Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


A MANUTENÇÃO DO ENCARCERAMENTO EM MASSA BRASILEIRO ATRAVÉS DAS SUAS ESTRATÉGIAS PUNITIVAS

Autores e infomación del artículo

Tamires Maria Alves*

Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)), Brasil

E-mail: tamiresmalves@gmail.com


Resumo
O poder punitivo ao clamar por ordem despende métodos violentos como parte do processo civilizador. A segurança pública da sociedade brasileira organiza-se através de dispositivos disciplinadores. Esses são capazes de determinar que sujeitos específicos sejam estereotipados como perigosos. Dessa maneira, esses dispositivos permitem que ilusões correcionais sejam percebidas como verossímeis e promovem a crença de que as práticas penais permitiriam que a sociedade se protegesse dos sujeitos desviantes. Todavia as estratégias punitivas das últimas três décadas não tem promovido uma sociedade menos insegura. As aspirações encarceradoras parecem promulgar o advento de uma comunidade segregada e desigual. O objetivo deste trabalho é permitir que narrativas desencarceradoras sejam percebidas como aspirações eficazes para os problemas de segurança pública nacionais. A teoria abolicionista penal contribuiu para o debate ao problematizar as estratégias punitivistas sociais e aventar transformações deste cenário.
Palavras chave: Encarceramento em massa; Punição; Abolicionismo Penal; Alternativas penais; Brasil

Abstract
The punitive power in calling for order spends violent methods as part of the civilizing process. The public security of Brazilian society is organized through disciplinary devices. These are able to determine that specific subjects are stereotyped as dangerous. In this way, these devices allow correctional illusions to be perceived as credible and promote the belief that criminal practices would allow society to protect itself from deviant subjects. However, the punitive strategies of the last three decades have not promoted a less insecure society. Incarcerating aspirations seem to enact the advent of a segregated and unequal community. The aim of this paper is to allow extrarcerative narratives to be perceived as effective aspirations for national public security problems. The penal abolitionist theory contributed to the debate by problematizing social punitivist strategies and advancing transformations in this scenario.
Keywords: Mass Incarceration; Punishment; Penal Abolitionism; Penal alternatives; Brazil

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Tamires Maria Alves (2020): “A manutenção do encarceramento em massa brasileiro através das suas estratégias punitivas”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (febrero 2020). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2020/02/manutencao-encarceramento-brasil.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss2002manutencao-encarceramento-brasil

Introdução
É datada do século V o início das técnicas de prisões seculares como forma de aplicação de penas, inicialmente realizadas nos mosteiros, fora convertida como principal forma de punição a partir do século XVIII (Pimentel, 1978: 13).  Funcionava o sistema penal canônico que não admitia contestação das acusações e visava buscar uma ordem virtuosa e a salvação das almas, mesmo que isto custasse à vida dos acusados. Com o advento da inquisição os pecados se tornam “delitos” públicos, os bispos tinham poder penal o que inaugura as penas eclesiásticas e seculares (Batista, 2013: 165; 178 – 184). Apesar de o processo inquisitório ter ocorrido até 1834, o extermínio dos corpos publicamente não se perpetuou para além do século XVIII. Essa prática se torna insustentável quando o povo passa a reconhecer como tirânico o prazer da igreja e do antigo regime de punir os corpos. (Foucault, 1983: 69).
Por conta disso, as privações da liberdade foram engendradas uma vez que as execuções públicas e os suplícios passaram a contar com a supressão do apoio da multidão contra o sistema absolutista (Batista, 2011: 25). Como argui Michel Foucault: “Em algumas dezenas de anos, desapareceu o corpo supliciado, esquartejado, amputado, marcado simbolicamente no rosto ou no ombro, exposto vivo ou morto, dado como espetáculo. Desapareceu o corpo como alvo principal da repressão penal” (Foucault, 1983: 14). Entretanto, as leis tornaram-se mais duras na Europa neste período e pequenas situações-problema que antes eram tolerados passam a não escapar mais as leis, e em contraponto a isto, a riqueza dos privilegiados só aumenta (Foucault, 1983: 72).
As restrições das liberdades individuais através das leis ou mesmo através da pena privativa da liberdade passaram a ser percebidas de maneira positiva, uma vez que as mesmas somente ocorreriam pelo suposto bem tanto do indivíduo punido quanto da sociedade. O discurso propagado era de que o poder de punir estaria intimamente ligado com a vontade de obter a cura do indivíduo e daquela prática. Para isso, o sujeito encontraria no ambiente carcerário possibilidades de formação educacional e profissional (Pimentel, 1978: 34) que seriam capazes de fazê-lo tornar-se um indivíduo ‘melhor’ e quando alcançasse a liberdade poderia se reinserir na sociedade para além do cárcere.
Dessa maneira, o problema de reincidência também poderia ser sanado. A justiça então deixaria de se encarregar apenas de punir e passaria a buscar a reabilitação e reeducação do sujeito que passa por essas situações problemáticas. Como destacava Foucault: “O essencial da pena que nós, juízes, infligimos não creiais que consista em punir; o essencial é procurar corrigir, reeducar, curar” (Foucault, 1983: 15). Esta é a perspectiva da criminologia que valoriza a punição, e até hoje é baseado nisso que os juízes não são vistos como castigadores, porque de acordo com esta teoria, eles não cumprem seus papeis para penalizar um indivíduo, mas sim para recuperá-lo. A título de recuperar recebem mais liberdade política para punir. Vale destacar que a prerrogativa era a de que o tratamento desempenhado nos cárceres estava associado com os empregados nos hospitais e as escolas, e não apenas como ambientes repressivos.
Entretanto, enxergar no cárcere um papel educador se distancia da realidade, principalmente da brasileira. As narrativas dos cárceres mencionam desde a proliferação de doenças contagiosas devido a falta de higiene, quanto a problemas de ordem técnica como unidades superlotadas, ausência de água, luz e até mesmo alimentação para todos os prisioneiros. Diante de tantas mazelas, parece que o Estado é incapaz de cumprir o papel ressocializador (que poderia almejar) a estes cidadãos. Além disso, pode ser considera questionável a hipótese de que a privação de liberdade tenha alguma contribuição a dar na repressão a novas situações problemas praticadas pelos sentenciados. Como destaca Alexandre O’Donell Mallet: “Basta uma singela visita às inconstitucionais masmorras brasileiras para que a pretensa humanização caia por terra”. (Mallet, 2014: 80)
            A punição não se define apenas através do juiz e dos agentes penitenciários, policiais etc, por exemplo, todos os envolvidos no processo punitivo, dos presídios e dos hospícios, como psicólogos, assistentes sociais, os cidadãos comuns, entre outros, também são responsáveis pela lógica punitiva, que sedimenta a crença de que os conflitos devem ser mediados apenas pelo Estado e não pelos indivíduos, e, com isso, fortalece os estabelecimentos asilares. A lógica punitiva defende o uso das penas como única maneira plausível de lidar com as situações problemáticas, sendo a pena privativa de liberdade a predileta de seus adeptos. Sem o apoio ou omissão tanto dos civis quanto destes profissionais talvez não fosse possível que esta lógica se perpetuasse, uma vez que esta poderia tornar-se insustentável. Mas a partir do momento que todos trabalham pela suportabilidade destes ambientes, a possibilidade dos mesmos continuarem a existir se perpetua. A vontade de punir dos juízes não resistiria se não existisse a vontade de ver punido, mais ainda, a crença de que punir produz um bem para todos da sociedade. Este trabalho pretende interrogar essa crença.
O sistema punitivo contemporâneo foi capturado pela lógica da pena privativa de liberdade. Não só a percepção da pena como oportunidade de ressocialização não redundou em medidas efetivas de extinção do cárcere, quanto nos países periféricos ela se tornou associável à contenção das populações mais pobres, além de forma de amenizar a pressão do ressentimento social entre pobres e ricos. A pena privativa de liberdade se torna móbil sofisticado da dominação social. Buscamos investigar o hiperencarceramento1 que vem sendo aplicado no Brasil, sendo nosso recorte principal o Estado brasileiro nas últimas três décadas. Por nos parecer impossível dissociar o problema do sistema penitenciário aos problemas da gestão da segurança pública procuramos entender como são criadas as condições de possibilidade que perpetuam as mazelas carcerárias.

Movimento Abolicionista Penal
O Abolicionismo Penal vem na mesma direção dos pensamentos sobre a necessidade de se questionar o caráter racista, higienista e segregador das instâncias punitivas. Essa corrente criminológica surge a partir dos anos 1960, e seu nome é relacionado tanto à luta contra a escravidão e a colonização como também contra a pena de morte. A partir dos anos 1960, passaram a também batalhar pela deslegitimação do sistema carcerário e da lógica punitiva.
Percebe a guerra contra o suposto “crime” como uma cruzada contra os pobres, na qual esses passam a responder individualmente pela violência e falta de segurança, intrínsecas ao modelo de sociedade vigente. Todavia a culpabilização dos indivíduos como mentores das ameaças à sobrevivência parece imoral, visto que as principais ameaças à vida humana são: a fome, a concentração de terras e capital, a falta de saneamento, a ausência de saúde pública de qualidade, as políticas geradoras de desigualdade social, a falta de direitos fundamentais como a moradia, a alimentação, o trabalho, o lazer, a educação etc. A crença de que a violência é o resultado de ações particulares, para os adeptos dessa corrente, parece irreal (KARAM, 1997, p. 69).
Foucault realiza uma inquirição sobre o poder que a linguagem possui, que também é muito utilizada pela maioria dos grandes nomes abolicionistas que defendem a impossibilidade de se mudar o esqueleto punitivo se mantivermos o vocabulário que o estrutura. Por conta disso, palavras como “delito” são modificadas por “situação-problemática” e/ou “situação-problema”, isso porque o “delito” não teria em si uma realidade ontológica, ele também é produto das políticas punitivas que sustentam a nossa realidade social. Segundo Anitua: “Os problemas são reais, mas o delito é um mito. Um mito que tem consequências reais, as quais são responsáveis pela criação de novos e mais graves problemas” (ANITUA, 2015, p. 698). Hulsman também discorre sobre isso quando argumenta:
Primeiro, vocês têm uma ideia de delinquência. Vocês acreditam que o delito existe. Na minha opinião, vocês não deveriam pensar dessa maneira. Eu não penso assim. Acredito, é claro, que, às vezes, as pessoas fazem coisas erradas, mas não acredito que isso possa ser expresso pelo que chamamos de delito. É uma forma equivocada de chamá-los. É melhor chamá-los de incidentes, como no sistema de justiça cível, no qual tudo se resolve entre as pessoas e, então, o juiz decide pela compensação que as pessoas querem e não pelo que ele pretende [...] Ali há algo muito diferente do que realmente acontece na vida social. [...] A linguagem não foi mudada porque ainda está se falando de “cometer um delito”. Eu não vou usar esta linguagem pelas razões que expliquei. Acredito que quando se reconstrói a vida nos termos do que o sistema penal chama de delito, se alguém o chama dessa maneira, não pode ter uma boa ideia do que aconteceu. É preciso descobrir o que aconteceu de uma maneira mais ampla (HULSMAN, 2007, p. 146-150).
Esse posicioidnto sobre mudança de vocabulário a respeito das situações problemáticas foi defendido por todos os quatro nomes fundadores do abolicionismo penal europeu, Loük Hulsman, Thomas Mathiesen, Nils Christie e Sebastian Scheerer. Esses teóricos defendem que, quando a nomenclatura é modificada, a percepção comum sobre aqueles problemas sociais também pode ser revista, ou seja, a sociedade não se limita mais à resposta punitiva e a comunidade pode buscar alternativas para tratar a questão.
Walter Benjamin também discorre sobre isso no seu trabalho sobre as estratégias ideológicas de poder. Essas estratégias, por meio do poder da linguagem, são capazes de disseminar ideias para a população. Benjamin atenta para a manipulação, por intermédio de diversos campos do conhecimento, como: a comunicação, as mídias e até mesmo as artes, são capazes de deturpar valores e implementar ideologias perversas, de superioridade, estéticas, entre outras.
O abolicionismo penal é caracterizado por questionar o caráter racista, higienista e segregador das instâncias punitivas. Percebe a guerra contra o suposto “crime” como uma cruzada contra os pobres, onde estes passam a responder individualmente pela violência e falta de segurança intrínsecas ao modelo de sociedade vigente. Todavia, a culpabilização dos indivíduos como mentores das ameaças a sobrevivência é imoral, visto que as principais ameaças à vida humana são a fome, a concentração de terras e capital, a falta de saneamento, a ausência de saúde pública de qualidade, as políticas geradoras de desigualdade social, etc. A crença de que a violência é resultado de ações particulares para os adeptos desta corrente parece irreal (Karam, 1997: 69).
Os teóricos abolicionistas procuram defender uma prática política, onde se deslegitimem e sejam abolidas ideias de castigo, punição, delito, criminalidade, periculosidade, gravidade, culpabilidade, junto com as prisões. Para estes pensadores o sistema de justiça penal apenas aliena e marginaliza tanto a vítima quanto o sujeito que fora estigmatizado como criminoso, e, isso faz parte das estratégias de controle social que, segundo os mesmos, precisam ser deslegitimadas. “O sistema penal em todo o seu conjunto cumpre uma função modeladora para com pautas e condutas determinas, em um contexto de controle social mais amplo, a fim de disciplinar o comportamento humano em sociedade”2 (Tradução livre. Alagia & Ciafardini, 1988: 10).
Para os abolicionistas, os processos de mediação, justiça restaurativa, arbitragem, perdão, pecuniários, grupos de apoio, são mais exitosos na reparação da paz do que os que proporcionam castigos, embora muitos não defendam a mera substituição das penas privativas de liberdade por essas alternativas elucidadas. Sobretudo, costumam defender que as pessoas usadas como bodes expiatórios parem de ser perseguidas e enviadas às prisões. Eles questionam as normas vigentes e propõe que outras sejam pensadas e colocadas em prática, “normas não são, elas se tornam” (Christie, 2013:13) e isso se deve em parte ao fato de suas experiências individuais com regimes totalitários. Esse é outro fator interessante desta corrente, muitos dos seus teóricos são oriundos dos países escandinavos e da Holanda (o que muitas vezes gera críticas por serem países com baixa população e, por isso, com um número menor de conflitos). Todavia parte significativa dos autores desta corrente escreveu sobre abolicionismo penal depois de passarem pelas invasões nazistas nos seus países, após enfrentarem campos de concentração e enclausuramento. Esta vivência da privação de liberdade durante regimes totalitários nos casos europeus e democráticos no cso dos abolicionistas do Partido dos Panteras Negras, foi também impulso precursor para questionarem e criticarem os cárceres (Anitua, 2015: 697).
Essa teoria procura deslegitimar o sistema penal como um todo, desde os pilares da sua linguagem marginalizante, abolindo conceitos como “criminalidade”, “delito”, “criminoso” bem como permitir que se inicie uma jornada em busca de novas alternativas possíveis para se lidar com cada situação problema que surja, sejam elas pedagógicas, psicológicas, (Christie, 2013: 30) reconciliatórias, horizontais, entre outras. Por isso, os abolicionistas não pretendem criar um livro de normas como um Código Penal onde as punições para cada situação estejam previstas, justamente porque acreditam que cada caso é ímpar e deve ser tratado como tal, não existindo assim uma verdade ou solução geral a ser alcançada. O objetivo em si mesmo é transcender esses modelos preexistentes, descartando classificações e criando novas metodologias para operar com o infortúnio. Então a corrente além de teórica também pode ser entendida como um método, que não pode se aplicar de maneira independente a realidade vigente, e que enfrenta todo o sistema de justiça penal, visto que percebe este como um problema social em si mesmo (Folter, 1988: 58-59).
A empreitada abolicionista também procura trabalhar o problema junto aos envolvidos naquela situação sem expropria-los da resolução do conflito, como é feito no atual sistema criminal, por isso destacam o papel crucial que a vítima deve ter.  Para eles, não faz sentido e é ineficiente o Estado resolver o conflito sem as partes interessadas uma vez que esse não conhece os envolvidos e também não vivenciou as dores que este gerou. O foco deve se concentrar em não permitir que o problema da vítima seja oneroso só a ela, mas sim que ela faça parte e atue na resolução deste da melhor forma para si. Portanto, este sistema penal alienante da atualidade só geraria novos problemas e prejuízos irreparáveis aos envolvidos na situação-problemática. Como destacado por Anitua:

Um dos problemas do sistema penal é a descontextualização das situações problemáticas e sua reconstrução num contexto alheio às vítimas, aos vitimadores e aos outros indivíduos. O sistema penal cria individualidades irreais e uma interação fictícia entre eles, definindo as situações problema ou conflito de acordo com as regulamentações e as necessidades organizativas do sistema penal e de suas agências burocráticas. As partes envolvidas não podem influir em sua resolução ou continuação, uma vez que é definido como “delito” e dele se encarregam os “especialistas” do sistema penal. O resultado disso além de não satisfazer nenhuma das partes envolvidas no problema, gera novos problemas, como a estigmatização, a marginalização social etc (Anitua, 2015: 698-699).

O sistema prisional no Brasil
Conjeturando que as técnicas discursivas brasileiras pudessem ser mais voltadas para técnicas abolicionistas que buscassem a tolerância, o volume de encarcerados quiçá não se exibiria de maneira ascendente nos últimos trinta anos. Em 1990 o Brasil possuía 90 mil presos e na contemporaneidade essa cifra ultrapassa os 800 mil . Há dados para se defender que se o método abolicionista ganhasse maior robustez, práticas decrescentes de aprisioidnto ganhariam maior visibilidade. Por isso se faz cogente relacionar quais elementos foram cruciais para que a comunidade e o Estado fossem capazes de fomentar a veia punitiva, na qual o cárcere mereceria ser percebido como dita solução para os problemas de violência. Isso contribuiu para que o país se tornasse um Estado hiperencarcerador, e hoje isso se apresenta através da sua posição de terceiro colocado no ranking dos países com maior população carcerária, segundo o Infopen de 2016.
A apresentação desses dados é deveras relevante para a conjuntura social, cultural, econômica e política, especialmente porque é caracterizada de forma distinta pelos predominantes discursos criminológicos. Por isso, esse artigo têm a preocupação moral de questionar a comunidade brasileira que trafega num ambiente o qual a violência faz parte da vivência afetiva cotidiana, sendo empreendida não apenas por atores externos, mas sobretudo pelo Estado. A crueldade engendrada não é entendida em suas dimensões reais, a ideia do cárcere parece aparecer para justificar a ordem através da aplicação de penas aos que cometeram infrações. Todavia, pouco é questionado sobre o nível intolerável e imoral de crueldade vilipendiada nos estabelecimentos prisionais. Dessa maneira, pretende-se instigar a sensibilidade à prisão assemelhada àquela que se produziu no século XVIII à pena de morte, oferecendo subsídios de como a conservação destes ambientes carece de ser abolida.
Os indivíduos que não promovem acumulação de capital, na atualidade, não possuem ambiente próprio no mercado de trabalho, e, por conta disso, poderiam ser excluídos e enviados ao espaço prisional. Acentuar isso é cogente porque Wacquant apresenta justamente esse espectro de sujeito como os tidos woorking poor (Wacquant, 2001:21), pessoas que embora trabalhem não são capazes de ascender da faixa miserável. Para além disso, ainda são culpabilizados por não prosperarem socialmente, visto que a não progressão econômica é percebida como deficiência de empenho particular e não como ausência de oportunidade.
Os mesmos indivíduos foram marginalizados durante toda a história, por isso, parece ser necessário enfatizar os movimentos de segregação racial e não apenas social que foram pilares para a seletividade do controle punitivo. A criação de um perfil do criminoso nato, no qual esse era predisposto geneticamente para cometer os ditos delitos foi possível por conta do advento das teorias higienistas e práticas de embranquecimento. Durante um período, os conceitos de degenerescência, atavismo e eugenia legitimaram as violências realizadas contra esta população. Isso porque os estudos da criminologia científica produziram explicações patológicas para a “criminalidade”.
Dessa maneira, é cogente questionar os auspícios da neutralidade científica das escolas da criminologia científica que postularam a base para que técnicas excludentes fossem produzidas ao longo do tempo contra essa mesma população. É urgente politizar a questão criminal repudiando o paradigma etiológico3 que constrói a ideia de um suposto determinismo biológico para o perfil do criminoso. E é justamente a ruptura com este paradigma que se impõe para que se possa desmitificar a ideia de que o isolamento do indivíduo teria função de reabilita-lo, reeduca-lo ou reintegra-lo a sociedade.
Por isso esse artigo procura desvincular a máxima de que o isolamento dos indivíduos teria sido capaz -ou almejou- cumprir o que prometeu – as “ilusões re 4” (ressocialização, reabilitação, reeducação, recuperação) -, pelo contrário, após a internação os indivíduos sofrem com a exclusão social mais enérgica e, se por ventura posteriormente forem libertados, serão classificados como perigosos, nocivos e malfeitores, e encontrarãom maiores dificuldades para serem contratados em empregos formais.
Wacquant ajuda a perceber como a prisão é uma instituição fora da lei. O cárcere deveria respeitar as normas da sociedade para supostamente reformar os indivíduos ingressantes, está o tempo todo contra estas, realizando o fim dos direitos humanos e sociais. É uma instituição insegura e precária. Não é possível atribuir créditos as possibilidades re de uma sociedade que não ajuda seus mais pobres, não há como reinserir alguém depois deste viver num ambiente prisional onde foi obrigado a suspender as regras sociais que conhecia “do lado de fora” e aprender todas as que eram vigentes na prisão. Sobre os pensamentos positivistas de reabilitação, destacamos a crítica na fala de Manoel Pedro Pimentel:
Pretender treinar um homem preso para viver em liberdade, seria o mesmo que pretender treinar um corredor, para uma corrida de 3.000 metros, fazendo com que ele ficasse na cama durante 15 dias deitado, nós o soltaríamos para competir; e soltaríamos para correr os 3.000 metros. A comparação é mais ou menos essa (Pimentel, 1953, s/n).

Como o sistema penal está embutido na sociedade, e por esta inúmeras vezes se comportar de maneira classista e hierarquizada, onde as possibilidades de ascensão social são ínfimas, o sistema punitivo parece apenas reproduzir as práticas sociais comuns. Ou seja, oprime e exclui os pobres e no momento que estes cometem qualquer ato que possa ser interpretado como “desvio” são flagrados e direcionados para o ambiente carcerário. A naturalização da punição ocorre com essa adoção do pensamento a respeito dos pobres serem “classes perigosas” aliado ao papel pedagógico que o castigo realiza na interação humana da nossa sociedade. Corroborando com isso, o pensamento social foi construído de maneira que a punição deve ser proporcional à gravidade do suposto desvio cometido, isso nos apresenta uma falsa noção de ordeidnto (Hulsman, 2012: 46).
O Direito Penal neste sentido é apenas um espaço onde jaz a capacidade de legislar a respeito das relações de poder já preponderantes, portanto, suas diretrizes são preestabelecidas para manutenção do status quo. Dito isto, encara-se a instrumentalização da segregação social através do funcioidnto das múltiplas instituições (jurídica, policial, política, social) em prol do controle das massas empobrecidas. A criminalização da pobreza passa a ser praticamente a única capacidade admissível para conduzir os conflitos gerados pelo sistema capitalista (Batista, 2002: 274).
O capitalismo contemporâneo atua boicotando a força pública ao diminuir o papel do Estado de bem estar social e em contrapartida aumenta a força do Estado coercivo. Dessa maneira os recursos do Estado social diminuem da mesma maneira que inflam os gastos do Estado com segurança, encarceramento, detenções, perseguições, etc. Para se realizar a deflação do Estado social além de se diminuir a verba deste também se estimulam práticas que burocratizam os benefícios sociais a ponto de desestimular os beneficiários de requerê-las, são as chamadas práticas churning. E os serviços sociais que são mantidos neste novo Estado controlador tornam-se ferramentas para submeter a população pobre a constante vigilância. Dessa maneira, uma série de contrapartidas são cobradas das pessoas que recebem auxílios dos governos, como ter os filhos matriculados em escolas5 (learnfare), por exemplo. Wacquant discorre sobre muitas das vezes o eleitorado preferir que seja gasto capital em políticas públicas de segurança ao invés de persuadirem seus políticos a investirem em estados assistencialistas, isso porque percebem mais facilmente esse tipo de investimento:

Prender os pobres apresenta na verdade a imensa vantagem de ser mais “visível” pelo eleitorado; os resultados da operação são tangíveis e facilmente mensuráveis (tantos prisioneiros a mais); seus custos são pouco conhecidos e nunca submetidos a debate público, quando não são simplesmente apresentados como ganhos pelo fato de “reduzirem” o custo do crime. O tratamento penal da pobreza é além disso dotado de uma carga moral positiva, enquanto a questão do ‘welfare’ está, desde o início, manchada pela imoralidade (Wacquant, 2001: 82).

Como já visto, o abolicionismo penal não é uma corrente onde todos seus autores compartilham das mesmas perspectivas. Faz-se necessário elucidar que Mathiesen, por exemplo, compartilha do viés que vislumbra pensar e propor estratégias para a resolução das situações-problema. Isso não quer dizer que as propostas devam ser seguidas à risca, como dito anteriormente, não busca-se realizar um manual, mas sim fazer um esforço para galgar espaço e oportunidades de resoluções mais benéficas do que apenas criticar o Código Penal sem apresentar alternativas. Isso se mostra necessário para se abandonar de uma vez as litanias acusatórias de que o Abolicionismo Penal seria um movimento utópico. Ao ressaltar essas práticas oferecem espaço para que novas ideias não-punitivas sejam criadas e também abrem uma gama de possibilidades possíveis para a resolução de problemas. Não pretendemos abordar profundamente cada uma destas instituições ou grupos, mas sinalizar sua existência e eficácia no que se propuseram a realizar.
Os abolicionistas entendem que as práticas punitivas não ressocializam os indivíduos, pelo contrário, os dados apresentados apontam para uma reincidência de 47% 6 (Carvalho, 1997: 143; Revista Fórum, 2015) na execução de novas situações problemáticas após um indivíduo ter sofrido o cerceamento da sua liberdade no sistema prisional, e, também por isso, percebem que a lógica vigente da justiça criminal precisa ser refutada e repensada caso a caso. Dito isto, a teoria do abolicionismo penal é essencial para trabalhar nesta chave onde as alternativas viáveis para cada caso problemático são pontuais aos mesmos.
Ao se pensar as possibilidades para diminuir o cárcere, a estratégia deste trabalho é buscar exemplos que não tenham recorrido ao sistema prisional para resolução de conflitos e/ou que sejam organizações que procurem pensar fora desse rigor punitivo. Portanto, ressaltaremos aqui essas experiências e instituições afim de elucubrar alternativas abolicionistas viáveis na atualidade.
É importante enfatizar que não existe a intenção de sugerir que determinadas escolhas sejam realizadas, mas sim que existem propostas palatáveis a diminuição do cárcere, por isso as alternativas seguintes se mostram como possibilidades anticarcerárias, mesmo que muitas também sejam restritivas de direitos. Algumas destas alternativas já estão em exercício, muitas das vezes são postas em prática por juízes que entendem a piora que o tempo passado enclausurado acomete a um indivíduo, e/ou a pessoas de renda mais alta que tem possibilidades muitas das vezes maiores de defesa. São as ditas penas não privativas de liberdade. Estas podem ser penas restritivas de direitos, mas não do direito à liberdade. Estão previstas no Artigo 44 do Código Penal7 , e nesse artigo estão citadas uma série de restrições a aplicação desta possibilidade. Mas, uma vez que existe essa opção, as penas que não restringem a liberdade do sujeito poderiam ter uma aplicação maior do que o encarceramento, posto que a regra devesse ser a liberdade e o encarceramento a exceção.
Portanto, colocando em prática o já previsto pelo nosso Código Penal poderíamos de antemão diminuir o número de presos significativamente adotando as penas restritivas de direitos do que às restritivas de liberdades nos casos previstos pela lei, ou seja, em situações que não houve grave ameaça ou violência. Nesses casos, o “tráfico de drogas” - segundo lugar nos crimes que mais encarceram homens (26% segundo Infopen 2017) e primeiro nas mulheres no Brasil (62% segundo Infopen 2017), se abordado sobre essa perspectiva diminuiria significativamente o contingente carcerário.
Todavia, o que temos acompanhado é que em grande parte dos casos não é oferecido a possibilidade de medidas alternativas pelo Ministério Público. Segundo pesquisa realizada pelo IPEA em 2015 em todos os Estados da União (exceto a Bahia) a respeito das penas alternativas, mostrava que em 90,7% dos casos não foram oferecidas nenhum tipo de transação penal para medidas alternativas à privação da liberdade para os casos previstos por lei, nem suspensão condicional do processo pelo MP, como elucidados no Art 44 do Código Penal. Isso quer dizer que as penas alternativas8 não parecem estar sendo aplicadas mesmo em casos de crimes considerados de baixa gravidade. Esse dado é de suma importância para identificarmos como a diminuição do cárcere pode ser alcançada caso coloquemos em prática opções que já estão previstas nas nossas leis e que têm sido deixadas de lado pelo judiciário.
Outro fator que podemos destacar e também foi avaliado pelo relatório é de que as penas de prestação de serviço comunitário, apesar de não serem muito utilizadas, quando o são tem oferecido resultados mais positivos do que as demais, devido ao seu caráter pedagógico. E, posteriormente ao seu cumprimento, muitos servidores continuam sendo voluntários nas instituições onde cumpriram a pena. Além disso, apesar do judiciário não recorrer muito as penas de medidas alternativas o saldo destas parece positivo aos olhos dos assistentes sociais e profissionais psicossociais que enxergam essas medidas como possibilidades reais de transformação na vida do réu (IPEA, 2015: 84).
O relatório do IPEA é bastante esclarecedor a respeito da não utilização das medidas alternativas pelos juízes. Para além dos critérios objetivos apresentados no Artigo 44, os juízes alegam enxergar uma série de critérios subjetivos que os fazem optar por não permitir que o réu faça uso dessas alternativas. Vale o destaque ao trecho do relatório referente a esta temática:

Apesar de a lei prever, em caso de redução de pena, a substituição por penas alternativas para os réus acusados por tráfico de drogas, a equipe do Ipea encontrou na pesquisa vários juízes que se opõem a essa possibilidade, julgando-a inclusive inconstitucional, contrariamente ao entendimento do STF. A questão das drogas esteve presente em todas as conversas com juízes e servidores. Para essas pessoas, os entorpecentes estão por detrás até mesmo de crimes que aparentemente não se vinculam imediatamente a seu uso. Juízes explicam que a droga e o furto ligados ao tráfico são as portas de entrada para a criminalidade. No âmbito desse problema, o consumo de crack parece ser, nesse momento, a maior preocupação. Em algumas localidades, principalmente em cidades do interior, juízes incluem o consumo de álcool como elemento motivador de delitos: “A legislação brasileira é uma mãe. Até tráfico agora pode. A maioria das sentenças prolatadas aqui converte. Quando não resolve logo na suspensão condicional do processo, converte no final” (Juiz, interior) (IPEA, 2015: 63).

Referente ao tema das drogas as psicólogas dos Centros de atendimento confiam e veem resultado nos trabalhos realizados com os usuários. Isso é de extrema importância destacar visto que se trata de uma alternativa a essa significativa porcentagem de presos (29% segundo CNJ 2017 e 26% segundo Infopen de 2017) por crime de tráfico de drogas. Segundo as profissionais, muitos réus continuam o tratamento mesmo depois do tempo prescrito pelos juízes como pena. Segundo as assistentes sociais e psicólogas seria necessário que o Tribunal não valorasse somente a opinião dos juízes, como também dos demais profissionais porque caso todos os envolvidos no processo de aprisioidnto compreendessem melhor o trabalho realizado nos centros optariam por ele mais vezes do que aos presídios, como relata uma delas: “poucos juízes “entendem o papel do centro, se entendessem haveria muito mais [centros] e com mais estrutura. Se o judiciário entendesse o impacto do trabalho do CJT investiria nesse trabalho ao invés de em presídios” (IPEA, 2015: 85).
As conclusões do relatório exaltam que essas medidas alternativas são pouco adotadas porque se opta pela prisão cautelar como regra, baseados na suposta dificuldade em encontrar o autor do crime posteriormente. É preciso salientar o recorte de classe que há nessa afirmativa. Uma vez que autores pobres e sem moradia fixa se encontram neste argumento e os autores com moradia fixa, logo, com mais capital, não cabem nessa justificativa da justiça. Para além disso, o relatório (que realizou pesquisas tanto qualitativas como quantitativas) também conclui o que já ressaltado neste trabalho, que os juízes e promotores agem para além dos critérios objetivos, muitas das vezes baseados em “intuição”, e avaliam “o jeito” dos réus. Mais um elemento que pode ser percebido como classista e racista, essa suposta avaliação de postura do sujeito. Ainda há alegações do ponto de vista moral, de que os agentes da lei preferem manter presos os que usam ou praticam tráfico de drogas por terem concepções de que a droga é “a porta de entrada para crimes maiores”, mesmo que isso vá diretamente em conflito as falas de psicólogas e assistentes sociais.
Também há a rasa ideia de que não punir o indivíduo com o isolamento seria deixa-lo impune. É necessário com isso denunciar a formação inadequada destes agentes da lei uma vez que a ideia de se criar medidas alternativas à prisão veio justamente pela percepção de que o encarceramento é ineficaz. O relatório sugere a realização de cursos de formação para estes juízes e demais envolvidos no processo de encarceramento.
Outra denúncia apresentada no relatório e de relevância para este trabalho é o fato de mesmo nestes juizados especiais (Jecrims), a vítima continuar sem ser ouvida como deveria. Isso é um problema visto que estes processos deveriam atender principalmente as demandas da vítima nestes tribunais de mediação. Estes tribunais foram criados tanto para agilizar os processos, quanto para que a vítima pudesse fazer uma parte maior deste, sendo escutadas e tendo seu bem-estar futuro como prioridade.
Uma das menções do relatório é justamente a discussão a respeito de alternativas para desinchar o cárcere brasileiro. Em prol do direito penal mínimo, como é descrito na constituição, o relatório do IPEA sugere algumas medidas para limitar o acesso direito ao aprisioidnto. Destacaremos esse trecho uma vez que aventa uma série de possibilidades que buscam a diminuição do contingente carcerário.

Na discussão de um novo Código Penal minimalista podem-se levar em conta as seguintes questões: a descriminalização máxima de condutas; a redução nos tempos de pena; a ampliação do número de crimes definidos como de menor potencial ofensivo; a ampliação das possibilidades de aplicação dos institutos de renúncia, perdão e retração do agente; a redução do impacto dos agravantes nas penas; a redução de prazos de prescrição, decadência e perempção; a ampliação das possibilidades de aplicação do perdão judicial, graça e indulto; e a redução do prazo para início da progressão penal (IPEA, 2015: 90).

Para além deste relatório existem outros documentos e relatórios que apresentam projetos que investem nos presos e diminuem a ociosidade destes, e também os auxiliam a enfrentar problemas relativos a abstinência de drogas. Existe uma série de programas premiados e reconhecidos como alternativas possíveis para a diminuição da degradação dos internos, como os projetos: “De olho no futuro” 9 que auxilia presos para o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), projetos de remição pela leitura, Projeto Direito no Cárcere10 que implementa oficinas de leitura, direitos humanos, cinema, música, e defende a utilização da arte como propulsora do acesso à justiça; Cidadania dos Presos 11, que procura valorizar os direitos dos presos, entre outros.
Os resultados divulgados por estes projetos são impressionantes, mostram que os presos quando tem acesso à educação, cultura e arte têm rendimentos parecidos com os dos alunos não reclusos. Isso nos faz acreditar que, como destacado pela presidenta do STF Carmen Lúcia 12, não faz sentido gastarmos tanto dinheiro com presos se menos seria gasto com estudantes. Com isso queremos dizer que o ideal seria que estes jovens não fossem privados de suas liberdades individuais, mas sim que passassem por programas de apoio onde obtivessem oportunidades reais de crescimento inseridos na sociedade, ou seja, fora dos ambientes prisionais.
A iluminação destes projetos não significa que sejamos defensores da promulgação de alternativas re (reeducação, reinserção, reintegração dos presos) e da manutenção das prisões. Pelo contrário, enxergamos a urgência em diminuir o contingente carcerário, todavia, enquanto este processo é realizado acreditamos que também tem caráter emergencial a melhoria das condições de vida dos internos. Por isso, os próprios abolicionistas sugerem que a defesa de uma prática não anula a seguinte, portanto, defendem a redução dos danos causados aos detentos, de maneira a criar estratégias para que enquanto vivam reclusos sejam tratados com dignidade e reais possibilidades de vivência num ambiente higiênico, não degradante e humanitário.
A elaboração destes documentos e planos de ação bem como a criação da Frente Estadual pelo Desencarceramento no Rio de Janeiro 13 parecem ser os dois novos esforços no campo das ciências criminais brasileiras que visam o combate à criminalização da pobreza e ao hiperencarceramento. A FED tem como objetivos gerais: contribuir com um plano para a redução do hiperencarceramento no Estado do Rio de Janeiro tanto no âmbito do sistema prisional quanto no socioeducativo, acolher as famílias dos detentos e ex-detentos, glutinar e promover pesquisas sobre esta área, acompanhar as políticas públicas estaduais referentes a este tema, principalmente as veiculadas as prisões provisórias e medidas alternativas penais, e, acompanhar as condições das prisões e unidades socioeducativas.
Essas metas visam melhorar minimamente as condições de vida dos internos bem como exigir das autoridades vigentes a promulgação dos direitos humanos dentro das unidades prisionais. É necessário que frentes como essa sejam criadas para que os órgãos responsáveis sejam obrigados a cumprir com a lei e diminuam o contingente carcerário nos Estados. Uma vez que as prisões provisórias são, como já citado anteriormente, quase a metade das prisões no Rio de Janeiro, a adoção de medidas alternativas ao invés destas e a reavaliação destas aos que já estão internados já seria capaz de mudar estruturalmente o cenário fluminense. É importante ressaltar que como a FED foi criada após as chacinas nos presídios do norte brasileiro em 2017, o impulso primordial também não deixa de habitar o imaginário de que adotando novas práticas seriam capazes de impedir que uma violência deste porte acometesse os internos (e em perspectiva as suas famílias) oriundos dos cárceres do Rio de Janeiro.

Conclusão
Se os empenhos na esfera judiciária e civil tornarem-se capazes de estimular modelos não punitivos, ocorrerá o distanciamento da prática do excludente e de castigo, visto que a falta de resultados satisfatórios destes modelos despóticos podem ser percebidas facilmente e em paralelo têm contribuído ao longo dos séculos muita repressão e açoitamentos. Parece ser urgente que os ideais emancipatórios rompam autoritarismos, assim, sociedades mais flexíveis poderão emergir. Maria Lúcia Karam, Mariano Ciafardi e Mirta Bondanza na passagem a seguir se referem a essa possibilidade:

Estas sociedades melhores, mais justas e mais generosas, iguais, livres, tolerantes e solidárias, podem parecer e talvez, de fato, estejam muito distantes. Utopias costumam mesmo ser distantes, mas precisam sempre ser buscadas. Se parecem tão irreais, é somente porque ainda não se realizaram (Karam, 1997: 84).
A abolição do sistema penal não pode nos nossos dias entender-se mais como uma utopia. O utópico, porém, não é sinônimo de impossível. As utopias não são falácias. E mais, muitas utopias geraram as ideias fundadoras de grandes projetos sociais que tiveram finalmente sua realização (Bondanza & Ciafardi, 1989: 7).

A preocupação do trabalho foi exibir como a estigmatização dos bodes expiatórios (pessoas menos afortunadas) passou a cercear seus direitos através de políticas públicas voltadas para o controle social através de processos de policização. A teoria do abolicionismo penal permitiu cintilar como o asilamento não gera a reabilitação. Nas ditas instituições totais o público-alvo é a população pobre, jovem, afrodescendente, desempregada, sem moradia fixa e com níveis de escolaridade baixos. Esse estereótipo autentica com a temática deste trabalho que entende que o sistema prisional é o nascedouro desses ambientes excludentes para a massa empobrecida não economicamente ativa: os cárceres.
Portanto, a teoria abolicionista não aceita que o problema da violência se projete como o da violência individual, no qual se supõe que ao neutralizar alguns sujeitos seja possível diminuir a brutalidade vigente. Pelo contrario, diverge da premissa de que permanência unilateral da justiça criminal como única maneira para lidar com os conflitos. E a partir disso se permite conjeturar maneiras alternativas para lidar com as adversidades. Por isso foi necessário destacar o contexto histórico pós século XIII, onde os processos passaram a ser resolvidos verticalmente pelas autoridades vigentes, porque este foi o momento de virada onde se iniciou a problemática da expropriação dos conflitos. Anteriormente a isso os relatos apresentam que os problemas eram solucionados entre os indivíduos e/ou coletivamente, ou seja, de maneira horizontal inter-humanos e não exclusivamente através do aparato estatal. A preocupação também foi investigar a imoralidade e invisibilidade de um espaço a que são enviados esse número significativo de jovens, negros e pobres buscando diminuir as sevícias passadas por estes e a abolição destas instituições como horizonte.
Os abolicionistas entendem que as práticas punitivas não ressocializam os indivíduos, pelo contrário, os dados apresentados apontam para uma reincidência de 47% 14 (Carvalho, 1997: 143; Revista Fórum, 2015) na execução de novas situações problemáticas após um indivíduo ter sofrido o cerceamento da sua liberdade no sistema prisional, e, também por isso, percebem que a lógica vigente da justiça criminal precisa ser refutada e repensada caso a caso. Logo, a teoria do abolicionismo penal é essencial para trabalhar nesta chave onde as alternativas viáveis para cada caso problemático são pontuais aos mesmos.
Portanto, refutam-se as ideias reformistas sobre a prisão e maximiza o olhar sobre a imoralidade presente na manutenção dessas instituições, buscando, dessa maneira salientar que é preciso que se busque alternativas as práticas de privação da liberdade tão naturalizadas na conjuntura política vigente. Como destaca Wacquant:

O verdadeiro desafio, no caso, não é o de melhorar  as condições de detenção, mesmo sendo evidentemente uma necessi­dade urgente, mas esvaziar rapidamente as prisões implementando uma política voluntarista de desencarceramento através do desenvolvimento de penas alternativas à privação da liberdade. Pois se não  sabemos bem por que se encarcera, sabemos, ao contrário, muito bem  que a passagem pela prisão exerce efeitos destruidores e desestruturantes tanto sobre os internos como sobre os seus próximos (Wacquant, 2007: 144).

Não parece valer a manutenção da tradição prisional unicamente por falta de vontade em inventar e/ou colocar em prática novas ideias e maneiras de se lidar com as situações-problemáticas. Novas maneiras mais horizontais de se lidar com os conflitos podem ser almejadas que sejam mais pedagógicas do que os castigos perpetuados cujos resultados têm encontrado sucessivos fracassos.
Portanto propor uma agenda abolicionista penal não se funda em argumentos utópicos, mas em uma estrutura pedagógica que visa à conciliação por meio de múltiplas práticas de mediação entre as partes. Essas práticas visam questionar a sociabilidade autoritária que assujeita os indivíduos às instituições de maneira hierárquica, retirando-lhes o papel de protagonistas das suas próprias situações-problema, buscando elucidar que não existe uma realidade ontológica do crime. Por isso, esses podem ser resolvidos no contexto social em que estão inseridos. As situações mais complexas necessitam de soluções alternativas, em que possam existir reparações, restituições, compensações e até mesmo prevenções. Dessa maneira, é possível pensar nos princípios da tolerância, respeito e justiça no lugar da culpa e vergonha.

Referências

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*Professora na Fundação Cecierj. Doutora em Ciência Política pela UFF. Mestre e Bacharel em Relações Internacionais. E-mail: tamiresmalves@gmail.com ORCID iD is 0000-0002-2608-7015
1 Utilizamos o termo hiperencarceramento adotando a visão de Löic Wacquant de que o encarceramento se destina a um grupo específico, por isso não seria correto o termo “encarceramento em massa” (mass incarceration).
2 “El sistema penal em su conjunto cumple uma función modeladora hacia pautas de conductas determinadas, em um contexto de control social más amplio, a fin de disciplinar el comportamento humano em sociedade” (Alagia & Ciafardini, 1988: 10).
3Este defende que existiria uma concepção patológica da criminalidade, ou seja, determinadas causas biológicas, psicológicas e sociais gerariam o criminoso.
4 Terminologia utilizada pela professora Vera Malaguti Batista para discorrer a respeito da narrativa positivista que argumenta que os espaços de internação realizariam nas identidades dos sujeitos uma série de mudanças que os tornariam aptos depois do tempo isolados a voltar a conviver em sociedade
5 No Brasil o programa social bolsa família obriga os pais a manterem a assiduidade dos filhos na escola.
6 Fonte:http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/06/anistia-internacional-por-que-a-reducao-da-maioridade-penal-e-um-retrocessp/
7 Art. 44. As penas restritivas de direitos são autônomas e substituem as privativas de liberdade, quando: 
I - aplicada pena privativa de liberdade não superior a quatro anos e o crime não for cometido com violência ou grave ameaça à pessoa ou, qualquer que seja a pena aplicada, se o crime for culposo; 
II - o réu não for reincidente em crime doloso; 
III - a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e as circunstâncias indicarem que essa substituição seja suficiente. § 1o (VETADO) 
§ 2o Na condenação igual ou inferior a um ano, a substituição pode ser feita por multa ou por uma pena restritiva de direitos; se superior a um ano, a pena privativa de liberdade pode ser substituída por uma pena restritiva de direitos e multa ou por duas restritivas de direitos. 
§ 3o Se o condenado for reincidente, o juiz poderá aplicar a substituição, desde que, em face de condenação anterior, a medida seja socialmente recomendável e a reincidência não se tenha operado em virtude da prática do mesmo crime.
§ 4o A pena restritiva de direitos converte-se em privativa de liberdade quando ocorrer o descumprimento injustificado da restrição imposta. No cálculo da pena privativa de liberdade a executar será deduzido o tempo cumprido da pena restritiva de direitos, respeitado o saldo mínimo de trinta dias de detenção ou reclusão. 
§ 5o Sobrevindo condenação a pena privativa de liberdade, por outro crime, o juiz da execução penal decidirá sobre a conversão, podendo deixar de aplicá-la se for possível ao condenado cumprir a pena substitutiva anterior
8 Por exemplo: prestação pecuniária, perda de bens e valores, prestação de serviços, interdição de direitos, limitação de final de semana, admoestação verbal, comparecimento obrigatório a uma atividade e pagamento de cestas básicas, entre outras.
9 Relatório “Para Além das grades”: Aspectos Intervencionistas da Execução Penal. Disponível em:http://www.justica.gov.br/seus-direitos/politica-penal/sistema-penitenciario-federal-1/tratamento-penitenciario/tratamento
10 Página do projeto Direito no Cárcere: https://www.facebook.com/pg/DireitonoCarcere/about/?ref=page_internal e http://direitonocarcere.blogspot.com.br
11 Projeto da CJ Cidadania dos Presos: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/cidadania-nos-presidios
12 Carmen Lúcia, afirmou em 2017 como o Brasil fez as escolhas erradas em construir poucas escolas porque hoje tem de lidar com problemas de superlotação de presídios. Carmen Lúcia apontou ainda para o fato de que um preso custa mais do que um estudante de ensino médio, fato alarmante do descaso do país com os investimentos na educação.
13 Criada no dia 26 de janeiro de 2017 após as chacinas realizadas nos presídios do Amazonas, Roraima e Rio Grande do Norte em janeiro de 2017. A Frente Estadual pelo Desencarceramento é composta por movimentos sociais, organizações da sociedade civil e centros de pesquisa.
14 Fonte:http://www.revistaforum.com.br/blog/2015/06/anistia-internacional-por-que-a-reducao-da-maioridade-penal-e-um-retrocessp/


Publicado: 11/02/2020

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