Michelle Carneiro Serrão*
Universidade Federal do Amazonas – UFAM, Brasil
E-mail: michellecserrao@gmail.com
RESUMO
O referido artigo trata dos conceitos de identidade, educação indígena e escola, conceitos chave na proposta de pesquisa a nível de doutorado em educação no qual busca-se compreender o processo educativo e social que envolve a (des)construção identitária indígena Sateré-Mawé a partir das mediações didáticas em espaços escolares urbanos entre indígenas e não indígenas. Propõe-se neste artigo a validação do problema de pesquisa de doutorado em andamento na Universidade Federal do Amazonas, a partir da submissão destas conceitualizações a um público especializado. A revisão bibliográfica dos instrumentos conceituais presente na pesquisa ocorrerá de forma constante na compreensão de temas que circulam a temática estudada e sua contribuição no debate em torno da presença de alunos indígenas em escolas urbanas e como este processo afeta ou não a (des)construção da identidade indígena. O arcabouço teórico com autores como Hall, Weber, Durkheim e Bauman em torno do tema identidade se apresenta como base para a formulação de elementos teóricos a serem discutidos na pesquisa, ajudando no crescimento das discussões educacionais sobre a educação indígena.
Palavras Chave: Educação Indígena, Escola Urbana, Identidade, Mediações Didáticas, Processo Educativo.
IDENTIDAD, EDUCACIÓN INDÍGENA Y ESCUELA: CAMINO CONCEPTUAL POSIBLE
RESUMEN
Este artículo aborda los conceptos de identidad, educación indigena y escuela, conceptos clave en la propuesta de investigación en el nivel de doctorado en educación en el que uno busca entender el proceso educativo y social que involucra la (de) construcción de identidad indigena Sateré-Mawé desde las mediaciones didácticas en espacios escolares urbanos entre indígenas y no indígenas. Se propone en este articulo la validación del problema de investigación de doctorado en curso en la Universidad Federal de Amazonas, apartir de la presentación de estas conceptualizaciones a un público especializado. La revisión bibliográfica de los instrumentos conceptuales presentes en la investigación ocurrirá constantemente en la comprensión de los temas que circulan el tema estudiado y su contribución en el debate alrededor de la presencia de estudiantes indígenas en las escuelas urbanas y cómo este proceso afecta o no la (des) construcción de identidad indígena El marco teórico con autores como Hall, Weber, Durkheim y Bauman en torno al tema de la identidad se presenta como la base para la formulación de elementos teóricos para ser discutidos en la investigación, ayudando al crecimiento de las discusiones educativas sobre la educación indígena.
Palabras Clave: Educación Indígena, Escuela Urbana, Identidad, Mediaciones Didácticas, Proceso Educativo.
IDENTITY, INDIGENOUS EDUCATION AND SCHOOL: A POSSIBLE CONCEPTUAL PATH
ABSTRACT
This article deals with the concepts of identity, indigenous education and school, key concepts in a doctoral research proposal in education that seeks to understand the educational and social process involved the (de)construction of Sateré-Mawé indigenous identity, based on didactic mediation between indigenous and non-indigenous individuals in urban school spaces. This paper proposes the validation of an ongoing PhD research project at the Universidade Federal do Amazonas based on submission of these conceptualizations to a specialized audience. The literature review of conceptual instruments will recurrently be brought to bear to comprehend the themes surrounding the debate about indigenous students in urban schools and how educational processes affect or not the (de)construction of indigenous identity. A theoretical framework of identity, featuring authors such as Hall, Weber, Durkheim and Bauman, serves as a basis for the theoretical elements to be discussed in the study in an effort to deepen discussion about indigenous education.
Keywords: Indigenous Education, Urban School, Identity, Didactic Mediation, Educational Process.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Michelle Carneiro Serrão (2019): “Identidade, educação indigena e escola: caminho conceitual possível”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (noviembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/11/identidade-educacao-indigena.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1911identidade-educacao-indigena
Benedict Anderson em sua obra “Comunidades Imaginadas” (2008) expõe que o projeto de nação se constitui através dos processos de construção de uma identidade nacional, porém elimina as identidades coletivas, passando a existir uma identidade única. Essa identidade nacional vai se constituindo a partir da identidade da pessoa que se baseia numa concepção da pessoa humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado das capacidades de razão, de consciência e de ação (HALL, 2006). As transformações do indivíduo, dos grupos sociais em conversões para uma identidade nacional se construiriam em torno e/ou a partir de dinâmicas sociais, e a educação desempenha um papel de fundamental importância nesse processo.
Segundo Bourdieu (1993, p. 54), conforme citado por Nóvoa (2009, p. 51), a cidadania é indissociável da construção das identidades nacionais. “Ao impor universalmente uma cultura dominante, constituída por esta via em cultura nacional legítima, o sistema escolar inculca os fundamentos de uma verdadeira religião cívica e, mais precisamente, as bases fundamentais da imagem (nacional) de si” e é justamente na ligação entre a cidadania e a construção do Estado-nação que se define a importância da escola.
Porém a ideia de nacionalidade não atende as pluralidades identitárias, a diversidade cultural existente no sistema escolar. A partir do projeto socioeducativo de uso da educação como ferramenta de colonização, o próprio conceito de identidade e do eu mudaram, superando a concepção da identidade moderna de sujeito unificado, fortalecida pelo processo educativo, para uma concepção interativa na qual a identidade é formada a partir da interação entre o eu e a sociedade.
Na interação a partir de dinâmicas sociais, de lutas e embates políticos, sociais, culturais, econômicos e educacionais foram se desenhando novas possibilidades de uma educação diferenciada que, no caso do Brasil, atenda as necessidades dos indígenas e esteja em consonância com seu projeto de vida. Os indígenas conquistam um espaço de maior relevância na construção de sua própria educação a partir de um processo histórico de lutas pela garantia de direitos referentes a processos próprios de aprendizagem e educação, o que se pode observar na legislação vigente a partir da Constituição de 1988 onde “As políticas públicas relativas à Educação Escolar Indígena pós Constituição de 1988 passam a se pautar no respeito aos conhecimentos, às tradições e aos costumes de cada comunidade, tendo em vista a valorização e o fortalecimento das identidades étnicas [...].” (CADERNOS SECAD, 2007, p. 16), o que garantiu aos povos indígenas novos estatutos sobre seus direitos.
De acordo com o Cadernos SECAD (2007), a escola, antes imposta aos indígenas e vivenciada por eles como uma ameaça ao seu modo de ser, sentir, pensar, fazer, teve sua presença reivindicada por esses mesmos indígenas que veem a escola por eles construída como instrumento para a constituição de projetos autônomos de futuro e como uma possibilidade de construção de novos caminhos para se relacionarem e se posicionarem perante a sociedade não indígena. Nota-se, porém, que com o reconhecimento a diversidade sociocultural da sociedade brasileira nas políticas e ações educacionais, ainda há trabalhos educacionais homogeneizantes que não consideram a realidade dos sujeitos, suas formas diferenciadas de pensar, seus modos próprios de produção, reelaboração e apreensão de conhecimentos, como se pode observar no artigo “Educação Escolar Indígena em Escolas Urbanas: realidade ou utopia” (SANTOS; SERRÃO, 2017) uma dificuldade entre os sujeitos envolvidos quanto ao processo educativo que considere a diversidade sociocultural, a alteridade, as formas diferenciadas de conceber conhecimento. Essa dificuldade em aceitar formas diferenciadas de conceber conhecimento e de organizá-los, pode interferir na (des)construção da identidade e do imaginário social do sujeito indígena.
A partir do exposto, surge a necessidade de identificar e entender os aspectos que diferenciam as práticas educacionais e as mediações didáticas não indígenas e indígenas e como estas impactam na (des)construção da identidade indígena em escolas urbanas. Nesta busca, sentiu-se necessidade de aclarar os conceitos de educação indígena, educação escolar indígena e identidade os quais compartilhamos neste trabalho como parte do processo de validação pelos pares, do uso de tais conceitos e do problema.
No Brasil, com a Constituição Federal de 1988 e com a aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional Nº 9394/96, o sistema educacional passou por uma reformulação no que se refere a educação escolar indígena e uma das prioridades foi a formação de professores indígenas para atuarem nas escolas localizadas nas aldeias. Em 2008, foi promulgada também a Lei Nº11.645 que orienta que o sistema de ensino trabalhe a formação de professores não indígenas para que estes trabalhem de maneira correta a inclusão da temática da história e da cultura dos povos indígenas. Porém, sabe-se que mesmo com legislação voltada para educação escolar indígena a prática pedagógica dos professores não indígenas que atuam com crianças indígenas em escolas urbanas tem sido insuficiente e não considera a diversidade cultural o que suscita a necessidade de analisar como esse processo educativo que não considera a diversidade cultural indígena interfere no processo de constituição do sujeito indígena, de sua identidade?
A educação constitui-se como um fenômeno que está em todas as sociedades desde as mais simples as mais complexas, na mais tenra idade até a velhice. O ser humano sempre está passando por processos de educação que vão sendo ressignificados de forma cada vez mais acelerada, em vista das transformações ocorridas na sociedade e no próprio indivíduo.
De acordo com o disposto na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – Nº 9394/96, a educação “[...] abrange os processos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais” (1996, p. 7).
A sociedade brasileira é composta por uma multiplicidade de culturas, e toda essa diversidade se encontra na escola, sendo necessário um debate que promova o respeito a todas as formas de manifestação cultural. É importante que o professor desenvolva suas atividades tendo em vista a heterogeneidade presente em sala de aula.
A educação está presente em todos os lugares de convivência, mas é dentro da escola que ela se processa de forma sistematizada. De acordo com Hengemuhle (2008) a escola é um local concreto onde se promove o ser, o conviver e o desenvolvimento de capacidades de conhecer e de se fazer. Sendo a escola esse lugar de promoção, este “[...] Espaço do Saber incita a reinventar o laço social em torno do aprendizado recíproco, da sinergia das competências, da imaginação e da inteligência coletiva”. (LEVY, 2015, p.26)
Os processos da educação devem considerar a diversidade cultural existente na sociedade, bem como as experiências que os alunos trazem para a escola. O entendimento da diversidade cultural possibilita o estabelecimento das relações de respeito superando conceitos errôneos e equivocados sobre culturas distintas das suas. “Na era do conhecimento, deixar de reconhecer o outro em sua inteligência é recusar-lhe sua verdadeira identidade social, é alimentar seu ressentimento e sua hostilidade, sua humilhação, a frustação de onde surge a violência”. (LEVY, 2015, p.30)
A educação corresponde a um conjunto de processos que envolvem a socialização, esses enquanto fenômenos que fazem parte de qualquer sistema social de um povo. Eles, com vistas a reprodução, perpetuação e mudança, têm, como objetivos, fazer com que os homens e as mulheres, se apropriem de diferentes conhecimentos e sejam capazes de fazer uso social deles. São processos educacionais que se constituem em situações dinâmicas diferenciadas, que sempre fazem correlações com os conhecimentos que os indivíduos já possuem. De posse disso, esses aplicam seus saberes, nas construções de resoluções dos problemas culturais.
A educação das crianças indígenas na escola urbana deve favorecer também que ela entre em contato com todo o tipo de conhecimento considerando que “Em nossas interações com as coisas, desenvolvemos competências. Por meios de nossas relações com os signos e com a informação adquirimos conhecimentos. Em relação com os outros, mediante iniciação e transmissão, fazemos viver o saber”. (LEVY, 2015, p. 27)
Cabe compreender a diferença entre educação indígena e educação escolar indígena. Luciano esclarece que,
[...] a educação indígena refere-se aos processos próprios de transmissão e produção dos conhecimentos dos povos indígenas enquanto a educação escolar indígena diz respeito aos processos de transmissão e produção dos conhecimentos não indígenas por meio da escola que é uma instituição própria dos povos colonizadores. (2006, p. 129)
Compreende-se então que a educação escolar indígena, aquela que se processa no espaço escolar, tem por objetivo reforçar os projetos socioculturais, abrindo caminhos para a apropriação de conhecimentos universais necessários para que se possa atender as demandas da sociedade atual.
Houve por muito tempo, por parte das comunidades indígenas, a ideia de que a educação escolar tinha como objetivo aculturar os índios, fazendo com que deixassem suas crenças de lado em favor da cultura do homem branco. Entretanto, dadas as transformações da sociedade, torna-se cada vez mais necessária uma educação sistematizada, que favoreça tanto a criança indígena como a não indígena, levando em consideração as diferenças culturais e as trocas de conhecimentos, que proporcione uma integração de diferentes saberes. As crianças indígenas presentes nas escolas urbanas devem ter acesso a todo tipo de conhecimento sem deixar de considerar seus traços culturais tendo em vista que
Se os outros são fontes de conhecimento, a reciproca é imediata. Também eu, qualquer que seja minha provisória social, qualquer que seja a sentença que a instituição escolar tenha pronunciado a meu respeito, também sou para os outros uma oportunidade de aprendizado. (LEVY, 2015, p.28)
Isso também contribui para que se supere a ideia equivocada de que os povos indígenas não possuem educação, visão que ainda permanece no imaginário popular, mas que vem se modificando com o tempo.
Henriques et al (2007, p. 21) define que a
[...] educação escolar indígena problematiza enfaticamente a relação entre sociedade, cultura e escola, reassociando a escola a todas as dimensões da vida social e estabelecendo novos sentidos e funções a partir de interesses e necessidades particulares a cada sociedade indígena.
Povos indígenas veem a educação como um processo contínuo e ininterrupto, resultado de toda a experiência acumulada e passada de geração para geração pela oralidade e, a educação indígena, trata dos processos próprios de aprendizagem de seu povo, de sua etnia.
Luciano (2006, p. 145) aponta que “[...] o movimento indígena brasileiro reconhece que o processo de formulação e de execução da prática educacional no país vem se apresentando de forma cada vez mais respeitosa em relação às culturas e interesses dos povos indígenas”, o que se observa no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas (1998, p. 37) que destaca que:
Hoje, uma educação escolar diferenciada e de qualidade, intercultural e bilíngue (ou multilingue) é reivindicação e parte dos projetos de vida de comunidades, povos e organizações indígenas. A escola existe em inúmeras comunidades indígenas como instituição integrada ao cotidiano, apesar de sua origem externa aos universos socioculturais indígenas e de seu uso histórico (e lamentavelmente, em algumas situações, contemporâneo) como agente de controle, evangelização e imposição forçada de mudança social e cultural.
A educação é um direito dos povos indígenas, e lhes deve ser dado os subsídios necessários para que possam tê-la dentro das comunidades onde vivem. Diferentemente da educação indígena, a educação escolar indígena presente nas escolas urbanas, não pretende fazer uma espécie de reintegração na sociedade, mas colocá-lo em contato com todo o tipo de conhecimento produzido pelas diferentes culturas.
Constituir o Espaço do saber seria, em especial, dotar-se dos instrumentos institucionais, técnicas e conceituais para tornar a informação “navegável”, para que cada um possa orientar-se e reconhecer os outros em função dos interesses, competências, projetos, meios, identidades reciprocas no espaço. (LEVY, 2015, p.25)
Gadotti (2005) explica que a educação formal possui objetivos e meios claramente definidos e como local de ocorrência principal, o ambiente escolar. Ela responde a uma gerência normalmente centralizada e que se organiza através de uma estrutura hierárquica, burocrática, que atua em nível nacional. Tal estrutura faz-se percebida através dos currículos e dos órgãos fiscalizadores do Ministério da Educação.
A construção de uma educação que contemple as particularidades dos povos indígenas em relação aos saberes específicos da escola urbana, só será possível mediante profissionais qualificados para a promoção de uma educação diferenciada e intercultural seja nas comunidades ou nas escolas urbanas, além de romper com a ideia do indígena genérico, que não tem história, são primitivos e seres sem cultura.
Quando se busca compreender e analisar o processo de constituição de uma identidade, faz-se necessário partir da compreensão do conceito de comunidade. Nas ciências sociais os trabalhos de Emile Durkheim, Max Weber, e recentemente de Bauman indicam interpretações localizadas sobre o conceito de comunidade.
Na obra Da Divisão do Trabalho Social (1999), Durkheim trata sobre a divisão do trabalho e a diferença entre solidariedade mecânica e orgânica, onde é possível entender que, quando este teórico fala de solidariedade mecânica é como se estivesse falando de comunidade pois os indivíduos possuem relações mais conectadas e próximas, são muito parecidos, possuem os mesmos valores e não há especialização do trabalho. Nestas sociedades/comunidades, os indivíduos que a integram compartilham das mesmas noções e valores sociais tanto no que se refere às crenças religiosas como em relação aos interesses materiais necessários a subsistência do grupo. É justamente essa correspondência de valores que asseguram a coesão social e onde alguns grupos como indígenas, por exemplo, tem uma ideia coletiva de identidade, o que Durkheim (1999) coloca como característica da solidariedade mecânica, e não uma ideia de identidade do individuo, que caracteriza a solidariedade orgânica.
Em Max Weber (1987, p. 77), pode-se encontrar uma conceituação de comunidade que permite vislumbrar algo similar: “Chamamos de comunidade a uma relação social na medida em que a orientação da ação social, na média ou no tipo-ideal, baseia-se em um sentido de solidariedade: o resultado de ligações emocionais ou tradicionais dos participantes.” Aqui se encontram a solidariedade, a relação afetiva e o compartilhamento de tradições como o determinante da comunidade.
Para Fredrik Barth (2000), onde o trato definidor de comunidade é a fronteira e nesta que reforça a ideia de identidade, a tarefa de compreender os processos sociais ocorridos sobre esse conceito em área indígena traz para o debate amazônico a necessidade de compreender os temas referidos a comunidade e identidade neste contexto.
As experiências em comunidades indígenas apontam que as relações sociais de povos e comunidades tradicionais encontram-se longe de homogeneizar as identidades, as (re)definem e fazem com que os grupos estabeleçam elementos de autoafirmação identitária, reforçando-se perante os grupos sociais diversos por meio da língua, dos rituais religiosos, das técnicas de caça e pesca, do artesanato e de muitos outros elementos políticos, econômicos, sociais e étnico-culturais.
De acordo com Stuart Hall, a concepção de identidade, segundo o sujeito sociológico, considera que “[...] a identidade é formada na ´interação` entre o eu e a sociedade. O sujeito ainda tem um núcleo ou essência interior que é o ´eu real`, mas este é formado e modificado num diálogo continuo com os mundos culturais ´exteriores`” (2006, p. 11). Tal perspectiva, de concepção de identidade a partir do sujeito sociológico, é coerente com o universo que se pretende observar na pesquisa, tendo em vista que se trata de uma realidade indígena em área urbana onde a pessoa indígena enquanto membro da sociedade indígena ao mesmo tempo exterioriza modos de viver no mundo e interioriza, via processos de socialização e educação, construções mentais acerca da existência urbana.
Os estudos de Bauman (2005), ao sublinhar sobre a identidade, apontam que se deve utilizar metodologias que busquem desvelar miríades de conexões entre o objeto da investigação e as manifestações dos fenômenos da vida em sociedade, analisando contextos sociais, culturais, políticos em que uma complexidade ocorra e exista, sendo fiel ao presente, mas cuidadoso no reconhecimento de sua genealogia. Acerca dessa metamorfose identitária, Bauman, que estuda o conceito de identidade numa perspectiva pós-moderna, afirma que na era atual, líquido-moderna, identidades flutuam no ar em uma sociedade multiétnica.
É comum afirmar que as comunidades (as quais as identidades se referem como sendo as entidades que as definem) são de dois tipos. Existem comunidades de vida e de destino, cujos membros (segundo a fórmula de Siegfried Kracauer) ´vivem juntos numa ligação absoluta´, e outras que são ´fundidas unicamente por ideias ou por uma variedade de princípios´. [...]. Tornamo-nos conscientes de que o ´pertencimento´ e a ´identidade´ não tem a solidez de uma rocha, não são garantidos para toda a vida, são bastantes negociáveis e revogáveis, e de que as decisões que o próprio individuo toma, os caminhos que percorre, a maneira como age – e a determinação de se manter firme a tudo isso – são fatores cruciais tanto para o ´pertencimento´ quanto para a ´identidade´. Em outras palavras, a ideia de ´ter uma identidade´ não vai ocorrer às pessoas enquanto o `pertencimento` continuar sendo o seu destino, uma condição sem alternativa. (BAUMAN, 2005, p. 17)
No processo de constituição da identidade na pós-modernidade, nesta época líquido-moderna, o mundo está repartido em fragmentos mal coordenados, enquanto existências individuais são fatiadas em sucessão de episódios fragilmente conectados. Quanto mais trocas materiais e históricas são estabelecidas, maior tende a ser a experiência identitária construída, podendo esta até mesmo metamorfosear-se. (BAUMAN, 2005)
O diferente, no caso o indígena na escola, não deve mais ser ignorado ou entendido como estando deslocado no tempo e espaço, mas como sujeito participe na composição, na reconstrução, ressignificação da educação e da realidade posta por meio da troca de saberes entre realidade local e global, não como ser isolado, mas em constante relação de troca com o mundo, que já não é mais visto como fragmentado, composto por partes isoladas, fechadas em si mesmas, autossuficientes, mas sim como um todo integrado, como partícipes do mundo. A educação, neste processo, possibilita a introdução da discussão sobre a (des)construção identitária e sobre a diferença surgida entre os interlocutores envolvidos no processo educativo conduzindo a uma possibilidade de abertura para uma nova proposta educativa.
Pensar processos complexos de desenvolvimento e impulsionadores de uma educação enquanto fenômeno social em construção, no caso específico, educação indígena Sateré Mawé, exige que se abandone modelos de educação autoritários ou com pouca possibilidade de o sujeito posicionar-se criticamente e com coerência.
A construção de uma educação que leve ao desenvolvimento de uma visão mais integral sobre a realidade, sobre processos diferenciados que integrem os conhecimentos cotidianos, espirituais, alimentares, acadêmicos, faz-se por meio de embates, lutas, discussões entre os diferentes, almejando a elaboração de novas sínteses, novos contextos, sem se fechar para o diálogo, ou seja, de acordo com Silva (2000, p. 100):
[...] os estudantes [...] deveriam ser estimulados, nessa perspectiva, a explorar as possibilidades de perturbação, transgressão e subversão das identidades existentes. De que modo se pode desestabilizá-las, denunciando seu caráter construído e sua artificialidade? Um currículo e uma pedagogia [...] deveriam ser capazes de abrir o campo da identidade para as estratégias que tendem a colocar seu congelamento e sua estabilidade em xeque [...]. Estimular, em matéria de identidade, o impensado e o arriscado, o inexplorado e o ambíguo, em vez do consensual e do assegurado, do conhecido e do assentado. Favorecer, enfim, toda experimentação que torne difícil o retorno do eu e do nós ao idêntico.
A inserção de grupos étnicos no contexto urbano traz a luz uma nova realidade que é a inserção de crianças indígenas em escolas regulares não indígenas, fortalecendo a luta por direitos desses grupos. Nesse contexto faz-se imprescindível considerar que “A cada espaço corresponde um tipo de identidade, um estilo de desejo, uma estrutura psíquica. Existem afetos terrestres, territoriais, comerciais e sapienciais” (LEVY, 2015, p.133) e que mesmo que os conhecimentos tradicionais produzidos no âmbito da comunidade mantenham-se da forma construída na tradição étnica, novos conhecimentos surgem a partir das relações entre grupos sociais distintos. Segundo Pierry Levy, na obra Inteligência Coletiva (2015), o surgimento de uma realidade organizada pelo saber provoca uma profunda crise de identidade onde os antigos princípios de auto-observação e de identificação a coletividades perdem sua eficácia e o ser humano volta a ser nômade, pluraliza sua identidade, explora mundos heterogêneos, é ele próprio heterogêneo e múltiplo.
A partir do exposto, resolveu-se fazer uma compreensão dos processos educacionais aos quais foram submetidos os Sateré-Mawé, no Baixo Amazonas, pela análise da relação entre o imaginário indígena e a (des)construção identitária, a partir de processos educativos diferenciados e vivenciados em novos espaços, como o urbano.
Ao se conhecer a diversidade de situações sociais, culturais, históricas, econômicas, politicas existente na escola, torna-se inquietante a constatação de trabalhos pedagógicos homogeneizantes que não consideram a realidade dos sujeitos, suas formas diferenciadas de pensar, seus modos próprios de produção, reelaboração e transmissão de conhecimentos. A escola, constituída por diversidade cultural e pluralidades identitárias, é um espaço privilegiado para a criação de novas formas de convívio e reflexão no campo da alteridade.
A superação de modos consolidados de educar para uma perspectiva intercultural das ações, permitiria um processo multidimensional de interação entre sujeitos de identidades culturais diferentes, o que poderia levar a reinvenção do papel e do processo de formação dos educadores e, consequentemente, de aprendizagem dos alunos e o “[...] sujeito previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas [...].” (HALL, 2006, p. 13).
Na busca de entendimento dessa realidade complexa que é a escolarização indígena em escolas urbanas apresenta-se essa reflexão teórica para elaboração do problema, objetivando a validação do problema o qual pode apresentar fragilidades quanto a clareza, precisão e complexidade sendo portanto necessária a submissão a outros olhares, possibilitando assim discussões e aprofundamento da questão investigada.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, A. W. B. (2002). Distinguir e mobilizar: duplo desafio face às políticas governamentais. São Luís: Revista Tipiti, julho.
ANDERSON, B. (2008). Comunidades imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo. Companhia das Letras.
ANDRÉ, M. E. D. A. (1995). Etnografia da prática escolar. Campinas: Papirus.
BARTH, F. (2000). O guru, o iniciador e outras variações antropológicas (Organização de Tomke Lask). Rio de Janeiro: Contra Capa Livraria.
BAUMAN, Z. (2005). Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi/Zygmunt Bauman. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
BAUMAN, Z. (2003). Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. São Paulo: Jorge Zahar Editora.
BRASIL. (1998). Referencial curricular nacional para as escolas indígenas. Ministério da Educação e do Desporto, Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF.
BRASIL. (1996). Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. LDB 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
CADERNOS SECAD. (2007). Secretaria de educação continuada, alfabetização e diversidade. Educação escolar indígena: diversidade sociocultural indígena ressignificando a escola. Brasília: Ministério da Educação.
DURKHEIM, Émile. (1999). Da Divisão do Trabalho Social. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes.
GADOTTI, Moacir. (2005). A questão da educação formal/não formal. Droit à l’education: solution à tuos les problèmes sans solution? Institut International des drits de l’enfant, Sion.
GALVÃO, E. E. (1979). Encontro de sociedades: índios e brancos no Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra.
GEERTZ, C. (1978). A interpretação das culturas. Rio de Janeiro, Zahar.
GEERTZ, C. (1997). O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Vozes.
GEERTZ, C. (2001). Nova Luz sobre a Antropologia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora.
HALL, S. (2006). A identidade cultural na pós modernidade. Tradução de Tomaz Tadeu da Silva, Guacira Lopes Louro. 11. ed. Rio de Janeiro: DP&A.
HENGEMUHLE, Adelar. (2008). Gestão de ensino e práticas pedagógicas. 5. ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
HENRIQUES, Ricardo. [et al]. (2007). Educação escolar indígena: diversidade cultural indígena ressignificando a escola. Brasília, DF: Ministério da Educação. (Cadernos SECAD).
LÉVY, P. (2015). A Inteligência Coletiva: por uma antropologia do ciberespaço. 10 ed. São Paulo: Edições Loyola.
LUCENA, A. M. S.; SARAIVA, E. S. S.; ALMEIDA, L. S. C. (2016). A Dialógica como princípio metodológico transdisciplinar na pesquisa em educação. In: Revista Millenium, 50. jan. jun., p. 179-196.
LUCIANO, Gersem dos Santos. (2006). O índio brasileiro: o que você precisa saber sobre os povos indígenas de hoje. Brasília: Ministério da Educação.
MARCONI, M. A. (2013). Antropologia: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Atlas.
MARTINS JUNIOR, J. (2015). Como escrever trabalhos de conclusão de curso: introduções para planejar e montar, desenvolver, concluir, redigir e apresentar trabalhos monográficos e artigos. 9. ed. Petrópolis: Vozes.
MELIÁ, B. (1979). Educação indígena e alfabetização. São Paulo: Loyola.
MILLS, W. C. (1969). A imaginação sociológica. 2. ed. Rio de Janeiro: Zahar Editores.
MINAYO, M. C. S. (Org). (2010). Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 29. ed. Petrópolis: Vozes.
MORIN, E. (2005). Introdução ao pensamento complexo. Tradução de Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina.
MORIN, E. (2002). O método 5: a humanidade da humanidade. Tradução de Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina.
NÓVOA, A. (2009). Professores: imagens do futuro presente. Lisboa: Educa.
OLIVEIRA, M. M. (2012). Como fazer pesquisa qualitativa. 4. ed. Petrópolis, RJ: Vozes.
PRODANOV, C. C.; FREITAS, E. C. (2013). Metodologia do trabalho científico: métodos e técnicas da pesquisa e do trabalho acadêmico. 2. ed. Novo Hamburgo: Feevale.
SANTOS, B. S. (1989). Introdução a uma ciência pós-moderna. Rio de Janeiro: Graal.
SANTOS, R, B.; SERRÃO, M. C. (2017). Educação Escolar Indígena em Escolas Urbanas: realidade ou utopia? Revista Eletrônica Mutações, Amazonas, v. 8, n. 15, p. 217 à 232, jul/dez.
SANTOS, S. M. P. (Org). (1997). O lúdico na formação do educador. 5. ed. Petrópolis: Vozes.
SILVA, M. C. (2012). O país do Amazonas. 3. ed. Manaus: Vozes.
SILVA, T. T. (2010). Documentos de Identidade: uma introdução as teorias do currículo. 3 ed. Belo Horizonte: Editora Autêntica.
SILVA, T. T. (Org.). (2008). Alienígenas na sala de aula: uma introdução aos estudos culturais em educação. 7. ed. Petrópolis: Vozes. (Coleção Estudos Culturais em Educação).
SILVA, T. T. (Org. e trad.). (2000). Identidade e diferença: a perspectiva dos estudos culturais. Petrópolis: Vozes.
WAGLEY, C. (1988). Uma comunidade amazônica: estudo do homem nos trópicos. Tradução de Clotilde da Silva Costa. 3. ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.