Melissa Salinas Ruiz *
Unioeste/Foz do Iguaçu, Brasil
E-mail: m__salinas@hotmail.com
Resumo: O presente artigo discute a existência de uma transnecropolitica no Brasil. Para tanto, primeiramente, explica o que é transexualidade e alguns aspectos controversos relacionados ao tema. Logo, apresenta o pensamento decolonial e o conceito de necropolítica. Finalmente, relaciona a necropolítica à questão trans, expondo as razões que permitem afirmar que há uma transnecropolítica no Brasil. Utiliza o método de pesquisa bibliográfica e recorre a autores como Judith Butler, Berenice Bento, Achille Mbembe, bem como a dados da ANTRA, para respaldar as reflexões. Conclui que o Estado brasileiro negligencia a população trans e que é possível adaptar o conceito de necropolítica para afirmar que existe a transnecropolítica no Brasil.
Palavras-chave: Sociologia;Gênero;Transexualidade; Necropolítica; Transnecropolítica;
TRANSNECROPOLITICS IN BRAZIL
Abstract: The current article discussses the existence of a transnecropolitic in Brazil. Therefore, begins explaining what is transexualism and some controversial aspects regarding the subject. Then presentes postcolonial studies and the concept of necropolitics. Finally, relates necropolitics to the transgender problematic in Brazi. This article uses bibliographic research as a method and recurs to authors such as Judith Butler, Berenice Bento, Achille Mbembe, as well as data from ANTRA, to base its reflections. Concludes that brazilian state neglects transgender population and that is possible adapt the concept of necropolitics to claim that exist a transnecropolitic in Brazil.
Key-words: Sociology; Gender; Transexualism; Necropolitics; Transnecropolitics;
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato: 
 Melissa Salinas Ruiz (2020): “A transnecropolítica no brasil”, Revista  Contribuciones a las Ciencias Sociales, (febrero 2020). En línea: 
  https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/02/transnecropolitica-brasil.html
  http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2002transnecropolitica-brasil
INTRODUÇÃO
Desde  o surgimento do termo “transexualidade”, utilizado para designar aqueles que  não identificam seu gênero de acordo ao genital com o qual nasceram, há  discursos conflitantes dentro da academia e da sociedade. Inicialmente encarada  sob o viés da patologia, o aumento de estudos sociológicos e antropológicos  sobre a temática direcionam o olhar para a identidade trans, desse modo  percebendo a transexualidade como experiência e possibilidade identitária. 
         Mesmo  com o incremento do interesse acadêmico e social por esses sujeitos, o Brasil  ainda é o país que mais mata transexuais no mundo (ANTRA, 2018). Esses dados  demonstram que o Estado brasileiro se omite, permitindo a aniquilação em massa  da população trans brasileira, a qual sofre com a falta de acesso à educação,  saúde e ao mercado de trabalho. 
         Sob a ótica do  filósofo Achille Mbembe, os Estados contemporâneos fazem a necropolítica, ou  seja, protegem as vidas dos grupos sociais tidos como “relevantes” e agem em  pró da aniquilação dos “párias” sociais. 
         Levando  isto em consideração, este artigo discute a existência de uma necropolítica  voltada para a eliminação das identidades trans no Brasil – ou seja, uma  transnecropolítica –  partindo do  conceito cunhado por Mbembe, articulando-o aos estudos de gênero e queer e aos índices de violência e  mortalidade de transexuais no Brasil. Considera-se que através, dessa análise,  é possível conhecer a realidade da população trans e suas demandas, desse  modo  aumentando a eficácia das ações  direcionadas a promover a igualdade. 
1 NOTAS SOBRE A TRANSEXUALIDADE
Iniciar  uma análise que se propõe a discorrer sobre a existência de uma necropolítica  trans – ou transnecropolítica – requer que sejam realizados alguns apontamentos  sobre a transidentidade, tendo em vista a incerteza e obscuridade com que a  sociedade vislumbra esses sujeitos. Fala-se em sociedade pois, tanto fora  quanto dentro da academia, há falta de informação, confusão e, não raro,  preconceito em relação àqueles que possuem uma performance de gênero que desvie  do binômio normativo macho/fêmea.            
         Fazer  uso dos termos “macho” e “fêmea” ao invés de “homem” e “mulher” torna-se  adequado para exemplificar como o gênero é comumente reduzido ao órgão genital  dos sujeitos, seguindo um determinismo biológico próprio de uma percepção  epistemológica que considera as “ciências duras” a “verdadeira ciência”. Quanto  a isto, estudos teóricos como os de Michel Maffesoli e Boaventura Sousa Santos  visam redirecionar o saber científico, incutindo-lhe um novo vigor por meio do  retorno a questioidntos simples, que ponham “em xeque” as certezas  científicas consolidadas. Não se trata de descartar o arcabouço teórico  construído ao longo de séculos, mas de questionar os conhecimentos que se  apresentam como imutáveis e percebê-los como fruto de uma racionalidade humana  a qual, visto que humana, não é infalível e pode ser reconstruída.
         Os  estudos de gênero, tendo isto em vista, problematizam o “ser homem” e “ser  mulher”, colocando em evidência as múltiplas possibilidades de vivenciar a  masculinidade e a feminilidade. Por meio dessas análises compreende-se a  experiência de gênero como distinta à experiência sexual e, portanto,  percebe-se que o genital não corresponderá necessariamente à identidade de  gênero de seu portador (Judith BUTLER, 1990). Assim sendo, o prefixo “trans”,  presente em “transexual” busca explicitar a quebra dos padrões de sexualidade  socialmente impostos, visto que os sujeitos transexuais performam gêneros  distintos ao comumente atribuído ao genital com o qual nasceram. 
Os olhares acostumados ao mundo dividido em vaginas-mulheres-feminino e pênis-homens-masculino ficam confusos, perdem-se diante de corpos que cruzam os limites fixos do masculino/feminino e ousam reinvindicar uma identidade de gênero em oposição àquela informada pela genitália e ao fazê-lo podem ser capturados pelas normas de gênero mediante a medicalização e patologização da experiência. Na condição de “doente”, o centro acolhe com prazer os habitantes da margem para melhor excluí-los (Berenice BENTO, p. 18, 2008).
De acordo a Tereza Rodrigues Vieira (Carolina GRANT, 2015) é possível identificar a existência de transexuais desde a Antiguidade Clássica. Ainda assim, a identidade hegemônica contemporânea apresenta a cisgeneridade como “natural” – apoiando-se no status de verdade do conhecimento médico – portanto “desejável”. Tendo em vista o caráter compulsório da cisgeneridade, toda a estrutura da sociedade e suas distintas esferas não acolhem a transexualidade como uma identidade possível, válida e digna de respeito.
(...) no tocante à dimensão desejante, a heterossexualidade opera como padrão normativo dado pela natureza, designando como “sadio e normal” o roteiro que prevê que homens devem gostar de mulheres e mulheres de homens e assim o fazem pela contingência reprodutiva da espécie humana (Bruna Camillo BONASSI et al., 2015, p. 85)
Constatar  o apagamento das identidades trans é um exercício que pode ser realizado por  qualquer sujeito que se questione se há sujeitos trans nos espaços sociais que  frequenta. Seja nos espaços de lazer ou trabalho, os corpos trans estão  ausentes, pois renegados aos espaços periféricos. A periferia, em oposição ao  padrão, ao centro, é o único espaço permitido a esses corpos “desviantes”, o  qual contribui à manutenção do imaginário que associa transexualidade ao vício  e ao abjeto. 
         Embora  o recente sucesso de figuras artistícas que fogem ao padrão cisgênero – os  cantores Pabllo Vittar e Liniker, a cartunista Laerte e a ex-atleta e socialite  Caitlyn Jenner são alguns exeplos – estejam dando um novo vigor a esse debate,  a nível acadêmico e de sociedade, o desinteresse e preconceito ainda  predominam. Exemplo disto é a participação da artista transexual Nany People na  televonela“O sétimo guardião”, da  rede Globo. Apesar de a comunidade LGBT ter apoiado a presença de uma atriz  transexual na novela, houve fortes críticas a respeito de como “O sétimo  guardião” abordou a questão trans. O recorrente desrespeito ao nome social foi  um dos aspectos citados. Ainda na teledramaturgia nacional, a novela “A força  do querer” também foi criticada pelo modo em que retratou a personagem Ivana se  descobrindo transexual. Neste caso, o incômodo foi tal que levou à elaboração  de uma nota pública por parte da Associação Nacional de Travestis e Transexuais  (ANTRA) à escritora da novela, Glória Perez.
         Referida  nota demonstra como a maioria da população ignora até os aspectos mais  “simples” das vivências de sujeitos trans, visto que foi necessária a  manifestação da ANTRA para esclarecer termos como “gay”, “travesti” e  “transexual”. No entanto, a existência dessa associação – a qual é ativa desde  a década de 90 e que consta com mais de 190 instituições afiliadas em  território nacional – expõe, simultaneamente, o inconformismo da comunidade  trans brasileira, que está disposta a se organizar social e politicamente para  alcançar suas reinvindicações. 
         É  também da responsabilidade da ANTRA a elaboração dos “Mapas dos Assassinaatos  de Travestis e Transexuais”, resultado do mapeamento feito pela associação e  suas filiadas, atualmente a única fonte de dados a tratar especificamente das  mortes de sujeitos trans. Além de analisar os tipos de morte, o perfil das  vítimas e tratar da distribuição desses casos por região do Brasil, o dossiê do  mapa apresenta artigos científicos, dessa maneira articulando a atuação social  e política com a acadêmica na luta contra a transfobia no Brasil. 
         Através  de um desses artigos que se estabeleceu contato com o termo  “transnecropolítica”. Antes de abordá-lo, no entanto, faz-se necessário  conhecer o conceito do qual deriva, a necropolítica, pensada pelo filósofo  Achille Mbembe. Tendo isto em vista, o seguinte tópico irá tratar do pensamento  decolonial – no qual Mbembe se integra – e porque este é relevante para os  países periféricos, dentre eles o Brasil. 
2 PENSAMENTO DECOLONIAL E NECROPOLÍTICA
Falar  em “periferia”, no Brasil contemporâneo, remete a inúmeros espaços. Nas grandes  cidades a “periferia”, por exemplo, é o conjunto de bairros, favelas ou  ocupações onde reside a população economicamente mais vulnerável e,  consequentemente, com menor acesso a educação, saúde e lazer, muito embora a  Constituição garanta a todos os brasileiros, sem exceção, estes direitos. Ao  pensar-se, no entanto, numa perspectiva macro – porém ainda a nível nacional –  não raro haverá a oposição norte/nordeste e sul/sudeste, que seria as regiões  centrais e periféricas, respectivamente. 
         Os conceitos de  centro e periferia, embora possam ser utilizados para empreender análise do  contexto nacional, surgiram dentro da análise geopolítica internacional, com o  objetivo de explicar as dinâmicas de subordinação entre países. Os estudos  decoloniais são os responsáveis por investigar como as relações coloniais de  outrora culminaram num sistema-mundo capitalista que sujeita países  “periféricos” aos interesses socioeconômicos das potências “centrais”(Pablo  González CASANOVA, 2002). 
Para Casanova tanto o colonialismo externo quanto o colonialismo interno, representam formas de exploração presentes em regiões mais distanciadas das metrópoles e que dependem do investimento do capital ‘estrangeiro para se ‘desenvolverem`(Giuslane Francisca da SILVA, 2017, p. 48)
Investigações  de teóricos como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, entre outros, denunciam o  sistema mundo atual, o qual marginaliza nações em pró da manutenção de um  modelo econômico no qual a agressividade é inerente (Jaime OSORIO, 2006). Esses  autores criam uma matriz de conhecimento fora do eixo Europa e Estados Unidos,  também permitindo rever conceitos de autores canônicos a fim de que melhor se  articulam às problemáticas sociais contemporâneas
         Achille  Mbembe, filósofo camaronês, é um desses pensadores decoloniais. Desenvolve sua  análise tomando por base um conceito foucaultiano – o biopoder – pois o julga  insuficiente para descrever os mecanismos de controle existentes na  contemporaneidade. 
A habilidade dos aparatos de poder de promover a vida, ainda que por meio da morte, é o que o autor chama de biopoder. Desde então, a legitimidade do soberano não mais se basearia no poder de tirar a vida per si, mas no poder de produzir vida, otimizá-la, multiplicá-la (Jaime AMPARO-ALVES, 2011, p. 92-93).
Mbembe não nega que o Estado promova a vida, mas questiona o interesse estatal na manutenção das vidas de maneira uniforme. Ao afirmar que a gestão goveridntal preserva uns e busca a aniquilação de outros, Mbembe cunha o conceito de “necropoder”.
De acordo com Mbembe, a articulação entre velhas e novas formas de dominação está fazendo surgir uma nova forma de goveridntalidade5 cuja característica principal é a sujeição da vida ao poder máximo da morte. Neste contexto de necropoder, alguns territórios ambientam“topografia da crueldade” e algumas populações figuram como os marcados incondicionalmente como passíveis de serem mortos. Neste novo paradigma, a distribuição calculada da morte é o que configura a (necro)política moderna (AMPARO-ALVES, 2011, p.94).
Fala-se de uma necropolítica, ou seja, uma “política da morte”, pois há a fusão entre o extermínio das vidas descartáveis e o desejo de intimidar por meio deste ato. O assassinato ultrapassa o âmbito da necessidade e torna-se elemento constitutivo da soberania estatal. Nesse sentido, o Estado é soberano não apenas porque tem permissão para matar, mas porque sua soberania desejas essas mortes, não apenas as permitindo. O temor que isto acarreta é ferramenta estatal que atua na manutenção do grupo soberano, física e simbolicamente resguardado.
Confinado nesse terreno de brutalidade genérica, concordamos com o pensamento de que o poder em tempos pós-coloniais assume a forma de necropolítica, já que preconiza como estandarte a morte daquele que não é capaz de encaixar-se dentro de suas normativas manipuladoras e prescritivas. (Jaime Alonso CARAVACA-MOREIRA e Maria PADILHA, 2018, p. 3).
Necropoder  a serviço de uma racionalidade específica, aquela que é predominante nas  relações contemporâneas. Essa racionalidade é responsável pela manutenção das  relações de subordinação dentro das estruturas sociais, as quais são geridas  pelo Estado soberano, tendo em vista a preservação de um conjunto de valores  tidos como favoráveis e compatíveis com as vontades do gestor. 
         Constatar  a existência da necropolítica possibilita questionar o ato de morrer em face  dos interesses goveridntais. Usualmente percebida como fenômeno natural e,  portanto, independente da ação humana – a não ser nos casos de violência letal  – levar em consideração a tese de Mbembe significa enxergar além da  “naturalidade” do ato de morrer, vislumbrando a ação ou omissão estatal que possibilitou  esse desfecho. Nos dizeres de Silva et al. (2017, p. 46) “a morte do corpo não  é um fenômeno apenas natural, mas social, temporal e espacialmente construído”.                                       Na  concepção de Mbembe (2018) a necropolítica se direciona à eliminação dos corpos  negros, ou seja, à crescente aniquilação da raça 1 negra. As práticas de violência que se verificam no Brasil estão intimamente  ligadas a esse racismo, conforme destaca Dennis de Oliveira (2018, p.45) ao  falar que, na América Latina,  o “passado  colonial e escravocrata, bem como seu lugar subalterno no sistema ‑mundo do capital, dão contornos específicos à  violência, incluídos aí o racismo e o machismo”.
         Tendo  isso em vista, a tese de Mbembe faz-se de extrema relevância no caso  brasileiro, tanto como referencial teórico na luta antirracista, quanto como  base para compreender outros tipos de “extermínios” que ocorrem no território  nacional. A morte de pessoas transexuais no Brasil é um desses e inspira a  crença em uma “transcropolítica”, conceito que será examinado no tópico  seguinte.
3 TRANSNECROPOLÍTICA
Uma  vez conhecido o viés teórico de Achille Mbembe é possível identificar elementos  de necropolítica voltados à extinção de outros grupos sociais tidos como  “minoritários”. Dessa maneira, negros, mulheres, indígenas, entre outras  parcelas populacionais, por não se encaixarem de alguma forma ao ideal  masculino, branco e heterossexual, são marginalizados, em maior ou menor grau. 
         Integrando a  comunidade LGBT, a população transexual situa-se como uma das mais frágeis  dentro do contexto social nacional. Com uma expectativa média de vida de 35  anos, drasticamente menor do que do restante da população brasileira, ser  transexual revela-se um desafio no Brasil, nos mais diversos âmbitos. 
         Seja  na “expulsão informal” – expressão desenvolvida por Berenice Bento (2014) para  indicar como o preconceito influência sujeitos trans à evasão escolar – no  reduzido acesso ao mercado formal de trabalho ou na falta de respeito ao nome  social – o qual, inclusive, faz com que pessoas trans evitem ir ao médico, com  temor de se submeterem a situações vexatórias (Anderson Santos ALMEIDA, 2018) –  a falta de preparo para lidar com as transidentidades encontra-se em todas as  esferas. 
         O “Dossiê dos  assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018” reforça  essa percepção, ao afirmar:
       
De acordo com dados levantados pela ANTRA, 90% da  população de Travestis e Transexuais utilizam a prostituição como fonte de  renda, e possibilidade de subsistência, devido abaixa escolaridade provocada  pelo processo de exclusão escolar, gerando uma maior dificuldade de inserção no  mercado formal de trabalho e deficiência na qualificação profissional causada  pela exclusão social.  
         Devido a exclusão familiar, estima-se que 13 anos de  idade seja a média em que Travestis e Mulheres Transexuais são expulsas de casa  pelos pais (ANTRA). E que cerca de 0,02% estão na universidade, 72% não possuem  o ensino médio e 56% o ensino fundamental (Dados do Projeto Além do  Arco-Iris/AfroReggae) (ANTRA, 2018, p. 19)
         
         Considerando  o exposto a respeito da relação centro/periferia e de como esta segregação acontece  também dentro de um país nas dinâmicas entre grupos sociais (Josiane SILVA et  al, 2017), pode-se identificar os sujeitos trans como parcela da população  marginalizada e, portanto, negligenciada pela tutela estatal. Se a Constituição  brasileira garante igualdade de direitos a seus cidadãos, a falta de acesso  efetivo a essas garantias pelas pessoas trans indica uma grave lacuna nessa  proteção estatal.  
         Essa  brecha na tutela do Estado brasileiro, ao levar em consideração os estudos de  Mbembe, pode ser interpretada como proposital. 
A vida e a morte são questões políticas, cuja gestão depende das relações de poder e da valorização hierarquizada de vidas que devem ser preservadas ou desperdiçadas. A morte das travestis, portanto, se coloca como argumenta Agamben (1998) e Mbembe (2003), como um trabalho, uma prática, uma tarefa do poder que distribui a morte desigualmente, atingindo as vidas classificadas como dispensáveis (SILVA et al., 2017, p.51).
No mesmo sentido, Susan  Stryker (2014) afirma que gestão estatal de preservação da vida toma por base  as dinâmicas sociais que cerceiam uma parcela de sujeitos, visto que não  considerados vidas “desejáveis”. Em razão disto, transexuais possuem sua  vivência constituída pelas relações de poder que os situam como inferiores e,  portanto, descartáveis.  
         A fragilidade das  vidas trans é facilmente constatada ao examinar-se o índice de mortes violentas  de transexuais no Brasil:
No ano de 2018, lembrando incansavelmente do aumento da subnotificação desses dados, ocorreram 163 Assassinatos de pessoas Trans, sendo 158 Travestis e Mulheres Transexuais, 4 Homens Trans e 1 pessoa Não-Binária. Destes, encontramos notícias de que apenas 15 casos tiveram os suspeitos presos, o que representa 9% dos casos (ANTRA, 2019, p. 15).
            
         A  subnotificação referida pela ANTRA é aspecto que deve ser destacado sobre a  morte de travestis e transexuais, o qual incrementa a dificuldade de possuir  dados precisos a respeito da mortalidade desses sujeitos. Por não estar  presentes nos boletins de ocorrências policiais e, em virtude do elevado número  de abandonos a trans por parte de seus familiares, tampouco terem seus corpos  reconhecidos por parentes (BONASSI et al., 2015), é plausível afirmar que o  índice de mortes é ainda mais alarmante do que os dados expostos pela ANTRA. 
         A  invisibilidade que transexuais enfrentam em vida também se efetua no momento de  suas mortes. O desrespeito a identidade de gênero faz com que, ao falecer,  pessoas trans sejam erroneamente identificadas como homossexuais – em uma clara  confusão entre gênero e sexualidade – ou, simplesmente, designadas com o gênero  de seu genital. 
         Todavia,  destaca-se que, embora este trabalho refira-se a “transexuais”, assim  abrangendo transhomens e transmulheres, a experiência de vida – e de morte –  destes não é semelhante. Com menos “passabilidade”, ou seja, mais dificuldade  em assemelhar-se a uma pessoa cisgênero (ALMEIDA, 2018) as mulheres trans estão  mais sujeitas à violência e abuso do que os homens trans, o qual se reflete nos  dados apresentados pela ANTRA: 
As questões de gênero se reforçam e demonstram que 97,5% (aumento de 3% em relação a 2017) dos assassinatos foram contra pessoas trans do gênero feminino (158 casos). Apontando para a necessidade da equiparação e enquadramento do assassinato de Travestis e Mulheres Transexuais na Lei do Feminicídio, visto que a taxa média de assassinatos de Travestis e Mulheres Transexuais em 2018 é de 5,11 a cada 100 mil pessoas trans, levando-se em consideração de que 1,9% da população seja não-cisgênera conforme citado anteriormente, enquanto a taxa mulheres cis é de 4,8 assassinatos para cada 100mil Mulheres Cisgêneras, que coloca o Brasil no 5º Lugar em assassinatos de Mulheres do mundo, de acordo com o Mapa do Feminicídio do Brasil (Dossiê Feminicídio) (ANTRA, 2019, p. 20).
A  expressiva presença de transmulheres na prostituição – atividade que, além de  não ser regulamentada no Brasil, possui um elevado desvalor social – aumenta  sua vulnerabilidade e reforça a associação da transexualidade à marginalidade.  O relato da trabalhadora sexual Azaleia, entrevistada por Silva et al (2017, p.  55), aponta o paradoxo da vivência das mulheres trans na prostituição quando  afirma que “a mesma sociedade hipócrita que te condena e mata, é a que te  sustenta na prostituição”.
         Outra  entrevistada, Margarida, revela quão eficaz é a transnecropolítica na  eliminação da identidade trans, pois cerceia a existência destes ainda em vida.  Nesse contexto, transexuais estão fadados a viver com a consciência de que a  sociedade anseia pelo seu extermínio:
Para a sociedade é extremamente normal ver uma travesti morta. Essa é uma imagem comum. A violência, a morte violenta e cruel está sempre ligada àquilo que a sociedade pensa da gente.(...) Você pode colocar isso aí na sua pesquisa. Eu digo: a sociedade aplaude a violência contra travestis e transexuais. Eu quero que você dê ênfase nisso que eu estou te falando (SILVA et al, 2017, p. 54)
Sem  a perspectiva de um futuro, as ações de transexuais adquirem um viés  imediatista, no qual há o descuido com aspectos como saúde ou planejamento  financeiro (SILVA et al, 2017). Dá-se, então, um ciclo, onde muitos trans  reproduzem em si mesmos o descuido estatal e social.  Há, em suma, o sucesso da transnecropolítica.
         Constatar  a gravidade da situação enfrentada por transexuais no Brasil, considera-se, é  aspecto essencial na luta contra a transfobia. Conhecer a maneira como  funcionam os mecanismos de exclusão permite atuar na quebra desses paradigmas,  seja por meio da escolha de representantes políticos dispostos a dialogar com a  população trans ou pelo incentivo à desconstrução do imaginário social que vê o  transexual como doente. 
         A  esse respeito, Caravaca-Moreira e Padilha expõem:
De resto, fica explícita a preocupação em propor o enfrentamento dos desafios da necropolítica por meio do desenvolvimento de novas formas de compreensão do sexo, corpo, gênero e sexualidade, não como produtos de essências sociais ou biológicas, senão de práticas discursivas e prescritivas. Ao desconstruir essas compreensões sociais tradicionais, seremos capazes de, primeiramente, liberar uma população que não se encaixa nessa restrita e asfixiante realidade de seu inevitável desfecho mortífero e, posteriormente, ressignificar a linguagem que estabelece como definitivos esses rasgos e os designa como princípios ordenadores das relações sociais (CARAVACA-MOREIRA e PADILHA, 2018, p. 8)
A despeito de todas as adversidades e empecilhos que enfrenta no contexto nacional, a população trans brasileira se organiza, encontrando na formação de associações, ONGs e redes de apoio, a possibilidade de construir para si melhores perspectivas de vida. Acredita-se que a produção acadêmica, ao empreender a tarefa de denúncia, agrega à luta da população trans e auxilia na construção de uma sociedade mais justa e livre de preconceitos. Portanto, este trabalho buscou analisar os meios que Estado e sociedade utilizam para discriminar esses sujeitos, identificando-os como indícios de uma transnecropolítica a qual, mesmo que não seja de todo consciente, faz-se extremamente eficaz na eliminação dos corpos trans.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No  decorrer do presente artigo apresentou-se indícios que demonstram ser possível  afirmar a existência de uma transnecropolítica no Brasil, na qual a gestão  estatal direciona intencionalmente seus recursos para a manutenção das vidas  “´úteis”, assim negligenciando os sujeitos trans. 
         Desse  modo, deu-se início as reflexões estabelecendo a importância de discutir a  transexualidade, sobretudo em face dos abusos que esta população sofre no  Brasil.  Para tanto, foi apresentada uma  breve retrospectiva histórica sobre o surgimento do conceito “transexual”, sua  relação com o discurso médico patologizante e as maneiras em que esta percepção  ainda influenciam a sociedade.
         Em  seguida, expôs-se o pensamento decolonial, o conceito de “necropolítica”, sua  relevância na análise crítica da sociedade brasileira e os elementos que tornam  possível afirmar que há uma trasnecropolítica no Brasil. Além de dados a  respeito da mortalidade de transexuais, as bibliografias selecionadas  destacaram o grau de abandono que essas pessoas vivenciam na sociedade  brasileira, visto que tem reduzido acesso à eduação, saúde e ao mercado de  trabalho.   Ainda, destacou-se o fato de  o Brasil não produzir dados oficiais a respeito das mortes de pessoas trans  como negligência estatal que reforça o ciclo da violência contra transexuais.         
         Finalmente,  apresentaram-se algumas estratégias possíveis no combate à transfobia, visto  que tanto o Estado quanto a sociedade atuam no apagamento das identidades  trans. Sendo assim, o presente estudo frisou a gravidade do descaso estatal  sofrido pelas pessoas trans, almejando por meio disto contribuir a um debate  eficaz a respeito das demandas de transexuais e das melhores maneiras de dar  visibilidade às transidentidades. 
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