Ranice Höehr Pedrazzi Pozzer*
Italo Fernando Minello**
UFSM, Brasil
E-mail: ranice@gmail.com
RESUMO
O presente trabalho trata-se de um ensaio teórico sobre construção de sentido nas manifestações da cultura organizacional, sob a perspectiva da fragmentação. Essa perspectiva de análise foi escolhida por considerar as conexões temporárias que se estabelecem na construção do sentido e no quanto os sentidos da cultura sob essa perspectiva são fugazes, momentâneos. O que justifica a realização de um trabalho como este é a consideração das novas estruturas organizacionais que, influenciadas pela tecnologia nos meios de comunicação, são menos limitadas pela estrutura física da empresa e mais voláteis, baseadas em redes de contatos, que são acessadas para demandas específicas. É a realidade das organizações virtuais, por exemplo. O que se percebe é que os sentidos das manifestações da cultura organizacional se tornam ambíguos. Essa ambiguidade não pode ser desconsiderada, pois não é apenas um entendimento da cultura de uma organização, mas uma manifestação da cultura organizacional.
Palavras-chave: cultura organizacional; produção de sentido; perspectiva da fragmentação; dimensões de análise da cultura organizacional; comportamento organizacional.
TRANSITIONAL SENSES IN THE ANALYSIS OF ORGANIZATIONAL CULTURE
This work presents a study about the construction of meaning in the manifestations of the organizational culture, from a perspective of fragmentation. The perspective of analysis was chosen by considering the temporary connections that are established in the construction of meaning and how the senses of culture from this perspective are fleeting, momentary. What justifies the accomplishment of this work is the consideration about new organizational structures that, influenced by technology in the media, are less constrained by the physical structure of the company and more volatile, in networks of contacts, which are accessed by specific demands. It is a reality in virtual organizations, for example. What is perceived is the sense of the manifestations of organizational culture becoming ambiguous. This ambiguity cannot be disregarded because it is not only an understanding of the culture of an organization but it can also be a manifestation of organizational culture.
Keywords: organizational culture; sensemaking; fragmentation perspective; dimensions of analysis of organizational culture; organizational behavior.
Los sentidos de transición em el análisis de la cultura organizativa
Resumen
El presente trabajo se trata de un ensayo teórico sobre la construcción de sentido en las manifestaciones de la cultura organizacional, desde la perspectiva de la fragmentación. Esta perspectiva de análisis fue escogida por considerar las conexiones temporales que se establecen en la construcción del sentido y en cuanto los sentidos de la cultura bajo esa perspectiva son fugaces, momentáneos. Lo que justifica la realización de un trabajo como éste es la consideración de las nuevas estructuras organizativas que, influenciadas por la tecnología en los medios de comunicación, son menos limitadas por la estructura física de la empresa y más volátiles, basadas en redes de contactos, que se accede a demandas específicas. Es la realidad de las organizaciones virtuales, por ejemplo. Lo que se percibe es que los sentidos de las manifestaciones de la cultura organizacional se vuelven ambiguos. Esta ambigüedad no puede ser desconsiderada, pues no es sólo un entendimiento de la cultura de una organización pero una manifestación de la cultura.
Palabras clave: cultura organizacional; producción de sentido; perspectiva de la fragmentación; dimensiones de análisis de la cultura organizacional.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Ranice Höehr Pedrazzi Pozzer y Italo Fernando Minello (2019): “Sentidos efêmeros na análise da cultura organizacional”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (diciembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/12/analise-cultura-organizacional.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1912analise-cultura-organizacional
1. INTRODUÇÃO
Monólitos, ilhas, redes. Essas são algumas das metáforas utilizadas por autores como Martin e Frost (2001), por exemplo, para explicar as diferentes perspectivas da cultura organizacional. A primeira perspectiva, da integração, considera tudo o que está consolidado, visível e que faz sentido para o grupo como um todo, emergindo como um monólito. A segunda perspectiva, da diferenciação, refere-se aos grupos menores, sendo os aspectos culturais considerados ilhas de significado em um mar de ambiguidade. Mas, para o presente ensaio, interessa especialmente a perspectiva da fragmentação, cuja metáfora mais apropriada atualmente é a da rede, sendo essa rede composta de conexões temporárias que se estabelecem entre indivíduos de uma mesma organização. A ambiguidade seria o foco da análise da cultura organizacional. E aqui surge o questionamento que norteou a elaboração deste trabalho: como a produção de sentido, enquanto construção narrativa - e por isso, individual em um primeiro momento -, fragmenta a cultura ao tentar consolidá-la?
A resposta não se refere simplesmente aos processos interpretativos mais fundamentais e simplificados. Envolve o entendimento de como as coleções de referenciais individuais influenciam os processos de significação e como esses processos são influenciados por novos significados que podem ser atribuídos pela interação entre indivíduos, ou mesmo, na realidade atual, pelas interações mediadas pela tecnologia, nas quais estão envolvidos não apenas os atores de uma mesma organização, mas outros indivíduos que aqueles atores conseguem acessar remotamente por aparatos tecnológicos. O que acontece então, é uma consolidação breve, errática e fugidia, que culmina com algo que faz sentido para um grupo, enquanto esse grupo existir ou concordar, e não há como saber o que virá primeiro, o fim ou a dissonância. É disso que trata este ensaio, dos sentidos e suas fragmentações na análise da cultura organizacional.
Mas por que um tema como esse pode interessar? Pois bem, sabe-se que uma organização cuja cultura seja consolidada, compartilhada por todos, é mais competitiva, ainda que não exista um conjunto de elementos culturais que garantam melhores resultados a uma organização. Collins e Porras, entretanto, em sua obra Feitas para Durar, de 1995, até evidenciam, a partir da análise de organizações consideradas visionárias, conjuntos de elementos que compõem a cultura daquelas organizações e que seriam os diferenciais para sua sobrevivência. Contudo, o fato é que não existe uma receita infalível, mesmo sob a perspectiva da integração. O que se dirá, então, se for considerada a ausência de consenso como uma forma de entender a cultura de uma organização? Não existe o todo em termos de significado, mas significados que se constroem e se alteram, conforme as interações são delineadas. Nesse sentido, um mesmo fato pode ter diferentes significados para o mesmo indivíduo, conforme as conexões que ele estabelecer e as lentes que os outros indivíduos conectados com ele utilizam para atribuir sentido ao fato analisado.
Com este ensaio, pretende-se, então, discorrer sobre a produção de sentido para formação da cultura organizacional sob a ótica da fragmentação. Para tanto será apresentado uma breve explicação dos conceitos de cultura e das perspectivas de análise da cultura organizacional, relacionando-os com aspectos concernentes à produção de sentido, buscando uma reflexão sobre o sentido construído e as ausências de sentido, bem como os sentidos cambiantes. Para tanto, em alguns momentos, serão utilizados elementos e trechos do conto The Mortal Immortal, de Mary Shelley (1833).
2. DA INTEGRAÇÃO AO FRAGMENTO
Pode existir um mortal imortal?
Deixando de lado o fato de ser literatura, e ainda mais Mary Shelley, que era especialista em transformar o absurdo em prosa perfeita para seus livros e contos (entre eles, Frankenstein), o fato é que pode sim haver um mortal imortal, em uma perspectiva de entendimento que não se desconecta da ambiguidade contida no objeto e no seu meio, mas que precisa dela para se estabelecer. Isso será melhor detalhado mais adiante.
Para explicar essa ótica, que Martin (1992) chama de perspectiva da fragmentação para entendimento de cultura organizacional, é importante explicar as diferentes perspectivas da cultura e a forma como são definidos conceitos de cultura a partir desses diferentes olhares. Não há precisão sobre o conceito de cultura. Segundo Morgan (1996), a palavra cultura derivou da ideia de cultivo como um processo de lavrar e desenvolver a terra levando-a a produzir. Cultura refere-se também a um padrão de desenvolvimento da sociedade, envolvendo ideologia, valores, leis e rituais e também a um grau de refinamento em sistemas de crenças e práticas.
O conceito de cultura sempre esteve ligado às diferenças sociais manifestadas em diferentes níveis de desenvolvimento por diversas sociedades, embora atualmente o conceito de cultura esteja mais ligado, segundo Morgan (1996), a grupos de pessoas com diferentes estilos de vida. Trazendo esses conceitos para as organizações, Morgan (1996) afirma que a vida diária de uma organização é “cheia de crenças peculiares, rotinas e rituais que a identificam como uma vida cultural distinta quando comparada com aquela em sociedades tradicionais” (Morgan, 1996, p.116). Para o autor, a rotina baseia-se em realizações que requerem habilidades, demandando conhecimentos específicos e prática cultural.
Esses conceitos, elencados juntamente com outros 164 conceitos de cultura, estão bem alinhados com a perspectiva da integração para análise da cultura organizacional. Para Martin (1992), a perspectiva da integração pode ser caracterizada pela menção e interpretação de manifestações culturais através de reforço de temas, pelo compartilhamento afirmado pelos membros da organização e pela descrição da cultura como um reino onde tudo é claro e não há espaço para ambiguidades. Para Martin e Frost (2001), a perspectiva da integração considera que ambiguidades e anomalias no que se refere à cultura organizacional, “são explicadas como desvios individuais” (Martin e Frost, 2001, p.224). Os autores asseveram que na perspectiva da integração, as manifestações culturais são vistas como consistentes entre si, e muitas vezes a cultura é confundida com manifestações culturais isoladas.
Segundo Martin (1992), três metáforas capturam elementos da perspectiva da integração: holograma, clareira na selva e monólito. O holograma é um fragmento encapsulado da essência do todo. A clareira de refere a uma área de significado esculpida em uma vasta massa de falta de sentido. E o monólito é uma visão da cultura emergindo sob a perspectiva da integração como algo sólido. A cultura organizacional nessa perspectiva pode ser exemplificada pela definição de Davis (1984), Siehl e Martin (1984) e Schein (1985), trazidos por Martin (1992, p.54):
O padrão de crenças compartilhadas e valores que dão aos membros de uma instituição significado, e os provêm com as regras para o comportamento em sua organização (Davis, 1984, p.1, apud Martin, 1992).
Cultura organizacional pode ser pensada como a cola que mantém uma organização unida através de compartilhamento de padrões de significado. A cultura foca nos valores, crenças e expectativas que membros vêm a compartilhar (Siehl e Martin, 1984, p. 227, apud Martin, 1992).
As suposições básicas são a essência – o que cultura realmente é – e tratando valores e comportamentos como manifestações observadas da essência da cultura (Schein, 1985, p. 14).
Ao mesmo tempo em que houve um grande número de pesquisas sob a perspectiva da integração, um grupo de pesquisadores, pensando em revitalizar a tendência principal da teoria e pesquisa organizacional, publicou alguns trabalhos considerados “marginais” (Martin e Frost, 2001, p.225). No âmbito da pesquisa em cultura organizacional, parte desse grupo se destacou na busca por alternativas à orientação vigente do gerenciamento, gerando um corpo de trabalho com pontos em comum e que ficou conhecido como a perspectiva da diferenciação. Esses pontos em comum, segundo Martin e Frost (2001), surgiram de conjuntos diversos de tradições intelectuais e logo se mostraram frágeis.
A perspectiva da diferenciação, embora tenha alguns aspectos que vão ao encontro da perspectiva da integração – valores, significados, simbolismos -, aborda alguns aspectos não considerados pelos autores que defendem o ponto de vista da integração. Os autores da diferenciação consideram a cultura não apenas em termos ideais, mas materiais, englobando, em seus estudos, qualquer prática organizacional formalizada e que possa ser registrada.
Martin e Frost (2001) afirmam que alguns estudos sob a perspectiva da diferenciação são muito complexos, trazendo inconsistências e ambivalências, o que chamam de “rica complexidade”, destacando inclusive a ousadia de alguns estudos. Os autores também ressaltam que a perspectiva da diferenciação “mostrou que as subculturas dentro de uma organização podem refletir os agrupamentos de uma sociedade maior” (Martin e Frost, 2001, p. 226). O ponto de união de todos os estudos da diferenciação é a busca pelo reconhecimento de inconsistências entre as subculturas.
A perspectiva da diferenciação usa, de acordo com Martin (1992), pensamentos opostos para definir diferenças subculturais. A diferenciação não nega a existência de similaridades, consistências e unidades que são o foco dos estudos de integração. Entretanto, pesquisadores da diferenciação dão um passo adiante, segundo Martin, explorando os pontos de vista das subculturas que visualizam as coisas diferentemente. Martin (1992) define três tipos de estudos sobre cultura dentro da perspectiva da diferenciação.
O primeiro, e mais simples, é o retrato de uma subcultura isolada. Nesses estudos, as demais subculturas são apenas mencionadas. É similar às pesquisas de integração exceto que as inconsistências são mencionadas e o consenso é subcultural, ao invés de envolver toda a organização.
O segundo tipo de estudo de diferenciação é marcado pela descrição de todos os aspectos da cultura como plenos de inconsistências. Há uma visão dominante da cultura da empresa, que é articulada pelos gestores e por alguns subordinados. Esse tipo de estudo é oposto ao estudo da perspectiva da integração que vê a cultura como única.
O terceiro tipo de estudo de diferenciação é focado em, pelo menos, duas subculturas bem desenvolvidas. Essas subculturas são claramente definidas e, frequentemente, conflitantes.
Uma característica que define a perspectiva da diferenciação é a orientação à ambiguidade. Diferente da inconsistência, que se refere a uma diferença opositiva, dicotômica, a ambiguidade surge quando complexidade, paradoxo ou mesmo falta de clareza permitem múltiplas interpretações da mesma situação. A metáfora da diferenciação é uma ilha de claridade em um mar de ambiguidade, o que reflete a base desse tipo de estudo, que considera as ambiguidades e que delas emergem informações que permitem a identificação da cultura organizacional.
A perspectiva da diferenciação define cultura como aquilo que é compartilhado, mas, ao contrário da perspectiva da integração, onde o compartilhamento é analisado na organização como um todo, a perspectiva da diferenciação considera as subculturas, individualmente.
Os conceitos de cultura que ilustram a perspectiva da diferenciação são os seguintes:
A utilidade da cultura como um conceito heurístico pode se perder quando o nível organizacional de análise é empregado. As organizações de trabalho são de fato marcada por práticas sociais que podem ser ditas como culturais, mas essas práticas podem não alcançar toda a organização (Van Maanen e Barley, 1985, p.32, apud Martin, 1992).
Em uma situação particular, o conjunto de significados que evolui dá a um grupo seu próprio ethos, ou características distintas, que são expressas em padrões de crenças (ideologia), atividades (normas e rituais), linguagem e outras formas simbólicas através das quais os membros da organização criam e mantém sua visão de mundo e imagem deles mesmo no mundo. O desenvolvimento de uma visão de mundo com seu entendimento compartilhado da identidade do grupo, propósito e direção são produtos de uma história única, interações pessoais e circunstâncias do ambiente do grupo (Smircich, 1983, p.56).
A terceira perspectiva da cultura organizacional, objeto do presente ensaio, é a da fragmentação que, segundo Martin (1992), caracteriza-se por manter o foco na ambiguidade como essência da cultura. Nessa perspectiva, a clareza das consistências da integração e das inconsistências da diferenciação são raras. A fragmentação considera as relações entre manifestações da cultura complexas, trazendo em si elementos de contradição e confusão – o mortal imortal -. Para Martin e Frost (2001), o consenso seria transitório e específico a determinadas questões e a efemeridade é uma das características mais significativas. Martin (1992) afirma que a fragmentação, ao invés de procurar consenso dentro dos limites de uma cultura ou subcultura, busca uma multiplicidade de interpretações que raramente, ou mesmo nunca, irão compor um consenso estável. Os estudos da fragmentação veem os limites das subculturas como permeáveis e flutuantes. As manifestações da cultura são vistas como multifacetadas, os significados não são facilmente identificados, sendo necessárias múltiplas interpretações. Para Martin, (1992), quando uma cultura é analisada sob o ponto de vista da fragmentação, as perspectivas da integração e diferenciação parecem aprofundar a confusão e desentendimento, deturpando a complexidade da vida em um mundo de ambiguidade. Essas ambiguidades são descritas por Martin (1992) como falta de clareza, alta complexidade ou paradoxo.
A metáfora para a fragmentação é a rede, pois, segundo Martin (1992), as questões são vistas como conexões temporárias entre indivíduos. Outra metáfora é a da selva que, para Martin, descreve o desconhecido. Ainda que Martin (1992, p.152) saliente que essa perspectiva se abstenha de definir cultura como um todo, algumas definições de cultura são elencadas:
Membros não acreditam em fronteiras claras, não podem identificar soluções compartilhadas e não reconciliam crenças contraditórias e identidades múltiplas. Ainda assim, esses membros afirmam pertencer a uma cultura. Eles compartilham orientações comuns e propósitos abrangentes frente a problemas similares e tem experiências comparáveis. Entretanto, esses propósitos e orientações compartilhadas acomodam diferentes crenças e tecnologias, que esses problemas implicam diferentes soluções e essas experiências têm múltiplos significados. Então, para algumas culturas, a destituição de ambiguidade em favor do estritamente claro e compartilhado exclui alguns dos aspectos centrais da experiência cultural dos membros e ignora a essência dessa comunidade cultural (Meyerson, 1991, p. 131-132, apud Martin, 1992).
...cultura não implica, necessariamente, em uniformidade de valores. De fato, pequenas diferenças de valores podem ser demonstradas por pessoas na mesma cultura. Em tal caso, o que mantém juntos os membros de uma organização? Eu sugiro que se olhe para a existência de um mesmo quadro de referência ou reconhecimento compartilhado de questões relevantes. Pode não haver concordância se as questões são relevantes ou positivamente ou negativamente validadas. Eles podem ordenar a si mesmos diferentemente com respeito às questões, mas se positivamente ou negativamente, eles todos serão orientados a isso (Feldman, 1991, p.154, apud Martin, 1992).
Embora a cultura das organizações tenha elementos que podem ser associados a qualquer uma das três perspectivas, as abordagens envolvendo as três perspectivas, o que Martin e Frost (2001) chamam de iniciativa metateórica, já estão sendo consideradas como forma de transcender teorias menos abrangentes e aumentar o nível de abstração.
Sendo estabelecida no nível de abstração, a cultura organizacional é definida por Hofstede (2003) de duas formas. A primeira seria um refinamento da mente e também o resultado desse refinamento. A segunda, que o autor adota, é definida como programação mental, relacionada a processos humanos mais fundamentais. Indo ao encontro de Hofstede, Srour (2005) afirma que a cultura organizacional é moldada a partir de representações imaginárias e dos símbolos, “no plano da transformação dos signos em mensagens cognitivas” (Srour, 2005, p.204-205).
Voltando ao conto de Shelley (1833), o início da história, que descreve um rapaz apaixonado que aceita trabalhar com um alquimista temido por todos para reunir recursos e se casar com a sua amada, pode ser relacionado com a integração. Winzy, o aprendiz de alquimista sabe o que quer, sabe como conseguir, entende o que tem que fazer e está seguro disso. Conhece suas funções e seu lugar. Para ele, tudo está claro e entendido até um certo ponto, pois o que exatamente o alquimista faz é um mistério. Então, até esse ponto, que separa o conhecimento do alquimista das rotinas da casa que eram conhecidas pelo aprendiz, há a clareira de entendimento, com sentidos produzidos em meio a uma selva de elementos sem significados – poções e medicamentos elaborados pelo alquimista e até mesmo seu comportamento - porque não compreendidos.
Ao se voltar o olhar ao relacionamento de Winzy e Bertha, a moça que foi a razão para que ele aceitasse o trabalho como aprendiz, tem-se o que seria um segundo grupo estabelecido, no qual participam o aprendiz e sua amada e alguns outros que ela usa para manter-se superior ao aprendiz. A forma de ação de Winzy muda quando está com Bertha. Outras sensações, positivas pelos sentimentos que nutre pela jovem e negativas pela insegurança que ela lhe provoca propositadamente tomam lugar, embora muito diferentes do medo que Winzy tem do alquimista. As incertezas que cercam o relacionamento são como o oceano ao redor da ilha da perspectiva da diferenciação.
Agora, se passar a olhar para Bertha como alguém que só se conhece pelas descrições de Winzy – ela é uma personagem sem falas e suas ações são descritas pelo aprendiz, que é o narrador do conto – tem-se uma análise fragmentada, construída pelo personagem-narrador e não há como saber o que é construção e o que é a realidade dele. Geertz (1989, p.19), ao descrever os dados que servem como base para análises antropológicas de cultura explica bem esse ponto. Os dados expostos conduzem à construção a partir das construções de outros, obscurecendo a maior parte do que se precisa saber para compreender um acontecimento específico. Não se conhece Bertha, mas a construção de Winzy, Bertha, com todas as distorções que a lente dele pode ocasionar ao objeto. Ela é um fragmento, que significa adoração para o aprendiz e significa garantia de subserviência do aprendiz para seu mestre.
Na perspectiva da fragmentação, ao se analisar a organização como um todo – no caso, o laboratório/casa do alquimista Cornelius no qual trabalha Winzy – pode-se identificar, logo após a consideração do aprendiz de que jamais poderia ficar com Bertha, uma mudança incremental, típica das culturas fragmentadas, que se estabelece no momento em que Winzy toma uma poção que ele acreditava ser um poderoso tônico capaz de aplacar qualquer sentimento que pudesse ter por outra pessoa. Não há construção, nem elaboração. Apenas a constatação imediata de que algo deve ser feito e a primeira solução encontrada é adotada, sem muitas reflexões.
No texto de Mary Shelley, o caráter fragmentário do personagem-narrador fica evidenciado por aspectos específicos relativos à identidade. O aprendiz muda ao longo do texto, construindo-se na medida que a narrativa avança e infelicidade de sua condição é descrita. Ele começa como uma pessoa humilde e honesta; vive um sofrimento tão genuíno a ponto de tomar medidas extremas; considera a consequência dos seus atos – a imortalidade adquirida com a poção que tomou enganado – uma garantia de tranquilidade eterna e, por fim, espera a morte, pois ele tem algo de mortal, que será visto mais adiante. Se esses fatos fossem vistos pela perspectiva da integração, não interessariam. A fragmentação olha para o que a integração considera desvios individuais e, por isso mesmo, não relevantes.
3. ENTRE AMBIGUIDADES, SIGNIFICANTES E SIGNIFICADOS
A partir das definições de cultura e perspectivas de análise apresentadas no texto anterior, pode-se inferir que a objetivação da cultura se dá por meio de seus elementos formadores, o que resulta em um certo direcionamento dos membros da organização. Esses elementos são assimilados pela linguagem verbal e não-verbal e são compostos por histórias, sagas, heróis, mitos, ritos, símbolos. (Schein, 1985;2009; Fleury, Shinyachiki & Stevanapo, 1997; Freitas, 1997; Enriquez, 1997; Martin e Frost, 2001).
Ora, se a assimilação se dá pela linguagem verbal e não-verbal, significa dizer que a assimilação da cultura de uma organização passa por codificações e decodificações de mensagens e consequente atribuição de significados. Sendo a linguagem um conjunto de códigos, é premente que o receptor conheça os códigos que o emissor está usando para que haja compreensão da mensagem – decodificação, ainda que o conhecimento não elimine interpretações e mal-entendidos. No cotidiano das organizações, nem todas as mensagens são escritas, claras, precisas. Ao se considerar ainda a linguagem não-verbal, que compreende inclusive movimentos corporais, a complexidade assume um novo patamar. E há ainda o uso de referenciais próprios pelos receptores, o que torna cada fato uma obra aberta – expressão utilizada por Umberto Eco (1971) -, cujas interpretações podem ser infinitas e totalmente distintas.
A última orientação dada pelo alquimista ao aprendiz ilustra como diferenças de referenciais geram implicações na construção do significado. O alquimista estava há dias cuidando da destilação de uma determinada poção e precisava muito descansar. Ele pede ao aprendiz que cuide do fogo e dos frascos, tomando o cuidado de chamar o mestre caso o líquido de um vidrinho em especial trocasse de cor. Tratava-se do elixir da longa vida, que permitiria, a quem o bebesse, viver pela eternidade. Temendo que seu assistente tomasse o líquido e, sabendo que o jovem estava apaixonado, informou-o que o líquido do frasco curaria qualquer paixão, imaginando que, com isso, o aprendiz manteria distância da poção. Só que a crença do alquimista estava baseada em uma realidade passada. E, por conta disso, o aprendiz, que não sabia o que havia no frasco, mas que acreditava ser uma poção que o curaria da dor que estava sentindo, tomou metade do conteúdo.
Com diferentes referenciais, os processos para atribuição de significado dos dois homens são completamente distintos. O mestre usou informações antigas para tentar proteger seu trabalho. O jovem, que não sabia exatamente o que estava sendo feito, usa as informações novas que recebe para tomar a decisão de beber. E surpreende-se, pelo menos até aquele momento, com o resultado: a imortalidade. O mestre morreu. O objeto era o mesmo para ambos: a poção. Para um significava continuar vivendo. Para outro, curar-se da dor, sendo a imortalidade, a surpresa.
Se houvesse uma terceira pessoa na casa do alquimista, um outro significado seria atribuído – sem informação nenhuma, a poção poderia ser qualquer coisa e essa terceira pessoa poderia convencer o aprendiz a não beber para não ser envenenado, por exemplo. Se a história fosse contada a outras pessoas, outros significados poderiam ser atribuídos. Alguns, mais céticos, poderiam acreditar se tratar de qualquer tipo de medicação, com finalidade bem mais banal do que conferir imortalidade ou curar paixões. Daí se infere que a formação da cultura se dá por uma sucessão de processos de codificação-decodificação. As informações, histórias, relatos são repetidos e construídos pelos emissores/receptores.
Em uma organização, essas informações remetem a valores que servem para reforçar comportamentos, mesmo que, muitas vezes, o real já esteja diluído em interpretações e inferências. Esse processo de ouvir e repetir e inferir, ganha novos significados com o passar do tempo, de acordo com os enfrentamentos a que estão sujeitos os membros da organização. Especialmente no que tange às histórias da organização, há um efeito quase reparador. Os indivíduos se constroem e se reforçam mutuamente em suas crenças individuais e coletivas a partir dos valores reforçados pelas narrativas. Essas narrativas servem como mapas cognitivos, que orientam os novos membros em suas ações, direcionando o raciocínio e os processos de tomada de decisão. Permitem compartilhamento de objetivos e princípios, moldando o comportamento individual. Dessa forma, as narrativas convertem-se em poderoso instrumento de controle afetivo e intelectual, sedimentando a ação dos membros da organização e legitimando a organização enquanto instituição.
A produção de sentido acontece, segundo Wiley (1968), apud Wegner e Misoczky, (2010), em quatro níveis: intrasubjetividade, intersubjetividade, subjetividade genérica e extrasubjetividade.
A intrasubjetividade trata-se de uma produção de sentido individual, abstrata, resultando de um esforço individual de interpretação de determinado fato ou realidade por um indivíduo. “Sou eu, então, imortal?” é o pensamento de Winzy ao tentar compreender a sua nova realidade. O conto ficaria focado na intrasubjetividade se não fossem os questionamentos lançados aos leitores pelo narrador-personagem, numa tentativa de intersubjetividade. Os questionamentos acabam por conduzir a reflexões sobre mortalidade-imortalidade, sem, no entanto, levar à conclusão alguma.
Uma das questões mais significativas surge quando o personagem, em seu aniversário de 323 anos, percebe que começou a envelhecer. Os sinais são mínimos, mas o enchem de esperança pois ele é um imortal que quer morrer e se perceber envelhecendo o aproxima, de alguma forma, da morte. Conforme já foi relatado anteriormente, o aprendiz bebeu apenas metade da poção que lhe daria vida eterna. A questão chave que Winzy lança é: qual seria o número de anos de meia eternidade? Não é uma pergunta cuja resposta Winzy consiga encontrar e essa incerteza é explicada por Weick (1995) como uma imprecisão de estimar consequências futuras de ações presentes (Weick, 1995, p.95). Se, no início, ele estava satisfeito com sua condição, imaginando a imortalidade como tranquilidade eterna, compreende-a como uma maldição quando ele sobrevive a todas as pessoas que lhe importavam. O aprendiz é um homem com um poder excepcional e total incapacidade de usá-lo, focado apenas no “peso do tempo sem fim e na tediosa passagem das horas que ainda se seguem” (Shelley, 1833). Martin e Frost (2001), podem explicar essa característica de Winzy, a partir da implicação da ação dentro da perspectiva da fragmentação, que define o indivíduo como impotente ou como apto a contribuir intelectualmente para minar o discurso hegemônico.
Então, voltando à questão sobre o tempo de duração de meia eternidade, se os leitores souberem quantos anos formam uma eternidade, haverá uma construção de sentido que reduzirá a incerteza do mortal imortal. Mas como se trata da perspectiva da fragmentação, a pergunta só importa porque continua sem resposta. Essa ausência de resposta, essa incerteza, é o que torna significante a busca pela resposta, estabelecendo um curioso ciclo. Se a pergunta for respondida, ela não tem razão de ser. Ela só existe e é significante porque suscita uma busca que não se concretizará. A ausência de sentido é maior e mais significante do que o sentido.
Voltando ao universo organizacional, o nível intersubjetivo de construção de sentido de Wiley se dá a partir da interação social - o eu transformado em nós explicado por Wegner e Misoczky (2010) -. Nesse sentido, os autores definem organização como uma rede de significados intersubjetivos compartilhados, sustentados pelo desenvolvimento e uso de uma linguagem comum e de interação social diária. Essa definição de organização a partir da construção do sentido alinha-se com as definições de cultura organizacional, especialmente as de Hofstede (2003), já apresentadas no início deste trabalho, e a de Johann (2004), que considera a cultura como uma personalidade coletiva elaborada e reelaborada ao longo do tempo pela interação continuada das pessoas que atuam numa mesma organização, estando o self organizacional no ponto central do núcleo da cultura. Mas isso seria dentro da perspectiva da integração e, em alguns casos, ao se analisarem subgrupos, estaria em consonância com a perspectiva da diferenciação. Quando se trata da perspectiva da fragmentação, a programação mental coletiva de Hofstede seria restrita a um indivíduo ou grupo, dentro de uma situação específica. Voltando à metáfora da rede, o entendimento compartilhado de algo estaria restrito ao ponto de contato dos atores que estão inseridos na rede e que talvez mantenham outros repertórios de significados que só serão considerados nas interações com outros membros da rede. Os significados se estabelecem, então, em fragmentos propriamente ditos.
Acima do nível intersubjetivo, está o da subjetividade genérica, centrado na estrutura social, onde as particularidades humanas são deixadas para trás. É o nível das regras, dos hábitos e rotinas. Nesse nível se consolidam sentidos atribuídos pelo indivíduo e pelas interações do indivíduo com outros, formando os primeiros traços de cultura de uma organização pela produção de significados compartilhados. O nível da cultura seria o da extrasubjetividade, no qual a realidade simbólica é substituída por significados puros. As interações assumem formas e estruturas familiares, sendo essas estruturas organização do significado, impostas às situações que as pessoas enfrentam e não determinadas pela situação em si. Esses dois níveis são consonantes com as perspectivas da integração e da diferenciação.
Diante do exposto, pode-se inferir que a produção de sentido se efetiva na medida em que a organização se constrói e se consolida, especialmente em seus aspectos culturais, sendo, contudo, importante salientar que a cultura não está na organização em si, mas nos esquemas de sentido elaborados pelos membros diante de enfrentamentos impostos pela organização. A construção de sentido que forma a cultura se dá, portanto, através da interação social. A dimensão que esse sentido irá alcançar, que pode ser em fragmentos temporários, erráticos e fugidios; em elementos que diferenciam um grupo; ou em crenças e valores compartilhados e consolidados, definirá a perspectiva da cultura organizacional.
E aqui cabe uma definição de cultura trazida por Geertz (1989) e uma constatação sobre a influência do significado sobre a cultura. Para o autor, a cultura, dentro da análise componencial, é composta de estruturas psicológicas por meio das quais os indivíduos ou grupos de indivíduos guiam seu comportamento. “A cultura de uma sociedade consiste no que quer que seja que alguém tem que saber ou acreditar a fim de agir de uma forma aceita por seus membros” (Geertz, 1989, p.21). Geertz (1989) afirma que “a cultura é pública porque o significado o é” (Geertz, 1989, p.22).
Martin (1992) traz ainda algumas abordagens da cultura organizacional pelo ponto de vista da multiplicidade. Por essa visão, as organizações passam pelas três abordagens em diferentes estágios de desenvolvimento, sendo, por exemplo, o momento de abertura de uma empresa, a fragmentação. O momento seguinte, que caracterizaria um período de integração na cultura, seria quando um consenso é alcançado na organização. A diferenciação emergiria com o crescimento da empresa e a formação de subculturas. A progressão seria uma sequência de fragmentação-integração-diferenciação. A ordem das perspectivas pode se alternar de acordo com as características do desenvolvimento da organização.
É importante salientar que, para Martin (1992), qualquer perspectiva isolada ignora ou distorce aspectos crucialmente importantes da cultura organizacional. Além disso, a análise em diferentes dimensões da cultura organizacional também colabora para a redução de distorções, o que não significa redução de ambiguidades.
4. PRODUÇÃO DE SENTIDO NAS DIFERENTES DIMENSÕES DE ANÁLISE DA CULTURA ORGANIZACIONAL
Enriquez (1997), a partir de conceitos freudianos, apresenta sete níveis da análise das organizações. O primeiro nível é chamado mítico, que rege as sociedades arcaicas. De acordo com Enriquez, um discurso inaugural e a transmissão infinita desse discurso são necessários para que uma sociedade se instaure e se perpetue. Ou seja, um ponto de ancoragem, ligado à origem da comunidade e das coisas. De acordo com o autor, o mito teria por função incitar um processo de comunicação afetiva direcionando comportamentos, provocando identificação com outros membros da comunidade, criando um vínculo social baseado na admiração e no amor. “Isso significa que apenas a necessidade do trabalho em comum e da luta contra a singularidade não poderia chegar à instauração do social” (Enriquez, 1997, p.42).
Trazendo esse conceito para o campo organizacional, um mito (normalmente um fundador com uma história carregada de superações) funcionaria como um elo entre o gestor e o colaborador e, ao mesmo tempo, um norte. Algo que todos gostariam de atingir, como um status que não é apenas social, mas também intelectual. A busca é individual e não do grupo, o que está, em parte, em consonância com a perspectiva da fragmentação - nível intrasubjetivo de Wiley (1968), apud Wegner e Misoczky (2010) – mas que pode ser compartilhado com outros indivíduos, embora não de forma transparente ou explícita. Diferentes indivíduos de uma organização podem ser inspirados pela história do fundador e tudo o que ela representa, embora mantenham focos distintos, elaborados a partir de interpretações carregadas de significados pessoais. O que as organizações não destacam é o desgaste que essa busca individual provoca e as consequências, nem sempre positivas, que podem resultar. Enriquez (1997) destaca que quando um mito surge, o indivíduo desaparece.
Como sociedades arcaicas e sociedades históricas são distintas, Enriquez (1997) considera necessário outro nível de estudo, a segunda instância, social-histórica. As sociedades históricas não são regidas tanto pelos mitos, mas mais pelo que destituiu o mito de sua posição e o lugar deixado vago é preenchido pela ideologia. Assim como o mito, a ideologia tem uma função definida. Enquanto o mito leva a um comportamento, a ideologia mascara uma parte da realidade, ocultando o conflito. O autor ressalta que a ideologia preenche uma função psíquica essencial. Ao se instalar, mobiliza os afetos dos indivíduos, exige paixão, entusiasmo. Está, normalmente, ligada a uma figura, um homem que merece ser um ícone, quase heroico. Sem esse elemento, sem uma busca maior que mobilize todos os indivíduos, não existe ideologia. A ideologia, segundo o autor, faz com que o indivíduo viva na ilusão de um estado não conflitual interior, sentindo-se repleto por algo.
A relação de dependência que os indivíduos desenvolvem com os ícones ideológicos que seguem comportaria algumas vantagens: situa o indivíduo no interior da formação coletiva; dá ao indivíduo a satisfação e ao mesmo tempo o desejo de ser envolvido pela ideologia (ser amado pelo senhor e pelos irmãos, ainda que não seja um amor genuíno, fora do campo onde a ideologia se aplica); substituição da genealogia (ao ser gerado novamente no campo ideológico, o indivíduo passa a se sentir herói também, ainda que em outra proporção); alinha os homens no campo do bem, estabelecendo uma barreira contra as angústias e; fornece uma escora sólida. Para o autor, a ideologia se apresenta como um elemento de estruturação das sociedades históricas.
Cada indivíduo, cada grupo é portador de uma ideologia, já que ele não pode desprezar crenças por mínimas que sejam, sendo essas crenças necessárias tanto para a luta entre os poderes, o modelo de resolução dos conflitos e a saúde psíquica dos indivíduos. (Enriquez, 1997, p. 68)
Para Enriquez (1997), a ideologia tenta se instaurar nas organizações, em alguns casos funcionando como verdadeiras religiões científicas. A ideologia complementaria o mito em dois momentos: quando o mito se mostra enfraquecido ou quando é alvo de crítica.
Convém salientar que organizações não necessariamente possuem a figura do mito, mas ainda assim, desenvolvem uma ideologia forte, consolidada e que é sempre a base para a análise da cultura organizacional. Sendo uma ideologia, o compartilhamento de crenças é uma das características mais importantes, o que coloca essa dimensão na perspectiva da integração, sendo a fragmentação, conforme já foi explicado neste texto, tratada como desvio.
A terceira instância descrita por Enriquez (1997) para análise das organizações, é a institucional, onde os fenômenos de poder estão expressos por leis escritas e normas explícitas e implícitas de conduta. As instituições seriam conjuntos de orientação e regulação social global, que intervêm em escolhas e limites impostos pela sociedade. As instituições teriam função de mascarar os conflitos.
Através dessa máscara e dessa expressão, as instituições aparecem ao mesmo tempo como o lugar da existência e da perenidade de uma sociedade que deseja viver enquanto comunidade e enquanto lugar de opressão e da norma. (Enriquez, 1997, p. 72)
As instituições teriam duas características primordiais: se fundamentariam num saber que tem força de lei e que se apresenta como expressão da verdade e; a lei interiorizaria as regras de vida organizadas. Isso equivale a dizer que o saber das instituições é inquestionável e o questionamento desse conjunto de regras colocaria em xeque a instituição. Essa normatização não é apenas apresentada, mas interiorizada pelos indivíduos, o que vai ao encontro da perspectiva da integração. Por ser uma instância mais concreta, baseada em regras, a fragmentação pode ser percebida pelos indivíduos que questionam o poder e têm condições de suplantá-lo, o que normalmente não acontece, talvez até pelo carácter de fragmento, o que resulta em um certo isolamento do indivíduo pela sua visão diferenciada das dos demais.
Enriquez (1997) explica ainda que as instituições originam-se a partir de uma pessoa. Então, são uma especialização do mito (que era o foco), e da ideologia (que tem seu mito sustentado por um conjunto de preceitos). O que o autor salienta no estudo da instância institucional é a capacidade da instituição defender-se contra a interrogação.
O homem presente nas instituições não pode viver nelas senão na aceitação do sistema das leis e das proibições promulgadas porquanto é graças a eles que o homem adquire uma identidade social que o autoriza a ser reconhecido pelo outro. (Enriquez, 1997, p. 77-78)
A quarta instância é a organizacional, definida por Enriquez (1997) como uma instituição que se prolifera e entra em competição com as demais. Possui uma estruturação sólida permitindo que os indivíduos encontrem seu lugar idealizado. As estruturas, de acordo com Enriquez (1997), têm por objetivo lutar contra as angústias fundamentais, que são definidas como medo do informe, das pulsões, do desconhecido, dos outros, da palavra franca, do pensamento. Ao combater essas angústias, a organização torna-se um lugar de repetição, funcionando de acordo com um modelo determinado e não como um processo vivo.
Em todas as instâncias apresentadas por Enriquez (1997), uma característica chama a atenção: a necessidade de controle por parte dos líderes, de encontrar meios de coibir questionamentos. E esses meios vão se especializando em todas as instâncias. A idolatria ao mito que perde sua força passa a ser sustentada por uma ideologia, mais forte, envolvendo os indivíduos, suprindo lacunas existenciais, definindo objetivos, fazendo-o sentir-se participante de algo maior. O questionamento de qualquer posição ideológica defendida pelo grupo afastaria o indivíduo daquele universo. Em uma fase seguinte, a instituição, que se fundamenta no saber com força de lei, é interiorizada pelos indivíduos e por isso, inquestionável. E, por fim, as organizações que colocam os indivíduos em posições tidas por eles como ideal, onde todos fazem parte de um processo maior, ainda que não entendam totalmente esse processo. Na instância organizacional, o questionamento é temido e as angústias que poderiam levar a esse questionamento são combatidas com estruturas sólidas.
Na análise da cultura de uma organização, além das instâncias definidas por Enriquez, há aspectos que, segundo Schein (2009), devem ser considerados: linguagem comum e categorias conceituais; fronteiras e identidade do grupo; movimentações de carreira laterais, verticais e de inclusão; distribuição de poder e status. Em uma empresa, a linguagem comum é a que está disponível inicialmente e o amadurecimento do grupo resultará em uso de palavras com significados especiais. As suposições do que certas palavras significam se tornam uma das camadas mais profundas do grupo. Schein (2009) afirma que significados especiais a certas palavras e rituais definem quem faz parte do grupo e entender esses rituais, definir os critérios de inclusão é uma das maneiras de começar a analisar a organização.
O verdadeiro processo pelo qual um grupo faz esses julgamentos e atua neles é um processo de formação cultural, que força algum tipo de integração das questões de integração externa e das questões de sobrevivência interna e externa. (Schein, 2009, p. 112)
Sob a perspectiva da fragmentação, causa estranhamento a expressão usada por Schein (2009) para definir a formação da cultura como um processo que força a integração, uma vez que a integração é o que caracteriza a cultura, em uma perspectiva de compartilhamento de crenças e valores, ainda que elementos culturais de subgrupos e significados efêmeros e não compartilhados façam parte da complexidade da cultura organizacional.
Todas as categorias descritas por Schein, juntamente com metas, missão e meios são dimensões para o entendimento da cultura de uma empresa. Mas outras dimensões definidas pelo autor como mais profundas têm grande importância para estudos sobre cultura organizacional. A natureza de como a realidade, a verdade e a informação são definidas é uma dessas dimensões. Os grupos, segundo Schein (2009), desenvolvem suposições sobre a informação que determinam quando percebem que têm informação suficiente para tomar decisões. A definição da realidade e da verdade são construções, um processo de produção de sentido que estabelece uma versão dos fatos, fazendo com que as narrativas acabem sendo ficcionais. O fato é que, para o grupo, aquela narrativa, se compartilhada como verdadeira, terá significado, sendo todas as demais versões, verdadeiras ou não, desconsideradas.
Trompenaars (1994) apresenta três aspectos da estrutura organizacional que são importantes ao determinar a cultura da empresa. O primeiro deles seria a relação global entre os empregados e sua empresa; o segundo seria o sistema vertical ou hierárquico de autoridade, que define superiores e subordinados e; as visões gerais dos empregados sobre o destino, objetivo e metas da empresa e seu papel em relação a eles. O autor usa duas dimensões para distinguir diferentes culturas empresariais: igualdade-hierarquia e orientações em relação às pessoas e tarefas. Essas dimensões permitiriam definir quatro tipos de culturas empresariais: voltada à satisfação; voltada ao projeto; voltada ao poder e; orientada à função.
Até aqui, as dimensões de análise da cultura organizacional parecem ser mais concretas, facilmente identificáveis porque livre de abstrações. A natureza de como a realidade, a verdade e a informação são definidas, ainda permite inferências sob a ótica da produção de sentido em seus três elementos, mas especialmente nos dois primeiros. Todas as dimensões apresentadas até agora estão analisando a organização com a lente da integração, deixando pouco espaço para as demais perspectivas.
Enriquez (1997) define ainda três instâncias para a análise das organizações: a instância grupal, a individual e a pulsional. Na instância grupal, o autor inicia sua explanação abordando as duas formas de interpretação de Mayo, que escreveu sobre os grupos nas organizações a partir das experiências de Hawthorne. A primeira interpretação estaria direcionada aos interesses dos empresários que, ao formarem grupos, estariam buscando uma extinção sutil das lutas sociais. Só que outro autor, Castoriadis, também referenciado por Enriquez (1997), tem outra interpretação: as interações dos grupos, no interior das organizações, têm um importante papel na tomada de consciência dos membros. De posse das interpretações de Mayo e Castoriadis, Enriquez (1997) define a instância grupal como ambígua – e aqui sentidos produzidos estão no nível da intersubjetividade e da subjetividade genérica -. As próprias organizações terão uma atitude ambivalente diante dos grupos que as compõem. Ao mesmo tempo em que os grupos buscam melhoria de desempenho, eles podem conquistar uma identidade sólida e iniciar o questionamento dos ideais da organização. E a organização, ao mesmo tempo em que incentiva a autonomia dos grupos, teme que essa autonomia se torne uma competência que fará com que o grupo se lance no mercado como concorrência.
Quanto à instância individual, Enriquez (1997) busca diversos outros autores para definir comportamentos individuais e como esses comportamentos influenciam as relações organizacionais e de poder. E separa os indivíduos em dois grupos principais, subdivididos em outros grupos menores. Um grupo seria o dos heterômanos, formado por loucos pelo poder e pelos hipernormais, indivíduos massificados, conformados, submissos. O outro, pelos autônomos, preteridos pelas organizações. Ao se analisar os indivíduos, pode-se considerar a produção do sentido nos níveis intra e intersubjetivos.
E por fim a instância pulsional, que atravessaria todas as demais instâncias.
O termo pulsão conota um processo dinâmico consistindo num impulso que faz o organismo tender para um objetivo. (...) Trata-se para Freud de um conceito-limite entre psiquismo e somatismo. (Enriquez, 1997, p.123)
A pulsão, de acordo com Enriquez (1997), seria subdividida em pulsão de vida, definida como algo que favorece a realização de projetos comuns, e a pulsão de morte, definida por Freud como uma compulsão à repetição, à redução das tensões ao estado zero. Essas duas pulsões foram analisadas pelo autor dentro do modo de produção das organizações e também nos níveis individuais e coletivos. O que o autor concluiu é que a pulsão de morte, por manter as organizações em funcionamento – mesmo que deficiente – tem seus aspectos positivos. E explica ainda que a pulsão de vida pode ter efeitos semelhantes à pulsão da morte quando sua força de ligação é o que o autor definiu como coagulante.
Ainda sobre análise de organizações, Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre (1987), ao explicitarem os conceitos de organizações hipermodernas e como essas organizações lidam com a autonomia, explicam que existem contradições internas da estrutura e que essas contradições são reconhecidas e identificadas.
A eficácia das estruturas de poder reside nesta ação de ajustamento dos diferentes elementos presentes, dos relacionamentos deste, mas também da separação constante. (Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, 1987, p.54)
Para Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre (1987), a organização do real realiza uma codificação de fluxos. Trata-se de uma operação de mediação das contradições funcionando como operadora de síntese. Públicos internos e externos são elementos heterogêneos que obedecem a uma lógica própria, não podendo ser ligados diretamente, segundo os autores, pois isto significaria ignorar sua especificidade e correr o risco de danificar a mecânica.
As modalidades de interpretação das regras, constituem os fundamentos de uma política da prática relativamente coerente e precisa, ainda que todas estas disposições permaneçam em grande parte implícitas e conservem a forma de orientações ou recomendações. Elas flutuam em função da conjuntura, mas se organizam ao redor de princípios estáveis, permitindo toda uma gama de condutas que são na verdade, variações do modelo central. (Pagès, Bonetti, Gaulejac & Descendre, 1987, p.54)
A complexidade da produção de sentidos compartilhados nas organizações é clara. Trata-se de processos sucessivos de significação e re-significação, conforme atores e seus referenciais, informações e narrativas são inseridos no contexto. Para Weick (1995), sempre há espaço para ambiguidade e não há sentido que seja totalmente compartilhado.
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Ao longo deste trabalho foram analisados os processos de produção de sentido na formação de cultura das organizações. Para tanto, foi utilizado o conto de Mary Shelley, The Mortal Immortal, como base para alguns momentos de análise. A escolha do conto se justifica exclusivamente pela ambiguidade da condição do narrador-personagem e da forma como essa ambiguidade o constrói. Ele é um mortal imortal, ainda que uma realidade como essa não seja possível no mundo real, seu exagero ajuda a compreender a ambiguidade na produção de sentidos e permite analogias no universo organizacional. Mais do que isso, a condição ambígua e todos os outros momentos de ambiguidade, de ausência de sentido experimentados pelo aprendiz de alquimista, acabam por envolver o leitor, que produz sentido enquanto receptor de um conto, mas que não tem como solucionar o problema do aprendiz exatamente porque a solução terminaria com a história, destituindo-a de qualquer interesse que pudesse ter. Se o leitor soubesse quanto tempo dura uma eternidade, poderia simplesmente apontar que o personagem teria um certo número de anos de vida garantidamente. E fecharia o livro sem qualquer prazer pela leitura. Mas não dá para fechar o livro.
O que o texto de Shelley faz é envolver o leitor no nível intersubjetivo de produção de significado, como se o leitor estivesse conversando com o personagem e construindo significados junto com ele. Muitas vezes, a construção feita pelo personagem-narrador passa a ser também a do leitor – quem é Bertha? -. É como se a ambiguidade se perenizasse e se tornasse a condição predominante a ausência de um sentido concreto que pudesse ser atribuído e que, se fosse, conduziria o desfecho da história para um campo de certezas, o que terminaria com história em si. Ou seja, a ambiguidade é o que constrói a história e a mantém.
Da mesma forma, muitos autores consideram que a ambiguidade presente nas organizações é parte importante da construção da cultura organizacional. Olhar para a organização apenas pela lente dos significados compartilhados seria como olhar apenas para o que está no raio de alcance dessa lente, ignorando toda a gama de informações e sentidos construídos ou de ambiguidades que também são significantes. Analisar as organizações apenas por um prisma seria limitante do entendimento do que realmente acontece na organização.
Há uma tendência, quando se fala em análise da cultura organizacional, de se considerar o que está consolidado como objeto. Os autores mais utilizados pelas consultorias focam nas manifestações de significados compartilhados, embora, conforme Weick (1995), não exista significado que seja totalmente compartilhado. Por outro lado, alguns autores já estão considerando em suas análises os aspectos fragmentários da cultura, especialmente aqueles que estão na instância individual.
Então, a análise dos aspectos fragmentados da cultura, aqueles que estão longe de serem compartilhados pelo grande grupo e que estão carregados de ambiguidade devem estar no foco das análises. Embora os sentidos produzidos nos fragmentos sejam temporários, restritos a pequenos grupos ou mesmo a indivíduos, e, por isso mesmo efêmeros, eles carregam importantes elementos de significação ligados a um contexto maior, no qual estão inseridos e são parte significativa.
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*Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Administração da UFSM. Professora Adjunta do Bacharelado em Administração da Antonio Meneghetti Faculdade. E-mail: ranice@gmail.com