Alline da Silva Prestes *
Sandra Helena da Silva**
FAPEAM, Brasil
Email: prestes.alline@gmail.com
RESUMO:
O presente artigo objetiva analisar as relações de gênero presentes nas atividades laborais desenvolvidas por mulheres agricultoras/feirantes do mercado municipal de Parintins, seja na produção agrícola, doméstica, comercialização e demais áreas da vida social; bem como em contraste com a percepção de seus companheiros acerca das ações desenvolvidas por elas. Para tanto foi utilizado como base teórico-metodológica a teoria social crítica associada ao estudo de caso, com abordagem qualitativa. Para coleta de dados foi realizada entrevista com roteiro de perguntas, direcionadas a 9 sujeitos, sendo 06 (seis) agricultoras/feirantes, 2 (dois) companheiros e o secretário de produção e abastecimento municipal. Os dados obtidos apontam as relações de gênero assimétricas, ainda que a mulher tenha ampliado seu espaço de participação no âmbito público, os homens não ampliam suas ações aos trabalhos domésticos (privado).
PALAVRAS-CHAVE: Gênero; Trabalho; Mulheres; Agricultoras/feirantes; políticas públicas.
RESUMEN: El presente artículo objetiva analizar las relaciones de género presentes en las actividades laborales desarrolladas por mujeres agricultoras / feriantes del mercado municipal de Parintins, sea en la producción agrícola, doméstica, comercialización y demás áreas de la vida social; así como en contraste con la percepción de sus compañeros acerca de las acciones desarrolladas por ellas. Para ello se utilizó como base teórico-metodológica la teoría social crítica asociada al estudio de caso, con abordaje cualitativo. Para la recolección de datos se realizó una entrevista con el itinerario de preguntas, dirigidas a 9 sujetos, siendo 06 (seis) agricultoras / feriantes, 2 (dos) compañeros y el secretario de producción y abastecimiento municipal. Los datos obtenidos apuntan las relaciones de género asimétricas, aunque la mujer ha ampliado su espacio de participación en el ámbito público, los hombres no amplían sus acciones a los trabajos domésticos (privados).
PALABRAS-CLAVE: Género; Trabajar; Mujeres; Agricultoras/feriantes; políticas públicas.
ABSTRACT: The objective of this article is to analyze the gender relations present in the labor activities developed by women farmers in the municipal market of Parintins, whether in agricultural, domestic production, commercialization and other areas of social life; as well as in contrast to their peers' perceptions of their actions. For that, the critical social theory associated with the case study with a qualitative approach was used as the theoretical-methodological basis. For data collection, a questionnaire interview was conducted, aimed at 9 subjects, of which 06 (six) farmers, two (2) companions and the municipal production and supply secretary. The data obtained point out the asymmetric gender relations, although women have expanded their space of participation in the public sphere, men do not extend their actions to domestic (private) work.
KEYWORDS: Gender; Labor; Women; Farmers / Fair Markets; public policy.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Alline da Silva Prestes y Sandra Helena da Silva (2019): “Relações de gênero na produção de mulheres agricultoras/feirantes do mercado municipal de Parintins-AM”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/07/producao-mulheres-agricultoras.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1907producao-mulheres-agricultoras
1. INTRODUÇÃO
A história da humanidade é permeada pela construção das relações sociais, estabelecidas por meio do trabalho, da família e participações políticas, sociais e econômicas em sociedade. Assim, se estabelecem constructos mentais (valores e normas), em meio a essa constituição sociocultural e histórica, em que mulheres e homens, desenvolvem suas relações de dependências, antagonismos e complementaridades, seguindo a dinamicidade social.
No sentido biológico, mulheres e homens diferenciam-se em anatomia de corpos, sobretudo órgãos sexuais; a posteriori, por estas diferenças, a cultura vai estabelecer regras, padrões morais e condutas de acordo com o sexo. Neste contexto, a mulher é marcada pela atuação no âmbito privado (doméstico e familiar), enquanto o homem agregou o status de provedor e chefe da família. Estas disparidades foram incutidas culturalmente, em diversas sociedades, portando suas singularidades.
No contexto amazônico, as assimetrias de gênero tem acompanhado o ser feminino, nos espaços de trabalho com a desvalorização das suas ações sociais, sobrecarga de atividades, dificuldade de permanência nos espaços da feira, assim como pelo desconhecimento acerca das políticas públicas voltadas para mulheres, dentre outros fatores que incidem sobre elas. Aplicabilidade dessa análise não difere a realidade das agricultoras/feirantes localizadas ao entorno do mercado municipal. Estas têm em suas vivências as práxis agrícolas nos ambientes de várzea, pesca do camarão, comércio nas feiras e afazeres domésticos aos seus encargos.
Perante este contexto, o presente artigo objetiva analisar as relações de gênero presentes nas atividades laborais desenvolvidas por mulheres agricultoras/feirantes do mercado municipal de Parintins, seja na produção agrícola, doméstica, na comercialização e demais áreas da vida social; bem como em contraste com a percepção de seus companheiros acerca das ações desenvolvidas por elas. Para tanto foi utilizado como base teórico-metodológica a teoria social crítica associada ao estudo de caso, com abordagem qualitativa. Para coleta de dados foi realizada entrevista com roteiro de perguntas, direcionadas a 9 sujeitos, sendo 06 (seis) agricultoras/feirantes, 2 (dois) companheiros e o secretário de produção e abastecimento municipal. Nas análises dos dados, foram realizadas, observação, imagens fotográficas e entrevistas.
2. Conceituando as relações de gênero e as transformações sócio históricas
O conceito de gênero tem suas compreensões construídas em uma história de lutas e movimentos voltados, inicialmente, pela liberdade e participação das mulheres em todos os âmbitos sociais. Os questioidntos emanados a partir da década de 60 são pontos iniciais no estudo desta categoria, as lutas libertárias, mais particularmente dos movimentos sociais de 1968: as revoltas estudantis de maio em Paris, a primavera de Praga na Tchecoslováquia, os black panters, o movimento hippie e as lutas contra a guerra do vietnã nos EUA, a luta contra a ditadura militar no Brasil (GROSSI, 1998, p. 2).
Em meio a estas lutas, a participação feminina era maior, bem como as suas demandas específicas. Miriam Grossi (1998) destaca que “apesar de militarem em pé de igualdade com os homens, tinham nesses movimentos um papel secundário. Raramente eram chamadas a assumir uma liderança política(...)”. Inseridos nos movimentos, os grupos feministas e gays traziam em seu bojo questões ligadas diretamente ao âmbito feminino como a sexualidade, anticoncepção, casamento, entre outras áreas relacionadas.
O intuito deste movimento estava ligado diretamente a exigência em discutir “desnaturalizar e historicizar as desigualdades entre homens e mulheres” (CISNE, 2012). Desigualdades estas impostas e impregnadas no seio da sociedade, refletindo em todas as relações estabelecidas em diversos contextos históricos, evidenciando a subordinação feminina.
Neste cenário surge a formação dos primeiros conceitos e estudos relativos a categoria gênero. Piscitelli (2002) destaca a busca gradual por conceitos e ferramentas adequadas para fomentar hipóteses explicativas sobre as origens desta opressão, onde “o quadro de efervescência intelectual é o contexto no qual se desenvolve o conceito de gênero” (p. 16).
Em meados dos anos 80, as discussões sobre o campo de estudos de gênero ou relações de gênero é suscitado pelas pesquisadoras de área anglo-saxã, refletindo na expansão destes no Brasil, direcionado pela problemática das opressões vivenciadas pelo ser feminino. Grossi (1998) destaca a abordagem para além de classe e sexo, mas leva-se em conta as diferenças “regionais, de classes etárias, de ethos (...)”.
Nestas abordagens, a autora compreende a formação da categoria gênero a luz das proposições de Joan Scott, enquanto “Uma categoria historicamente determinada que não apenas se constrói sobre a diferença de sexos, mas sobretudo, uma categoria que serve para “dar sentido” a esta diferença (GROSSI, 1998, p. 5).
Marlene Strey corrobora ao viés analítico da categoria, frente a necessidade de conhecer a história e desenvolvimento de ambos os gêneros “assim como é importante estudar todas as classes para compreender o significado da história de como funcionou, e funciona, a ordem social ou para promover sua transformação” (STREY, 1998, p.184).
Cisne (2012) destaca a formação da categoria gênero enquanto forma de trazer análises no âmbito das relações, não devendo se limitar a categoria mulher, mas também deve-se compreender de forma relacional ao homem. Sua constituição enquanto categoria relacional desvela o alcance de possibilidades analíticas e conceituais abertas a uma diversidade de estudos.
A evolução destes estudos possibilitou vetores para a expansão da luta de mulheres, bem como o avanço concomitante das pesquisas nesta área. Albano (2006) expõe, neste contexto de conquistas, um quadro de mudanças onde “as mulheres começam a sair do ambiente puramente privado, do ambiente doméstico e começam a ocupar espaços públicos como lojas, escolas, escritórios, hospitais e outros” (p. 8).
Ainda que tenhamos claros avanços evidenciados no decorrer das lutas de mulheres, estes novos espaços de atuação, são ainda controlados e/ou gerenciados por homens, e em vista desta condição, observa-se uma espécie de representação secundária, auxiliar, no desempenho das suas atividades.
Garcia (2012) denota esta expressão acerca da participação da mulher nos espaços decisórios e em instâncias de poder, apesar do aumento significativo nas últimas décadas, “não podemos falar de equidade entre os sexos, o poder ainda está concentrado, distribuído de forma desigual, o que nos remete a questão da desigualdade de gênero” (p. 24).
Neste sentido, abordar a categoria gênero e os conceitos a ela interligados é basilar para compreensão das relações desiguais entre os sexos e seus contextos históricos. Ainda sob a força de mudanças, não se pode desprezar o quão recente foram conquistados seus direitos, bem como a expressão de diversos estigmas de inferioridade, incidindo sobre o ser mulher.
Como categoria de análise, falar de gênero requer compreender as peculiaridades delineadas pelas regiões. No contexto amazônico, as relações entre homens e mulheres nas comunidades de várzea estão envolvidas pela ação produtiva da agricultura familiar, conservação dos saberes tradicionais e demais constituintes econômicos e sócio-culturais, onde a presença do ser feminino é diferenciada e marcante.
Dentre os debates conceituais que dissertam acerca das discrepâncias entre homens e mulheres, temos o patriarcado, cujo entendimento revela-se nos estudos relativos ao gênero. Piscitelli e Santos (2001) compreendem o conceito de patriarcado para além de uma essência única ou vaga da subordinação feminina, mas sim, uma das teorias utilizadas para explicar que esta subordinação não é natural e pode ser desconstruída.
Dos diversos conceitos fomentados sobre o patriarcado, traremos esta abordagem à luz dos estudos de Heleieth Saffioti (2004), desvelando este como um sistema de dominação-exploração das mulheres pelos homens, que não abrange somente a família, mas atravessa a sociedade como um todo.
Do mesmo modo como as relações patriarcais, suas hierarquias, sua estrutura de poder contamina toda a sociedade, o direito patriarcal perpassa não apenas a sociedade civil, mas impregna também o Estado (SAFFIOTI, 2004, p. 54). Estas relações, vão para além de um local ou momento histórico, mas transmutam-se, tomando formas e condições diferenciadas, como corrobora Bourdieu (2012) tratando-a como história da (re)criação continuada das estruturas objetivas e subjetivas da dominação masculina, realizando-se continuamente, baseada na existência de homens e mulheres, como condição para a reprodução da ordem masculina através dos tempos.
Numa perspectiva semelhante, Murano e Boff (2010) entendem o patriarcado, enquanto uma categoria, a ser compreendida para além de uma dominação binária, evidenciando a “complexa estrutura política piramidal de dominação e hierarquização, estrutura ratificada por gênero, raça, classe, religião e outras formas de dominação (...)” (p. 52).
No aspecto histórico, o patriarcado emerge, a princípio, como uma forma específica de organização social, inserida em diversas sociedades, expressão máxima das condutas sociais, políticas, cíveis e econômicas. Esta organização diferencia-se de acordo com os locais e culturas onde se desenvolve (MURANO; BOFF, 2010).
No contexto brasileiro, virilidade e imponência do homem sobre a mulher é destacado ainda quando Freyre relata, “é característico do regime patriarcal, o homem fazer da mulher uma criatura tão diferente dele quanto possível. Ele, o sexo forte, ela o fraco; ele o sexo nobre, ela o belo” (FREYRE, 2002).
A imagem da mulher no campo laboral era presente, entretanto, em diversos momentos, estava fortemente ligada a questões do lar ou vendas artesanais em ruas e diversos comércios. A mulher branca da casa grande, de acordo com Saffioti (1979), desempenhava importante papel no comando e supervisão das atividades que se desenvolviam na casa, dirigindo diversos trabalhos das escravas na cozinha, tecelagem serviços do jardim, cuidado das crianças e animais domésticos.
Em seu segundo livro Sobrados e mucambos, Freyre (2006) expõe a decadência do sistema patriarcal colonial, dando entrada aos ares de burguesia com a chegada da família Real Portuguesa, no início do século XIX. Profundas transformações ocorrem no país, e neste processo as mulheres passaram a
frequentar diversos espaços públicos, “aumentam, portanto, seu convívio social, garantindo algum espaço em sociedade” (SILVA, 2009).
O desenvolvimento urbano, e os ares reprodutores dos valores e modos de vida europeus davam a entender novas possibilidades para homens e mulheres, no entanto Freyre (2002) denota que ao homem eram facilmente dadas todas as possibilidades de ascensão social, em diversos espaços e contatos, e as oportunidades as mulheres, ainda que possíveis, eram limitadas, estranhas, pois estavam fora dos seus comuns serviços as artes domésticas, filhos e parentela.
Estes espaços são constituídos, para Bourdieu (2012, p.41), nas divisões de ordem social, caracterizadas por relações de exploração e dominação. Este mundo social e limitado, segundo o autor, as coloca “naturalmente destinadas” a uma identidade minoritária, privada, escondida. As visões de papéis de gênero, o que era função de mulheres, bem como dos homens, fica bem demarcado a partir dos valores patriarcais. As construções sociais destas ações destinadas para o masculino e feminino, estavam fortemente impregnadas na época.
Um exemplo clássico de perpetuação da ideologia patriarcal e conservadora foi reproduzido pela Igreja, durante a formação brasileira, construindo um modelo de mulher frágil, submissa e dependente, reforçando assim os dogmas para manutenção do matrimônio e moral. Bourdieu (2012) salienta a perpetuação da dominação e relações de poder masculinas, materiais e simbólicas, sendo exercidos em diversas instâncias, como a Igreja, Escola e Estado.
Ainda frente estas hierarquias compreendidas pela grande parte da sociedade como naturais e inerentes ao ser feminino, observamos a presença histórica das mulheres na ampliação da vida feminina, adentrado na educação, trabalhos em escritórios, fábricas, inserção em ações políticas, entre outras redefinições constantes na posição social destas (SILVA, 2009).
Não podemos deixar de enfatizar que estas mudanças foram constituídas gradualmente, a partir do século XIX, na contramão de ideias conservadoras, por meio de lutas e resistências. A eliminação do patriarcado da esfera pública, segundo Pateman (2013), não reflete na total superação de suas relações privadas e sociais. Fazendo-se necessário analisá-lo de maneira histórica, como forma de dominação tradicional decadente na modernidade, bem como um sistema de opressão sorrateiro e atualizado com o avanço do capitalismo, democracia liberal, constituinte e transmutando-se nas sociedades modernas (AGUIAR, 1997, p. 177).
As expressões do patriarcado, seguindo a sua decadência parcial enquanto forma de organização política e social, são contundentes no panorama nacional. Portanto, remontar ao seu cerne no âmbito nacional, faz-se necessário, sobretudo para compreender e contextualizar estas relações patriarcais em especificidades
regionais.
3. Matizes de relações de gênero no Amazonas.
A conquista da região amazônica pelas forças europeias, grande parte chefiada pela coroa ibérica 1, realizou-se por meio de ações necessárias para manter Espanha e Portugal na cena da política Europeia (SILVA, 1996). Marilene Corrêa, em sua obra O Paiz do Amazonas, retrata a força política e econômica que movimentou a colonização da Amazônia, as explorações de reconhecimento físico, a busca da riqueza fácil, seguido pela conquista e a colonização, num quadro de disputa interna com as populações indígenas locais e outras nações (SILVA, 1996, p. 10).
A dominação das populações indígenas, inicia por meio da violência: aqueles que resistissem às ações portuguesas eram dizimados pelas forças armadas. Aos que permanecessem restava a colonização espiritual desenvolvida pelos religiosos, convertendo-os em aliados e novos súditos.
O modelo de colonização da região amazônica tem por característica a segregação e escravismo, onde se veem constantes características impositivas, Silva (1996), traz estas compreensões com base nos estudos de Amilcar Tupiassú, que denota o estado de submissão indígena, uma cultura identificada com inferioridade,
vistos como posse e agentes principais dentro da divisão do trabalho, relegados a tarefas manuais e pesadas.
Ligada a esta visão de preconceito e inferioridade dos povos indígenas, temos a imagem da mulher amazônica, caracterizada de forma depreciativa. Torres (2005, p. 55) denota a lógica patriarcal que acompanha os colonizadores europeus, sendo assegurada pelas instituições como Estado, a Igreja e Família.
Os colonizadores trazem consigo expressões do patriarcado, incutindo diversas vezes em suas ações na região. Inicialmente vemos as viagens para descoberta e reconhecimento das terras amazônicas, onde a saga de Orellana, baseada em histórias míticas, traz uma compreensão das mulheres indígenas representadas a partir das lendárias guerreiras amazonas.
Na expedição conquistadora de Gonçalo Pizzaro, perante a falta de alimentos para a tripulação, foi enviada uma tropa de 59 homens a comando de Francisco de Orellana, na tentativa de socorro junto às tribos indígenas. De acordo com o relatado pelo cronista da expedição, Frei Gaspar de Carvajal, a viagem sofrerá dificuldades em razão aos ataques e defesa das tribos indígenas, frente aos estranhos invasores.
Frente a este encontro arriscado com as Amazonas, a superioridade da tropa de Orellana foi exaltada, saindo todos ilesos desta grande ameaça. Torres (2005), traz a ênfase de Carvajal em descrever a cena, ainda que estivessem abalados pela fraqueza, fome e em número desproporcional, contra cerca de 12 mil mulheres, a tropa espanhola vence essas guerreiras exímias na arte do arco e flecha.
Eis uma das primeiras manifestações da cultura patriarcal sobre o ser feminino, que ocorre na Amazônia, pois os conquistadores ao anunciar que vencem as Amazonas, destacam a superioridade do homem europeu. Silva (2015) questiona a descrita e duvidosa vitória destes navegadores, em detrimento às mulheres da região subjugando-as, constituindo uma visão de submissão para estas.
No processo de colonização, o período reformista do estado Português, entre os séculos XVIII e XIX, consolida o processo de ocupação, incentiva produções, indústria, regula o povoamento refletindo na organização das populações amazônicas, sobretudo na vida das mulheres indígenas da época (SILVA, 1996).
A reforma pombalina é passo crucial no efetivo ingresso da região amazônica no espaço político-econômico português, Santos (2010) destaca o interesse e intervenção direta do governo, desenvolvendo instrumentos legais para a execução das novas operações político administrativas.
Dentre elas temos o Alvará de Lei de 4 de abril de 1755, regulamentada no Diretório Indígena 2, que autorizou os brancos a se casarem com índias. Ainda, os homens que aceitassem a união devidamente formalizada, seriam portadores de alguns privilégios, entendidos como os “os preferidos pelo reino” (SILVA, 1996).
Torres (2005) explica sobre estas recompensas aos que contraíssem casamento com mulheres índias, como presentes, as ofertas de cargos, além de distinção de status, ligando-os a nobreza. O Diretório destaca ainda, “dignando-se Sua Majestade de os habilitar todas aquelas honras competentes às graduações de seus postos, consequentemente ficarão logrando os mesmos privilégios as pessoas que casarem com os ditos índios” (DIRECTÓRIO, 1997).
Esta política de troca de favores, com ascensão social dos brancos pelo casamento com indígenas, dá início ao que Iraildes Torres chama de “comércio sexual na Amazônia”, tendo a Igreja como porta de entrada por meio do sacramento batismal; as índias que resistissem ao batismo detinham a condição de pagãs, sendo desprezadas na comunidade social e cristã (TORRES, 2005).
Nesse processo, muitas mulheres indígenas são compelidas a buscar o batismo e matrimônio, afim de adquirir aceitação para evitar o repúdio e a visão depreciativa de gentia, em meio a sociedade. No seio destas relações de trocas sexuais, forma-se o estigma de mulheres amazonenses, tidas como lascivas, promíscuas e fáceis de serem conquistadas nas relações afetivas (TORRES, 2005).
O poder da Igreja, na formação social da Amazônia, foi essencial em incutir uma orientação por qualidades morais, valores físicos e demais virtudes de futuras mães, esposas devotas e submissas, dedicadas aos trabalhos domésticos em prol a família; seguindo os princípios postos pela Igreja, com exemplos de grandes mulheres virtuosas citadas na Bíblia (SILVA, 2016; TORRES, 2005).
Este discurso buscava controlar e dominar, a mulher indígena, vista como ser pecaminoso, infame. Esse foi o mecanismo de controle sobre o ser e fazer feminino na Amazônia durante a colonização, em conjunto a demais ordens postas pelas instituições sociais, “indicando o quanto as relações de gênero são permeadas pelas relações de poder” (SILVA, 2015).
O matrimônio estável ainda colaborava para o uso da força de trabalho destas mulheres, Simonian (2009) reflete sobre a época colonial, onde a presença do trabalho indígena feminino era, em quase metade, a mão de obra utilizada nas áreas agrícolas; com transformação de diversas matérias primas, cerâmicas, pesca entre outras atividades produtivas, as quais tinham profundo conhecimento.
Ultrapassando a colonização amazônica, as relações patriarcais vêm seguindo o ser mulher ainda em tempos hodiernos, num contexto regional com configurações territoriais e sociais complexas; reproduzindo-se em meio a relações familiares, de trabalho, sobretudo nas relações de produção rural.
4. Movimento de mulheres na agricultura familiar.
A luta das mulheres por seus direitos, traz à tona as discrepâncias de gênero presentes em diversos contextos sociais. A desvalorização do ser mulher é evidenciado por meio dos movimentos, manifestações e demais estratégias, buscando debater e problematizar estas relações desiguais; pautadas em lógicas patriarcais. Uma das frentes de movimentos sociais com forte presença feminina é a agricultura, no Brasil, a luta das mulheres neste âmbito tem início face a conflitos pela posse desigual de terras.
Neste contexto surgem as ligas camponesas, em meados da década de 50, como um dos primeiros movimentos, que se tem o conhecimento, da presença feminina na luta pela terra. No entanto Siliprandi (2009) destaca uma contradição, ainda que as mulheres estivessem inseridas nos movimentos, sua participação era encoberta e até retirada em diversos momentos, em geral focada nos pais e filhos, a presença familiar masculina.
A partir deste momento vemos a lógica patriarcal incutida nas relações agrícolas, refletindo ainda no meio dos movimentos sociais. Sendo a força motriz do processo produtivo e reprodutivo nos núcleos agrícolas, a sobrecarga de trabalho incide diretamente sobre as mulheres.
Na agricultura familiar, além do trabalho na casa, as mulheres participam do trabalho na agricultura (preparação do solo, plantio, tratos culturais, colheitas, pós-colheita) e o trato dos animais, especialmente aqueles de pequeno porte e/ou destinados ao consumo direto da família. Por serem muitas vezes realizadas próximas à casa e concomitantemente a outras tarefas, as atividades agrícolas das mulheres são vistas, em geral, como uma extensão das suas tarefas domésticas ou como uma “ajuda”, não sendo contabilizadas em termos monetários e nem consideradas como “trabalho” (SILIPRANDI; CINTRÃO, 2015, p. 574).
Em meio a agricultura familiar, o núcleo que compõe as unidades produtivas coloca o pai como dirigente dos processos laborais, responsáveis pelas atividades “pesadas” e comando de todos os afazeres, quanta a agricultora, mulher, é incumbida aos trabalhos domésticos, e “leves”. Entretanto, diversas mulheres atravessam o exercício de todas as atividades agrícolas, inclusive quando são as únicas responsáveis pela renda familiar (SILVA, 2008, p. 34).
A desvalorização e submissão da participação feminina tem se manifestado ainda em diferentes âmbitos, refletindo na sua saúde, acesso a renda, programas sociais, econômicos, políticos e demais direitos que, segundo Siliprandi e Cintrão (2015) tem consequências práticas importantes para a vida das mulheres, gerando dificuldades ou impedimentos ao exercício de sua autonomia.
Neste contexto de invisibilidade do trabalho, sobretudo do ser mulher agricultora, recria-se ambientes de organização e mobilização de agricultoras, a partir da década de 80, num contexto de retomada das lutas sociais após anos repressivos promovidos pela ditadura.
As pastorais sociais da Igreja, por meio das Comunidades Eclesiais de Base, são elementos importantes para articular e mobilizar os movimentos pela retomada de sindicatos e estruturação de atividades sociais independentes, sobretudo a organização de mulheres, tendo como incentivo adicional a inserção do debate feminista no Brasil (SANTOS et al, 2013; SILIPRANDI, 2009).
Silva (2008), a luz dos estudos de Herédia e Cintrão (2006) denota o crescimento paulatino dos movimentos de mulheres rurais entre os anos de 1986 e 1988, somente em algumas regiões do país e limitados, dentre eles podemos citar a Confederação Nacional de Trabalhadoras na Agricultura (CONTAG), Movimentos de Mulheres Agricultoras (MMA) que posteriormente seria denominado Movimento de Mulheres Camponesas (MMC), Conselhos Estaduais de Direitos da Mulheres, dentre outros movimentos espalhados pelo Brasil.
Nesta efervescência de organizações e lutas, em 1988, obteve-se a possibilidade de materializar os anseios desta classe agrícola feminina, com a Constituição Cidadã. Agora em nível nacional, dá-se abertura para negociações de políticas públicas voltadas a questão das mulheres rurais, dando visibilidade e força a seus movimentos (SILVA, 2008; SANTOS et al., 2013).
No desenvolvimento da nova Carta Constitucional, obtiveram duas conquistas iniciais, o direito das mulheres à terra, nos marcos da Reforma Agrária e a concessão “à inclusão feminina enquanto beneficiárias da previdência social para todos os fins (aposentadoria, licença-maternidade, licença-saúde) ” (SILIPRANDI, 2009, p. 133), configurando-se enquanto seguradas especiais.
Os movimentos e conquistas abrem uma porta de novas possibilidades as mulheres agricultoras, ampliando a formação destas em grandes e pequenas regiões rurais no Brasil. Dentre estas novas organizações, destacamos na região Amazônica, o Movimento Articulado de Mulheres na Amazônia (MAMA).
Desenvolvido por meio de debates e conferências compostas por agricultoras amazônicas, representantes de diversos estados. Teve papel primordial na “inserção de temas específicos das mulheres amazônicas na discussão sobre políticas públicas, abarcando as áreas de acesso à terra, meio ambiente, saúde, educação, geração de emprego e renda, combate à violência e direitos humanos” (SILVA, 2008).
O protagonismo de mulheres Amazônicas, na percepção de Mourão (2004), vai para além de um reflexo do movimento nacional, evidencia ainda as múltiplas experiências enquanto indígenas, camponesas, pescadoras e extrativistas; são relacionais ao âmbito familiar e de trabalho, constantes nas reflexões e pautas de reivindicações.
A partir da década de 90 vemos a presença das mulheres nas conferências nacionais e internacionais, onde solicitam a participação efetiva nas instâncias decisórias e demais áreas de poder; conquistando posteriormente a garantia destas mulheres nos espaços públicos, com cotas para representantes em instâncias partidárias e sindicais (SILIPRANDI, 2009; MOURÃO, 2004).
No limiar do novo milênio, verificamos o desencadeamento de novas frentes e propostas da luta feminina no contexto rural, com a primeira Marcha das Margaridas realizada em 2000 como reflexo da Marcha Mundial. As demais edições da marcha promovem uma ampliação da rede mulheres e expressões fortalecidas de suas demandas regionais.
Siliprandi e Cintrão (2015), trazem estes movimentos direcionados para reivindicações de políticas produtivas as mulheres agricultoras, ações em prol ao desenvolvimento da agroecologia3 , soberania alimentar4 , reconhecimento das mulheres na agricultura familiar, reforma agrária com acesso à terra para as mulheres 5, combate aos diversos tipos de violências sofridas por mulheres nos espaços rurais e urbanos, dentre outras demandas.
A partir destas lutas, há a inserção de políticas públicas pensadas nas demandas rurais femininas: Pronaf Mulher, linha de crédito e apoio institucional para as Mulheres; Assistência Técnica Setorial, Programa de Documentação da Trabalhadora Rural, Programa de organização Produtiva para as Mulheres Rurais, cotas em Programas como o PAA (Programa de Aquisição de Alimentos) e em demais chamadas públicas relacionadas (SILIPRANDI, 2009; SILIPRANDI e CINTRÃO, 2015).
Se mostra inegável a linha de avanços que estas políticas, frutos de 30 anos em lutas e mobilizações históricas, marcam enquanto novas possibilidades de avanço e empoderamento para as mulheres agricultoras. Entretanto, não se pode desconsiderar as barreiras relacionadas as peculiaridades regionais, econômicas, políticas e relações de gênero ainda preponderantes.
5. Protagonismo das mulheres produtoras agrícolas nas várzeas amazônicas
No momento, serão desenvolvidas descrições e análises fruto das pesquisas de campo com mulheres agricultoras/feirantes do mercado municipal de Parintins. A cidade está localizada na margem direita do caudaloso Rio Amazonas, distante 369 quilômetros da capital Manaus, extremo oeste do Estado. Com cerca de 113.823 mil habitantes, de acordo com estimativas do Censo IBGE 2017. Parintins é o segundo município mais populoso do Amazonas além de ser reconhecida mundialmente pelo Festival Folclórico.
A organização econômica se desenvolve em diversos segmentos, tendo destaque o do setor primário, por meio da agricultura, pecuária, pesca, avicultura e extrativismo vegetal. A produção agrícola é essencial para manutenção das demandas alimentícias no município, disponibilizada no comércio promovido pelas feiras municipais. Uma das feiras lugar de comercialização dos produtos agrícolas familiares é localizada ao lado do mercado central de Parintins, que abriga diversos produtores rurais, sobretudo mulheres agricultoras e pescadoras de camarão, que realizam uma travessia diária pelo rio amazonas, no intuito de realizar a comercialização de sua produção.
As mulheres agricultoras/feirantes das comunidades de Brasília e Catispera têm em suas ações, diversas tarefas estabelecidas em conjunto ao grupo familiar. As relações de trabalho, produção e consumo tem base na participação, destinada primeiramente a sobrevivência dos seus membros.
As relações estabelecidas são interligadas, evidenciando a forma de um sistema onde o todo rural é composto pela cultura, comunidade, trabalho, família, educação, ambientes de várzea, economia agrícola, social, político e tantas matizes relacionais que pertencem as vivências das mulheres pesquisadas. No contexto amazônico, as relações acima destacadas tomam particularidades inerentes a região, sobretudo pelo eixo cultural e ambiental. Dentre as diferenças e permanências, as relações de gênero têm permeado as formas de organizar e agir em meio ao todo ambiental.
As diferenças entre o masculino e feminino tem sido um debate constante na sociedade, diversos movimentos sociais, estudos e pesquisas constroem-se em razão desta questão, sendo que suas expressões atingem diversas mulheres. Um dos campos da vida social que reflete esta discrepância entre sexos é o trabalho.
O trabalho enquanto categoria fundante do ser social (ANTUNES, 2004), promove as demais relações sociais por meio da produção e reprodução de existência dos seres, quando aliado às relações de gênero tomadas por uma lógica diferenciadora, reproduz consigo valores, hábitos, regras e visões de mundo, onde homens têm funções e lugares diferenciados, em detrimento das mulheres.
A lógica patriarcal é ponto nodal deste cenário, onde as questões ligadas ao masculino têm privilégios, enquanto o ser feminino fica responsável e submetido a outros lugares da vida social. Na Amazônia as relações de gênero são direcionadas inicialmente pelos marcos históricos de dominação e submissão dos povos indígenas, sobretudo no tocante as mulheres, como já evidenciado nas discussões de Torres (2005).
As mulheres desta pesquisa não estão imunes aos reflexos desta lógica patriarcal. Contudo, tem-se aspectos diferenciados, principalmente no que tange diversas ações praticadas no contexto rural e urbano, por meio das feiras. As particularidades destas relações serão evidenciadas a seguir, nos temas centrais percebidos no discurso das(os) entrevistadas (os).
5.1 A inserção das mulheres no Trabalho Agrícola e Doméstico
Relativo a esta temática, durante as entrevistas foram perguntadas às mulheres de que forma se realiza a divisão dos trabalhos para homens e mulheres no âmbito da agricultura, seja por idade ou outros fatores que possam diferenciar as atividades. Neste sentido Maria 01 relata “Não, não tem isso, todo mundo tá no trabalho todo dia, quando um não pode tá ajudando na roça o outro vem e assim vai, ninguém fica parado”.
A presença de todos os membros familiares na produção agrícola é evidenciada pela inserção em diversas tarefas (SHANIN, 1976). Frente a necessidade de mão de obra para manutenção da produção, os sujeitos disponíveis para trabalho são inseridos onde há uma atividade disponível, seja pela ausência de outro ou necessidade de maior mão de obra em determinado setor (plantação, pesca, atividades domésticas, etc.).
Duas entrevistadas relatam a divisão de algumas tarefas na área agrícola de acordo com as compreensões de trabalho “leve” e “pesado”. Para as mulheres são repassadas as atividades que não demandam grande dispêndio de força, pois a estatura física não possibilita as mesmas de realiza-las, passando aos homens as ações que demandam forças físicas.
Olha, a macaxeira pra arrancar os homens que arrancam, pra carregar também, agora pra apanhar o milho as mulherada apanham, ai outras coisas mais leve, como colher primenta de cheiro, tirar jambú, ralar o milho e fazer pamonha, ai as mulherada faz isso né(MARIA 04, Pesquisa de Campo, 2018).
Apesar do contexto solidário, de partilha das organizações agrícolas no contexto rural amazônico, não se pode refutar a contradição presente no contexto das compreensões de “pesado” e “leve”. O trabalho relacionado as plantações de hortaliças e demais espécies desenvolvidas por mulheres é somente uma parte das ações desempenhadas por estas no dia-a-dia (TORRES, 2012).
As demais entrevistadas relatam o envolvimento com a preparação do roçado, plantio e colheita,relatam o trabalho por toda madrugada, na pesca do camarão – que demanda cuidados e riscos - bem como a presença nas ações sociais da comunidade, comercialização nas feiras, sobretudo a incumbência aos trabalhos domésticos. Neste sentido, a inserção destas no campo agrícola está longe de ser mensurado em razão do sexo, por suas características físicas, visto que atuam para além dos seus cultivos.
Na organização do trabalho, temos duas áreas a serem destacadas na fala de nossas entrevistadas. A área do trabalho agrícola possui inserção dos membros de maneira diferenciada em relação ao campo doméstico, onde as mulheres atuam em suas atividades com características e visões distintas.
Referente a organização no espaço doméstico, 3 (três) entrevistadas relatam ter o apoio dos maridos e demais familiares, como as noras ou filhas, no desenvolvimento das tarefas diárias, frente a necessidade de constante locomoção para vendas dos produtos na área urbana de Parintins. Portanto, o grupo tende a dividir os “deveres” domiciliares, perante ausência destas mulheres, afim de manter as condições básicas de alimentação e moradia a todos.
No entanto, as demais pesquisadas,03 (três), relatam ter responsabilidade total sobre as atividades domésticas, quando não tem condições de estar a frente destas atividades repassam as demandas as noras, filhas ou outras mulheres moradoras no domicílio.
Um ponto chave para analisar estas características está imbricado a divisão sexual do trabalho, onde Kergoat (2009) aponta como forma de divisão do trabalho social, decorrente das relações sociais de sexo. Sua característica principal é a “destinação prioritária dos homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva, e simultaneamente, a apreensão pelos homens das funções de forte valor social agregado (políticas, religiosas, militares, etc...)”(KERGOAT, 2009).
Em todas as falas, verifica-se a preponderância do ambiente doméstico aos encargos da mulher, ainda que não seja a agricultora/feirante, outra mulher será inserida neste local, afim de manter os trabalhos neste âmbito. A maioria das atividades referentes ao âmbito doméstico ainda é colocado como parte exclusiva do ser feminino, ainda que esta detenha outras atividades a serem desenvolvidas.
Na necessidade de divisão das tarefas entre agricultura e cuidados domésticos, a preferência será o repasse das ações “do lar” para as mulheres, enquanto a roça e demais ações são deixadas a ambos os sexos. A mulher insere-se em diversos espaços (roça, cultivos, trabalho doméstico, pesca e venda), contudo, ao homem fica reservado, em maior parte, o âmbito público pouco adentrando no contexto privado. Essa dinâmica é resultante de um processo educativo, social e cultural presente nas relações sociais, que reproduz uma divisão sexuada ou de gênero no próprio trabalho (TORRES, 2012; SIMONIAN, 2012).
Na contramão desta divisão sexual do trabalho, as mulheres pesquisadas inserem-se para além dos campos “determinados” a sua incumbência, como a pesca, a comercialização das feiras, e as demais atividades necessárias a sobrevivência familiar. Entretanto, a sobrecarga de trabalho e distribuição desigual das atividades no campo reprodutivo (casa e filhos) é um ponto que exprime a persistência das discrepâncias de gênero, reflexo de construções patriarcais regionais, em acordo com Torres (2005).
Para compreensão das relações de trabalho destas mulheres, foi realizada também uma entrevista com 2 (dois) homens, respectivamente companheiros de duas participantes desta pesquisa. Questionados sobre a participação da família e de suas mulheres nas atividades cotidianas, estes respondem,
A gente faz de parceirage sabe, ela ajuda muito...A gente trabalha de...Junto sabe! A família é unida lá, a gente trabalha tudo junto lá, aí a gente planta tudo junto, colhe tudo junto, o dinheiro é só pra nossa família. Tá bom! (COMPANHEIRO 01, Pesquisa de Campo, 2018).
Nós se organiza... Nós se reparte, vamos dizer eu venho pra beira e eles ficam tratando das planta lá a gente se reparte a gente se reveza uns outro...Um dia eu venho com ela pra feira noutro dia eu fico lá por casa pra ver as plantas, cuidar do quintal, vê a roça. É assim que nos se dividi… (COMPANHEIRO 02, Pesquisa de Campo, 2018).
Nos relatos acima, os homens reafirmam o modelo da agricultura de base familiar desenvolvida com a participação de todos do grupo. A divisão é baseada no revezamento das atividades e disponibilidade dos membros, quando a mulher precisa se ausentar para realizar comércio na feira, o homem a acompanha; quando não, ele responsabiliza-se pela continuidade dos cultivos da roça.
O encargo das atividades agrícolas voltadas para o homem, frente a ausência da agricultora, é perceptível nas falas acima destacadas, reforçando a preferência pela presença masculina nesta área do que em outras, em especial as atividades domésticas. Bourdieu (2012) destaca este processo, avaliando ainda que o espaço privado continua sendo controlado pela mulher, pois o roçado “é uma espécie de esfera pública onde se estabelece o lugar do trabalho, tido historicamente como o lugar dos homens” (TORRES, 2012, p. 223), traduzindo-se em relações hierarquizadas.
O reconhecimento dos homens acerca do trabalho destas mulheres tem centralidade nas suas falas, para o Companheiro 01, é imprescindível a participação de sua esposa, sendo o trabalho sempre conjunto ao dela “A gente faz de parceirage sabe, ela ajuda muito... A gente trabalha de...junto sabe!”. Os companheiros têm em seus relatos, a conceituação de ajuda como definição inicial para o trabalho das mulheres agricultoras/feirante nos afazeres cotidianos.
Alguns estudos acerca da valorização das mulheres agricultoras, (TORRES, 2005; DIÓGENES, 2014), trazem discussões acerca da desvalorização das ações femininas, ainda com as múltiplas jornadas de trabalho, suas atividades não são consideradas como trabalho propriamente dito, mas sim como “ajuda”, atividades complementares.
É inegável as matrizes patriarcais que incidem sobre o ser mulher, sobretudo quanto a hierarquia promovida por um processo de subjetivação social, que dita papéis do ser masculino e feminino. Todavia, o termo ajuda tem significado diferenciado no contexto das comunidades ribeirinhas, perpassam seu aspecto pejorativo e negativo de minimização do trabalho feminino.
A ajuda, segundo o dicionário Aurélio (2004) significa dar assistência, auxilio, reciprocidade no amparo e proteção. No modo de socialização das comunidades, as mulheres têm valor central na organização dos trabalhos e da economia, interagindo e contribuindo diretamente no local onde vive, com suas particularidades; detêm o saber fazer, a primazia em suas ações, caracterizando seu papel preponderante no contexto sociocultural (CHAVES; RODRIGUES, 2016).
Não se diz o contrário pelos homens, pois são enfáticos em destacar a participação imprescindível das mulheres em trabalhos desenvolvidos nas comunidade e família. A qualificação ajuda é presente na fala de ambos os entrevistados, mulheres e homens, fazendo parte do cotidiano e valores presentes na construção e manutenção da agricultura familiar amazônica, como exemplificado no relato de Maria 06: “pois assim como eu ajudo ele, ele me ajuda, tanto eu quanto ele, os dois mesmo...”.
Murano e Boff (2010) destacam esta complexa rede de relações, presente nas construções de gênero, onde o combate as relações discriminatórias patriarcais se faz necessária. Neste sentido, buscar entender a inter-relação entre os seres, fomentando “a cooperação de uns com outros”, desvencilhada da lógica de subordinação do ser feminino.
Durante as entrevistas, houve o levantamento da percepção das participantes sobre suas compreensões acerca da participação das mulheres no ramo agrícola, colocando como questão se ainda são homens que desenvolvem a maioria das atividades agrícolas ou as mulheres tem crescido na atuação deste ramo. As entrevistadas destacam a participação feminina na agricultura como superior, em comparação aos homens.
É mais as mulheres! De lá onde eu moro, é mais elas! Pode ver, todo mundo aqui é de lá(comunidade), mas tá maior parte das mulheres aqui vendendo, elas mesmas produzem e vendem tudo nessa parte da feira (MARIA 01, Pesquisa de Campo, 2018).
As mulheres retratam a sua percepção em relação a comunidade onde vivem, evidenciando o protagonismo destas nas atividades da agricultura familiar, bem como nas demais atividades produtivas, com destaque a pesca do camarão. Diversos estudos de gênero e agricultura atestam a crescente participação das mulheres nas atividades agrícolas, sendo as principais responsáveis pela gestão das etapas produtivas, inserindo novas formas de plantio e sustentabilidade nos cultivos (SILIPRANDI, 2009; GARCIA, 2012).
5.2 As mulheres entre a roça e a feira
No que concerne a forma como verificam sua participação na agricultura e feira, as entrevistadas não abrem mão de salientar a lida diária em meio a diversas atividades. Maria 05 destaca “Olha é muito sacrifício, muito mesmo pra gente batalhar, muito puxado...mas pra ter trabalho e sustento a gente tem que fazer um esforço pra gente dequirir um dinheirinho...é sofrido, as parceira da gente porque eu sei que elas são batalhadora” (Pesquisa de Campo, 2018).
As ações desempenhadas por estas mulheres transitam entre a necessidade pelo sustento familiar, o sacrifício presente no cotidiano e a realização pessoal por conquistar a sobrevivência comum. Chaves e Rodrigues (2016) destacam este trabalho do ser amazônico enquanto labor, afastado do entendimento de um termo depreciativo de mera repetição e esforços sem resultados.
O labor do ser feminino pesquisado é pautado na produtividade da família e comunidade “pela lógica da necessidade de prover meios de sobrevivência e manutenção da vida humana e de toda a espécie” (Ibid., p. 59). O trabalho coletivo das mulheres e seus familiares conduz a uma solidariedade, não se resume a produzir objetos ou alimentos, amplia-se para a geração e movimento da vida.
O saber-fazer repassado por meios tradicionais também é ponto guia para a lida constante destas mulheres. A presença, desde criança, observando e participando do processo de plantio e colheita dos pais, promove uma visão diferenciada de trabalho, preocupado com o futuro gerações. Sendo as principais realizadoras das atividades no âmbito da agricultura, é expresso nos relatos delas a força necessária para lidar com as ações cotidianas.
Quatro entrevistadas declaram que em suas lidas diárias são como guerreiras, frente a tantas dificuldades para lidar no fazer cotidiano, seja na agricultura, pesca, âmbito doméstico e vendas na feira, “as mulheres que são mais batalhadoras na agricultura e na pesca também, são firme e forte, são mulher guerreira!”, destaca Maria 03.
Os companheiros também relacionam as mulheres a força, sagacidade nas atividades realizadas diariamente por estas, “não tenho que me queixar dela não, ela trabalha bastante ela, trabalhando na pesca e na feira... mulher que não tem tempo ruim, e nós vive assim na batalha!” (COMPANHEIRO 02). As mulheres agricultoras/feirantes descrevem suas labutas diárias semelhantes a batalhas, confrontos constantes, assemelhando-se ao famoso mito das Amazonas, discutido por Torres (2005), mas desta vez a submissão das guerreiras pelos conquistadores espanhóis é paulatiidnte convertida na luta pela sobrevivência do grupo familiar.
O sentimento de realização ou felicidade expresso em alguns discursos identificados durante a pesquisa não significa dizer, segundo Torres (2012, p. 60), que as condições de trabalho no campo sejam apropriadas, ou que haja a inexistência de diversos problemas, mas “é uma forma subjetiva de alguém que, mesmo reconhecendo as dificuldades da lida do campo, é capaz de fazer uma análise positiva da própria existência em meio aos reveses naturais da vida” (Ibid., p. 60).
Na travessia, de partida e retorno à comunidade, há ocasiões em que seus cônjuges lhes acompanham, seja por meio de barco ou rabeta, transportando estas mulheres até o destino especificado. Das 06 (seis) entrevistadas, 05 (cinco) destas são acompanhadas por seus maridos nas feiras (Figura 01), não sendo durante todos os dias visto a necessidade da presença deste para continuidade das demais atividades na comunidade.
Os homens evidenciam a companhia constante das mulheres nas atividades agrícolas, bem como no cotidiano das feiras, “a gente vem junto com ela, eu tenho barco né, e todo dia. Todo dia eu tô na feira, a gente vem e volta, atravessa esse rio Amazonas muito arriscado...” relata Companheiro 01.
Para o Companheiro 02, as tarefas diárias só são bem-sucedidas se estiver ao lado da mulher. A organização familiar não está direcionada somente na divisão das tarefas, mas leva-se em consideração a presença de ambos para as decisões acerca das ações a serem realizadas.
Na pesca e na agricultura...sempre junto comigo ela fica, não tem um sem o outro. E outra, se nos se largue, as coisas parece não dar muito certo no dia, só batalha junto pra ser tudo como nós precisa, os alimento, os peixe, pra família, é isso ai. Ela tá sempre comigo pra todas as coisas do dia… (COMPANHEIRO 2, Pesquisa de Campo, 2018).
Durante a comercialização na feira, são as mulheres que direcionam as vendas, desde a disposição dos produtos no balcão, negociação, administração do valor e demais atividades relacionadas a esta área. Quando os companheiros são questionados acerca da participação feminina nas feiras, eles respondem que as mulheres estão à frente das vendas, enquanto eles têm função de suporte para necessidades auxiliares como destrocar valores altos, espantar moscas e animais, vigiar o transporte deixado na beira e demais atividades.
A comercialização é área de domínio destas mulheres, na contramão de diversos estigmas da inserção no âmbito público, onde homens detinham maior controle, à frente de questões econômicos, mercadorias e determinação no uso dos recursos provenientes destas atividades (BOURDIEU, 2012; TORRES, 2005).
Os diversos fatores6 que promovem a inserção da economia familiar no processo de trocas monetárias por meio das feiras, também criam espaços de visibilidade e autonomia do trabalho social das mulheres agricultoras/feirantes. Elas iniciam no campo agrícola e tem exposição parcial dos seus produtos e atividades por meio do comércio, são sujeitos centrais na construção de uma economia feminina (SHANIN, 1976; TORRES, 2012).
5.3 Organização das mulheres e o acesso às políticas públicas
Nos ambientes rurais, em contraste ao espaço urbano, a diversidade de ecossistemas (várzea/terra firme) e organizações tradicionais, demonstra as peculiaridades vivenciadas por seus povos. Neste sentido, as políticas públicas direcionadas as demais regiões do país não tem a mesma eficácia em se tratando da Amazônia, sendo necessário desenvolver políticas que contemplem as composições diferenciadas da região, sobretudo pensando na população rural em sua constituição econômica, política, cultural, social e histórica.
As mulheres pesquisadas tem em sua organização diária diversas atividades ligadas à produção agrícola, as estratégias adotadas bem como a participação familiar são os principais bases para realização da agricultura e vendas de excedentes. Questionadas sobre algum apoio ou reconhecimento dos seus trabalhos na agricultura familiar do município, por meio de algum projeto ou política pública que as beneficie, Maria 4 relata:
Não tem projeto nenhum que nos apoie nós trabalhamos por conta própria mesmo, não tem financiamento, tudo do nosso próprio esforço! (MARIA 04, Pesquisa de Campo, 2018).
Como exposto na fala acima, as demais entrevistadas são enfáticas em apontar a ausência de apoio do poder público em relação as atividades produtivas, a percepção delas remete ao sentimento de desvalorização das suas atividades laborais, em vista dos órgãos responsáveis, em especial a Prefeitura Municipal. A presença de políticos e candidatos ao pleito eleitoral nas comunidades e feiras é sinônimo de promessas sem perspectivas de concretização. Aparecem somente em anos eleitorais, trazendo propostas para resolução de diversas problemáticas, entretanto quando passa o período, elegidos ou não, esquecem de suas falas e do povo.
Foi realizada uma entrevista com o Secretário Municipal de Produção e Abastecimento (SEMPA), afim de compreender como se dava a inserção de políticas públicas para a Agricultura Familiar no Município, em especial direcionado as mulheres que trabalham neste campo. O secretário enfatizou o plano de ação desenvolvido pela Administração Atual em conjunto as instituições de pesquisa, extensão rural e demais atores rurais, envolvendo quatro cadeias produtivas: da mandioca, da banana, pecuária leiteira e a piscicultura, estes são campos prioritários no quadriênio 2017-2020, definidos dentro do Plano Plurianual 7.
E a concepção que a gente tem trabalhado dentro desse meio é fazer com que efetivamente nosso produtor rural, produtora familiar, se transformem realmente em atores principais desse segmento, a visão que a gente tá procurando corrigir, uma visão de que o produtor e produtora familiar são pobres coitados, inválidos, e nos temos uma outra perspectiva, de que ninguém é inválido para que todo tempo o Estado esteja ali como tutor, dando tudo o que aquele cidadão ou cidadã necessita, nós temos as ferramentas e cada um tem que procurar fazer sua parte, é nesse contexto que nós procuramos trabalhar as políticas públicas voltadas para o setor primário (SECRETÁRIO, Pesquisa de Campo, 2018).
A percepção do secretário é fomentar no produtor e produtora rural o engajamento para participar de ações e projetos, enquanto atores sociais, que estejam a frente de sua produção sem tutela total do Estado. Considerá-los enquanto cidadãos brasileiros que precisa de um olhar voltado para as questões sociais, ambientais, culturais da produção.
Perguntado sobre especificidade de políticas para as mulheres, o secretário revela que tem procurado desenvolver planos para cooperativas e associações de produtores, em reunião com professores das universidades e técnicos de extensão rural. Inicialmente foram escolhidas as mulheres produtoras da região do Quebra, afim de desenvolver um grupo que funcione dentro das diretrizes legais dispostas para estes grupos formais.
Pois é, nós fizemos um levantamento, Parintins hoje tem 79 grupos organizados, entre cooperativas e associações de produtores, mas somente 03 estão adimplentes, então é um desafio nosso que lançamos la, retornamos ainda no mês de fevereiro e agora em maio tem alguma atração, que é pra justamente começar a trabalhar o primeiro grupo formal de associações de mulheres de Parintins, mas que funcione realmente na plenitude (SECRETÁRIO SEMPA, Pesquisa de Campo, 2018).
A dificuldade principal destacada pelo entrevistado é a captação de recursos para projetos voltados as produtoras rurais, visto que diversos editais de fomento tem prioridade para adesão dos grupos formais de mulheres. Perguntado sobre a previsão de ampliação das ações de intervenção na formação de associações/grupos, o secretário prevê a ampliação paulatiidnte a outras comunidades, podendo chegar as mulheres agricultoras/feirantes da comunidade de Brasília e Catispera.
Compreende-se um plano de trabalho para produtoras rurais ainda em fase de inserção, para além deste projeto, não foram identificadas outras políticas públicas anteriores que sejam direcionadas as mulheres que trabalham no âmbito rural. Torres (2012) traz em seus estudos uma diversidade de políticas conquistadas pelas e para as mulheres a partir da década de 80, dentre elas programas direcionados a organização e fomento da trabalhadora rural.
Podemos citar o Pronaf-Mulher, uma linha de crédito especial para as mulheres. Financia investimentos de propostas de crédito, independentemente do estado civil da mulher. Pode ser usado para investimentos realizados nas atividades agropecuárias, turismo rural, artesanato e outras atividades no meio rural de interesse da mulher agricultora. Outro programa direcionado às trabalhadoras é a Assistência Técnica de Extensão Rural para Mulheres (ATER), tendo por objetivo fortalecer a organização produtiva, promover a produção de base ecológica e ampliar o acesso às políticas públicas (SCHENEIDER; GRISA, 2015).
Durante as entrevistas estes programas e demais ações existentes foram relatadas às mulheres, no entanto estas demonstravam conhecimento parcial, ouviam falar pelos nomes, mas de fato não conheciam qual era a função das políticas públicas, muito menos como poderiam ter acesso a estas ações.
O conhecimento parco em relação aos direitos dos cidadãos é verificado em grande parte da população das comunidades rurais ribeirinhas, o acesso a estas informações não tem sido disseminado. Azevedo (2013) destaca esta fragilidade no que tange o acesso aos direitos da população, sobretudo as mulheres, com suas longas jornadas de trabalho, sofrem com os entraves da localização, isolamento das comunidades, acesso precarizado a serviços públicos dentre outros fatores que influenciam na qualidade de vida da população interiorana.
A educação ou a falta de acesso a ela, é um fator de relevância para esta população, as mulheres participantes de nossa pesquisa tem formação incompleta no ensino fundamental. Este dado é explicado pela debilidade na política educacional promovida nos interiores, onde se encontram escolas com estrutura e recursos humanos insuficientes, oferecendo somente a educação básica inicial dos primeiros anos, aos que desejam dar continuidade a formação, devem deslocar-se aos centros urbanos. Em conjunto a esta problemática, temos os casamentos de meninas ainda adolescentes, entre 13 e 15 anos, a necessidade da inserção contínua nos trabalhos agrícolas e domésticos junto às famílias, dentre outros entraves a conclusão dos estudos para estas mulheres.
Ademais, compreende-se a particularidade dos ciclos das águas, afetando diretamente na organização comunitária, que não são consideradas na construção e implementação das ações e políticas regionais. Como resultado, temos uma população com cidadania ameaçada, mulheres cidadãs fragilizadas, frente a ausência de informações acerca dos direitos e deveres necessários a qualidade de vida destes sujeitos (SCHERER, 2004).
Acerca da participação em movimentos/Sindicatos ou associações específicas de mulheres, as entrevistadas relatam não ter participação neste tipo de mobilização feminina, como destacado no discurso de Maria 06 “Nada, num tenho ainda...porque ia ter essa associação do camarão, mas ai foi foi foi e para, só aquela animação e depois para, ai eu já espero pela colônia” (MARIA 06, Pesquisa de Campo, 2018).
As agricultoras/feirantes são associadas em outros tipos de instituições, 3 (três) delas estão vinculadas ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais, 2 (duas) estão ligadas ao Colônia de Pescadores e somente uma não está em nenhum tipo de organização, pois já está aposentada, mas anteriormente também estava vinculada ao grupo formal de pescadores.
A presença das mulheres na Colônia de Pescadores está ligada a realização da pesca de camarão, bem como o recebimento do Seguro Defeso 8, que garante recebimento de um valor durante o período específico para reprodução de algumas espécies de pescado, em acordo as determinações de órgãos ambientais.
O principal motivo em permanecer no Sindicato Rural está ligado ao processo de organização dos documentos e requerimento da aposentadoria enquanto trabalhadora rural, como relatado pelas entrevistadas. Como não tem conhecimento dos trâmites legais para realizar a solicitação do benefício, as mulheres tendem a procurar auxílio nos sindicatos, bem como na colônia de pescadores, como presente na fala de Maria 04:
Eu tô correndo atrás disso, eu to lá no sindicato agora com meus documentos lá, esperando que eles marquem agenda pra mim, quando eles agendarem e me chamarem...espero que eu consiga né (risos) me aposentar (Pesquisa de Campo, 2018).
A ausência de um movimento/sindicato/grupos de mulheres produtoras rurais e feirantes reforça a fragilidade do conhecimento e acesso as políticas públicas disponíveis. O grupo mobilizado não se restringe a atuar na organização ao âmbito laboral, mas fomenta a luta pelas condições essenciais de vida, saúde, educação, e as demais necessidades sociais.
Torres (2012) é enfática ao definir a política pública enquanto forma de reorganizar o desenvolvimento social dos povos de área rural, compreendendo o conjunto sócio-cultural e espacial presente nestes ambientes. Somente a organização política, a luta comunitária pode abrir portas para os direitos e mudanças.
Conclusão
As relações de gênero presente nas vivências das mulheres agricultoras/feirantes são detectadas com assimetrias, ainda que a mulher tenha ampliado seu espaço de participação no âmbito público, os homens não ampliam suas ações aos trabalhos domésticos (privado). A realização das diversas ações ainda é pincelada por questões patriarcais, de repasse dos cuidados de casa e filhos relegados somente as mulheres.
O discurso dos homens participantes é impregnado pela “ajuda” designado as ações cotidiana das agricultoras/feirantes, questão presente e problematizada por alguns estudos utilizados para construção da proposta desta pesquisa. Todavia, os companheiros são enfáticos ao destacar a participação das mulheres em todas atividades, a importância delas na organização agrícola, familiar e econômica não é escondida pelos pesquisados.
O termo não perde sua compreensão depreciativa, mas na configuração das relações comunitárias da Amazônia, é utilizado comumente para enfatizar a lógica solidária presente no cotidiano dos povoados. Não obstante, as políticas públicas para agricultura, escoamento e comércio dos produtos são desconhecidas por estas mulheres. Nem mesmo as ações pensadas pela SEMPA e demais órgãos públicos, são viabilizadas a este grupo de feirantes.
As políticas sociais seguem este contexto, algumas das mulheres inserem-se em sindicatos e associações para que o processo de aposentadorias e demais benefícios sejam resolvidos por estas instituições. É primordial pensar a formação de grupos específico das mulheres agricultoras e feirantes, como forma de viabilizar a autonomia e emancipação das mulheres na formulação, participação e acompanhamento das políticas públicas, afim de desenvolver ações adequadas as particularidades das vivências de várzea, familiares e produtivas tradicionais.
O trabalho destas mulheres tem valor material e imaterial para reprodução dos conhecimentos amazônicos. Por meio de suas práticas, as comunidades e futuras gerações mantêm relações de sustentabilidade ambiental e continuidade da agricultura familiar tradicional dos povos ribeirinhos, que podem ser expressas e reconhecidas na realização das feiras regionais.
O ser mulher ultrapassa o significado aparente de suas ações na agricultura, ampliando espaços de autonomia por meio da feira. As relações nas quais estão inseridas, refletem em todas as questões presentes nas comunidades de Brasília e Catispera. Portanto, é primordial pensar as interações da comunidade, poder público, homens e mulheres por meio da alteridade, na busca das relações mútuas entre os sujeitos. A conquista deste novo pensar humano, possibilitará caminhos para a mudança das relações patriarcais de desigualdade, viabilizando novas relações integrais com equidade entre os gêneros.
Referências
AGUIAR, Neuma. Perspectivas feministas e o conceito de patriarcado na sociologia clássica e no pensamento sociopolítico brasileiro. In: AGUIAR, Neuma (Org.) Gênero e Ciências Humanas: desafio às ciências desde a perspectiva das mulheres. Rio de Janeiro: Rosa dos Ventos, 1997. p. 161-191.
ALBANO, Ronaldo Matos. Os estudos sobre gênero ao longo da história. IN: I Simpósio Norte e Nordeste sobre Representações Sociais e Interdisciplinaridade - Piauí: UFPI, 2006.
ANTUNES, Ricardo (Org.). A dialética do trabalho: escritos de Marx e Engels. São Paulo: expressão popular, 2004.
AZEVEDO, Nadma Oliveira de. O ACESSO DAS CULTIVADORAS DE MALVA DA COSTA DA ÁGUIA – PARINTINS-AM ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS. 2013. 120 f. TCC de Graduação em Serviço Social. Parintins, 2013.
AZEVEDO, Nadma Oliveira de. O ACESSO DAS CULTIVADORAS DE MALVA DA COSTA DA ÁGUIA – PARINTINS-AM ÀS POLÍTICAS PÚBLICAS. 2013. 120 f. TCC de Graduação em Serviço Social. Parintins, 2013.
BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Trad. Maria Helena Kuhner. 11ªed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2012.
CHAVES, M. P. S. R.; RODRIGUES, D. C. B. Organização sociocultural e tecnologias sociais no trabalho das mulheres amazônidas. Manaus: EDUA, 2016.
CISNE, Mirla. Gênero, divisão sexual do trabalho e serviço social. São Paulo: Outras Expressões, 2012.
DIOGENES, Antônia Mara Raposo. As camaroeiras, as pescadeiras e o arreio: pesca artesanal do camarão e conservação ambiental em comunidades de várzea no município de Parintins-AM / Antônia Mara Raposo Diogenes. 2014.
FREYRE, Gilberto. Casa-grande & senzala. Rio de Janeiro: Editora Record, 2002.
FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mucambos. 16ª ed. São Paulo: Global, 2006.
GARCIA, Lorely. Meio ambiente e gênero. São Paulo: Editora Senac, 2012.
GROSSI, Miriam Pillar. Identidade de Gênero e Sexualidade. Antropologia em primeira mão, n.24, Florianópolis, PPGAS/UFSC, 1998.
KERGOAT, Daniele. Divisão Sexual do trabalho e relações sociais de sexo. In: HIRATA, Helena et al. (Org.). Dicionário crítico do feminismo. São Paulo: Unesp, 2009, p. 67-75.
MOURÃO, Patrícia de Lucena. Um Olhar De Gênero Sobre A Reconstrução Da Agricultura Em Abaetetuba, Pará. 2004. 163 f. Dissertação (Mestrado em Agriculturas Familiares e Desenvolvimento Sustentável) - Universidade Federal do Pará, Belém. 2004.
MURANO, Rose Marie; BOFF, Leonardo. Feminino e Masculino: uma nova consciência para o encontro das diferenças. Rio de Janeiro. Editora Record, 2010.
PATEMAN, Carole. Críticas feministas à dicotomia público/privado. In: MIGUEL, Luis Felipe; BIROLI, Flávia. Teoria política feminista: textos centrais. Vinhedo: Horizonte, 2013.
PISCITELLI, A.; SANTOS, G. S. Gênero e representações sociais. In: Encontro Enfoques Feministas e as tradições disciplinares nas ciências e na academia, Niterói, Anais... Niterói: UFF/PROEX/NUTEG/REDEFEM, p. 89-98, 2001.
PISCITELLI, Adriana. “Recriando a categoria mulher?” IN: ALGRANTI, Leila (Org.) A prática feminista e o conceito de gênero. Campinas: IFHC – Unicamp, 2002.
SAFFIOTI, H. A mulher na sociedade de classes. Rio de Janeiro: Vozes, 1976.
SAFFIOTI, Heleieth Iara Bongiovani. Gênero, Patriarcado e Violência. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2004.
SANTOS, B.; JESUS, M. E. O.; OLIVEIRA, L. B.; OLIVEIRA, F. S. Um enfoque acerca da historia e lutas do movimento de mulheres camponesas no município de Caeté – BA. I Simpósio Baiano de Geografia Agrária e XI Semana de Geografia da UESB. Anais., Vitória da Conquista- BA, 2013.
SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas: 1ª série- ensino médio. 1ª ed. Rio de Janeiro: MemVamMem, 2010.
SCHENEIDER, S.; GRISA, C. Políticas públicas de desenvolvimento rural no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015.
SCHERER, Elenise (et al). Políticas sociais para os povos das águas. In: Cadernos CES, n. 207. Salvador-2004.
SHANIN, Teodor. Naturaleza y lógica de la economia campesina. Editora Anagrama: Barcelona, 1976.
SILIPRANDI, Emma; CINTRÃO, Rosângela. Mulheres Rurais e políticas públicas no Brasil: abrindo espaços para o seu reconhecimento como cidadãs. In: GRISA, C.; SCHNEIDER, S (Orgs.). Políticas Públicas de Desenvolvimento Rural no Brasil. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2015.
SILIPRANDI, Emma. Mulheres e Agroecologia: a construção de novos sujeitos políticos na agricultura familiar. 2009. 292 f. Tese. (Doutorado em Desenvolvimento sustentável) Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Sustentável, Universidade Brasília – UNB. Brasília. 2009.
SILVA, Lianzi dos Santos. Mulheres em cena: as novas roupagens do primeiro damismo na assistência social. Dissertação (Mestrado em Serviço Social) – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009.
SILVA, M. C. O paiz das Amazonas. Manaus: Editora Universidade do Amazonas, 1996.
SILVA, Maria Evaneide Pantoja da. Socialização de Agricultoras no Movimento de Mulheres no Nordeste Paraense. 2008. 92 f. Dissertação (Mestrado em Agriculturas Amazônicas) – Universidade Federal do Pará, Belém. 2008.
SILVA, Sandra Helena da. Autopoiese nos Agroecossistemas das Ilhas de Valha-meDeus e Chaves – Juruti/ PA. 2015. 237f. Tese (Doutorado em Ciências do Ambiente e Sustentabilidade na Amazônia) – Universidade Federal do Amazonas, Manaus. 2015.
SIMONIAN, Ligia T. L. Mujeres y conocimientos ancestrales em la Amazonia, Brazil. In: FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto; WITKOSKI, Antônio Carlos; CASTRO, Albejamare Pereira (Org.). Amazônia: cultura material e imaterial. São Paulo: Annablume, 2012
STREY, Marlene Neves. Gênero. In: STREY, Marlene Neves (Org.). Psicologia Social Contemporânea. Petrópolis, RJ: Vozes, 1998.
TORRES, Iraildes Caldas. As novas Amazônidas. Manaus: EDUA, 2005.
TORRES, Iraildes Caldas. O ethos das mulheres da floresta. Manaus: Editora Valer / Fapeam, 2012.
*Bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado do Amazonas – FAPEAM email: prestes.alline@gmail.com