Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


O LUGAR DA EPISTEMOLOGIA NO TRABALHO ANTROPOLÓGICO

Autores e infomación del artículo

Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra*

PPGCS/UFMA, Brasil

E-mail: raissa@musarra.com.br.


Resumo
Este artigo pretende apresentar discussões teóricas na ciência antropológica sobre epistemologia e as contribuições das críticas para os rumos da Antropologia. Apresenta-se o exercício epistemológico que fazem alguns autores, especialmente  autores brasileiros, a respeito da ciência antropológica e do trabalho antropológico. Põe em diálogo conceitos como meta-antropologia e epistemologia genética e constrói uma ponte entre o que é considerado crítica e a prática reflexiva epistemológica específica.

Palavras-chave: Antropologia; Epistemologia; Ciências Humanas

The Place of Epistemology in Anthropological Work
Abstract
This article aims to present theoretical discussions in anthropological science about epistemology and the contributions of critiques to the direction of anthropology. We present the epistemological exercise that some authors, especially Brazilian authors, make about anthropological science and anthropological work. It dialogues concepts such as meta-anthropology and genetic epistemology and builds a bridge between what is considered critical and specific epistemological reflective practice.

Keywords: Anthropology; Epistemology; Humanities

El lugar de la epistemología en el trabajo antropológico
Resumen
Este artículo tiene como objetivo presentar discusiones teóricas en ciencia antropológica sobre epistemología y las contribuciones de las críticas a la dirección de la antropología. Presentamos el ejercicio epistemológico que hacen algunos autores, especialmente autores brasileños, sobre la ciencia antropológica y el trabajo antropológico. Dialoga conceptos como la metaantropología y la epistemología genética y construye un puente entre lo que se considera una práctica reflexiva epistemológica crítica y específica.

Palabras clave: Antropología; Epistemología; Ciencias Humanas

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Raíssa Moreira Lima Mendes Musarra (2019): “O lugar da epistemologia no trabalho antropológico”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (diciembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/12/epistemologia-trabalho-antropologico.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1912epistemologia-trabalho-antropologico

Introdução
O trabalho antropológico, sendo um trabalho científico, está sujeito ao olhar da epistemologia, e, sendo assim, tendo como base a reflexão filosófica, pode concretizar o pensar sobre si, e ter na epistemologia inspiração para observar os caminhos que antropologia traça enquanto é desenvolvida.
Assim, no intuito de encarar a antropologia por este viés epistemológico, e de perceber que a crítica antropológica acaba por desempenhar este papel, abordaremos alguns momentos em que tal crítica se fez presente em trabalhos de antropólogos e de que forma a epistemologia pode contribuir para aprimorar a reflexão sobre esta ciência.
 De modo geral, faz-se uma leitura do exercício epistemológico que fazem alguns autores, dando-se especial atenção a autores brasileiros, a respeito da ciência antropológica, do trabalho antropológico e seus rumos.

A Epistemologia e o Distanciamento
Para falarmos em epistemologia, devemos lembrar da busca incessante pelo conhecimento, o que nos remete a Pitágoras, quando da criação do termo filosofia como forma de designar aquele que ainda não alcançou a sabedoria, mas é amigo dela, porque na busca por ela encontra a si mesmo (Peters, 1983).
A preocupação de Pitágoras surge no contexto da não vinculação à ação, visto que estaria no fato de que esta busca não é dada àquele que atua, que age, que pratica, ou que exerce alguma atividade. Visto que a ação não comportaria a visão por completo.
Enxergar com distanciamento, ter a visão completa do horizonte, seria característica do sujeito que contempla e não daquele que age visto estar demasiadamente preocupado com os procedimentos da ação e com os reflexos da mesma (Peters, 1983).
Vale enfatizar que a filosofia, como atividade do pensamento, a especulação distingue-se da mera observação passiva, da mera contemplação admirativa, uma vez que postula, procura as causas primeiras, explica, critica. Representa grande instrumento de questionamento sobre meios, fins, princípios e causas, destinos e metas, sobre o de onde e o por onde. (Bittar e Almeida, 2010)
Assim, a filosofia exerce reflexão dirigida a si mesma e ao mundo. E o contexto da reflexão sobre a produção do conhecimento tem como um de seus objetos a manifestação do conhecimento científico.
Neste sentido, a epistemologia, sendo a filosofia das ciências, teria como suas principais preocupações o rigor científico, o método, os procedimentos de pesquisa, a exeqüibilidade das experiências científicas, os fins das atitudes científicas, a possibilidade de alcance da verdade e o papel social das ciências (Chauí, 1999). Pode-se considerar o estudo metódico e reflexivo do saber, de sua organização, formação, desenvolvimento, funcionamento e produtos intelectuais.
Haveria, de acordo com Japiassu (1975), três tipos de epistemologias, a global, saber globalmente considerado, virtualidade e problemas especulativos ou científicos; a particular, consideração de um campo particular do saber; e a específica, consideração de uma disciplina intelectualmente constituída em unidade definida do saber, estudando-a detalhada e tecnicamente, em sua organização, funcionamento e relações que mantém com outras disciplinas.
O conceito comporta também a epistemologia interna e derivada de uma ciência, às quais Piaget (1972) faz referência no que chama de “epistemologia genética”, que se traduz como estudo de como se passa de um conhecimento para outro conhecimento superior. Para ele, seria interna enquanto consistisse na análise crítica dos procedimentos de conhecimentos que utiliza, estabelecendo uma teoria dos fundamentos de uma ciência. Derivada, enquanto análise da natureza dos procedimentos de conhecimento de uma ciência, para saber como este conhecimento é possível, bem como determinar a parte que cabe ao sujeito e a que cabe ao objeto no modo particular de conhecimento que caracteriza a ciência.
Não se pode deixar de citar a contribuição de Bachelard como referência na construção do espírito científico, na busca da racionalidade e objetividade, que se propõe a contestar o empirismo, tendo o último como postulado fundamental que a verdade seria igual a dados em que a realidade falaria por si e por isso bastaria ao cientista absorver e registrar fielmente o que ela tem para dizer (Bachelard, 1996). O racionalismo aplicado proposto por Bachelard, afirma que a natureza e a sociedade só falam quando são interrogadas e que a forma da pergunta condiciona o tipo de resposta, sendo todo o conhecimento construção activa, e, não ter em conta estas características ocultaria a presença de pré-noções e de teorias implícitas no processo de pesquisa ocultando também os inevitáveis efeitos de tais teorias implícitas nos resultados obtidos (Almeida, 2007).
O princípio in princípium, philosophia, nos lembra que a atual divisão da ciência compreende a uma fragmentação do saber que a princípio era uno, ao menos no sentido platônico do uno como a culminação da hierarquia das idéias (Morente, 1980). Assim, fazendo a exegese da antropologia no arcabouço das ciências, cabe a reflexão a seu respeito como objeto da epistemologia.
Nesta proposta de recorte da epistemologia sobre a antropologia, acreditamos ser possível a vinculação da prática reflexiva que a epistemologia oferece sobre a o viés de questionamentos e definições desta e sobre esta ciência, não raro provenientes dos próprios antropólogos. Prática esta que pode ser comumente observada com a denominação de crítica.

O Exercício da Epistemologia na Antropologia
Como ciência da humanidade, a antropologia se preocupa em conhecer cientificamente o ser humano em sua totalidade e possui dimensões biológicas (enquanto antropologia física), dimensão sociocultural (enquanto antropologia social e/ou antropologia cultual). (Marconi, 2009).
A origem desta ciência remete ao final do século XIX e início do século XX, e refere-se, em grande parte, ao interesse do chamado mundo civilizado da Europa Ocidental pelo mundo “primitivo” não Europeu (Cardoso, 2011, p. 02).
E segundo Peirano (1995), a antropologia se concebe como um desdobramento da sociologia européia do século XIX e, lembra ainda a autora que, no Brasil, as ciências sociais foram institucionalizadas nos anos 30 sob o manto da filosofia.
Não nos será possível abarcar toda a história da antropologia e as concepções de todos os teóricos que pensaram definições ou recortes de método e objeto para esta ciência. Interessa-nos o enfoque dado pelos antropólogos sobre a antropologia e seus destinos, ou seja, o caráter epistemológico presente em suas análises.
Buscando um ponto de partida temos a questão levantada por Laplantine (2001), que traduz a dificuldade na interrogação: O homem está bem cientificamente em estudar a si mesmo? Em suas palavras, as sociedades estudadas pelos primeiros antropólogos são sociedades longínquas com as quais as sociedades vizinhas se relacionavam muito pouco.
Estas sociedades serão, portanto, qualificadas como “simples” e surgirão como um laboratório, primeiramente seriam aquelas que não pertencessem à civilização ocidental, posteriormente percebe-se que tais “sociedades primitivas” teriam um fim próximo, surgindo, assim, um confronto identidade desta ciência.
Para Lévi-Strauss não existe a possibilidade da morte da antropologia porque o que sempre a caracterizou foi uma relação específica com seu objeto; isto é: estudar seus objetos “de fora”. Assim, o que caracterizaria seria um olhar e não um objeto. Além disso, como diz Lévi-Strauss, para prever o desaparecimento desta ciência seria preciso conceber um “estado de civilização em que, em qualquer parte da terra, o gênero de vida, a educação, as profissões, as idades, crenças, simpatias e antipatias de todos os homens fossem, até o mais profundo de sua consciência, perfeitamente transparentes aos outros homens” (LÉVI-STRAUSS, 1962, p. 26).
Os olhares sobre a própria disciplina e seu fazer, são recorrentes entre os pesquisadores, como em DaMatta (1978) de onde se extrai o que é “ser antropólogo”. Em DaMatta tem-se a marca do estranhamento. Segundo ele ser antropólogo significa aprender a realizar uma dupla tarefa, a de transformar o exótico em familiar e a de transformar o familiar em exótico.
Sendo para isso necessária a presença dos dois termos – uma vivência dos dois domínios por um mesmo sujeito disposto a situá-los e apanhá-los. Refletindo novamente os momentos críticos da história da disciplina, visto ser a transformação do exótico em familiar o movimento original da antropologia. Neste sentido, os antropólogos seriam os tradutores de mundos, nas palavras de DaMatta (1978):
“a antropologia é aquela onde necessariamente se estabelece um ponto entre dois universos de significação, e tal ponte ou mediação é realizada com um mínimo de aparato institucional ou de instrumentos de mediação. Vale dizer, de modo artesanal e paciente, dependo essencialmente de humores, temperamentos, fobias e todos os outros ingredientes das pessoas e do contato humano” (DAMATTA, 1978, p. 27)

Pode-se citar Gilberto Velho (1978) ao observar que, para onde quer que viajemos, estaremos sempre levando conosco estruturas culturais hierárquicas que modelam nosso olhar e nos servem de guia para classificar, mapear e ordenar o mundo, as coisas e as pessoas. Para ele, estamos sempre nos afastando ou nos aproximando através do que pensamos ser familiar ou exótico.Assim, nós só podemos observar o mundo através de nossas “lentes culturais”.
Ademais disso, de acordo com Peirano (1995), a antropologia abriga estilos bastante diferenciados, que influem no resultado obtido o contexto da pesquisa, orientação teórica, momento sócio-histórico, personalidade do pesquisador e ethos dos pesquisados, tendo, ao mesmo tempo, uma das tradições mais sólidas entre as ciências sociais.
Aqui, ousamos apresentar o caráter epistemológico da análise de Peirano (1995) em “o antropólogo e suas linhagens” a respeito destes estilos diferenciados, na busca de um cuidado para que não se promova uma situação de inúmeras antropologias.
De sua reflexão, a autora conclui que a disciplina estaria resguardada de crises visto que suas motivações estariam a salvo do desaparecimento, sendo uma ciência notadamente preocupada com a peculiaridade do objeto de pesquisa, submeteria conceitos preestabelecidos à experiência de contextos diferentes e particulares, procurando dissecar e examinar para analisar a adequação de tais conceitos.
A crítica no trabalho antropológico a que nos referimos tem também exemplo na perspectiva do papel do autor no texto etnográfico.  Teresa Pires do Rio Caldeira (1988) aborda aspectos da mudança nas condições de produção do trabalho antropológico e novas alternativas levadas pelas críticas às regras que regem as relações entre autor, objeto e leitor, que permitiriam a produção, legibilidade e legitimidade do texto etnográfico (pág. 133).
Até momento da publicação de seu texto, salvo algumas exceções, como a antropologia feita por grupos minoritários como o caso da feminista e as antropologias nativas que sempre estudaram sua própria sociedade, eram poucas as tentativas de levar a crítica cultural a efeito.
Assim, demonstra-se o exercício epistemológico de Caldeira, ao fazer reflexões a respeito do modelo clássico de etnografia estabelecido a partir dos anos 20, em que os grupos eram geralmente povos coloniais, em que o antropólogo escrevia para os membros de sua própria sociedade sem se questionar sobre as relações de poder estabelecidas.
A autora aponta a mudança do macrocontexto em que se dava o trabalho antropológico e os fatores que levaram a ela. Assim, o antropólogo deixaria de defrontar-se com membros de culturas isoladas ou semi-isoladas e passa para os cidadãos de nações do Terceiro Mundo ou membros de sua própria sociedade (Caldeira, 1988).
Conforme a autora, o modernismo em antropologia caracterizou-se pelo estabelecimento de uma distância entre as culturas e pela criação de um contexto para se falar sobre a diversidade. Um dos objetivos básicos da antropologia seria tomar o distante e estranho e torná-lo familiar sem aproximá-lo, buscava revelar o cotidiano no bizarro, desmanchar o exótico revelando seu sentido próprio.
Ao insistir que as culturas fossem entendidas em seus próprios termos, a antropologia, diz a autora, criticou o etnocentrismo e o racismo, sendo assim, poderia realizar uma crítica cultural à sociedade ocidental (Caldeira, 1988)
A autora localiza o papel da “meta-antropologia” na derrocada do colonialismo e como expressão de um estilo de crítica pós-moderna em antropologia. Pondera que foi James Clifford uma das figuras centrais no processo de desconstrução da etnografia clássica, tentando demonstrar os dispositivos através dos quais os antropólogos criaram em seus textos uma ‘autoridade etnográfica’.
Expõe ainda que o relativismo cultural e a denúncia do etnocentrismo, também são marcas do modernismo em antropologia, ao traçar a diferença entre as culturas, ao enfatizar a unidade de cada uma delas e a impossibilidade de que uma fosse avaliada em função dos valores e da visão da outra, as diferenças ficaram tão marcadas que dificultou que uma cultura falasse a outras em termos críticos. Ressalva, entretanto, seus primeiros anos, por exemplo, com a denúncia ao racismo. (Caldeira, 1988)
O pós-modernismo em antropologia, de acordo com a autora, caracteriza-se mais por um trabalho de desconstrução de textos etnográficos clássicos e de proposição de alternativas textuais do que pela produção de etnografias que levassem em conta as novas regras não só em relação ao texto, mas também à crítica cultural.
Os antropólogos pós-modernos, diz a autora, dão valor de objetividade à diversidade, pressupõem sua irredutibilidade e negam a possibilidade de reconstruir uma totalidade que dê sentido a todas as posições diversas. Pode o antropólogo assim, evocar, sugerir, provocar, ironizar, mas não descrever culturas. O que se configuraria como nítida oposição à etnografia clássica por não se esconder para afirmar sua autoridade científica, mas se mostrar para dispersar sua autoridade.
Caldeira lembra não serem todos os críticos pós-modernos que reiteram esse modelo, ela cita a crítica de Rabinow de que a dimensão política e de crítica cultural deveria estar presente na antropologia. (Caldeira, 1988)
A autora tem como objetivo situar as críticas elaboradas pelos antropólogos pós-modernos americanos, que por sua parte tentam: a) revelar os dispositivos pelos quais os etnógrafos construíram seus textos, onde descreviam culturas como totalidades autônomas e integradas; b) apontar a produção do distanciamento entre as culturas e criticar a ausência de uma perspectiva crítica em relação às culturas estudadas, à relação dessas culturas com as dos antropólogos, e à cultura dos antropólogos em si.
Como alternativas, segundo a autora, propostas pelos pós-modernos estariam: a) os textos; b) a crítica cultural. Em sua maioria, as alternativas não se referem a discussões sobre o contexto político em que a antropologia ocorre, sendo basicamente textuais, referindo-se a como encontrar maneiras de escrever sobre culturas incorporando no texto um pensamento e uma consciência sobre seus procedimentos. Revelando o interesse apenas no estilo e deixando de lado as tomadas críticas de posição.
A reflexão sobre esses procedimentos e sua incorporação nos textos, como bem lembra a autora, também se vê na antropologia interpretativa, porém, esta deixa de romper com a separação radical entre observador e observado e suas culturas (Caldeira, 1988).
Assim a antropologia interpretativa seria entendida sobre outra cultura como entidade autônoma e separada do antropólogo e uma atividade que re-elabora a experiência e recria a totalidade. Os pós-modernos, ao contrário, tentarão romper com isso.
Para efetuar este rompimento, dever-se-ia escrever etnografias que tivessem como modelo a polifonia, onde o autor se diluísse no texto, minimizando a sua presença, deixando de se encontrar numa situação privilegiada em relação à produção de conhecimentos sobre o outro, em que é igualado ao nativo e tem que falar sobre o que os iguala, ou seja, suas experiências cotidianas.
Logo, antropólogos contemporâneos em relação à produção do texto, 1988, segundo a autora, se preocupavam com transformações, com história, com sincretismo e encontros, com práxis e comunicação e com relações de poder, notando que os americanos estudavam predominantemente culturas estranhas à sua.
Esta mudança teórica revela que discussões epistemológicas foram modificadas, e as dúvidas não seriam apenas sobre como representar ex-povos coloniais, mas sobre representação em si.
Caldeira (1988) aponta três obras que, em sua opinião, são experiências textuais onde a posição do antropólogo como autor do texto é foco de questionamento e redefinição, e onde enfrentam de diferentes maneiras problemas políticos e de crítica cultural. Seriam elas First-Time (1983) de Richard Price, Waiting (1985) de Vincent Crapazano, e Shamanism, Colonialism and the Wild Man (1987) de Michael Taussing.
Taussing nega a possibilidade de o antropólogo dizer o que os outros são e os demais seriam uma voz entre várias no texto, com autorias dispersas. Revela que a expressão dos autores, seus objetivos e resultados são bastante diferentes, porém extrai dos três a possibilidade de se representar sempre aspectos parciais de uma cultura e não uma retratação holística e, segundo a autora, nega a possibilidade de dizer o que os outros são, o autor faz crítica cultural, impondo ao autor a responsabilidade de assumir uma posição política explícita, devendo deixar claro como o tema que está tratando fala à sua própria sociedade, ele quer provocar reações, seu texto pretende provocar distanciamento e estranhamento em relação ao seu objeto e, através disso, criar uma visão crítica de procedimentos “naturais” em sociedades ocidentais. (Caldeira, 1988).
Taussing não tenta explicar, mas construir seu texto de uma maneira que não classifica, não estabelece causalidades, não indica razões, mas apenas sugere possíveis conexões de sentido. Ele associa os mais variados temas de uma maneira não-realista e seu texto é basicamente literário. (Caldeira 1988)
Ressalta seu interesse na retenção da intenção de Taussing de construir contra-discursos, pois seria essa intenção que nos falaria sobre o papel do autor na antropologia da época da feitura do texto (ano de 1988).
Ela aponta o fato de que Price tem a capacidade de adotar a forma e estilo do texto de acordo com o que pede o objeto, que ele tenta transformar em sua obra First-Time, o antropólogo/autor em apenas um entre vários produtores de interpretações e um que a produz em determinadas condições de força sobre as quais ele tenta estar consciente e interferir (Caldeira, 1988).
Nesta obra Price estava em uma situação onde o antropólogo se transforma com toda clareza em um agente de interferência na sociedade estudada onde qualquer coisa que fizesse representaria uma opção ética e política, segundo ela, as dúvidas e decisões do autor se encontram na obra (Caldeira, 1988).
Já sobre a crítica da reprodução pós-moderna de Crapazano, de falas que não permitiriam criar uma perspectiva na qual a relação com o antropólogo com as mesmas fosse clara, que seria para ele ‘objetividade’, um distanciamento, Caldeira afirma que não precisaria existir um distanciamento crítico, já que a partir disso se poderia elaborar uma interpretação.
O afastamento da cena etnográfica não seria, para Caldeira, o papel do autor que uma antropologia crítica deveria procurar. Para ela, a crítica pós-moderna à antropologia terá sentido se, ao questionar a autoridade monológica do antropólogo, se transforme sua presença em uma presença crítica que não se furte a considerar a sua relatividade, nem como a entrar no jogo de forças em que a pesquisa antropológica se faz para fornecer uma interpretação que se define em termos críticos e políticos (Caldeira, 1988).
Discorre sobre a crença de Geertz de que é possível conhecer e interpretar outras culturas e da necessidade de o autor assumir maior responsabilidade por seu texto e pelas interpretações que ele produz, bem como sua visão da antropologia no mundo moderno. Para ele, no futuro a antropologia poderia ser usada para permitir conversas de linhas societais, permitindo discursos e conversas entre pessoas que se diferenciam entre si pelos mais diferentes critérios, mas que compartilham o mesmo mundo e estão sempre e necessariamente em contato.
Para a autora, Geertz soube reconhecer as responsabilidades do autor contemporâneo de textos antropológicos, mas foi incapaz de enquadrar a antropologia numa perspectiva mais política, bem como de pensá-la do ponto de vista da produção de uma crítica cultural (Caldeira, 1988).
Assim, Caldeira sente a deficiência de uma tomada crítica de posição, o que é claro quando diz que não consegue imaginar o antropólogo crítico se referindo a um paradigma textual apenas, seja ele dialógico, monológico, monofônico, polifônico ou qualquer outro, do mesmo modo que não considera possível pensar em um modelo único de relação com os objetos ou em um único modelo de crítica (Caldeira, 1988).
Logo, o estilo do texto se definiria em função do objeto e do tipo de análise que se pretende. Para Caldeira, talvez seja da consciência dessa flexibilidade mais do que de receitas textuais que os antropólogos precisem. Para ela, faz parte do novo papel do antropólogo/autor a busca do estilo que melhor se adapte aos seus objetivos, a definição crítica desses objetivos, e a responsabilidade pelas suas escolhas. (Caldeira, 1988).
Outra autora que pode ser invocada na crítica do trabalho antropológico é Mariza Peirano (1995), ao tratar dos “antropólogos e suas linhagens”, a autora reconhece serem as maiores realizações da Antropologia as questões formuladas em contraponto às respostas.
A antropologia seria para a autora, como já dito, talvez a mais artesanal e mais ambiciosa entre as ciências sociais, estando notadamente preocupada com a peculiaridade do objeto de pesquisa, submeteria conceitos preestabelecidos à experiência de contexto diferentes e particulares, procurando dissecar e examinar para analisar a adequação de tais conceitos. Para alguns sendo campo de teste das generalizações mais frequentemente etnocêntricas utilizando o método etnográfico, para outros esgotando o primitivo, teria avançado para áreas de interesse de outras ciências.
A disciplina teria, antes de tudo, o objetivo de procurar uma visão alternativa mais genuína da universalidade dos conceitos sociológicos, propondo a formulação de uma idéia de humanidade construída pelas diferenças (Peirano 1995).
Voltando um pouco o olhar para a leitura obrigatória de Malinowski, Mariza Peirano a atribui à permanência das teorias que não seriam do pesquisador, mas do resultado do encontro deste com o objeto. O estranhamento passaria a ser não só a via pela qual se dá o confronto entre diferentes teorias, mas também o meio de auto-reflexão (Peirano 1995).
Quanto a Malinowski, segundo a avaliação de Siqueira (2007), pode-se admitir foi que gerou uma autoconsciência de ser um renovador da disciplina ao criar a figura do etnógrafo profissional. A segunda resposta tem relação com a estratégia de reprodução da disciplina. Embora tenha sido ele quem sistematizou a idéia do trabalho de campo, sua antropologia era uma entre outras possíveis nas primeiras duas décadas do Século XX.
Sendo o observador parte integrante do processo de conhecimento e descoberta, alega a Peirano (1995) que na antropologia não existiriam fatos sociais mas ‘fatos etnográficos’ havendo seleção no que foi observado e interpretação no relato. Diz ainda que mesmo que a pesquisa etnográfica se realize com o objetivo de desafiar conceitos estabelecidos, e embora a pesquisa de campo caracterize a disciplina, ela não seria a meta final do antropólogo e que embora o conjunturalismo etnográfico vise uma reflexão teórica, as monografias são o que as disciplinas guardam de mais precioso, consistindo o progresso da antropologia na substituição pouco a pouco de determinados conceitos por outros mais adequados porque mais abrangentes, mais universais.
A epistemologia encontra guarida no texto de Peirano (1995) ao observar a importância dos conceitos da disciplina e da tradição etnográfica, para ela, os conceitos nativos requerem, necessariamente, o distanciamento psíquico e a ligação do antropólogo aos conceitos da disciplina e à tradição teórico-etnográfica acumulada.
Nesta senda, avalia o processo de formação do antropólogo, desde a leitura dos clássicos e, que, além disso, o antropólogo em formação entra em contato com uma árvore genealógica de autores sobre a qual construirá uma linhagem específica de modo que o processo de transmissão favoreça a prática, prática esta que não deixa os autores propriamente ultrapassados, e que sua releitura revela riquezas antes desconhecidas.
Sobre o fazer pesquisa de campo, a autora avalia que, não há como propriamente ensinar a fazer pesquisa de campo, já que, como dito, a experiência de campo depende da biografia do pesquisador, suas opções teóricas, etc. Porém, a autora aduz que não seja inviável alertar o estudante para problemas corriqueiros com os quais ele provavelmente se defrontará, diante de experiências passadas por outros pesquisadores. Alega ainda que a antropologia se traduziria por uma determinada maneira de vincular teoria-e-pesquisa, de modo a favorecer novas descobertas e que não haveria lugar para crise a respeito da ciência antropológica, seu objeto e método enquanto houver pesquisa nova e reflexão teórica correspondente e vice-versa. (Peirano, 1995)
Em relação ao que a autora chama de “modismo atual”, aponta que o questionamento da pesquisa de campo como prática dá margem à perda da tensão essencial entre teoria e pesquisa, instalando-se assim a crise no grupo pós-moderno.
No “diagnóstico” feito pela autora sobre a pesquisa de campo e a tradição teórica da antropologia, conclui que ambas se relacionam no dia-a-dia dos especialistas, a pesquisa de campo concebida como o encontro com o ‘outro’ constitui o conhecimento disciplinar, a teoria antropológica é desenvolvida com vinculação ao conhecimento etnográfico, sendo a teoria e história da antropologia inseparáveis (Peirano,1995).
E que, quando a antropologia, no momento de crise com o desaparecimento das sociedades tradicionais começa se interessar por estudar as próprias sociedades dos antropólogos, dá inicio ao que se conhece como antropologia em “casa”, nas sociedades complexas, ou antropologia “urbana”, denominações segundo o contexto de produção acadêmica e dos interesses dos próprios antropólogos; ou também “antropologia nativa”, atendendo à origem do antropólogo que fazia a pesquisa. Mais uma vez, percebe-se a existência da discussão da possibilidade de alcançar a “objetividade” e o distanciamento que sempre caracterizaram a produção antropológica. (Peirano, 1995)
Vê-se a capacidade da autora de pensar, além do fazer antropológico e suas origens, no pensar sobre a crise na disciplina, exercício que demanda reflexão epistemológica para pensá-la e pensar os modos como são formados novos pesquisadores.

Conclusão
Em sede de conclusão, podem-se citar como exemplo da crítica na atualidade, as considerações de Denise Machado Cardoso (2011), ao situar a importância da análise da relação entre pesquisador e sujeito da pesquisa, financiamentos e implicações sociopolíticas dos estudos antropológicos. Exercício epistemológico que elucida questões relevantes tanto para o trabalho de pesquisa em si quanto do ponto de vista ético, lembrando inclusive, que a ética diz respeito também às fronteiras da antropologia com outras disciplinas como as ciências da saúde e as jurídicas, dentre outras. Assim:
A antropologia é uma ciência que se caracteriza pela busca da compreensão da alteridade desde os seus primórdios. Sua origem se remete ao final do século XIX e início do século XX, e refere-se, em grande parte, ao interesse do chamado mundo civilizado da Europa Ocidental pelo mundo “primitivo” não europeu. Embora a produção do conhecimento datada desse período tenha recebido, e ainda receba, ressalvas, é importante analisar a relação entre pesquisador e sujeito da pesquisa, o financiamento das investigações, e as implicações sociopolíticas dos estudos antropológicos, e como estas questões são pertinentes, sob o ponto de vista ético, nas discussões que tais questões suscitam nas atuais pesquisas. (CARDOSO, 2011, pág.02)

E finaliza a autora afirmando que, em relação ao trabalho do antropólogo ou de quem se utiliza da antropologia em suas pesquisas, “a reflexão permite que se atente para todas as etapas, procedimentos e resultados da pesquisa, bem como os impactos que esta pode acarretar aqueles envolvidos como sujeitos da pesquisa.” (CARDOSO, 2011, pág. 06)
Assim, vale retomar a noção de epistemologia interna que se dá enquanto análise crítica dos procedimentos de conhecimentos que utiliza, estabelecendo uma teoria dos fundamentos de uma ciência. E da derivada, dada a saber como este conhecimento é possível e determinar a parte que cabe ao sujeito e a que cabe ao objeto.
E lembrando ainda que a filosofia como atividade do pensamento, que postula, procura as causas primeiras, explica, critica e exerce reflexão dirigida a si mesma e ao mundo, no contexto do da reflexão sobre a produção do conhecimento tem como um de seus objetos a manifestação do conhecimento científico.
Tem-se na epistemologia grande instrumento de questionamento, mesmo que ocorra com outras denominações como “crítica” e “reflexão”, que nada mais são que a expressão do pensamento epistemológico.
Os exercícios de reflexão demonstrados nos trabalhos dos autores citados mostram que é recorrente na disciplina antropológica a existência de tomadas de consciência sobre a própria disciplina, seus métodos, pesquisadores, teóricos e sujeitos.
Chegando a ser feita de forma recorrente, traçada através das críticas ou preocupações com os rumos da disciplina, desde sua afirmação como ciência, o local das teorias fundamentais e das experiências metodológicas, até o cuidado com os resultados políticos e éticos que se contornam a partir da produção científica e da geração de novos pesquisadores. Talvez o fato de as ciências sociais terem sido institucionalizadas no Brasil sob o manto da filosofia, conforme afirma Peirano (1995), contribua, para este recorrente pensar sobre si.
Fora da simples busca pela afirmação como ciência, a epistemologia tem terreno fértil na antropologia garantido por toda a sua existência enquanto fonte de conhecimento. E com um número de questões a serem suscitadas equivalentes ao número de olhares que puderem se voltar para o trabalho antropológico e suas consequências, até aqui incontável.

Referências

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*Mestre em Antropologia e Sociologia (PPGCS/UFMA), Doutora em Ciências Sociais (Sociologia PPGSOC/UFPA), raissa@musarra.com.br. R. Visc. de Inhomerim, 570 - Mooca, São Paulo - SP, 03120-001.


Publicado: 18/12/2019

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