Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A TRANSNECROPOLÍTICA NO BRASIL

Autores e infomación del artículo

Melissa Salinas Ruiz *

Unioeste/Foz do Iguaçu, Brasil

E-mail: m__salinas@hotmail.com


Resumo: O presente artigo discute a existência de uma transnecropolitica no Brasil. Para tanto, primeiramente, explica o que é transexualidade e alguns aspectos controversos relacionados ao tema. Logo, apresenta o pensamento decolonial e o conceito de necropolítica. Finalmente, relaciona a necropolítica à questão trans, expondo as razões que permitem afirmar que há uma transnecropolítica no Brasil.  Utiliza o método de pesquisa bibliográfica e recorre a autores como Judith Butler, Berenice Bento, Achille Mbembe, bem como a dados da ANTRA, para respaldar as reflexões. Conclui que o Estado brasileiro negligencia a população trans e que é possível adaptar o conceito de necropolítica para afirmar que existe a transnecropolítica no Brasil.     

Palavras-chave: Sociologia;Gênero;Transexualidade; Necropolítica; Transnecropolítica;

TRANSNECROPOLITICS IN BRAZIL

Abstract: The current article discussses the existence of a transnecropolitic in Brazil. Therefore, begins explaining what is transexualism and some controversial aspects regarding the subject. Then presentes postcolonial studies and the concept of necropolitics. Finally, relates necropolitics to the transgender problematic in Brazi. This article uses bibliographic research as a method and recurs to authors such as Judith Butler, Berenice Bento, Achille Mbembe, as well as data from ANTRA, to base its reflections. Concludes that brazilian state neglects transgender population and that is possible adapt the concept of necropolitics to claim that exist a transnecropolitic in Brazil.

Key-words: Sociology; Gender; Transexualism; Necropolitics; Transnecropolitics;

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Melissa Salinas Ruiz (2020): “A transnecropolítica no brasil”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (febrero 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/02/transnecropolitica-brasil.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2002transnecropolitica-brasil

INTRODUÇÃO

Desde o surgimento do termo “transexualidade”, utilizado para designar aqueles que não identificam seu gênero de acordo ao genital com o qual nasceram, há discursos conflitantes dentro da academia e da sociedade. Inicialmente encarada sob o viés da patologia, o aumento de estudos sociológicos e antropológicos sobre a temática direcionam o olhar para a identidade trans, desse modo percebendo a transexualidade como experiência e possibilidade identitária.
Mesmo com o incremento do interesse acadêmico e social por esses sujeitos, o Brasil ainda é o país que mais mata transexuais no mundo (ANTRA, 2018). Esses dados demonstram que o Estado brasileiro se omite, permitindo a aniquilação em massa da população trans brasileira, a qual sofre com a falta de acesso à educação, saúde e ao mercado de trabalho.
Sob a ótica do filósofo Achille Mbembe, os Estados contemporâneos fazem a necropolítica, ou seja, protegem as vidas dos grupos sociais tidos como “relevantes” e agem em pró da aniquilação dos “párias” sociais.
Levando isto em consideração, este artigo discute a existência de uma necropolítica voltada para a eliminação das identidades trans no Brasil – ou seja, uma transnecropolítica –  partindo do conceito cunhado por Mbembe, articulando-o aos estudos de gênero e queer e aos índices de violência e mortalidade de transexuais no Brasil. Considera-se que através, dessa análise, é possível conhecer a realidade da população trans e suas demandas, desse modo  aumentando a eficácia das ações direcionadas a promover a igualdade.

1 NOTAS SOBRE A TRANSEXUALIDADE

Iniciar uma análise que se propõe a discorrer sobre a existência de uma necropolítica trans – ou transnecropolítica – requer que sejam realizados alguns apontamentos sobre a transidentidade, tendo em vista a incerteza e obscuridade com que a sociedade vislumbra esses sujeitos. Fala-se em sociedade pois, tanto fora quanto dentro da academia, há falta de informação, confusão e, não raro, preconceito em relação àqueles que possuem uma performance de gênero que desvie do binômio normativo macho/fêmea.           
Fazer uso dos termos “macho” e “fêmea” ao invés de “homem” e “mulher” torna-se adequado para exemplificar como o gênero é comumente reduzido ao órgão genital dos sujeitos, seguindo um determinismo biológico próprio de uma percepção epistemológica que considera as “ciências duras” a “verdadeira ciência”. Quanto a isto, estudos teóricos como os de Michel Maffesoli e Boaventura Sousa Santos visam redirecionar o saber científico, incutindo-lhe um novo vigor por meio do retorno a questioidntos simples, que ponham “em xeque” as certezas científicas consolidadas. Não se trata de descartar o arcabouço teórico construído ao longo de séculos, mas de questionar os conhecimentos que se apresentam como imutáveis e percebê-los como fruto de uma racionalidade humana a qual, visto que humana, não é infalível e pode ser reconstruída.
Os estudos de gênero, tendo isto em vista, problematizam o “ser homem” e “ser mulher”, colocando em evidência as múltiplas possibilidades de vivenciar a masculinidade e a feminilidade. Por meio dessas análises compreende-se a experiência de gênero como distinta à experiência sexual e, portanto, percebe-se que o genital não corresponderá necessariamente à identidade de gênero de seu portador (Judith BUTLER, 1990). Assim sendo, o prefixo “trans”, presente em “transexual” busca explicitar a quebra dos padrões de sexualidade socialmente impostos, visto que os sujeitos transexuais performam gêneros distintos ao comumente atribuído ao genital com o qual nasceram.

Os olhares acostumados ao mundo dividido em vaginas-mulheres-feminino e pênis-homens-masculino ficam confusos, perdem-se diante de corpos que cruzam os limites fixos do masculino/feminino e ousam reinvindicar uma identidade de gênero em oposição àquela informada pela genitália e ao fazê-lo podem ser capturados pelas normas de gênero mediante a medicalização e patologização da experiência. Na condição de “doente”, o centro acolhe com prazer os habitantes da margem para melhor excluí-los (Berenice BENTO, p. 18, 2008).

De acordo a Tereza Rodrigues Vieira (Carolina GRANT, 2015) é possível identificar a existência de transexuais desde a Antiguidade Clássica. Ainda assim, a identidade hegemônica contemporânea apresenta a cisgeneridade como “natural” – apoiando-se no status de verdade do conhecimento médico –  portanto “desejável”. Tendo em vista o caráter compulsório da cisgeneridade, toda a estrutura da sociedade e suas distintas esferas não acolhem a transexualidade como uma identidade possível, válida e digna de respeito.

(...) no tocante à dimensão desejante, a heterossexualidade opera como padrão normativo dado pela natureza, designando como “sadio e normal” o roteiro que prevê que homens devem gostar de mulheres e mulheres de homens e assim o fazem pela contingência reprodutiva da espécie humana (Bruna Camillo BONASSI et al., 2015, p. 85)

Constatar o apagamento das identidades trans é um exercício que pode ser realizado por qualquer sujeito que se questione se há sujeitos trans nos espaços sociais que frequenta. Seja nos espaços de lazer ou trabalho, os corpos trans estão ausentes, pois renegados aos espaços periféricos. A periferia, em oposição ao padrão, ao centro, é o único espaço permitido a esses corpos “desviantes”, o qual contribui à manutenção do imaginário que associa transexualidade ao vício e ao abjeto.
Embora o recente sucesso de figuras artistícas que fogem ao padrão cisgênero – os cantores Pabllo Vittar e Liniker, a cartunista Laerte e a ex-atleta e socialite Caitlyn Jenner são alguns exeplos – estejam dando um novo vigor a esse debate, a nível acadêmico e de sociedade, o desinteresse e preconceito ainda predominam. Exemplo disto é a participação da artista transexual Nany People na televonela“O sétimo guardião”, da rede Globo. Apesar de a comunidade LGBT ter apoiado a presença de uma atriz transexual na novela, houve fortes críticas a respeito de como “O sétimo guardião” abordou a questão trans. O recorrente desrespeito ao nome social foi um dos aspectos citados. Ainda na teledramaturgia nacional, a novela “A força do querer” também foi criticada pelo modo em que retratou a personagem Ivana se descobrindo transexual. Neste caso, o incômodo foi tal que levou à elaboração de uma nota pública por parte da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) à escritora da novela, Glória Perez.
Referida nota demonstra como a maioria da população ignora até os aspectos mais “simples” das vivências de sujeitos trans, visto que foi necessária a manifestação da ANTRA para esclarecer termos como “gay”, “travesti” e “transexual”. No entanto, a existência dessa associação – a qual é ativa desde a década de 90 e que consta com mais de 190 instituições afiliadas em território nacional – expõe, simultaneamente, o inconformismo da comunidade trans brasileira, que está disposta a se organizar social e politicamente para alcançar suas reinvindicações.
É também da responsabilidade da ANTRA a elaboração dos “Mapas dos Assassinaatos de Travestis e Transexuais”, resultado do mapeamento feito pela associação e suas filiadas, atualmente a única fonte de dados a tratar especificamente das mortes de sujeitos trans. Além de analisar os tipos de morte, o perfil das vítimas e tratar da distribuição desses casos por região do Brasil, o dossiê do mapa apresenta artigos científicos, dessa maneira articulando a atuação social e política com a acadêmica na luta contra a transfobia no Brasil.
Através de um desses artigos que se estabeleceu contato com o termo “transnecropolítica”. Antes de abordá-lo, no entanto, faz-se necessário conhecer o conceito do qual deriva, a necropolítica, pensada pelo filósofo Achille Mbembe. Tendo isto em vista, o seguinte tópico irá tratar do pensamento decolonial – no qual Mbembe se integra – e porque este é relevante para os países periféricos, dentre eles o Brasil.

2 PENSAMENTO DECOLONIAL E NECROPOLÍTICA

Falar em “periferia”, no Brasil contemporâneo, remete a inúmeros espaços. Nas grandes cidades a “periferia”, por exemplo, é o conjunto de bairros, favelas ou ocupações onde reside a população economicamente mais vulnerável e, consequentemente, com menor acesso a educação, saúde e lazer, muito embora a Constituição garanta a todos os brasileiros, sem exceção, estes direitos. Ao pensar-se, no entanto, numa perspectiva macro – porém ainda a nível nacional – não raro haverá a oposição norte/nordeste e sul/sudeste, que seria as regiões centrais e periféricas, respectivamente.
Os conceitos de centro e periferia, embora possam ser utilizados para empreender análise do contexto nacional, surgiram dentro da análise geopolítica internacional, com o objetivo de explicar as dinâmicas de subordinação entre países. Os estudos decoloniais são os responsáveis por investigar como as relações coloniais de outrora culminaram num sistema-mundo capitalista que sujeita países “periféricos” aos interesses socioeconômicos das potências “centrais”(Pablo González CASANOVA, 2002).

Para Casanova tanto o colonialismo externo quanto o colonialismo interno, representam formas de exploração presentes em regiões mais distanciadas das metrópoles e que dependem do investimento do capital ‘estrangeiro para se ‘desenvolverem`(Giuslane Francisca da SILVA, 2017, p. 48)

Investigações de teóricos como Aníbal Quijano, Walter Mignolo, entre outros, denunciam o sistema mundo atual, o qual marginaliza nações em pró da manutenção de um modelo econômico no qual a agressividade é inerente (Jaime OSORIO, 2006). Esses autores criam uma matriz de conhecimento fora do eixo Europa e Estados Unidos, também permitindo rever conceitos de autores canônicos a fim de que melhor se articulam às problemáticas sociais contemporâneas
Achille Mbembe, filósofo camaronês, é um desses pensadores decoloniais. Desenvolve sua análise tomando por base um conceito foucaultiano – o biopoder – pois o julga insuficiente para descrever os mecanismos de controle existentes na contemporaneidade.

A habilidade dos aparatos de poder de promover a vida, ainda que por meio da morte, é o que o autor chama de biopoder. Desde então, a legitimidade do soberano não mais se basearia no poder de tirar a vida per si, mas no poder de produzir vida, otimizá-la, multiplicá-la (Jaime AMPARO-ALVES, 2011, p. 92-93).

Mbembe não nega que o Estado promova a vida, mas questiona o interesse estatal na manutenção das vidas de maneira uniforme. Ao afirmar que a gestão goveridntal preserva uns e busca a aniquilação de outros, Mbembe cunha o conceito de “necropoder”.

De acordo com Mbembe, a articulação entre velhas e novas formas de dominação está fazendo surgir uma nova forma de goveridntalidade5 cuja característica principal é a sujeição da vida ao poder máximo da morte. Neste contexto de necropoder, alguns territórios ambientam“topografia da crueldade” e algumas populações figuram como os marcados incondicionalmente como passíveis de serem mortos. Neste novo paradigma, a distribuição calculada da morte é o que configura a (necro)política moderna (AMPARO-ALVES, 2011, p.94).

Fala-se de uma necropolítica, ou seja, uma “política da morte”, pois há a fusão entre o extermínio das vidas descartáveis e o desejo de intimidar por meio deste ato. O assassinato ultrapassa o âmbito da necessidade e torna-se elemento constitutivo da soberania estatal.  Nesse sentido, o Estado é soberano não apenas porque tem permissão para matar, mas porque sua soberania desejas essas mortes, não apenas as permitindo. O temor que isto acarreta é ferramenta estatal que atua na manutenção do grupo soberano, física e simbolicamente resguardado.

Confinado nesse terreno de brutalidade genérica, concordamos com o pensamento de que o poder em tempos pós-coloniais assume a forma de necropolítica, já que preconiza como estandarte a morte daquele que não é capaz de encaixar-se dentro de suas normativas manipuladoras e prescritivas. (Jaime Alonso CARAVACA-MOREIRA e Maria PADILHA, 2018, p. 3).

Necropoder a serviço de uma racionalidade específica, aquela que é predominante nas relações contemporâneas. Essa racionalidade é responsável pela manutenção das relações de subordinação dentro das estruturas sociais, as quais são geridas pelo Estado soberano, tendo em vista a preservação de um conjunto de valores tidos como favoráveis e compatíveis com as vontades do gestor.
Constatar a existência da necropolítica possibilita questionar o ato de morrer em face dos interesses goveridntais. Usualmente percebida como fenômeno natural e, portanto, independente da ação humana – a não ser nos casos de violência letal – levar em consideração a tese de Mbembe significa enxergar além da “naturalidade” do ato de morrer, vislumbrando a ação ou omissão estatal que possibilitou esse desfecho. Nos dizeres de Silva et al. (2017, p. 46) “a morte do corpo não é um fenômeno apenas natural, mas social, temporal e espacialmente construído”.                                       Na concepção de Mbembe (2018) a necropolítica se direciona à eliminação dos corpos negros, ou seja, à crescente aniquilação da raça 1 negra. As práticas de violência que se verificam no Brasil estão intimamente ligadas a esse racismo, conforme destaca Dennis de Oliveira (2018, p.45) ao falar que, na América Latina,  o “passado colonial e escravocrata, bem como seu lugar subalterno no sistema ‑mundo do capital, dão contornos específicos à violência, incluídos aí o racismo e o machismo”.
Tendo isso em vista, a tese de Mbembe faz-se de extrema relevância no caso brasileiro, tanto como referencial teórico na luta antirracista, quanto como base para compreender outros tipos de “extermínios” que ocorrem no território nacional. A morte de pessoas transexuais no Brasil é um desses e inspira a crença em uma “transcropolítica”, conceito que será examinado no tópico seguinte.

3 TRANSNECROPOLÍTICA

Uma vez conhecido o viés teórico de Achille Mbembe é possível identificar elementos de necropolítica voltados à extinção de outros grupos sociais tidos como “minoritários”. Dessa maneira, negros, mulheres, indígenas, entre outras parcelas populacionais, por não se encaixarem de alguma forma ao ideal masculino, branco e heterossexual, são marginalizados, em maior ou menor grau.
Integrando a comunidade LGBT, a população transexual situa-se como uma das mais frágeis dentro do contexto social nacional. Com uma expectativa média de vida de 35 anos, drasticamente menor do que do restante da população brasileira, ser transexual revela-se um desafio no Brasil, nos mais diversos âmbitos.
Seja na “expulsão informal” – expressão desenvolvida por Berenice Bento (2014) para indicar como o preconceito influência sujeitos trans à evasão escolar – no reduzido acesso ao mercado formal de trabalho ou na falta de respeito ao nome social – o qual, inclusive, faz com que pessoas trans evitem ir ao médico, com temor de se submeterem a situações vexatórias (Anderson Santos ALMEIDA, 2018) – a falta de preparo para lidar com as transidentidades encontra-se em todas as esferas.
O “Dossiê dos assassinatos e violência contra travestis e transexuais no Brasil em 2018” reforça essa percepção, ao afirmar:

De acordo com dados levantados pela ANTRA, 90% da população de Travestis e Transexuais utilizam a prostituição como fonte de renda, e possibilidade de subsistência, devido abaixa escolaridade provocada pelo processo de exclusão escolar, gerando uma maior dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho e deficiência na qualificação profissional causada pela exclusão social. 
Devido a exclusão familiar, estima-se que 13 anos de idade seja a média em que Travestis e Mulheres Transexuais são expulsas de casa pelos pais (ANTRA). E que cerca de 0,02% estão na universidade, 72% não possuem o ensino médio e 56% o ensino fundamental (Dados do Projeto Além do Arco-Iris/AfroReggae) (ANTRA, 2018, p. 19)

Considerando o exposto a respeito da relação centro/periferia e de como esta segregação acontece também dentro de um país nas dinâmicas entre grupos sociais (Josiane SILVA et al, 2017), pode-se identificar os sujeitos trans como parcela da população marginalizada e, portanto, negligenciada pela tutela estatal. Se a Constituição brasileira garante igualdade de direitos a seus cidadãos, a falta de acesso efetivo a essas garantias pelas pessoas trans indica uma grave lacuna nessa proteção estatal. 
Essa brecha na tutela do Estado brasileiro, ao levar em consideração os estudos de Mbembe, pode ser interpretada como proposital.

A vida e a morte são questões políticas, cuja gestão depende das relações de poder e da valorização hierarquizada de vidas que devem ser preservadas ou desperdiçadas. A morte das travestis, portanto, se coloca como argumenta Agamben (1998) e Mbembe (2003), como um trabalho, uma prática, uma tarefa do poder que distribui a morte desigualmente, atingindo as vidas classificadas como dispensáveis (SILVA et al., 2017, p.51).

No mesmo sentido, Susan Stryker (2014) afirma que gestão estatal de preservação da vida toma por base as dinâmicas sociais que cerceiam uma parcela de sujeitos, visto que não considerados vidas “desejáveis”. Em razão disto, transexuais possuem sua vivência constituída pelas relações de poder que os situam como inferiores e, portanto, descartáveis. 
A fragilidade das vidas trans é facilmente constatada ao examinar-se o índice de mortes violentas de transexuais no Brasil:

No ano de 2018, lembrando incansavelmente do aumento da subnotificação desses dados, ocorreram 163 Assassinatos de pessoas Trans, sendo 158 Travestis e Mulheres Transexuais, 4 Homens Trans e 1 pessoa Não-Binária. Destes, encontramos notícias de que apenas 15 casos tiveram os suspeitos presos, o que representa 9% dos casos (ANTRA, 2019, p. 15).

           
A subnotificação referida pela ANTRA é aspecto que deve ser destacado sobre a morte de travestis e transexuais, o qual incrementa a dificuldade de possuir dados precisos a respeito da mortalidade desses sujeitos. Por não estar presentes nos boletins de ocorrências policiais e, em virtude do elevado número de abandonos a trans por parte de seus familiares, tampouco terem seus corpos reconhecidos por parentes (BONASSI et al., 2015), é plausível afirmar que o índice de mortes é ainda mais alarmante do que os dados expostos pela ANTRA.
A invisibilidade que transexuais enfrentam em vida também se efetua no momento de suas mortes. O desrespeito a identidade de gênero faz com que, ao falecer, pessoas trans sejam erroneamente identificadas como homossexuais – em uma clara confusão entre gênero e sexualidade – ou, simplesmente, designadas com o gênero de seu genital.
Todavia, destaca-se que, embora este trabalho refira-se a “transexuais”, assim abrangendo transhomens e transmulheres, a experiência de vida – e de morte – destes não é semelhante. Com menos “passabilidade”, ou seja, mais dificuldade em assemelhar-se a uma pessoa cisgênero (ALMEIDA, 2018) as mulheres trans estão mais sujeitas à violência e abuso do que os homens trans, o qual se reflete nos dados apresentados pela ANTRA:

As questões de gênero se reforçam e demonstram que 97,5% (aumento de 3% em relação a 2017) dos assassinatos foram contra pessoas trans do gênero feminino (158 casos). Apontando para a necessidade da equiparação e enquadramento do assassinato de Travestis e Mulheres Transexuais na Lei do Feminicídio, visto que a taxa média de assassinatos de Travestis e Mulheres Transexuais em 2018 é de 5,11 a cada 100 mil pessoas trans, levando-se em consideração de que 1,9% da população seja não-cisgênera conforme citado anteriormente, enquanto a taxa mulheres cis é de 4,8 assassinatos para cada 100mil Mulheres Cisgêneras, que coloca o Brasil no 5º Lugar em assassinatos de Mulheres do mundo, de acordo com o Mapa do Feminicídio do Brasil (Dossiê Feminicídio) (ANTRA, 2019, p. 20).

A expressiva presença de transmulheres na prostituição – atividade que, além de não ser regulamentada no Brasil, possui um elevado desvalor social – aumenta sua vulnerabilidade e reforça a associação da transexualidade à marginalidade. O relato da trabalhadora sexual Azaleia, entrevistada por Silva et al (2017, p. 55), aponta o paradoxo da vivência das mulheres trans na prostituição quando afirma que “a mesma sociedade hipócrita que te condena e mata, é a que te sustenta na prostituição”.
Outra entrevistada, Margarida, revela quão eficaz é a transnecropolítica na eliminação da identidade trans, pois cerceia a existência destes ainda em vida. Nesse contexto, transexuais estão fadados a viver com a consciência de que a sociedade anseia pelo seu extermínio:

Para a sociedade é extremamente normal ver uma travesti morta. Essa é uma imagem comum. A violência, a morte violenta e cruel está sempre ligada àquilo que a sociedade pensa da gente.(...) Você pode colocar isso aí na sua pesquisa. Eu digo: a sociedade aplaude a violência contra travestis e transexuais. Eu quero que você dê ênfase nisso que eu estou te falando (SILVA et al, 2017, p. 54)

Sem a perspectiva de um futuro, as ações de transexuais adquirem um viés imediatista, no qual há o descuido com aspectos como saúde ou planejamento financeiro (SILVA et al, 2017). Dá-se, então, um ciclo, onde muitos trans reproduzem em si mesmos o descuido estatal e social.  Há, em suma, o sucesso da transnecropolítica.
Constatar a gravidade da situação enfrentada por transexuais no Brasil, considera-se, é aspecto essencial na luta contra a transfobia. Conhecer a maneira como funcionam os mecanismos de exclusão permite atuar na quebra desses paradigmas, seja por meio da escolha de representantes políticos dispostos a dialogar com a população trans ou pelo incentivo à desconstrução do imaginário social que vê o transexual como doente.
A esse respeito, Caravaca-Moreira e Padilha expõem:

De resto, fica explícita a preocupação em propor o enfrentamento dos desafios da necropolítica por meio do desenvolvimento de novas formas de compreensão do sexo, corpo, gênero e sexualidade, não como produtos de essências sociais ou biológicas, senão de práticas discursivas e prescritivas. Ao desconstruir essas compreensões sociais tradicionais, seremos capazes de, primeiramente, liberar uma população que não se encaixa nessa restrita e asfixiante realidade de seu inevitável desfecho mortífero e, posteriormente, ressignificar a linguagem que estabelece como definitivos esses rasgos e os designa como princípios ordenadores das relações sociais (CARAVACA-MOREIRA e PADILHA, 2018,  p. 8)

A despeito de todas as adversidades e empecilhos que enfrenta no contexto nacional, a população trans brasileira se organiza, encontrando na formação de associações, ONGs e redes de apoio, a possibilidade de construir para si melhores perspectivas de vida. Acredita-se que a produção acadêmica, ao empreender a tarefa de denúncia, agrega à luta da população trans e auxilia na construção de uma sociedade mais justa e livre de preconceitos. Portanto, este trabalho buscou analisar os meios que Estado e sociedade utilizam para discriminar esses sujeitos, identificando-os como indícios de uma transnecropolítica a qual, mesmo que não seja de todo consciente, faz-se extremamente eficaz na eliminação dos corpos trans.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No decorrer do presente artigo apresentou-se indícios que demonstram ser possível afirmar a existência de uma transnecropolítica no Brasil, na qual a gestão estatal direciona intencionalmente seus recursos para a manutenção das vidas “´úteis”, assim negligenciando os sujeitos trans.
Desse modo, deu-se início as reflexões estabelecendo a importância de discutir a transexualidade, sobretudo em face dos abusos que esta população sofre no Brasil.  Para tanto, foi apresentada uma breve retrospectiva histórica sobre o surgimento do conceito “transexual”, sua relação com o discurso médico patologizante e as maneiras em que esta percepção ainda influenciam a sociedade.
Em seguida, expôs-se o pensamento decolonial, o conceito de “necropolítica”, sua relevância na análise crítica da sociedade brasileira e os elementos que tornam possível afirmar que há uma trasnecropolítica no Brasil. Além de dados a respeito da mortalidade de transexuais, as bibliografias selecionadas destacaram o grau de abandono que essas pessoas vivenciam na sociedade brasileira, visto que tem reduzido acesso à eduação, saúde e ao mercado de trabalho.   Ainda, destacou-se o fato de o Brasil não produzir dados oficiais a respeito das mortes de pessoas trans como negligência estatal que reforça o ciclo da violência contra transexuais.        
Finalmente, apresentaram-se algumas estratégias possíveis no combate à transfobia, visto que tanto o Estado quanto a sociedade atuam no apagamento das identidades trans. Sendo assim, o presente estudo frisou a gravidade do descaso estatal sofrido pelas pessoas trans, almejando por meio disto contribuir a um debate eficaz a respeito das demandas de transexuais e das melhores maneiras de dar visibilidade às transidentidades.

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*(doutoranda em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela Unioeste/Foz do Iguaçu. E-mail: m__salinas@hotmail.com. CEP: 85851-10)


Publicado: 13/02/2020

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