Gustavo Teixeira Gonçalves*
Elias Kallás Filho**
FDSM, Brasil
E-mail: gutxgoncalves@gmail.com
RESUMO
O presente estudo tem por objetivo avaliar medidas alternativas à promoção do direito fundamental social à moradia, desvinculando-o do direito fundamental à propriedade. A relevância do estudo reside na postura ativa do Estado frente aos direitos sociais e no contínuo desenvolvimento de políticas voltadas à aquisição da propriedade privada pouco eficazes para combater o problema de déficit habitacional no país. A metodologia empregada é a pesquisa bibliográfica volta à compreensão teórica e prática do direito fundamental à moradia. Por fim, concluiu-se que o conteúdo do direito em apreço que mais se ajusta com a Constituição de 1988. É o direito à moradia e ele não pode ser visto como um “produto a ser adquirido via mercado”, de modo que a principal objeção a programas de aquisição da propriedade para solucionar o problema habitacional das classes menos favorecidas é a mercantilização do direito fundamental em apreço. Por conseguinte, verificou-se o enfraquecimento dos demais mecanismos que ficam à disposição do poder público e a violação do núcleo do direito social à moradia que é a tutela da posse legítima e não a propriedade.
Palavras-chave: Direito à Moradia; Direito Fundamental Social; Políticas Públicas; Economia.
RESUMEN
Este estudio tiene como objetivo evaluar medidas alternativas para promover el derecho social fundamental a la vivienda, separándolo del derecho fundamental a la propiedad. La relevancia del estudio radica en la postura activa del Estado hacia los derechos sociales y el desarrollo continuo de políticas destinadas a la adquisición de propiedad privada que no son muy efectivas para combatir el problema del déficit de vivienda en el país. La metodología utilizada es la investigación bibliográfica para la comprensión teórica y práctica del derecho fundamental a la vivienda. Finalmente, se concluyó que el contenido del derecho en cuestión que más se ajusta a la Constitución de 1988. Es el derecho a la vivienda y no puede verse como un "producto que se adquiere a través del mercado", por lo que el principal La objeción a los programas de adquisición de propiedades para resolver el problema de la vivienda de las clases menos favorecidas es la mercantilización del derecho fundamental en cuestión. En consecuencia, hubo un debilitamiento de los otros mecanismos disponibles para el poder público y una violación del núcleo del derecho social a la vivienda, que es la protección de la posesión legítima y no de la propiedad.
Palabras clave: Derecho a la vivienda; Derecho social fundamental; Políticas públicas; Economía
RESUME
The present study aims to evaluate alternative measures to promote the fundamental social right to housing, detaching it from the fundamental right to property. The relevance of the study lies in the State's active stance towards social rights and the continuous development of policies aimed at the acquisition of private property that are not very effective in combating the problem of housing deficit in the country. The methodology used is the bibliographic research back to the theoretical and practical understanding of the fundamental right to housing. Finally, it was concluded that the content of the right in question that most fits with the 1988 Constitution. It is the right to housing and it cannot be seen as a “product to be acquired via the market”, so that the main objection to property acquisition programs to solve the housing problem of the less favored classes is the commodification of the fundamental right in question. Consequently, there was a weakening of the other mechanisms that are available to the public power and a violation of the core of the social right to housing, which is the protection of legitimate possession and not property.
Keywords: Right to Housing; Fundamental Social Law; Public policy; Economy.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Gustavo Teixeira Gonçalves y Elias Kallás Filho (2020): “O direito social à moradia e as políticas habitacionais no Brasil: a prevalência da mercantilização da moradia em detrimento de soluções alternativas”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (marzo 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/03/politicas-habitacionais-brasil.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2003politicas-habitacionais-brasil
1. Introdução
A construção teórica dos direitos fundamentais de segunda dimensão retoma ao momento histórico de declínio do Estado Liberal Clássico e do sistema capitalista do tipo Laissez-Faire 1. No início do século XX, o Constitucionalismo Social começa a se expandir por todo o ocidente, nas Américas o paradigma foi a Constituição Mexicana de 1917 e na Europa Continental o modelo foi a Constituição Alemã de Weimar de 19192 .
No Brasil, a primeira Constituição que incorporou essa temática foi a Constituição de 1934, que de maneira muito significativa para a história do Constitucionalismo Brasileiro prescreveu, pela primeira vez, direitos trabalhistas, normas atinentes à ordem econômica e direitos culturais. Esta roupagem social foi mantida em todas as Constituições posteriores, ganhando minuciosa regulamentação na Constituição de 1988.
A vertente social do constitucionalismo trouxe uma nova postura para o Estado, qual seja uma postura positiva, voltada à articulação de políticas públicas para a efetivação dos direitos sociais, entre eles, destaca-se o direito à moradia. Contudo, o constitucionalismo social não está imune a críticas, principalmente no que concerne à promoção do bem-estar social, em especial nos países de industrialização tardia, como é o caso do Brasil3 .
No que tange ao direito à moradia, o que se verifica com a implementação (e até mesmo antes) do programa Minha Casa, Minha Vida (lei nº 11.977/2009), pelo Governo Federal, foi uma política voltada à abertura de crédito financeiro para aquisição de imóvel particular, medida que acabou por confundir tal direito fundamental social com o direito de propriedade.
Nessa esteira, o presente estudo procura avaliar medidas alternativas à oferta do direito fundamental à moradia, desvinculando-o do direito fundamental à propriedade. Entre os objetivos específicos, tem-se a necessidade de estabelecer considerações sobre: os fatores que contribuíram para o problema de déficit habitacional no país; como a política de habitação vem sendo formulada e implementada pelo poder público, avaliando as principais medidas até então experimentadas; para por fim identificar o núcleo do direito fundamental à moradia.
A relevância do trabalho reside na postura ativa do poder público frente às demandas sociais, na busca da promoção do bem-estar social, conforme enunciado na Constituição Federal de 1988. No que concerne à metodologia empregada, o estudo é produto de pesquisa bibliográfica voltada à compreensão do direito social à moradia, em seus aspectos teóricos e práticos, concentrando a análise no âmbito do Direito Constitucional e nas políticas de habitação.
Sendo assim, o artigo está organizado de forma que, na primeira seção o direito à moradia será apreciado levando em conta o processo de urbanização, a ausência de uma legislação específica sobre a temática e a inércia do poder público frente às políticas de desenvolvimento urbano. Na segunda seção, o direito à moradia será avaliado na sua dimensão positiva – prestacional, trazendo à tona as principais medidas implementadas pelo poder público, apontando as principais críticas. Na última seção, será delimitado o objeto do direito à moradia que mais se ajusta com a Constituição de 1988.
2. O Problema do Déficit Habitacional no País
A urbanização é um fenômeno espontâneo, que está intimamente relacionado com o processo de industrialização da sociedade 4. Trata-se do “processo pelo qual a população urbana cresce em proporção superior à população rural. Não se trata de mero crescimento das cidades, mas de um fenômeno de concentração urbana”5 .
Nos países periféricos, em especial no Brasil, os problemas oriundos da urbanização se manifestaram de forma mais intensa do que nos países de centro. O processo de industrialização tardio culminou com o esvaziamento do campo e com o rápido crescimento dos centros urbanos, o que culminou com a progressiva deterioração do espaço urbano. Para José Afonso da Silva a urbanização provocou “a desorganização social, com a carência de habitação, desemprego, problemas de higiene e de saneamento básico” 6. Trazendo tal fenômeno para o âmbito das políticas públicas, de início, observa-se que não houve um planejamento por parte do poder público (municipal, estadual e federal) para a recepção dessa nova realidade das cidades. Nessa esteira, Eduardo Alcântara de Vasconsellos observa que:
Não houve política consistente e permanente de desenvolvimento urbano no país. Na falta de uma legislação abrangente e consensual, e diante da ausência ou da ineficácia do Estado na regulação dos conflitos de ocupação e uso do solo, tanto os grupos sociais de baixa renda quanto os de renda média e alta usaram estratégias para gerar o novo espaço urbano que lhes interessa. Na maior parte dos casos, o Estado acompanhou o processo sem intervir. Além disso, deve-se enfatizar que o processo de urbanização e de intenso crescimento populacional esteve ligado a situações de grande disparidade de oportunidades de vida para a população do país, ligada a processos muito antigos de geração de desigualdades e assimetrias entre suas regiões 7.
Diante dessa inércia estatal, o espaço urbano, ao longo da segunda metade do século XX, foi ocupado atendendo, primordialmente, os interesses do mercado e das classes dominantes, tornando-se essa ocupação por parte da classe baixa residual, ou seja, para a classe menos favorecida restaram as áreas desprovidas de valor econômico, perigosas e insalubres. Nesse sentido, há de salientar que no Brasil:
A população de renda mais baixa localizou-se em áreas periféricas, frequentemente por meio de invasão, e em áreas indesejadas por seus riscos ambientais, como nos morros e à beira rios e córregos. As classes médias – cerca de 20% da população – localizaram-se, predominantemente, em áreas mais centrais já dotadas de equipamentos urbanos de boa qualidade, ou então em novos empreendimentos imobiliários que garantiam sua reprodução social e econômica nos moldes desejados. As elites – cerca de 5% da população – localizaram-se em bairros muito bem definidos espacialmente ou em empreendimentos novos construídos de forma totalmente isolada do restante da cidade8 .
A disparidade gerada pela ocupação desordenada do espaço urbano criou grandes aglomerações, formando as periferias e favelas do país, ambientes propícios para a reprodução dos fatores de desigualdade social, em especial, a reprodução das péssimas condições habitacionais.
A negligência do Estado no trato da questão era vista não apenas no plano das políticas públicas. No âmbito jurídico, como esclarece Hely Lopes Meirelles:
A legislação urbanística federal restringia-se a umas poucas disposições em diplomas versantes sobre assuntos conexos, tais como o que rege o loteamento urbano e o tombamento em geral, que serão vistos mais adiante. Faltava-nos uma lei federal orgânica e sistemática, abrangendo todos os assuntos urbanísticos, um Código Urbanístico, ou uma Lei Geral de Urbanismo 9.
Nesse ponto, vale ressaltar que a Constituição de 1988 foi pioneira ao estabelecer preceitos sobre o desenvolvimento urbano 10. De acordo com o texto constitucional, os municípios são encarregados de executar uma política urbana que “tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes”11 .
O constituinte também fez menção expressa a diversos mecanismos para a gestão ordenada das cidades, sendo os principais: o princípio da função social da propriedade12 ; o plano diretor; os instrumentos de política urbana como o parcelamento ou edificação compulsórios, o imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo e a desapropriação com o pagamento mediante títulos da dívida pública; a política do meio ambiente, nela incluída a tutela do meio ambiente urbano etc.
Contudo, a ausência de regulamentação dessa política constitucional perdurou por mais de uma década. Somente com a lei nº 10.257/2001 que “vieram a ser regulamentados os dispositivos constitucionais alusivos à política urbana, estabelecendo-se suas diretrizes gerais”13 . Discorrendo acerca de tal temática, Almeida e Medauar advertem que o Estatuto da Cidade:
“fornece um instrumental a ser utilizado em matéria urbanística, sobretudo em nível municipal, visando à melhor ordenação do espaço urbano, com observância da proteção ambiental, e à busca de solução para problemas sociais graves, como a moradia, o saneamento”14 .
Malgrado a existência de uma legislação abrangente, o Estatuto da Cidade “chegou quando um enorme passivo urbano negativo já havia sido construído fisicamente, o que colocava limites claros a qualquer tentativa de mudança estrutural”15 . Somado ao enorme passivo construído, pode-se mencionar o constante crescimento da população do país, o que impacta ainda mais o ambiente urbano, pois as extensas áreas construídas se mostram insuficientes para atender à demanda habitacional, seja por questões econômicas ou de especulação imobiliária.
Nesse contexto, de espontaneidade do processo de urbanização, de inércia do poder público na formulação e implementação de políticas urbanas e habitacionais, e de demora na regulamentação da política urbana descrita na Constituição de 1988, que surgiram os principais problemas oriundos da ocupação desordenada do espaço urbano, entre eles, os problemas relacionados à moradia.
Feitas estas considerações, em seguida será abordada a dimensão positiva do direito social à moradia e as principais medidas até então experimentadas pelo poder público para enfrentar o problema de déficit habitacional.
3. Direito à Moradia, Dimensão Positiva e Políticas Públicas
O direito à moradia, enquanto direito fundamental social, somente foi inserido no texto constitucional com a emenda nº 26 de 14 de fevereiro de 2000 16. Contudo, como Odoné Serrano Junior observa: “antes da previsão expressa, já se entendia que o direito à moradia decorria da proteção à dignidade humana e da meta de construção de uma sociedade livre, justa e solidária”17.
Ocorre que a Constituição de 1988 não delimitou as condições materiais dessa moradia, assim como fez a Constituição Portuguesa de 1976 ao se referir a uma “habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”18 . Na ausência de delimitação do conteúdo do direito à moradia assume “lugar de destaque as disposições contidas nos diversos tratados e documentos internacionais firmados pelo Brasil e já incorporados ao direito interno” 19. Também assume posição especial a lei de Regularização Fundiária (lei nº 13.465/2017) que fez menção ao direito social à moradia digna e às condições de vida adequadas, o que inclui, por inferência, a moradia adequada.
Por trás do direito à moradia norteiam-se duas dimensões. A primeira corresponde à dimensão positiva que compreende o dever do Estado de ofertar moradia adequada às pessoas que não a tenham, apresentando-se “como um direito positivo de caráter prestacional, porque legitima a pretensão do seu titular à realização do direito por via de ação positiva do Estado” 20. A segunda compreende a dimensão negativa que consiste na não interferência estatal na fruição ou exercício de tal direito fundamental21 . Nas palavras de Ingo Wolfgang Sarlet o direito à moradia exerce:
Simultaneamente a função de direito de defesa e direito a prestações, incluindo tanto as prestações de cunho normativo, quanto material (fático) e, nesta dupla perspectiva, vincula as entidades estatais e, em princípio, também os particulares, na condição de destinatários deste direito 22.
Neste ponto, vale mencionar que, o presente estudo concentra-se na dimensão positiva do direito à moradia, cujo foco, como já mencionado anteriormente, reside nas políticas apresentadas pelo poder público, na busca de solucionar o problema do déficit habitacional no país.
A primeira medida a ser abordada, e também a mais significativa, é o programa criado pela lei federal nº 11.977/2009 denominado Minha Casa Minha Vida. Este programa, em suma, permite o financiamento de imóvel urbano a juros mais acessíveis. Os juros são estipulados a partir do enquadramento da renda mensal do interessado no financiamento em um dos quatro níveis de remuneração estipulados pelo programa 23.
Tal programa social, a princípio, aparenta ser um facilitador à aquisição da propriedade privada, ou seja, um facilitador do chamado “sonho da casa própria”. Aqui, reside à primeira objeção a ser apresentada, qual seja a confusão entre direito à moradia e direito de propriedade.
A proteção do direito à moradia que mais se adéqua a Constituição de 1988 e ao Estado Social de Direito, nela inserido, é aquela que se ajusta à segurança da posse (posse legitima) e não ao direito de propriedade. Todavia, verifica-se “que desde 1964, as políticas públicas formuladas para combater o déficit habitacional ainda tomam como paradigma o direito de propriedade” 24, nesse sentido:
Ao se discutir uma política pública habitacional para a população de baixa renda, é comum se apontar que a política pública não pode ser desenhada com base apenas em financiamento habitacional, devendo prever formas de acesso variadas e proteção da posse. Isso porque a população de baixa renda não pode fazer frente ao pagamento de parcelas de financiamentos habitacionais. Aliás, não raro não podem nem mesmo fazer frente ao pagamento de aluguéis. Daí a conclusão de que o Estado deveria diversificar sua política habitacional e conferir proteção não só à propriedade, mas também à posse 25.
Dessa forma, infere-se que o programa Minha Casa Minha Vida não teve como foco resolver o problema do déficit habitacional no Brasil, pelo contrário, o foco da medida foi o de ofertar o “sonho da casa própria” por meio de financiamentos bancários de longo prazo, tratando-se, na verdade, de uma política “voltada ao estímulo e expansão do capitalismo local, da construção civil e do mercado imobiliário” 26.
Outra objeção a ser apresentada quanto ao programa refere-se à dissonância estabelecida pela lei nº 11.977/2009 ao centralizar grande parte das decisões nas mãos do governo federal, o que afeta completamente a autonomia administrativa que a Constituição de 1988 conferiu aos municípios, uma vez que estes são os principais responsáveis para promover a política de desenvolvimento urbano, nela contida os programas habitacionais de interesse social. Nessa esteira, vale ressaltar que:
O Estatuto da Cidade (lei 10.257/2001) estabeleceu diretrizes para o desenvolvimento urbano que pretendiam dar aos Municípios papel muito mais relevante do que o que tem sido reservado a eles na política pública habitacional do governo federal. Por trás desta proposta, que vinha do movimento de reforma urbana, estava a ideia de que alguns municípios poderiam avançar em propostas do movimento quando tivessem gestões progressistas à frente. Porém, a organização do PMCMV centralizou recursos e tirou poder decisórios dos Municípios, contrariando a própria legislação vigente (que eram resultado de lutas do movimento de reforma urbana). No PMCMV, basicamente, ao Município cabe indicar a demanda para imóveis que forem construídos em seu território 27.
Essas duas críticas apontadas não esgotam as objeções ao Programa Minha Casa Minha Vida. Porém, o estudo se restringe a elas para não criar delongas. Doravante, serão apresentadas as medidas alternativas previstas na legislação para solucionar o problema de déficit habitacional no país.
A primeira solução há ser mencionada trata-se da Concessão de Uso Especial para Fins de Moradia de bens públicos, inicialmente prevista no projeto de lei que deu ensejo ao Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001. Na ocasião de sua tramitação, após a aprovação pelo Congresso Nacional, o projeto foi submetido à apreciação pelo Presidente da República, que entendeu por bem vetar os dispositivos alusivos à concessão de uso para fins de moradia (artigos 15 a 20). Segundo Hely Lopes Meirelles:
Como razões do veto foram invocadas imprecisões do projeto que ocasionariam riscos à aplicação desse instrumento inovador. Alegou-se no veto que os arts. 15-20 contrariam o interesse público, sobretudo por não ressalvarem da concessão de uso especial os imóveis públicos afetados ao uso comum do povo, como praças e ruas, assim como áreas urbanas de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental ou destinados a obras públicas28 .
Contudo, em 2001, o Chefe do Executivo expediu a medida provisória nº 2.200 que trouxe à tona tal instituto. A medida provisória, que por força da emenda constitucional nº 32 produziria efeitos até sua revogação ou sua apreciação definitiva pelo Congresso Nacional, estabeleceu, no artigo 1º, que aquele que, até a data de 30 de junho de 2001, possuir como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso.
Em 2017, a lei 13.465 trouxe modificações à medida provisória, alterando o artigo em comento. A data limite estipulada para o preenchimento dos requisitos foi alterada para o dia 22 de dezembro de 2016, ou seja, o legislador estabeleceu uma nova oportunidade para se pleitear à medida legitimadora da posse. Também há de salientar que o imóvel público passou a ser definido como aquele com características e finalidades urbanas.
A concessão de uso de bens públicos para fins de moradia é um instrumento de suma importância para solucionar o problema de moradia no país, uma vez que os municípios, os Estados e a União possuem diversos bens sem destinação pública - desafetados, e muitas vezes abandonados, que poderiam servir de habitação para as pessoas desprovidas de moradia.
Entre os principais empecilhos da medida, destaca-se a imposição de data-limite para o preenchimento dos requisitos autorizadores, o que atravancaria a concessão de uso para novos possuidores e também a responsabilidade com a manutenção desses espaços pelo poder público, para garantir moradia adequada e segura aos possuidores, uma vez que os beneficiados, geralmente, são pessoas em situação de vulnerabilidade econômica e muitas vezes em situação de rua, ou seja, pessoas incapazes de arcar com tais custos.
No âmbito regional e local, tem-se que mencionar a experiência do Aluguel Social implementada no Estado e Município do Rio de Janeiro. Tal política pública foi muito utilizada depois “das fortes chuvas que castigaram vários municípios fluminenses em abril de 2010, deixando milhares de pessoas desabrigadas e outras centenas de famílias em situação de risco” 29. Trata-se da oferta mensal, a título provisório, de um montante em dinheiro às pessoas que não tenham uma moradia ou que foram removidas de suas habitações porque motivo de risco inerente ao local de situação do imóvel.
A legislação que instituiu a política pública do aluguel social é “oriunda da promulgação de decretos no âmbito estadual e municipal, quais sejam: o Decreto Municipal nº 23.381/2003 e os Decretos estaduais nº 41.148/2008 e 41.395/2008” 30.
A primeira objeção a ser consignada é o caráter transitório da medida, que não chega a solucionar o problema de moradia dos beneficiados pela política. Dessa maneira, é oportuno “abordar brevemente a política do aluguel social, não apenas aplicada aos casos emergenciais, mas como estratégia de política de combate ao déficit habitacional como solução definitiva”31 .
A segunda oposição a ser apresentada é a precariedade dos montantes ofertados pelo poder público, uma vez que “o valor do benefício do aluguel social está muito aquém dos preços de mercado praticados atualmente” 32, de modo que o programa ainda tem baixa efetividade na solução do problema habitacional na capital e no interior.
A última solução a ser ressaltada é a utilização dos Instrumentos de Política Urbana descritos na Constituição, no Estatuto da Cidade e nos Planos Diretores. Os municípios que tenham planos diretores possuem a competência para fiscalizar as propriedades particulares sob o prisma da função social, podendo compelir os proprietários de solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, sucessivamente: ao parcelamento ou edificação compulsórios; imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana progressivo no tempo; e a desapropriação com pagamento mediante títulos da dívida pública (desapropriação sanção).
Nessa esteira, a medida de desapropriação de áreas privadas pode ser útil à solução do problema de déficit habitacional, se for articulada em conjunto com programas de moradia de interesse social para pessoas de baixa renda. Aqui, encontra-se o problema já referido, o da inércia do poder público na gestação do espaço urbano, o que privilegia a propriedade privada e a especulação imobiliária.
4. Conclusão
Por tudo que foi exposto, infere-se que entre as alternativas de combate ao déficit habitacional no país, o poder público concentrou sua atuação em programas de aquisição de propriedade, como o programa Minha Casa, Minha Vida 33. Os instrumentos de política urbana, o aluguel social e a concessão de uso para fins de moradia são experiências ainda pouco utilizadas, que, mesmo com as suas críticas, poderiam surtir bons resultados na busca da solução do déficit habitacional.
Neste ponto, a crítica que há de ser mencionada é que, embora haja uma Política Urbana descrita na Constituição de 1988 e a sua regulamentação pelo Estatuto da Cidade e respectivos planos diretores, o poder público persiste com a má administração do espaço urbano. Entre os inúmeros problemas do crescimento desordenado das cidades e a má gestão pública, destaca-se a permanente escassez de moradia para as pessoas de extrema vulnerabilidade econômica.
No que concerne às condições materiais do direito social à moradia, apesar da Constituição ser omissa, os diplomas internacionais em que o Brasil é signatário e a lei de regularização fundiária apontam para um ambiente adequado à vida digna, ou seja, sem riscos à integridade física do titular e salubre.
Por fim, resta dizer que o direito à moradia não pode ser visto como um “produto a ser adquirido via mercado”, de modo que a principal objeção a programas de aquisição da propriedade para solucionar o problema habitacional das classes menos favorecidas é a mercantilização do direito fundamental em apreço. Por conseguinte, tem-se o enfraquecimento dos demais mecanismos que ficam à disposição do poder público e a violação do núcleo do direito social à moradia que é a tutela da posse legítima e não a propriedade.
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*Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Mestrando em Constitucionalismo e Democracia pela Faculdade de Direito do Sul de Minas. Advogado. Email: gutxgoncalves@gmail.com. ORCID: https://orcid.org/0000-0001-9572-8915