Hanae Caroline Quintana Shiota
Advogada especializada em Direito Processual Civil, mestranda em Desenvolvimento Local pela Universidade Católica Dom Bosco, Brasil
hanae_shiota@hotmail.com
RESUMO
O presente artigo científico objetiva analisar o reconhecimento do princípio da igualdade enquanto elemento legitimador da adoção de ações afirmativas para assegurar os direitos das mulheres. Procurou-se apresentar os principais aspectos do princípio da igualdade, bem como sua abrangência no que tange à aplicabilidade prática de suas proposições. Enfatizou-se sua vertente material, apta a justificar a utilização de ações afirmativas. Realizou-se um levantamento da mais emblemática e recente legislação específica, evidenciada pela tutela diferenciada conferida à mulher. Para o embasamento teórico se valeu dos ensinamentos constantes na doutrina especializada de vários ramos do direito, das decisões das cortes superiores do país e na legislação vigente. Concluiu-se, então, que o princípio da igualdade, fundado na dignidade da pessoa humana, autoriza que se procedam tratamentos diferenciados com a finalidade básica de fortalecer os direitos das minorias e, desta forma, erradicar todas as formas de discriminação, em especial as de gênero.
Palavras-chave: Direito. Igualdade. Ações afirmativas. Direitos das mulheres. Discriminação de gênero.
EQUALITY, AFFIRMATIVE ACTION AND WOMEN'S RIGHTS
ABSTRACT
This paper aims to analyze the recognition of the equality principle as a legitimating element of the adoption of affirmative actions to ensure women’s rights. Tried to present the main aspects of the equality principle, as well as its comprehensiveness regarding the practical applicability of its propositions. It emphasized its material aspect, able to justify the use of affirmative actions. A survey of the most emblematic and recent specific legislation was carried out, evidenced by the differentiated guardianship granted to women. For the theoretical basis it was used the teaching in the specialized doctrine of various branches of law, the decisions of the country's higher courts and current legislation. Concluded that the equality principle, based on the dignity of the human person, allows for differentiated treatment with the basic aim of strengthening the rights of minorities and thereby eradicating all forms of discrimination, especially of gender.
Keywords: Law. Equality. Affirmative actions. Women’s rights. Gender discrimination.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Hanae Caroline Quintana Shiota (2019): “Igualdade, ações afirmativas e direitos das mulheres”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (septiembre 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/09/direitos-mulheres.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1909direitos-mulheres
1 INTRODUÇÃO
Em pleno século XXI acredita-se viver em uma sociedade completamente livre de qualquer discriminação de gênero. No entanto os estigmas cravados ao longo da evolução da humanidade contam uma versão deveras diferente da história.
É notável o empenho das mulheres para serem contempladas com os mesmos direitos conferidos aos homens e, muito embora tenham enfrentado incontáveis obstáculos e dificuldades, enfim sagraram-se vitoriosas em algumas batalhas nas últimas décadas.
Inegável que houve o tempo, e não muito atrás, em que as mulheres, simplesmente por terem nascido do sexo feminino, não podiam exercer sua liberdade, escolher seus relacionamentos, desenvolver sua sexualidade, estudar, votar, participar da vida política da sociedade, trabalhar, expressar opiniões, dentre outras incontáveis restrições. Ainda, seus maridos não eram por elas escolhidos, eram obrigadas a se submeter ao arbítrio dos pais e depois dos maridos, deveriam ser exímias “donas de casa”, impecáveis mães de quantos filhos o destino lhes enviasse e, inevitavelmente, eram julgadas e valoradas pelo sistema então vigente na medida de quão bem desempenhavam essas atividades.
Hoje, sob a égide da ordem constitucional democrática proclamada na maioria dos Estados no plano internacional, tem-se a aclamação da igualdade entre homens e mulheres, pelo menos perante a lei. Assim, a mulher pode ser provedora da família, empresária, estudante, professora, formadora de opinião, pensadora, parlamentar e, até mesmo, líder de Estado. Pode, inclusive, decidir sobre questões fundamentais da sua individualidade, como, por exemplo, acerca da sua orientação sexual, se deseja contrair matrimônio ou mesmo ter filhos.
No entanto, apesar do irrepreensível avanço em direção à igualdade de gênero, a realidade dos fatos é que ainda há um sério descompasso entre as previsões legais e os objetivos por elas almejados. Isso porque reside no âmago da sociedade o pensamento machista e patriarcal, uma falsa pretensão de inferioridade do sexo feminino, fruto de um processo histórico e sistemático de alijamento cultural, social e político.
Portanto, o que se pretende apresentar é a legitimidade que a luta por direitos encontra na consagração do princípio da igualdade com status máximo no ordenamento jurídico brasileiro, princípio este que se encontra submetido a somente um outro, o da dignidade da pessoa humana, para o qual deve prestar seus esforços.
Ainda, será objeto de análise o mecanismo utilizado para a equalização de forças no mundo dos fatos, isto é, para suprir as desigualdades por meio de tratamentos diferenciados, qual seja, as ações afirmativas. E, por fim, mostrar a mais relevante e recente legislação direcionada à concretização da tão sonhada igualdade substancial.
2 A IGUALDADE NA CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988
Não há melhor lugar para esta pesquisa ser iniciada senão debruçando-se sobre o texto da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988 que, sem dúvidas, iniciou um novo episódio na sociedade brasileira na busca da concretização de direitos fundamentais, sem olvidar que se trata do texto máximo, ápice da pirâmide normativa, que alicerça, ordena e erradia seus preceitos e programas para todo o ordenamento. Isso significa que a Constituição transformou-se “no filtro através do qual se deve ler todo o direito infraconstitucional” (BARROSO, 2018, p. 113).
Em primeiro lugar, já no preâmbulo constitucional reside uma mensagem clara a respeito dos princípios e valores mais significativos que lastrearam a linha de pensamento e elaboração do texto:
Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (grifo nosso)
Nota-se na mensagem inicial que o constituinte de 1988 eleva o princípio da igualdade a um valor supremo da chamada “sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos”. Vê-se, portanto, que além de anunciar a igualdade de todos os cidadãos, pretende construir uma sociedade livre de qualquer tipo de preconceitos.
Nos dizeres de Silva (2011, p. 211), ”[...] a igualdade constitui o signo fundamental da democracia. Não admite os privilégios e distinções que um regime simplesmente liberal consagra. Por isso é que a burguesia, cônscia de seu privilégio de classe, jamais postulou um regime de igualdade tanto quanto reivindicara o de liberdade”.
A fim de ressaltar a importância do princípio da igualdade, a Constituição enumera dentre os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil o de “promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Percebe-se, assim, que o constituinte dispensa o mesmo tratamento a esses fatores (e não se esgota neles), por se caracterizarem como fenômenos acidentais e, portanto, inaptos a gerar qualquer desigualdade injustificada sob a ótica jurídica.
Não se prestando como fator de merecimento inato ou de intrínseco desmerecimento do ser humano, o pertencer ao sexo masculino ou então ao sexo feminino é apenas um fato ou acontecimento que se inscreve nas tramas do imponderável. Do incognoscível. Da química da própria natureza. Quem sabe, algo que se passa nas secretíssimas confabulações do óvulo feminino e do espermatozoide masculino que o fecunda, pois o tema se expõe, em sua faticidade mesma, a todo tipo de especulação metajurídica. [...] (STF, ADI nº 4.277/DF)
O texto constitucional, portanto, rechaça toda forma de discriminação. E há mais: relaciona-se a não discriminação ao objetivo de “promover o bem de todos”, o que, por sua vez, só pode significar o estágio da sociedade em que todos possam desenvolver seus projetos pessoais de realização e felicidade ostentando o mesmo status entre si e perante a ordem jurídica.
Ao instituir esta diretriz, pode-se afirmar que ela, por si só, já seria elemento suficiente para nortear toda e qualquer atividade estatal e privada, uma vez que consiste em objetivo a ser perseguido e concretizado por todos, o que, logicamente, alcança os poderes constituídos, a iniciativa privada e a sociedade.
Contudo, com o fito de elevar o prestígio da isonomia, logo no primeiro artigo do Título II, nomeado de “dos direitos e garantias fundamentais”, a Constituição da República anuncia que “todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade”.
Em que pese o sucinto caput do artigo acima descrito, deve-se salientar a profundidade e a grandeza do seu conteúdo na medida em que inaugurou o tratamento dos direitos e garantias fundamentais do cidadão impondo uma premissa lógica básica, vale dizer, o princípio da igualdade serve de guia “não apenas das regras, mas de quase todos os princípios que informam e conformam o modelo constitucional positivado, sendo guiado apenas por um, ao qual se dá a servir: o da dignidade da pessoa humana” (ROCHA, 1996).
O que louvavelmente implementou o constituinte de 1988 é que todos os demais direitos fundamentais fossem lidos e interpretados a partir da noção de igualdade. Contudo, deve-se ir além para afirmar que não somente os direitos fundamentais, mas todo o sistema constitucional e, consequentemente, o infraconstitucional, encontra como antecedente lógico inexorável o princípio da igualdade.
Nesse fluxo, é de se salientar que a Carta Republicana não tolera qualquer tratamento discriminatório em razão de signo ou condição distintiva entre os seres humanos, sem a devida e justificada ratio, devendo a justiça igualitária envolver todos os cidadãos, velando pela proteção dos mesmos em face de reduções arbitrárias de oportunidades perpetradas pelos seus pares ou até mesmo pelo Estado.
Não obstante a magnitude de clareza solar da igualdade já apresentada no preâmbulo e nos Arts. 3º e 5º da Constituição, exprime mais uma demonstração de dedicação constitucional o conteúdo do inciso I do já mencionado Art. 5º ao proclamar que “homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição”.
Sem qualquer pretensão de exaurir tão rico e profundo tema, pode-se afirmar que o princípio da igualdade encarrega-se do papel fundamental de prever “a igualdade de aptidão, uma igualdade de possibilidades virtuais” (MORAES, 2016, p. 36) a fim de equalizar os elementos distintos presentes na sociedade e materializar a chamada justiça distributiva.
Todavia, presta-se a orientar a atividade legislativa que fica indissoluvelmente ligada aos seus preceitos, buscando efetivá-los e prontamente proibida de estabelecer privilégios ou restrições indevidas; vincula o exercício das funções jurisdicional e administrativa a concretizar e aplicar as leis sob a ótica não discriminatória, e, por fim; limita o próprio sujeito de direito que não pode violar direitos alheios, de forma a ferir a igualdade por meio de comportamentos preconceituosos.
3 A IGUALDADE MATERIAL E SUA PROMOÇÃO ATRAVÉS DE AÇÕES AFIRMATIVAS
Não se ateve o constituinte de 1988 a proclamar somente a igualdade no plano formal, isto é, perante a lei, mas também a promessa de igualdade material ou substancial que pugna pelo tratamento desigual daqueles em situação jurídica desigual, mas somente na medida necessária para equiparar ou ao menos atenuar as discrepâncias no seio da sociedade.
Dessa forma, o que se veda são as diferenciações arbitrárias, as discriminações absurdas, pois o tratamento desigual dos casos desiguais, na medida em que se desigualam, é exigência do próprio conceito de Justiça, pois o que realmente protege são certas finalidades, somente tendo por lesado o princípio constitucional quando o elemento discriminador não se encontra a serviço de uma finalidade acolhida pelo direito. (MORAES, 2006, p. 86)
Sobre o tema, colhe-se ensinamento do Min. Ricardo Lewandowski no julgamento da ADPF nº 186/DF:
Para possibilitar que a igualdade material entre as pessoas seja levada a efeito, o Estado pode lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrange, um número indeterminado de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares.
Nesse contexto, para a consolidação do princípio da igualdade em sua plenitude o Estado deve efetivar as chamadas políticas de ação afirmativa, as quais são definidas na Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, da ONU, como medidas “especiais e concretas para assegurar, como convier, o desenvolvimento ou a proteção de certos grupos raciais ou de indivíduos pertencentes a esses grupos, com o objetivo de garantir-lhes, em condições de igualdade, o pleno exercício dos direitos humanos e das liberdades fundamentais”.
Piovesan (2018, p. 387), ao justificar as ações afirmativas, alude que igualdade e discriminação representam o binômio inclusão-exclusão, no qual a mera proibição da exclusão não resulta automaticamente na inclusão, concluindo não ser “suficiente proibir a exclusão, quando o que se pretende é garantir a igualdade de fato, com a efetiva inclusão social de grupos que sofreram e sofrem um consistente padrão de violência e discriminação”.
No que concerne ao movimento pela igualdade de gênero, sabe-se que historicamente a mulher foi relegada à margem do direito, isto é, há muito lhe foram tolhidos direitos básicos, deixando-a em posição social de inferioridade perante o homem.
As mulheres têm as mesmas oportunidades que os homens na sociedade brasileira para os cargos de comando? Porque para os empregos e cargos de menor significação político-decisória não apenas se têm os mesmos direitos, como alguns são considerados destinados às mulheres. São assim aqueles que se vocacionam ao desempenho de tarefas domésticas ou artesanais, são assim aqueles que se têm, no serviço público, como atividades-meio, dentre outros que se poderiam citar. E na esfera política? As mulheres do mundo deste quase século XXI, sendo mais da metade da população, sendo quase a metade da população incumbida da atividade econômico-produtiva, são quase a metade das pessoas que ocupam os cargos de comando político-institucional nos Estados? Têm elas as mesmas condições de disputa? Representam sem preconceito ou discriminação na igualdade do seu desempenho sócio-econômico e cultural? Recebem a mesma educação para a competição que os homens? São iguais no Direito? Em que Direito? (ROCHA, 1996)
Por certo, as lutas pela aquisição de direitos civis, políticos e sociais foram árduas, mas, na atual conjectura, pode-se afirmar, de forma até otimista, que por meio de ações afirmativas mais do que nunca caminha-se para o estágio social que visa cada vez mais a concretização da igualdade de direitos entre homens e mulheres, e, ao mesmo tempo que coloca essa questão nas pautas de discussão internacionais.
Em 2010, por exemplo, a Organização das Nações Unidas apresentou os audaciosos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio (ODM) que deveriam ser atingidos até o ano de 2015, dentre os quais menciona-se a promoção de igualdade de gênero e empoderamento da mulher.
Essas ações tomadas em 2015 resultaram em novos objetivos mundiais, agora denominados de Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que contempla entre as 17 metas, a serem atingidas até 2030, a igualdade de gênero, cujo objetivo primário consiste em acabar com todas as formas de discriminação contra mulheres e meninas no mundo.
A Representação da UNESCO no Brasil (2019), no que toca à igualdade de gênero, afirma que “formar meninas, meninos, mulheres e homens com os conhecimentos, os valores, as atitudes e as habilidades para combater as disparidades de gênero é uma pré-condição para construir um futuro sustentável para todos”.
Assim sendo, a própria Constituição da República, já em 1988 e com as redações das posteriores emendas, determinou a tomada de ações afirmativas relacionadas à mulher em diversos dos seus dispositivos. Bem exemplifica a situação a Min. Rosa Weber no julgamento da ADC nº19, veja-se:
[...] foi por ter presente a constatação da história de desfavorecimento à mulher no mercado de trabalho, que o constituinte, no art. 7º, XX, incumbiu ao legislador de elaborar mecanismos jurídicos de incentivos específicos para a proteção de mercado de trabalho da mulher. Da mesma forma, a Constituição assegura à mulher, no art. 201, § 7º, I e II, aposentadoria com menor tempo de contribuição e menos idade, em comparação ao homem. E, enquanto o art. 10, § 1º, do ADCT, disciplinando provisoriamente a licença-paternidade prevista no art. 7º, XIX, da CF, fixa-lhe a duração de cinco dias, a licença à gestante, nos termos do art. 7º, XVIII, não será inferior a cento e vinte dias.
Com efeito, a defesa dos direitos das mulheres, com a erradicação de todas as formas de discriminação, violência e práticas nocivas, consiste em compromisso internacional dos Estados democráticos.
4 BREVES NOTAS SOBRE AS INOVAÇÕES LEGISLATIVAS ASSEGURADORAS DE DIREITOS DAS MULHERES
Seguindo os anseios constitucionais, o legislador infraconstitucional não se manteve inerte, uma vez que viu-se na obrigação de elaborar textos normativos representativos de ações afirmativas que evidenciassem o caminho trilhado pelo direito brasileiro no sentido de erradicar a discriminação de gênero.
No que tange aos direitos políticos, especificamente ao sistema eleitoral, em 2009 foi publicada a Lei nº 12.034 que alterou a redação do §3º do Art. 10 da Lei nº 9.504/97, passando a prever que “cada partido ou coligação preencherá o mínimo de 30% (trinta por cento) e o máximo de 70% (setenta por cento) para candidaturas de cada sexo”.
O espírito que permeia referido empreendimento legislativo não pode ser outro senão o de promover a participação feminina no cenário político, utilizando, para tanto, do estabelecimento de percentual mínimo inviolável que deverá ser observado pelos partidos políticos. Ainda, pretende-se acentuar que a mulher é tão cidadã quanto qualquer outro e, por isso, deve ser inserida na vida política da sua sociedade para que possa defender e representar seus interesses.
Como salienta o então Ministro do TSE Herman Benjamin (Representação nº 291-35/DF), o “incentivo à presença feminina constitui necessária, legítima e urgente ação afirmativa que visa promover e integrar as mulheres na vida político-partidária brasileira, de modo a garantir-se observância, sincera e plena, não apenas retórica ou formal, ao princípio da igualdade de gênero”.
Ainda nesse contexto, elucida o Ministro do TSE Tarcisio Vieira de Carvalho Neto na emblemática Consulta sobre candidatos transgêneros:
Malgrado inexista menção ao sexo feminino no art. 10, § 3º, da Lei nº 9.504/97, é visível tratar-se de ação afirmativa para garantir um número mínimo de candidatas e revigorar a nossa democracia, já que as mulheres correspondem a mais da metade do eleitorado brasileiro, mas ainda estão sub-representadas nas casas legislativas.
No entanto, sem desmerecer outras relevantes contribuições legislativas, deve-se destacar que a mais elogiável inovação na proteção dos direitos das mulheres foi a edição da Lei nº 11.340/06, intitulada Lei Maria da Penha, cujo objetivo foi prevenir e coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher.
Isso porque, a afirmação de igualdade de todos perante a lei “não bastava, tendo em vista que as mulheres continuavam a sofrer dentro de seus lares (principalmente) inúmeras formas de violência física e psicológica” (NUCCI, 2018, p. 48). Daí emerge o entendimento de que referido diploma legislativo representou um marco na consolidação da igualdade de gênero, tendo, inclusive, construído um microssistema protetivo da entidade familiar como um todo.
A Lei Maria da Penha, por implicar em diferença de tratamento à mulher, teve sua constitucionalidade declarada no bojo da ADC nº 19, da qual colaciona-se o seguinte trecho:
A Lei Maria da Penha retirou da invisibilidade e do silêncio a vítima de hostilidades ocorridas na privacidade do lar e representou movimento legislativo claro no sentido de assegurar às mulheres agredidas o acesso efetivo à reparação, à proteção e à Justiça. A norma mitiga realidade de discriminação social e cultura que, enquanto existente no país, legitima a adoção de legislação compensatória a promover a igualdade material, sem restringir, de maneira desarrazoada, o direito das pessoas pertencentes ao gênero masculino.
Em que pese a implementação de diversos mecanismos de proteção à mulher pela Lei Maria da Penha, fato é que os dados de homicídios contra mulheres no país e no mundo são alarmantes, justamente diante da sua maior vulnerabilidade às violências eminentemente de gênero, às domésticas e familiares e à criminalidade em geral.
Nesse embalo, em 2015 foi publicada a Lei nº 13.104 que alterou o Código Penal Brasileiro para incluir entre as hipóteses de homicídio qualificado o chamado feminicídio. E referida lei foi além para incluir a hipótese entre os crimes hediondos regulados pela Lei nº 8.072/90.
Por definição legal, o feminicídio consiste no homicídio cometido contra a mulher por razões de condição do sexo feminino, a qual é evidenciada quando envolve violência doméstica e familiar ou discriminação à condição de mulher.
Contudo, atento ao corriqueiro descumprimento das medidas protetivas de urgência da Lei Maria da Penha por parte dos agressores, em especial diante da insuficiência de meios aptos a coibir tais práticas, o legislador infraconstitucional elaborou a recente Lei nº 13.771/18 que acrescentou às mencionadas causas de aumento do crime de feminicídio a hipótese do crime ser cometido após o deferimento da medida protetiva e sua consequente transgressão.
Aliás, pouco mais de um ano após a inserção do crime no ordenamento penal, em 2016, a ONU anunciou que a taxa de feminicídios no Brasil era a quinta maior do mundo e, em pleno ano de 2019, alertou que “cerca de um terço das mulheres mortas intencionalmente no mundo é assassinado pelo parceiro íntimo – atual ou antigo”.
Em que pese louvável a intenção legislativa ao reconhecer a maior fragilidade das mulheres diante da criminalidade e, por isso, tentar remediar a situação pela criação de novos crimes, qualificadoras e causas de aumento, Nucci (2018) traz à baila severa crítica relacionada à ausência de preocupação com os crimes de menor gravidade, que operam-se no campo dos fatos com maior frequência:
Voltando ao básico, ninguém, no Brasil, conseguiu resolver o problema penal da Lei Maria da Penha: as penas dos crimes mais praticados contra as mulheres são pífias (ameaça e lesão leve). Entretanto, o problema social é imenso. Um recado ao legislador: nunca haverá eficaz aplicação de qualquer medida efetiva de contenção da violência doméstica, enquanto a ameaça tiver uma pena ínfima de um a seis meses de detenção ou multa, nem quando a lesão leve tiver pena de detenção de três meses a um ano. Pior, quando lesão for qualificada pela violência doméstica, tiver pena mínima de três meses de detenção (embora a máxima atinja três anos), estaremos no campo da ilogicidade. É preciso tipificar a ameaça cometida em ambiente doméstico (como ameaça qualificada) e a lesão doméstica, qualificada pela violência doméstica, contendo penas (especialmente as mínimas) realmente elevadas para dar guarida a prisões preventivas de igual paralelo.
Dando continuidade ao nosso estudo acerca das inovações legislativas de tutela dos interesses das mulheres, em virtude do aumento casos envolvendo o assédio sofrido por mulheres, em especial nos transportes públicos coletivos ou locais de grande concentração de pessoas, viu-se o legislador compelido, uma vez mais, a adotar postura proativa e criar o crime de importunação sexual, inserido no título dos crimes contra a dignidade sexual do Código Penal.
Referido crime foi inserido na legislação penal através da Lei nº 13.718/18, e transformou o que antes era apenas uma contravenção penal em crime punido com reclusão de um a cinco anos.
Apesar de poder figurar como vítima qualquer pessoa, inclusive homens, é de se considerar, mormente pelo contexto que circunda a elaboração da lei, que buscou-se proteger a integridade da mulher, dissuadindo os agressores desse tipo de postura machista ou violenta. “Agora, ‘o passar de mãos lascivo nas nádegas’, ‘o beijo forçado’, aquilo que antes tinha que se adequar ao estupro para não ficar impune [...] ‘ganha’ nova tipificação: o crime de importunação sexual. Não há mais dúvida: é crime!” (STJ, REsp nº 1.745.333/RS).
Ademais, a legislação em comento tornou crime a chamada “vingança pornográfica” pela inserção do Art. 218-C ao Código Penal. Asseverou o Superior Tribunal de Justiça que a exposição pornográfica não consentida “constituiu uma grave lesão aos direitos de personalidade da pessoa exposta indevidamente, além de configurar uma grave forma de violência de gênero que deve ser combatida de forma contundente pelos meios jurídicos disponíveis” (REsp nº 1.679.465/SP).
Essa nova modalidade intitulada de “pornografia de vingança” é culturalmente disseminada e emerge em particular das situações de rompimento de relacionamentos, em que uma das partes divulga o material com a finalidade de humilhar e punir o outro, ou seja, como meio de vingança pelo término.
Essa espécie de violência encontra campo fértil no atual desenvolvimento da tecnologia, disseminação de informações e rapidez nas comunicações. E, é de se ressaltar, trata-se de uma forma de violência de gênero que, embora não exclusivamente perpetrada contra as mulheres, refere-se por uma questão cultural de especialmente se praticar contra elas.
Por fim, menciona-se a edição da Lei nº 12.845/13, intitulada “lei do minuto seguinte” que determina o tratamento médico e hospitalar obrigatório, integral e imediato de mulheres vítimas de violência sexual, que abrange o “atendimento emergencial, integral e multidisciplinar, visando ao controle e ao tratamento dos agravos físicos e psíquicos decorrentes de violência sexual, e encaminhamento, se for o caso, aos serviços de assistência social”.
O aspecto mais relevante da referida legislação é a desnecessidade de apresentação prévia de boletim de ocorrência referente à violência sofrida ou mesmo qualquer tipo de prova nesse sentido, vale dizer, a simples declaração da mulher é suficiente para que possa receber o tratamento hospitalar.
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Devemos consignar que não temos a pretensão de exaurir a temática, principalmente porque cada assunto abordado no presente trabalho daria azo à elaboração de grandes e profundas produções científicas. Assim sendo, salienta-se que existem inúmeros outros documentos legislativos, nacionais e internacionais, bem como diversos projetos de lei que de certa forma estão abrangidos na sistemática discriminação de gênero.
O objetivo que pretendeu-se aqui alcançar e demonstrar foi o do fundamento jurídico da igualdade em sua vertente substancial para afirmar a necessidade de proteção efetiva dos direitos das minorias, daqueles em posição de desvantagem histórica e deixados à margem dos direitos básicos. Isso para concluir-se que o direito, no atual momento, não mais “fecha os olhos” para as práticas discriminatórias e preconceituosas, mas trabalha incansavelmente para implementar uma ordem jurídica baseada na justiça distributiva.
De fato seria possível lançar críticas à política legislativa brasileira, na medida em que pouco se fez em termos de medidas preventivas e, de outra banda, muito laborou-se no campo da repressão. Questionável, assim, a ausência de esforços no sentido de enfrentar a raiz da celeuma e, por conseguinte, trabalhar para que a mudança emerja do pensamento crítico fomentado nos cidadãos durante a formação básica. No entanto, o que se quer aqui é notar a boa vontade do legislador na tomada definitiva de posição na defesa dos direitos iguais para todos.
Neste específico aspecto, isto é, no campo da atividade legislativa, os obstáculos para a efetivação das demandas das mulheres são ainda graves. Isso porque é através da participação política que as medidas de equiparação são implementadas e, enquanto as mulheres se encontrarem sub-representadas politicamente, o mais importante instrumento pelo qual se reduzem as desigualdades (as leis) continuarão a ser dirigidas por outros interesses.
Conclui-se, assim, que é elogiável o caminho trilhado pelo direito brasileiro na tentativa de corrigir as desigualdades de gênero, porém é imperiosa a participação feminina não somente enquanto destinatária das normas, mas nos seus processos de elaboração, bem como e especialmente na direção das políticas públicas para que, enfim, seus interesses possam se fazer presentes em todos os setores da sociedade.
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SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 186/DF. Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 26/04/2012, DJE 20/10/2014.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Consulta nº 0604054-58/DF. Rel. Min. Tarcisio Vieira de Carvalho Neto. j. 01/03/2018.
TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Representação nº 291-35/DF. Rel. Min. Herman Benjamin, DJE 20/03/2017.
Recibido: 15/05/2019
Aceptado: 19/09/2019
Publicado: 24/09/2019