por mais de uma delas, que tudo depende do tom que se emprega ao se proferir a palavra ‘velho’, o que a torna pejorativa ou não. Orquídea citou: “mas eu não acho que seja pejorativo, mas claro, se falar assim ‘o velho’ depende da maneira que se diz, mas o termo em si, velho, eu não acho”. Margarida também disse algo similar: “o tom é que faz ser pejorativo, eu acho que não é, dependendo da entonação que tu dás”. Esses depoimentos vão ao encontro de frase de Peixoto (2007), pois, no Brasil, o termo usado até os anos 60 era, sobretudo, velho e não possuía caráter especificamente pejorativo, o emprego distinguia-se pela entonação ou pelo contexto em que era utilizado. E, foi exatamente isso que elas citaram, isto é, dependendo do tom usado, o sentido muda. Pode ser grosseiro ou também uma simples forma de se referir a pessoas com idade avançada.
As entrevistadas foram questionadas a falar se existe uma diferença entre envelhecer sendo mulher e envelhecer sendo homem. Todas elas, sem exceção, levantaram pontos sobre essa diferenciação. Algumas citaram saúde; outras, amizades; e outras ainda, a aceitação sobre a idade que chegou. Orquídea falou: “a mulher envelhece não com categoria, como que eu vou te dizer, mas com mais sabedoria, se cuidando, sabendo o problema que ela tem, e o homem, ele não quer saber, ele não procura, essa é a diferença que eu acho que tem, ele não é tão cuidadoso quanto a mulher que cuida da saúde”. Margarida também citou questões de saúde: “eu acho que as mulheres sabem envelhecer melhor que os homens, acho que as mulheres aceitam melhor e lidam melhor com as dificuldades, os homens ficam muito dependentes, e, quando essa dependência é real, e não mais por comodismo, eles se assustam. Tulipa citou o mesmo ponto, quando disse: “a mulher eu acho que ela é mais segura, e o homem fica mais inseguro, ele busca, nas mulheres mais jovens normalmente, um motivo assim ‘quem vai me cuidar’. De novo apareceu a questão de independência, pois Tulipa considera, assim como Margarida, que os homens ficam cada vez mais dependentes, enquanto as mulheres aumentam sua independência. Para elas, as mulheres se cuidam mais, vão mais ao médico e preservam mais as amizades, o que ajuda na parte psicológica do envelhecimento.
Todas as entrevistadas falaram que se sentiam muito mais novas do que a idade que realmente possuíam. Elas citaram principalmente a diferença entre o corpo e a cabeça, pois sabem e sentem fisicamente que têm a idade que realmente possuem, porém não sentem, psicologicamente falando, que a idade avançada já chegou. Rosa disse: “eu sou velha, mas eu não me considero, mas eu sou, tenho 73 anos, porque eu assim acho que eu tenho muita disposição, muita vontade e me sinto bem na minha idade”. E Orquídea, por sua vez: “eu tenho que confessar, a minha cabeça ainda é de 25, 26, mas o corpo não, o corpo cobra, mas a cabeça...” Ambas citaram a relação que fazem entre corpo e mente e como sentem que a idade chegou somente para o corpo, mas elas continuam com os mesmos pensamentos, vontades e ideias de muitos anos atrás.
Por meio do olhar de quem vivencia a velhice, pode-se entender que ela pode chegar apenas fisicamente e não influenciar em como a pessoa é, sua personalidade, seus gostos e seus desejos. Essas afirmações também demonstram uma necessidade, por parte dessas mulheres, de se distanciar do velho. Elas afirmaram que possuem idade avançada, também pelo fato de que fisicamente a velhice não poder ser mascarada, porém afirmaram que mental e intelectualmente não se sentem velhas. Esse tipo de afirmação não pode ser contestado, pois não é possível de ser averiguado por um terceiro. Assim sendo, elas admitem que estão velhas, mas refutam o sentimento de velhice.
As alterações corporais percebidas pelas mulheres ligam-se, sobremaneira ao aumento de peso e da região abdominal. Rosa disse: “procuro fazer tudo que não marque a barriga”. Segundo Paschoarelli (2009), existem inúmeras razões para se trabalhar com idosos, com o objetivo de contribuir e melhorar a qualidade de vida dos mesmos, “incorporando a ergonomia, a antropometria e o envelhecimento humano como objeto de estudo” (p. 55). O mesmo autor ainda afirma que todas as pessoas sofrem mudanças físicas durante o envelhecimento e explica que a antropometria trata de medidas físicas do corpo humano (PASCHOARELLI, 2009). Já a ergonomia visa, entre outras coisas, a adaptar dispositivos à tarefa que seu operador realiza (CYBIS, 2010). Esses dois conceitos podem vir a ser úteis para a criação de produtos que visem a trabalhar com esse público.
As entrevistadas percebem que, em alguma fase de suas vidas, tiveram um estilo de vestir diferente do que possuem agora, mas encaram aqueles tempos como apenas fases e, hoje em dia, preferem manter o estilo clássico, que é por vezes mais seguro e menos facilmente julgado por terceiros. Por meio desse estilo, elas conseguem manter o que consideram adequado na hora de se vestir. Simmel (2008) diz que as modas eternas, aquelas que não mudam nunca, são sempre consideradas adequadas e vivem eternamente. É possível, com base nas falas das entrevistadas, observar uma conotação negativa em relação a tudo que é diferente, que foge do clássico, do que é esperado delas pela sociedade. Isso é possivelmente um reflexo do que Simmel (2008) cita como um modo de se resguardar e não se exibir a todos, garantindo, assim, segurança a respeito do que vestem e, consequentemente, como são vistas aos olhos do outro.
Todas citaram a moda jovem e como os jovens se vestem, comparando com a realidade em que estão inseridas. Rosa, por exemplo, apontou: “(...) eu acho ridículo pessoas de idade usando modinhas, coisa de jovem, eu acho nada a ver”. Tulipa ressaltou: “(...) o que acontece às vezes é que pode ter uma cabeça de 25, jovem, mas tem que ter o senso de ridículo, o bom senso foi feito e eu nunca me vesti toda decotada, saí de saia por aí, mas claro, se tu és velha e faz esse tipo de coisa, daí tu está pedindo também”. Margarida comentou: “tem muita mulher velha que gosta de se vestir como se fosse uma jovem, eu acho de mau gosto, pra mim é mau gosto, mas é a minha opinião”. Em todas as narrativas foi ressaltado o fato de as mulheres se adaptarem ao que é definido como socialmente ideal para elas, sob pena de não serem consideradas ridículas, sem senso crítico ou estético. Comprimentos, decotes, cores, tecidos, estampas e modelagens, tudo isso deve ser ajustado conforme a idade, pois, caso isso não aconteça, será vista como uma mulher que não ‘percebe a idade que tem’, na palavra das próprias entrevistadas. Apesar do discurso considerado moderno, percebe-se que essas mulheres ainda se sentem muito presas aos padrões sociais, pois o corpo de valor é sempre o novo, e o velho é considerado feio, uma ofensa e, por isso, jamais deve ser exposto.
Segundo Maffesoli (1996), moda é imitação, o desejo de reconhecimento pelo outro, a procura de um apoio ou de proteção social e o fato de seguir uma via comum. Mulheres que cultivam um estilo próprio de vestir, considerado inadequado, não possuem essa proteção social, pois não se enquadram em um estilo clássico, recatado, ou seja, aquilo que se espera de uma mulher na velhice. Simmel (2008) explica isso quando diz que a posição social a que as mulheres estiveram condenadas durante a maior parte da história gera nelas uma estreita relação com tudo o que é costume, com aquilo que fica bem.
As poucas mulheres que optam por continuar usando as mesmas roupas que sempre usaram acabam sendo entendidas como mulheres que não percebem a idade que possuem e, por isso, não fizeram as devidas adequações que eram esperadas delas. Isso reforça os padrões sociais vigentes. Quando se fala de moda, a visão das entrevistadas ainda vai em direção às expectativas do que a sociedade espera delas: recato, discrição, não exposição.
Considerações Finais
De modo geral, observa-se como o gênero feminino e a velhice são construídos socialmente e como esses processos afetam a relação da mulher com a moda. Isso faz com que o setor de moda precise inovar nos produtos oferecidos a esse público específico.
Ficou nítido, ao longo das falas das pesquisadas, o quanto fugir do padrão, mesmo que seja mantendo seu estilo de quando era jovem, é visto como inadequado aos olhos delas. A mulher, segundo elas, deve seguir o que é entendido como correto pela sociedade em que vive. Não obstante, os estereótipos de compra na idade mais avançada muitas vezes não são verdadeiros e, atualmente, as pessoas mais velhas enxergam os momentos de consumo como lazer, além de não possuírem preconceito com novas marcas. Elas também são responsáveis por influenciar as compras da família toda e têm maior liberdade para fazer o que desejam com seu dinheiro, colocando suas vontades como prioridade.
A pesquisa revelou que a maior mudança corporal que elas sentem está relacionada ao aumento de peso, apesar disso, não realizam nenhuma mudança drástica na maneira com que cuidam de seu corpo, mostrando que, mesmo com seu corpo diferente do que era antigamente, hoje, essas mulheres não sentem mais a necessidade de estar com ele da melhor maneira possível, muito possivelmente pela sensação de liberdade adquirida com a idade. Ficou claro também que a velhice não as impede de manterem uma vida bastante ocupada, recheada de atividades e compromissos, e que elas percebem uma diferença entre envelhecer sendo mulher e envelhecer sendo homem, pois, segundo elas, a mulher envelhece melhor em diversos aspectos. Outros pontos importantes a serem citados é o preconceito que aparece velado com o termo velho, e as mulheres que, segundo as pesquisadas, não se adaptam corretamente à maneira de se vestir de uma mulher velha, mesmo elas tendo afirmado que não mudaram muito em relação ao que usam. E, mesmo nessa idade, ainda é vigente a economia de gastos, pois elas pretendem guardar para quando tiverem algum problema de saúde ou precisarem de alguma ajuda relacionada à velhice.
A utilização de procedimentos e técnicas de pesquisa do método etnográfico nesta pesquisa possibilitou uma maior aproximação com esse grupo de mulheres. Alguns questionamentos anteriores acerca dos significados que as mulheres atribuem ao corpo, à moda e ao envelhecimento puderam ser problematizados, sistematizados, organizados para uma análise e interpretação, que, de antemão, amplia o conhecimento teórico acerca desses temas específicos, mas que também abre espaço para a possível criação de produtos inovadores para o mercado de moda.
A pesquisa oferece ao designer de moda alguns elementos para ir ao encontro desse público-alvo: mulheres acima de 60 anos. Um exemplo é a grande preferência por disfarçar a parte da barriga, problema que pode ser resolvido por meio de modelagens ou tecidos específicos. Também a questão de conforto e bem-estar que elas trouxeram se mostra importante nessa fase da vida. Ou ainda roupas que ajudem a marcar a cintura, que elas tanto comentam que perderam ao longo dos anos, sentindo falta dessa parte de seus corpos. Para resolver esses problemas é que entram a ergonomia e a antropometria, ambas áreas que visam a melhorar os aspectos de usabilidade de uma peça.
Então, pode-se dizer que este trabalho instiga a pensar sobre como seria um produto de moda específico para o público que aqui se trabalhou. Percebe-se que esse público existe, e não só isso, mas como ele cresce cada vez mais, vide os dados oficiais que demonstram o crescimento da população envelhecida e o número de mulheres que prevalece em relação ao dos homens. Com esse aumento, é possível que os velhos de hoje e de amanhã venham a permanecer mais tempo economicamente ativos. Porém, fica claro que as mulheres não estão sujeitas a consumir qualquer produto.
Nesta perspectiva, a moda, necessita inovar para alcançar e satisfazer essa faixa da população, oferecendo produtos adequados e compatíveis com as suas expectativas, pois demonstramos, pelas narrativas, que as mulheres em uma faixa etária avançada não se sentem comtempladas com os produtos de vestuário disponíveis no mercado.
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