Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


AS METAMORFOSES DO GOVERNO REPRESENTATIVO E O ÓDIO À DEMOCRACIA

Autores e infomación del artículo

Rafael Lazzarotto Simioni*

Érick de Freitas Mendes**

Faculdade de Direito do Sul de Minas (PPGD-FDSM), Brasil

E-mail: erickfmendes@gmail.com


RESUMO

A presente pesquisa aborda a possibilidade da existência de uma crise do modelo democrático representativo capaz de justificar a legitimação de discursos contrários a existência desses modelos. Ao longo do texto foram abordadas questões relativas aos modelos representativos e democráticos, estruturados historicamente por meio de instrumentos políticos, como sendo um desdobramento das relações de dominação. Ademais, verificou-se que a crise demanda uma nova forma de representação democrática que diminua os espaços entre representantes e representados, como uma espécie de democracia representativa participativa. Para a presente pesquisa foi utilizado o método indutivo-dedutivo.

ABSTRACT

The present research approaches the possibility of the existence of a crisis of the representative democratic model capable of justifying the legitimation of discourses contrary to the existence of these models. Throughout the text, issues related to representative and democratic models, historically structured through political instruments, were addressed as an unfolding of relations of domination. In addition, it was verified that the crisis demands a new form of democratic representation that diminishes the spaces between representatives and represented as a kind of participatory representative democracy. For the present research the inductive-dialectic method was used.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Rafael Lazzarotto Simioni y Érick de Freitas Mendes (2019): “As metamorfoses do governo representativo e o ódio à democracia”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (noviembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/11/metamorfoses-governo.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1911metamorfoses-governo

INTRODUÇÃO

A presente pesquisa abordou certas questões referentes ao governo representativo e aos modelos democráticos, e a ideia de que esses dois modelos estão em crise. Em virtude de fatores diversos, dentre os quais se destaca a globalização e o capitalismo, institutos como a democracia a e representação popular vêm sendo utilizados como instrumentos oportunistas, que recebem influências de grandes corporações e potências mundiais cujos interesses e aspirações não são facilmente identificáveis. O conjunto de processos, políticas, leis, regulamentos e instituições internacionais que ocorrem, influenciam sobremaneira o que se entende por democracia e representação.
Em um primeiro momento, buscou-se identificar no discurso de Bernard Manin, o desenvolvimento dos governos representativos, sobretudo no que diz respeito ao último modelo por ele mencionado, a democracia de partido. Ademais, buscou-se evidenciar as ideias do autor acerca de uma suposta crise da representatividade.
Em outro momento, buscou-se identificar o que Jacques Rancière pretende dizer quando fala em ódio à democracia. Em seguida, buscou-se relacionar seu pensamento com o de Bernard Manin, que entende existir uma crise tão somente de um modelo representativo que exige uma nova forma de representação, mas não de exclusão da representatividade.
Como perspectivas teóricas, Jacques Rancière e Bernard Manin serão os marcos que se pretende explorar e desenvolver ao longo do trabalho. Para a presente pesquisa, será utilizado o método indutivo-dialético pelo qual se tentará compreender as implicações teóricas acerca da aplicação dos conceitos abordados, dentro de uma perspectiva global, de modo a proporcionar um redimensioidnto da perspectiva democrática.
Tendo em vista a presença do método dialético, serão analisadas as possíveis oposições da temática abordada, desde que dentro dos horizontes do Constitucionalismo Contemporâneo e a partir de uma compreensão hermenêutica que reconheça a existência da dignidade da pessoa humana.
A fim de que essa pesquisa se torne viável no plano teórico, serão utilizadas fontes bibliográficas que não se limitam as indicações realizadas nesse projeto, bem como a métodos que melhor se adéquem à temática proposta.

1 AS METAMORFOSES DO GOVERNO REPRESENTATIVO

Os governos representativos podem ser identificados a partir de três grandes estruturas ou três tipos de governo representativo: o parlamentarismo, a democracia de partido e a democracia do público. Tais modalidades não são opostas nem excludentes, elas podem coexistir ou até mesmo se fundir umas nas outras, assim como uma pode se sobrepor a outra. A partir do século XVIII, algumas práticas e instituições foram recorrentes no exercício da representação, ganhando status de princípios, mas que deixaram de serem usados1 .
De acordo com Bernard Manin 2, partir do século XVIII, o que se entende por governo representativo passou por diversas modificações, dentre as quais se destaca a presença dos partidos organizados, que, segundo o autor, a partir da segunda metade do século XIX passaram a ser tidos como um requisito da democracia representativa. Com o surgimento desses partidos de massa, os programas políticos foram impulsionados e se tornaram um instrumento de competição eleitoral. Eles transformaram a relação de representação ao aproximar os representantes dos representados. Os candidatos passaram a ser escolhidos por sua organização partidária e a ela permaneciam vinculados após eleitos.
Segundo Manin, até então, o paradigma de governo representativo era o parlamentarismo, mas ele foi superado pelos partidos de massa. A representação, que era típica do parlamentarismo foi substituída pelos partidos e suas plataformas políticas. Com isso, entendeu-se que a democracia havia evoluído, pois, aparentemente, esse modelo de governo representativo aproximava-se da idéia de um autogoverno, no qual o povo governa a si mesmo.
Mas antes que isso ocorresse, já havia uma forte identificação do eleitor com um partido político. Porém, essa situação não mais se sustenta. A estratégia eleitoral não mais se baseia nas propostas do partido político, mas nas imagens que são construídas em relação à personalidade de seus líderes. “Os políticos chegam ao poder em virtude de suas aptidões e de sua experiência no uso dos meios de comunicação em massa” 3e não por semelhanças para com seus eleitores.
Essa situação aumenta ainda mais o espaço existente entre representantes e representados, criando o que o autor chama de abismo entre o governo e a sociedade. Essa fissura nos ideias representativos se torna mais evidente na democracia de público, que é o atual estágio que se identifica.

  1. A democracia do público

Nesse modelo, os candidatos e os partidos revelam a individualidade dos políticos e não mais as plataformas políticas. Os problemas que são enfrentados pelos políticos são menos previsíveis e as circunstâncias nas quais o governo se desenvolve exigem cada vez mais discricionariedade do poder. Todavia, esse poder discricionário ainda possui freios, pois o governo representativo sempre trás consigo a perspectiva de destituir seus representantes ao final do mandato.
Além de ser influenciado pela personalidade dos candidatos, os eleitores têm seu comportamento alterado de acordo com sua percepção do que está sendo discutido. Essa situação representa um afastamento do processo de formação de preferências característico da democracia de partido. Para Manin4 , o que predomina é uma dimensão reativa do voto. Nesse sentido:

Rigorosamente falando, em todas as formas de governo representativo o voto constitui, em parte, uma reação do eleitorado aos termos que lhe são oferecidos. Mas, quando esses termos espelham uma realidade social, independentemente da ação dos políticos, tem-se a impressão que o eleitorado é a fonte dos termos aos quais, na verdade, ele apenas responde com seu voto. O caráter reativo dovoto é obscurecido por sua dimensão expressiva. Quando, inversamente, os termos da escolha decorrem principalmente de ações relativamente independentes dos políticos, o voto ainda é uma expressão do eleitorado, mas sua dimensão reativa se torna mais importante e mais visível. Isso explica por que o eleitorado se apresenta, antes de tudo, como um público que reage aos termos propostos no palco da política. Por essa razão, denominamos essa forma de governo representativo de "democracia do público” 5

Na política as preferências dos eleitores não são exógenas, se firmam a medida que os debates públicos vão sendo feitos. Portanto, assim como a preferência dos eleitores, a demanda política também não é exógena, pois as preferências não são preexistem à ação dos políticos. Em termos políticos não existe propriamente uma demanda, pois os indivíduos não possuem volições identificáveis e independentes das propostas dos políticos.

Essas volições existem, mas somente quando se relacionam com assuntos de importância imediata para as pessoas è das quais elas têm conhecimento direto, "as coisas que lhes dizem respeito diretamente, sua família, sua cidade ou seu bairro, sua classe, sua paróquia, seu sindicato ou qualquer outro grupo do qual participem ativamente. Dentro desse "campo limitado", a experiência direta da realidade permite a formação de preferências bem definidas e independentes. Quando, ao contrário, "nos afastamos das preocupações privadas de ordem familiar ou profissional para penetrar no domínio dos assuntos nacionais e internacionais, que não se ligam direta e inequivocamente àquelas preocupações particulares", o senso de realidade enfraquece. 6

Nesse modelo político, os representantes políticos são personagens que tomam a iniciativa de propor um princípio de divisão no interior do eleitorado. Eles buscam identificar essas clivagens e trazê-las ao palco. Mas é o público que, afinal, dá o veredicto.  Manin identifica que, durante as últimas décadas, os estudos eleitorais revelam uma crescente instabilidade. Com isso, há um número de eleitores, que são denominados pela expressão “eleitores flutuantes” e que não depositam seu voto a partir de uma identificação partidária estável. Veja-se:

Uma das principais características desse tipo de governo é a possibilidade de se conquistar o apoio de uma maioria a uma determinada orientação política falando diretamente ao eleitorado. O debate de temas específicos não fica mais restrito aos muros do Parlamento (como no parlamentarismo), nem às comissões consultivas entre partidos (como na democracia de partido); o debate se processa no meio do próprio povo. Em conseqüência, o formato de governo representativo que hoje está nascendo se caracteriza pela presença de um novo protagonista, o eleitor flutuante, e pela existência de um novo fórum, os meios de comunicação de massa. 7

1.2 A crise dos modelos representativos

Os sistemas representativos, comumente estabelecidos por regimes, democráticos, são compostos por maiorias e minorias. A maioria governa e a minoria é governada. Isso pode conduzir a uma ideia equivocada de que as minorias não têm direitos. No âmbito da democracia e do sistema representativo não é correto pensar que apenas os grupos que detenham maiores condições e possibilidades devam ter suas vontades e necessidades atendidas em detrimento de uma minoria.

Essa ideia de que a democracia se configura como uma tirania da maioria deve ser rejeitada. “[...] sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos” 8.

Embora existam mecanismos nacionais e internacionais que garantem princípios como igualdade, liberdade e solidariedade, com determinações que reforçam a ideia de que as pessoas precisam ser tratadas de forma igual, como a Declaração Universal de Direitos Humanos e a Constituição Federal de 1988, por exemplo, é um engano presumir que por haver previsão de proteção ao menos em uma perspectiva universal, haverá igualdade na prática apenas com a alegação da existência de um modelo democrático.
O aspecto formal da democracia relaciona-se com as condições de legitimidade formal, garantidas pela observância dos princípios democráticos bem como pela positivação jurídica e pela efetiva aplicação de regras e procedimentos de caráter objetivo. Por exemplo, para o desenvolvimento do poder estatal são necessários mandatos políticos democraticamente eletivos, ou que os atos praticados sejam legitimados por meio de instrumentos de democracia participativa.
Por sua vez, em seu aspecto substancial, a democracia reforça as condições de validade asseguradas pelo respeito aos direitos fundamentais, inclusive contra a vontade de uma maioria dominante. Ela exige que os governos constituídos sob seus horizontes reconheçam a importância dos direitos fundamentais e tenham como objetivo a busca pela sua concretização além de legitimar a busca por um ideal de justiça social. Em sua dimensão substancial, as democracias devem combater quaisquer formas de opressão negativa. O que, em uma primeira análise, significa dizer que ela deve proteger os direitos fundamentais.
Essas ideias acerca da democracia levanta questioidntos quando se fala em crise de um modelo democrático representativo. Segundo Manin, essa construção se deve ao fato de que o governo democrático vem se afastando da fórmula do governo do povo pelo povo. A sociedade não se identifica mais com essa forma de representação absoluta. A própia ideia de se vincular uma forma de governo de cada um por si à democracia é inexeqüível, conforme se verifica:

A ideia fundamental da democracia é a determinação normativa de um tipo de convívio de um povo pelo mesmo povo. Já que não se pode ter o autogoverno na prática quase inexequível, pretende-se ter ao menos a auto codificação das prescrições vigentes com base na livre competição entre opiniões e interesses, com alternativas manuseáveis e possibilidades eficazes de secioidnto político. 9

Entretanto, para ele, a representação nunca foi uma espécie de autogoverno do povo. O governo representativo não é entendido como um tipo particular de democracia, mas como um sistema político original baseado em princípios distintos daqueles que organizam a democracia. Além disso, no momento em que os partidos de massa e as plataformas políticas passaram a desempenhar um papel essencial na representação, se consolidou a crença de que o governo representativo caminhava em direção à democracia. Em elação a essas ideias:

Um exame mais minucioso da democracia de partido revela, porém, que os princípios elaborados no final do século XVIII mantiveram sua força após a emergência dos partidos de massa; apenas foram postos em prática de uma nova maneira em virtude da mudança das circunstâncias externas. Quando se reconhece a existência de uma diferença fundamental entre governo representativo e autogoverno do povo, o fenômeno atual deixa de ser visto como sinalizador de uma crise de representação e passa a ser interpretado como um deslocamento e um rearranjo da mesma combinação de elementos que sempre esteve presente desde o final do século XVIII.  10

Para Manin, a crise não é necessariamente da representação, mas dessa forma de governo representativo. A ideia ganha força com a falta de identificação entre representantes e representados e as escolhas públicas que são feitas. Trata-se, talvez, da necessidade de outra forma de governo representativo. Embora conceba a ideia de que a democracia se dissocie do governo representativo, é possível entender que as ideias do autor em relação aos motivos que podem levar as pessoas a pensarem que existe uma crise no modelo representativo podem ser identificados, de forma mais detida nos motivos pelos quais a o ódio à democracia ganha seguidores.

2 ÓDIO À DEMOCRACIA

Jácques Rancière 11 nos questiona se a democracia pode ser entendida como o reino dos desejos ilimitados dos indivíduos da sociedade de massa moderna. Este questioidnto suscita a ideia de que há certo dissabor em relação ao que se entende por democracia. Segundo o autor, embora esse sentimento, doravante denominado ódio, não seja novidade, as formas de sua crítica evoluíram.
Rancière aborda os possíveis motivos pelos quais a democracia tornou-se temerária. O conceito de democracia liga-se a ideia do Estado do bem estar social, precisamos de condições para nos desenvolvermos enquanto indivíduos e precisamos que a sociedade também nos dê essas condições. Para Pelayjo12 , O Estado do bem estar social (Welfare State) representou uma nova modalidade estatal surgida nos países neocapitalistas e que deriva das democracias populares ou de estruturas estatais socialistas. Esse modelo apresenta-se como oposição ao Estado autoritário e ou comunista. Esse modelo de Estado desenvolve-se em ambientes democráticos, muito embora a democracia política formal possa ser tida como instrumento de dominação de classes.
Rancière acredita que Karl Marx identificou um padrão de pensamento: “a lei e as instituições da democracia formal são as aparências, que são os instrumentos pelos quais a burguesia sorrateiramente exerce o poder” 13 .  Para o autor, romper com essas aparências é o meio pela qual se conseguirá trilhar um caminho para uma real democracia, na qual a liberdade e a igualdade não são apenas instituições políticas ou jurídicas, “mas estariam presentes na realidade material e da experiência sensível” 14 .
De acordo com a obra de Rancière, a democracia já foi considerada como o governo do povo por ele mesmo. Desse modo, ela não poderia ser trazida de fora por forças armadas. Para o autor, a democracia prevalece se for possível considerá-la a partir de um ponto de vista realista, separando-a de seus benefícios práticos da utopia do governo do povo por ele mesmo. Nesse sentido:

A democracia, por não ser o idílio do governo do povo por ele mesmo, por ser a desordem das paixões ávidas de satisfação, pode e até deve ser trazida de fora pelas armas de uma superpotência, entendendo-se por superpotência não simplesmente um Estado que dispõe de uma força militar desproporcional, mas, de modo mais geral, do poder de controlar a desordem democrática. 15

Em dado momento, Rancière nos fala que a fissura do governo democrático é causada pela intensidade da própria vida democrática. Uma das polaridades do exercício democrático coaduna com o princípio anárquico que reconhece o poder o poder do povo pelo povo - o que possibilita uma maior participação popular na vida pública; em outro extremo, ela possibilita uma forma de vida social orientada às satisfações pessoais.
Para o autor, ambas as situações seriam negativas, pois uma democracia saudável precisa assumir uma “[...] forma de governo e de vida social capaz de controlar o duplo excesso de atividade coletiva ou de retratação individual inerente à vida pública” 16 . Nesse sentido, a democracia enquanto mantenedora de possibilidades políticas e sociais exacerbadas é campo fértil para realizações pessoais e não coletivas. E esse excesso significa a ruína do governo democrático, e, portanto, deve ser por ele reprimido.
O autor nos diz que é possível identificar que a origem da legitimidade dos governantes é do próprio ser humano ou relacionada à alguma divindade. Informa-nos, que na Grécia antiga, eventualmente empregava-se o uso de um princípio que autoriza o sorteio como forma de legitimação. Tal situação rompia com a lógica vigente, pois criava a possibilidade de uma aleatoriedade que tornava possível que a responsabilidade de legislar e de governar pudesse ser realizada por qualquer cidadão da polis.
Nesse momento, ele nos questiona sobre os princípios que compõem o modelo democrático representativo. Segundo ele, trata-se de uma criação que não se relaciona com à democracia de períodos mais antigos. O sistema representativo é um regime que não deixou de ser parlamentar, apenas tornou-se constitucional. “A representação nunca foi um sistema inventado para amenizar o impacto do crescimento das populações. 17” Pelo contrário, ela assegurava que a representatividade não saísse das mãos dos que já eram privilegiados.
Rancière afirma que o termo democracia entendido como pressuposto de governo realizado por qualquer um do povo foi substituído pele entendimento de um governo realizado por uma maioria. O sistema representativo foi estabelecido de maneira a proporcionar que a representatividade fosse realizada por poucos. Para ele, a democracia somente experencia uma amplitude após certos momentos sociais que marcaram um processo lento de evolução. Por exemplo, o direito de votar e ser votado não é uma decorrência lógica da democracia.
Rancière entende a democracia como uma espécie de valor que precisa ser desvinculado das instituições goveridntais determinada. Ele destaca sua característica de constante vicissitude, Sua permanente incompletude e sua premente necessidade de que a esfera pública seja vinculada aos sujeitos políticos. 
Quando se consolidam no poder, as elites governantes tendem a reforçar a dicotomia entre público e privado, reduzindo o espaço do primeiro e pressionando os demais para o segundo. Existe uma tensão inerente ao processo democrático e que consiste em tentar reconfigurar essa polarização, de modo que o Estado poderia reivindicar para si a ampliação dos espaços de atuação pública em detrimento de uma privatização da coisa pública o que aumentaria a situação de exclusão política e redução de cidadania, indo de encontro com as ideias de Bernard Manin, ao descrever uma crise de um modelo representativo.
Essa crítica é ferrenha e desmonta a ideia de que uma das funções básicas de uma República Democrática de Direito é garantir o direito de minorias e maiorias. Vai à contramão das “[...] doutrina [s] tem reconhecido que entre os direitos fundamentais e a democracia se verifica uma relação de interdependência e reciprocidade” 18. Esse pensamento ignora o fato de que regime democraticamente estabelecido possui a prerrogativa de proteger os direitos das minorias e assegurar respeito às liberdades civis fundamentais, conforme:

  As democracias precisam proteger os direitos das minorias e assegurar respeito às liberdades civis fundamentais. Esta dimensão é importante porque, ainda que um regime garanta eleições competitivas, com ampla participação, se abstiver de garantir liberdades civis, não pode ser considerado uma plena democracia.19

Só que o autor Rancière não questiona apenas os ideais democráticos, mas a aplicabilidade fática. Portanto, os sistemas representativos, comumente estabelecidos por regimes democráticos, são compostos por maiorias e minorias. Dessa maneira, a maioria governa e a minoria é governada. Isso pode conduzir a uma ideia equivocada de que as minorias não têm direitos.
Entretanto, é importante reforçar que, no âmbito da democracia e do sistema representativo não é correto pensar que apenas os grupos que detenham maiores condições e possibilidades devam ter suas vontades e necessidades atendidas em detrimento de uma minoria. Essa ideia de que a democracia se configura como uma tirania da maioria deve ser rejeitada. “[...] sem direitos do homem reconhecidos e protegidos, não há democracia; sem democracia, não existem as condições mínimas para a solução pacífica dos conflitos” 20 8.
Nesse contexto, os direitos humanos até que poderiam ser utilizados como contrassenso à democracia oligárquica, mas até a ideia de direitos humanos poderia ser utilizada de maneira inadequada a seu fim. Para Slavoj Zizek21 , à afirmação de que o os direitos humanos, representam uma forma de controle contra os arbítrios do poder é apenas um componente da soberania. O Excesso se justifica na medida em que o poder se auto-afirma. O espaço político não é impermisto de impurezas, pois pressupõe certa confiança na violência em uma espécie de “pré-política” – “A violência não é apenas o complemento necessário do poder, mas o próprio poder” 22.
Para Zizek, os direitos humanos não são apolíticos, até mesmo questões humanitárias que visam restabelecer uma situação conflituosa para uma menos gravosa não se afasta da política. Ao se oporem ao poder dominante, os que intervêm em nome dos direitos humanos exercem um tipo de politização. Em relação aos países de economia e estrutura periféricas, verifica-se que os direitos humanos representam uma forma que as potências do ocidente possuem de praticar uma ingerência em questões políticas, econômicas e culturais - uma justificativa para praticar uma espécie de intervenção militar.
A idéia de direitos sociais como condições inerentes à pessoa humana não se sustenta com a realidade de pessoas que apenas têm sua humanidade. Os direitos humanos denotam uma ideologia que disfarça e legitima uma política imperialista de intervenções militares e colonizações. Os direitos humanos trariam consigo uma perspectiva de salvarguardar e justificar uma hegemonia estabelecida pelas potências econômicas.
Retornando ao pensamento de Rancière, ele também crítica a democracia por motivos parecidos com os que Zizek utiliza para criticar os direitos Humanos. O autor critica a forma como a democracia tem se estruturado e vem sendo odiada. Entende que paira na sociedade um medo da democracia, muito em virtude da desordem que ela pode trazer. Os Estados pseudo-democráticos se unem a grupos oligárquicos que, quando chegam ao poder, apressam-se em procurar o autobenefício e não socorre a demanda da sociedade. A democracia formalmente é legítima, mas não se sobrepõe à prática.
Entretanto, como forma de realizar uma dialética entre o pensamento que entende a democracia como sendo a regra da maioria – ainda que como crítica e não como potência - e sua vertente contrária, é interessante mencionarmos o seguinte posicioidnto:
Devemos começar anotando uma distinção entre democracia e regra de maioria. Democracia quer dizer regra da maioria legítima, o que significa que o mero fator majoritário não constitui democracia a menos que condições posteriores sejam satisfeitas. É controverso o que essas condições exatamente são. Mas algum tipo de estrutura constitucional que uma maioria não pode mudar é certamente um pré-requisito para a democracia. Devem ser estabelecidas normas constitucionais estipulando que uma maioria não pode abolir futuras eleições, por exemplo, ou privar uma minoria dos direitos de voto.23

Ademais, É possível aproximar as ideias de Rancière com as de Louis Althusser, autor essencialmente Marxista, quando este descreve seus ensaios sobre os aparelhos ideológicos do Estado e o papel que eles exercem na reprodução das condições de produção das ideologias burguesas, que detém o poder de Estado.
Althusser24 nos diz que e a distinção entre público e privado é irrelevante, pois tanto as instituições públicas quanto as privadas, no âmbito dos aparelhos ideológicos de Estado possuem uma finalidade em comum, que é de replicar a ideologia dominante, incutindo na cabeça das pessoas que elas precisam seguir certos padrões sociais. Trata-se do mecanismo pelo qual a classe dominante vai continuar sendo dominante.
Apesar de existirem inúmeros aparelhos ideológicos de Estado como Althusser propõe, todos eles atuam em conjunto, pois a ideologia pela qual funcionam é sempre unificada apesar das suas contradições e da sua diversidade, ela é a da classe dominante Não significam que todos pensem ou ajam da mesma forma, cada um tem sua particularidade, mas o objetivo final o de ser perpetuar a ideologia dominante. Se a ideologia dominante deixar de ser dominante, poderá haver uma revolução e fazer com que os aparelhos ideológicos de estado deixassem de existir.
A aproximação entre as ideias de Althusser e as de Rancière são possíveis por que o primeiro entende que a democracia permite um modelo representativo, que na prática é constituído por grupos oligárquicos que atuam nas demandas do próprio interesse; já o segundo, entende que aqueles que detêm o poder de Estado e reproduzem as condições de produção da própria ideologia, o fazem motivados pelos próprios interesses e não os da sociedade na qual se inserem.
Em regra, o ódio democrático que advém da falta de substancialidade da democracia é nada mais do que o que Bernard Manin identifica como uma crise do modelo representativo e que é causada pela falta de participação popular que não se vê representado nessa luta de classes. As críticas não são suficientes para desconstruírem o modelo democrático, mas são o bastante criar uma situação reflexiva acerca das necessidades de se repensar a distância entre a teoria e a prática.

CONCLUSÃO

Rancière trata do porque ao longo das épocas a democracia se torna tão perigosa. Ele pensa a democracia não apenas como um regime de governo, mas um modo de organização da vida. O conceito de democracia liga-se a ideia do Estado do bem estar social, precisamos de condições para nos desenvolvermos enquanto indivíduo e precisamos que a sociedade também nos dê essas condições. (relação circular?)
O autor critica a forma como a democracia tem se estruturado e vem sendo odiada. Existe certo medo da democracia, muito em virtude da desordem que ela pode trazer. Os Estados pseudo-democráticos se unem a grupos oligárquicos que, quando chegam ao poder, apressam-se em procurar o autobenefício e não socorre a demanda da sociedade. A democracia formalmente é legítima, mas não se sobrepõe à prática.
Esses grupos oligárquicos se apossam do Estado, mas quando chegam ao poder, não conseguem solucionar as demandas sociais. A violência acaba sendo uma possibilidade. O Estado precisa aprender a lidar com as reivindicações populares, e não necessariamente usar a força como primeira opção.
O sistema que foi trazido pela Constituição de 1988 para que a base da sociedade tivesse acesso não se constitui na prática. Obviamente a democracia cria instabilidade, tensões em virtude das suas possibilidades como os protestos. Isso faz parte do regime democrático e quanto mais isso se torna possível, mais ela for questionada ela se fortalece. Trata-se de um paradoxo. Quanto mais ela é questionada, ela se torna mais forte.
Uma crise da representatividade não pode ser ignorada nesse contexto em que o ódio à democracia é elaborado. Mas trata-se de uma crise não da representatividade incorporada à democracia, mas uma crise pelos modos em que ambas operam. Essa ideia se aproxima com o que Bernard Manin afirma ao criticar os detratores do modelo representativo.
A democracia, segundo esse ponto de vista, sobretudo a democracia representativa, possibilita que o cidadão pense que ele pode exercitar sua democracia, mas é preciso que ela seja, para além de uma expressão representativa, uma condição que garanta aos cidadãos uma participação maior.
Talvez, se houver alguma crise de modelos de governos democráticos e representativos, ela diga respeito a representatividade absoluta que não reconhece que sua manutenção depende sempre de um reconhecimento popular. A distância entre representantes e representados precisa ser encurtada, de modo que a representação continue existindo, mas não seja absoluta.
Há, portanto, uma necessidade de se buscar uma coerência institucional, com vistas a reequilibrar as diferenças negativas que influenciam o corpo social. Diante dessa situação, verifica-se uma necessidade de um sistema que além de ser democraticamente representativo, seja participativo. Uma sociedade construída ao mesmo tempo por representantes e representados.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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MULLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 57.Tradução: Peter Naumam, revisão: Paulo Bonavides.

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PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 98.

ZIZEK, Slavoj. Contra os direitos humanos. Mediações: Londrina, v. 15, n.1, p. 11-29, Jan/Jun. 2010.

*RAFAEL LAZZAROTTO SIMIONI - Pós-Doutor em Filosofia do Direito pela Universidade de Coimbra. Doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Mestre em Direito pela Universidade de Caxias do Sul (UCS). Professor e Coordenador do Programa de Pós-graduação em Direito da Faculdade de Direito do Sul de Minas (PPGD-FDSM) Localizada em Pouso Alegre, Minas Gerais, Brasil. Pesquisador-Líder do Grupo de Pes¬quisa Margens do Direito do PPGD-FDSM. Email para contato: simioni2010@gmail.com Link para consulta do currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/0651879354342863
** Mestrando em Direito Constitucional pelo programa de Mestrado da Faculdade de Direito do Sul de Minas – FDSM.
1 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34. pg. 05
2 Ibidem. pg. 06
3 Ibidem. pg. 05
4 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34. pg. 11
5 Ibidem. 15
6 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34. pg. 30
4 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34.. pg. 35.
8 BOBBIO, Norberto. A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004. pg. 01.
9 MULLER, Friedrich. Quem é o povo? a questão fundamental da democracia. São Paulo: Max Limonad, 1998. p. 57.Tradução: Peter Naumam, revisão: Paulo Bonavides.
10 MANIN, Bernard. As metamorfoses do governo representativo. 1995. Revista Brasileira de Ciências Sociais, nº 29, pp. 5-34. pg. 05
11 RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2015. pg. 08.
12 .GARCIA, Pelayo Manuel. As transformações do Estado contemporâneo. 1. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.
13 RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2015. pg. 08.
14 Ibidem. pg.10
15Ibidem. pg. 12
16 Ibidem. pg. 60
17 RANCIÈRE, Jacques. Ódio à democracia. São Paulo: Boitempo, 2015. pg. 69
18 SARLET, Ingo Wolfgang. Eficácia dos direitos fundamentais: uma teoria geral dos direitos fundamentais na perspectiva constitucional. 11.ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012. pg 48.
19 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional Internacional. 14 ed. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 98.
20 BOBBIO, Norberto, A Era dos Direitos. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.p. 1
21 ZIZEK, Slavoj. Contra os direitos humanos. Mediações: Londrina, v. 15, n.1, p. 11-29, Jan/Jun. 2010. Pg.
22 ZIZEK. Op. Cit. Pg. 23
23 DWORKIN, Ronald. Constitucionalismo e democracia. Traduzido por Emílio Peluso Neder Meyer. Publicado originalmente no European Journal of Philhosophy, 1995. p. 3
24 ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do estado. 9. ed. Biblioteca de Ciências Sociais: Graal, 1976.


Publicado: 18/11/2019

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