Maria Liziane Souza Silva *
Maria das Graças Silva Nascimento Silva**
Josué da Costa Silva***
Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Brasil
liziane.souza.silva@hotmail.com
Resumo: A mulher contemporânea tem avançado muito em suas conquistas. Tratada muitas vezes como frágil mostrou no decorrer dos tempos ela mostrou que sempre foi forte, ousada e talentosa nas diferentes adversidades. Mais do que identificar problemas, ela busca encontrar soluções. Neste estudo priorizaremos os relatos, as memórias, vivencias e experiencias de duas seringueiras aposentadas e descendentes de nordestinos, residentes no Estado do Acre que vivenciaram o segundo surto da borracha na Amazônia durante a década de 1940, época de Segunda Guerra Mundial dentro de seringais acreanos. As intensas propagandas do governo federal retratavam a região como terra da fartura e da vitória. Mas os relatos revelam que as condições dos seringueiros eram difíceis e precárias, principalmente quanto a questão da mulher. O Método utilizado neste estudo foi o Fenomenológico por comtemplar as percepções, as subjetividades, emoções e afetividades dos indivíduos. A técnica adotada neste estudo foi a da fonte oral, uma forma de difusão do saber e dos dados para a ciência. De modo geral, pretende-se contribuir para a atualização, debate e enriquecimento teórico sobre a temática.
Palavras Chaves: Mulher; Seringueira; Amazônia/Acre; Vivência.
Abstract: The contemporary woman has advanced much in its conquests. Treated many times as fragile showed over the course of time she showed that she was always strong, bold and talented in the various adversities. More than identifying problems, it seeks to find solutions. In this study we will prioritize the reports, memories, experiences and experiences of two rubber workers retired and descendants of Northeasterners living in the State of Acre who experienced the second rubber outbreak in the Amazon during the 1940. The intense propaganda of the federal government portrayed the region as a land of plenty and victory. But the reports reveal that the conditions of the rubber tappers were difficult and precarious, especially regarding the issue of women. The Method used in this study was the Phenomenological to contemplate the perceptions, subjectivities, emotions and affectivities of individuals. The technique adopted in this study was that of the oral source, a form of diffusion of knowledge and data for science. In general, we intend to contribute to the updating, debate and theoretical enrichment on the theme.
Keywords: Woman; Rubber tree; Amazon/Acre; Experience.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Maria Liziane Souza Silva, Maria das Graças Silva Nascimento Silva y Josué da Costa Silva (2019): “Heroínas da Brenha”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (enero 2019). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2019/01/heroinas-brenha.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1901heroinas-brenha
1 INTRODUÇÃO
Passado o primeiro surto da economia da borracha na Amazônia, durante décadas finais do sec. XIX e início do sec. XX, seringais amazônicos mergulham na ruína de um declínio advindo da grande concorrente internacional asiática.
Benchimol (1977) revela que a partir da década de 1930 a borracha atinge valores mínimos de exportação, uma perda de quase 92%. Mas é durante a década de 1940 que essa economia novamente é reacendida, durante a “Batalha da Borracha”, em período da Segunda Guerra Mundial.
Novamente abre-se um cenário cheio de perspectivas de reacender uma economia que fora considerada uma das principais do país. É neste contexto que acontece outra migração para a Amazônia, em sua maioria feita por nordestinos acompanhadas ou não de suas famílias em busca de novas oportunidades. O Estado do Acre foi um dos Estados amazônicos que recebeu estas pessoas.
Entre milhares desses migrantes estão a família da Sra. Oscarina Alves de Souza, hoje com 90 anos e da Sra. Maria dos Anjos, 85 anos, descendentes de famílias nordestinas que vieram para o Acre sob fortes incentivos. Dentro dos seringais, elas amargaram a dura e controversa realidade daquelas divulgadas pelos cartazes da mídia brasileira que descreviam o lugar como terra de riqueza abundante e fácil.
O objetivo deste estudo é refletir através dos relatos destas mulheres quais os perigos e adversidades vividos por elas dentro dos seringais; que tipo de trabalho realizavam e sua reflexão sobre este processo em relação ao tempo atual. A ideia é olhar sobre este outro ângulo e mostrar que existem outras belas histórias invisibilizadas tão necessárias de ser mostradas, uma vez que foram elas participantes ativas deste processo e não ser comum encontrar registros na história sobre seringueiras.
Ademais, atualmente a temática de gênero ganha cada vez mais força e destaque como área de investigação conforme Monk (2011, p. 95), “as publicações de geógrafas/os que abordam temas de gênero geralmente apresentam resultados de investigação [...], tem implicações nas mudanças da sociedade em geral”. Esse destaque vem da luta que a ciência geográfica abraçou, marcada por privilégios de sexo e de raça, dificultando a expressão das espacialidades dos grupos das mulheres (SILVA, 2009). Além disso, Spivak (2010) enfatiza que quando a mulher subalterna não encontra mais caminhos para se fazer ouvir, ela procura a mulher intelectual, pois esta poderá lhe compreender e proporcionar a transmissão dos seus relatos de vida. É justamente com o respaldo de Spivak, que optamos pelo desafio de poder fazer falar estas vozes silenciadas há tempos.
2 METODOLOGIA
Neste estudo elegemos o Método Fenomenológico, importante na geografia pois aposta nas experiências dos sujeitos, sua forma de sentir, percepção e seus conhecimentos (GOMES, 1996).
O Método, conhecido como “volta às coisas mesmas” por Husserl (1989) em combate a adoção do empirismo e do psicologismo, buscou se consolidar liberto das pressuposições e certezas positivas que permeiam o discurso das ciências empíricas, pois acreditasse que a suprema fonte de todas as afirmações racionais é a consciência doadora imaginaria.
Foi através da troca dos sentimentos empáticos, valorando as sensibilidades destas mulheres, ouvindo cada particularidade, que optamos pelo método fenomenológico.
Quanto a técnica escolhemos a Fonte Oral pois é considerada a maior fonte humana de conservação, difusão do saber e de dados para a ciência. Constitui-se como a primeira espécie de história e base primaria para a obtenção de qualquer forma de conhecimento, seja ele científica(o) ou não. A técnica abrigar-se em testemunhos, promove analises, elabora documentos, estudos referentes à experiência social de pessoas e de grupos. Caracteriza-se como história do tempo presente também reconhecida como história viva. (GONÇALVES e LISBOA, 2007)
Para realização deste processo as seguintes etapas foram alcançadas:
A escolha desta metodologia visa dar espaço à estas mulheres anônimas para a produção e divulgação de suas histórias. Ouvir estes relatos foi como voltar ao tempo, fazer este tempo presente, algo vivo, que é na verdade, nosso esforço aqui. Poulet (1992), afirma que é graças a esta memória, que o tempo não está perdido. E apesar de entender que o uso oral não é uma, é uma representação exata do que existiu, e é através deste esforço que buscamos propor uma inteligibilidade, dando voz a estas seringueiras. Ouvir e descrever estas histórias pôde atenuar o campo de nossas indagações.
3 ÁREA DE ESTUDO: O ESTADO DO ACRE
O recorte espacial escolhido para este estudo foi o Estado do Acre localizado Sul da Amazônia brasileira, região que ainda abriga milhares destas mulheres seringueiras. Escolhemos duas regiões no Estado que eram principais portas de entrada de migrantes nordestinos durante a economia da borracha: a cidade de Rio Branco, as margens do Rio Acre, situado no leste do Estado e o município de Mâncio Lima, extremo oeste, próximo às margens do Rio Juruá.
O Acre é um Estado que historicamente tem sua economia acreana baseia-se no extrativismo vegetal sobretudo da exploração da borracha. No primeiro momento da economia extrativista os rios amazônicos serviam de estradas para milhares de seringueiros que chegavam sozinhos ou acompanhados por suas famílias através de navios desde os portos de Belém -PA até chegarem ao Acre.
O Acre é considerado novo. Somente em 15 de junho de 1962, através da Lei 4.070, foi elevado da condição de Território Federal para a categoria de Estado (ACRE, 2009). Está localizado na Amazônia sul ocidental, entre as longitudes de 66º38’ WGr e 74º00’ WGr e latitudes 7º07’ S e 11º08’ S, fazendo limites internacional com o Peru e a Bolívia e divisas estaduais com Rondônia e o Amazonas. Possui uma área de 164.123,737 km², representando 1,92% do território nacional e 4,26% da região norte. É o 15º Estado brasileiro em extensão territorial (ACRE, 2008) e hoje sua demografia é de 4,47 hab/km² com estimativa populacional para 2017 de 816.687. Atualmente este Estado possui 22 municípios e tem como capital a cidade de Rio Branco. (Brasil, 2010).
Este Estado, de uma gente com forte relação com a floresta, seja na condição de seringueiros, indígenas ou ribeirinhos se constituiu através dos milhares de famílias provindas principalmente do nordeste brasileiro, que aqui chegaram carregados de anseios, sonhos e grandes expectativas de fazer fortuna através das inúmeras propagandas da época que colocava este espaço como terra da fatura.
4 A BATALHA DA BORRACHA
Em 1939 o conflito mundial correu do Atlântico ao Pacifico alcançando o Oceano Indico e pelos mares da China. A principal concorrente do Brasil exportadora da borracha, a Ásia, teve suas plantações arrasadas pela guerra. A perda dos seringais da Malásia, e da borracha, matéria-prima usada e necessária durante a guerra, constituiu uma derrota sem precedentes, pois os países aliados ficaram impossibilitados de se abastecerem dela no Oriente. A alternativa agora era da única fonte situada no mediterrâneo amazônico. Assim, de uma hora para outra, a Amazônia viu-se envolvida no conflito mundial, em função do retorno “forçado” do monopólio da borracha silvestre (BENCHIMOL, 2010). A Malásia teve quase 100% de suas plantações de seringas arrasadas pelos bombardeios japoneses (MARTINELLO, 2004).
O longo período decadente vivido pela economia da borracha brasileira mudaria esse quadro no momento em que sua principal concorrente, a Ásia, tivera suas plantações devastadas pela guerra. Era o momento de reavivamento da economia. A partir de 1942, durante o período da Segunda Guerra Mundial o Brasil novamente se destacaria como principal fornecedor dessa matéria prima. Era o segundo surto da borracha na Amazônia (OLIVEIRA, 1985).
Mas era necessário buscar um vasto contingente de mão de obra para cortar seringa na Amazônia. O envolvimento do Brasil na Segunda Guerra Mundial se deu através do fornecimento de contingentes militares para as frentes de combate e também firmou convenio com a agencia norte-americana responsável pelo controle da produção e exportação da borracha, a Rubber Reserve Company nos chamados Acordos de Washington 1, feitos para a necessária assistência básica aos soldados da borracha. Incentivos goveridntais brasileiros começam, entre eles cartazes otimistas e slogan como “borracha para a vitória”, mobilizando novamente extratores de diversos estados, inclusive os veteranos nordestinos. Estes, coincidentemente com o primeiro surto da borracha, passavam novamente por mais uma seca reunindo cerca de 20 a 30 mil flagelados para se alistarem a trabalhar nos seringais da Amazônia. Seria um plano organizado e cauteloso (MARTINELLO, 2004).
A imagem acima expressa os métodos publicitários de responsabilidades do Departamento de Propaganda e Imprensa – DIP, do Governo Getúlio Vargas, para trazer o nordestino novamente à Amazônia (SANTANA, 2012). As figuram revelam um poder de influência ideológica, colocando a região como terra da fartura, terra da vitória, mostrando caminhões carregando toneladas de borracha colhidas com fatura pelos trabalhadores, sem uma verdadeira conexão com a realidade que os esperavam. A contratação do artista plástico, crítico de arte, publicitário, musico e agitador cultural, o pintor suíço Pierre Chabloz, responsável pela propaganda da “Campanha da Borracha”, foi fundamental para a persuasão das pessoas. Era o trabalho de uma elite intelectual promovendo contundentemente uma ideia de que “o paraíso verde” seria sem resquícios de dúvidas a única solução para acabar com o estado de miséria que acometia o povo sertanejo do Nordeste brasileiro. (MORAES, 2010).
É por meio de Bakhtin (1999) que entendemos quão forte era o poder destas propagandas, usadas como signos, de caráter ideológico para o exercício do poder. Segundo o autor a forma mais eficaz de intervir nas relações sociais é por meio do discurso interior, ou seja, da ideologia. Isso porque a palavra seria carregada de um teor discursivo que tenta convencer o outro a aceitar a sua ideologia como aceitável sendo a mais apropriada para o meio social.
Esse discurso ecoou forte persuadindo famílias a migrarem à terra da fartura dando início a largada da marcha para o Oeste. É sob esse sistema de incentivos que ocorre novamente outra migração nordestina para a Amazônia e o Acre será um dos receptores destes extratores.
Mas a vida dentro dos seringais não chegava nem perto daquilo que as propagandas pregavam. A situação da mulher nesse contexto era de grande invisibilidade. E apesar de terem sido uma das peças fundamentais para sobrevivência das famílias, usadas muitas vezes sob toda espécie de utilidade, foram totalmente negligenciadas pela historiografia. Em alguns registros do Ceará os dependentes do homem migrante (parentes, filhos e mulheres) eram descritos simplesmente como quantidade e não discriminados por nome (LAGE, 2010; COSTA, 2005) mesmo sendo essa quantidade tão expressiva quanto ao do homem. Segundo Censo Demográfico Nacional de 1940, distribuído por gênero, existia na região Amazônica cerca de 438.008 habitantes sendo 212.281 de mulheres e 225.727 de homens. O Censo Nacional datado entre 1872 a 1920 ao ser desagregado por sexo já revelava o número de migrantes de 45,49% mulheres e de 54,51% (BRASIL, 1950; LAGE, 2010).
Estes números retratam a visibilização que predominava o gênero feminino, peças decisivas para a subsistência desse processo migratório.
Dentro dos seringais estas mulheres também desempenhavam papel na agricultura e extração da borracha, em condições insalubres e forte sistema de exploração. Na verdade, essa era uma estratégia usada pelos patrões, quando permitia a entrada de mulheres e famílias no seringal fazendo crescer os níveis de sua produção (WOORTMANN, 1998).
É sob este contexto que será narrado a história de duas seringueiras que vivenciaram este processo dentro de seringais acreano.
5 MEMÓRIAS E VIVENCIAS
Este tópico aborda a história de duas mulheres que tiveram suas vidas marcadas pelo período da segunda economia da borracha na Amazônia. As entrevistas foram realizadas em fevereiro de 2017, com a Sra. Maria dos Anjos, 85 anos, durante viagem realizada no município de Mâncio Lima Acre, extremo oeste do Estado e do país, e no mês de março com a Sra. Oscarina Alves de Souza, 90 anos, na cidade de Rio Branco, capital do Acre.
Questionada sobre suas vivencias e os perigos enfrentados ataques de animais silvestres e como faziam no caso de doenças a Sr. Maria em um respirar profundo e um olhar ao o horizonte, como se estivesse voltando no tempo, responde:
Naquela época quem num trabalhava vivia na miséria, num tinha quem desse nada pra ninguém não! Se trabalhasse ainda vivia com sacrifício! Trabalhar no sapecado mesmo, no danado, era na roça, era na seringa, era no mato, era no marisco, tudo era com sacrifício...., tirar aquele tiquim...., se quisesse viver! [...] Tinha onça, Ah, tinha, nos centros bons tinha ne [...]. A doença que tinha nessa época era... o paludismo, era.., que hoje é a malária, paludismo era mais fraco ne. Era tratado com coisas assim na mata mesmo, remédio caseiro, era raitilima, coisa de magirioba, fazia o chá tomava, amargava! com as piulas, metoquina, aquelas piulas pra malária. (Entrevista concedida em fevereiro de 2017)
No discurso de dona Maria as grandiosas propagandas de cunho nacional caem por terra no momento em que estes seringueiros depararam-se com a cruel realidade dos seringais. Não havia facilidade para ninguém, muito pelo contrário, a dificuldade imperava. Cai por terra neste momento o discurso da “terra da fatura”, “terra do dinheiro” prometida(o) para esses trabalhadoras(es).
Quanto aos trabalhos da mulher, esta não se limitava somente aos afazeres domésticos. Era ela peça fundamental em todos tipos de trabalhos pesados, ensinadas desde criança.
Eu já trabalhava desde quando era solteira ne, com minha mãe, com primo que nos criava, tudo era eu, era.., me virava. Minha mãe doente, eu quem aguentava minha mãe. Alimentação, não tinha pai, não tinha irmão, tinha ninguém. Ai eu ia trabalhar, cortava seringa! Sete anos cortei seringa. Quando eu me casei, eu cortava seringa, meu marido cortava seringa. Ai tive dez filhos. Mas depois que me casei não cortei mais não, fui cuidar dos meninos. Cortava seringa, plantava...., mulher num faz que nem hoje em dia não que num sabe nem como coloca um rebolo de maniva dentro de um chão! A mulher fazia tudo naquela época, derrubava pau, de machado, fazia tudo. (Entrevista concedida em fevereiro de 2017)
Este relato confirma a importância exercida diante várias situações, todavia confirma sua invisibilidade e diante do processo da economia da borracha, uma vez que não foram “notadas” pela história da economia. O trabalho do homem era facilmente compartilhado com a mulher no papel de seringueira e agricultora, que era muito bem exercido por elas principalmente nos momentos cruciais de suas vidas, como por exemplo, em casos de doenças dos homens (maridos).
Em relação à fortuna que prometiam os cartazes das propagandas, dona Maria revela que o ganho se limitava somente as necessidades básicas e que não foram eles os verdadeiros donos daquela riqueza propagada. Ela ainda faz sua reflexão comparando o tempo de antes com o agora e traz uma surpresa:
Deu pra ganhar pra comprar o necessário ne, comprara as coisinhas de casa ne. Ganhar muito dinheiro, irricar não, não minha filha! Deus pros patrão. Gostava daquela época, trabalhava muito, mas gostava. Era pobre, toda vida fui pobre. Nasci na pobreza, me criei na pobreza, passei fome, passei sede, passei trabalhando tanto, mas eu gostava, foi a vida que Deus me deu [...] Era muito sacrifício, mas dava pra viver, num tinha tanta violência que tem hoje, só se fosse assim, um negócio lá, um acidente, um pau na mata, uma cobra, mas as pessoas saia e a gente ficava tranquilo. Hoje em dia, sai uma pessoa, seja pra qual canto for, a gente já fica pensando..., naquela época não. Tempo bom, eu achava, que era o nosso. E todo mundo, num tinha estudo..., mas todo mundo tinha educação, respeitava, educação domestica ne, todo mundo tinha. Onde é que uma pessoa passava pela gente e num dava as horas! Senhor, senhora, não senhor, não senhora. Hoje em dia se chama: oi! Ou então: o que é? Pode ser filho, pode ser neto, pode ser lá quem for ne. Não tem quem responda mais senhor, senhora. Isso tudo é erro ne, pra eles não são. (Entrevista concedida em fevereiro de 2017)
Sem dúvida “a terra da fatura” não fora para aquela grandiosa mão de obra escalada para desbravar as imensas florestas de seringais na Amazônia, mas sim, para àqueles proprietários deste espaço. Contudo, apesar de todo sofrimento vivido por elas(es), surge a surpresa na sua a afirmação: “Tempo bom, eu achava, que era o nosso”. O primeiro questioidnto que vem é: Não seria contraditório? Como explicar isso? Talvez essa questão seja respondida através das ideias de Halbwachs, (1990):
Certamente é inevitável que as transformações de uma cidade e a simples demolição de uma casa incomodem alguns indivíduos em seus hábitos, perturbem-nos e os desconcertem [....] faziam parte de seu pequeno universo e cujas lembranças se ligam a essas imagens, agora apagadas para sempre, sentem que toda uma parte de si mesmo está morta com essas coisas e lamenta que elas não tenha durado pelo mesmo tanto de tempo quando lhe resta para vive. (HALBWACHS, 1990, p.37).
A fala do ator justificaria a saudade de dona Maria por esse tempo árduo, retratando um espaço da saudade, do pertencimento e apego e, apesar de definirem como tempos difíceis ainda assim optarem por eles. Acrescenta-se a isso o peso dos novos padrões sociais e familiares que vigora hoje em que ela não se adapta.
Dona Oscarina, descendente de nordestino viveu todo processo da borracha dentro dos seringais, confirma as dificuldades e nos relata uma das situações extremas vivenciadas pela mulher naquela época.
O trabalho era difícil, só acordava de madrugada. Tinha estrada que era longe [...]. Quando a mulher ganhava neném era com as parteiras. Tinha uma que morava com duas horas, viajava de noite ne. [...] naquela época, era época de falta de mulher nos seringais, então quando sabiam que um seringueiro tinha uma mulher, eles se reuniam, uma turma, dez, quinze, e iam tumar a mulher. Se ele se revoltasse, ele matava ele lá, e levava ela. A combinação era que cada um daqueles passava um mês com ela. O último tinha a obrigação de ficar com ela. Se a mulher reclamasse murria também. A mulher não podia nada. (Entrevista concedida em março de 2017)
Esse relato nota-se quão era difícil. Sem a existência de médicos, também eram destas mulheres o papel de se deslocar por horas e horas de caminhada, até mesmo de noite, para ajudar a companheira que estava à espera de um bebe. A ajuda dessas parteiras era vital. Contudo, a situação mais alarmante é sem dúvida do machismo opressor que regia e ditava regras. Sem maiores perspectivas muitas destas mulheres foram tratadas como produto de conquista pessoal e a servir os desejos dos homens.
Dona Oscarina também confirma que não foi agraciada com o vultuoso dinheiro da borracha e declara preferência pelo espaço seringal.
Não. Num ganhei não, porque no seringal que trabalhei dava pouco leite ne. [...] Hoje tá tudo mais fácil. Agora pra mim não tá porque eu tô velha, não tenho mais força ne, não aguento mais andar. Mas tenho saudade da mata. Isso é que tenho saudade, da época de fazer as coisas. Nos viemos pra Rio Branco por causa do estudo das meninas. Já tá com 27 anos que cheguei. Eu num queria vir não. (Entrevista concedida em março de 2017)
Apesar de todas as dificuldades enfrentadas, da pobreza, as duas entrevistadas possuem maior apreço por aquela época. Comparam o tempo de antes e de hoje em relação à segurança diária, a perda da educação doméstica, aos valores sagrados por elas naqueles tempos. A saudade da mata, na natureza pura também é uma das coisas que remetem boas lembranças, principalmente porque eram tempos em que podiam trabalhar, tinham saúde.
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Considerações Finais
A Batalha da Borracha, durante a Segunda Guerra Mundial foi uma oportunidade que o Brasil viu de reavivar uma economia que há anos vinha amargando o fracasso. Uma batalha feita através de acordos firmados entre Brasil e Estados Unidos e que contou com estratégias do governo diante a montagem de um dispositivo logístico-institucional para o recrutamento de pessoas disposta a cortar seringa na Amazônia. Os métodos publicitários retratavam uma Amazônia farta, a terra da vitória.
Porem a áspera realidade os aguardavam por não haver nenhuma conexão com a realidade mostrada naqueles cartazes. Dentro dos seringais a pesada situação não poupava ninguém. E a condição da mulher era mais complexa. As narrativas revelam dias duros e cruéis, por vezes tratadas como produto de conquista pessoal a servir aos anseios dos homens. O trabalho do homem era facilmente compartilhado com a mulher, principalmente nos momentos cruciais de suas vidas. Foram treinadas desde criança no trabalho pesado, juntamente com a família. O papel de seringueira e agricultora era muito bem exercido por elas. Foram fundamentais para a sobrevivência de suas famílias e de extraordinária eficiência diante situações críticas.
Entretanto, nos chama atenção durante este período é, o fato da história ser contada e direcionada somente para os “soldados da borracha”, provocando a invisibilidade da mulher nessa região. Talvez aí resida o motivo das raras pesquisas sobre elas.
Os relatos também nos revelam que ao contrário das propagandas ninguém ficou rico, nenhum(a) seringueiro(a) teve a vida transformada pela riqueza da borracha. Tudo era utopia. Eram tempo de trabalho penoso e perigoso.
Entretanto, a escolha de dar voz a essas mulheres revela o resgate de um tempo vivido. E graças a estas memórias que este tempo vivido não está perdido no qual podemos fazer novas descobertas. As narrativas nos revelam quão fortes foram estas mulheres. Destemidas diante diversas situações de perigos, seja por animais, por doenças típicas que os acometiam, pela dificuldade de acesso de um seringal ao outro, pela fome que passaram, pelo enfrentamento ao trabalho pesado. Mostraram que são capazes em meio a todas as adversidades.
Seus nomes não estão estampados em nenhum monumento histórico. Mas foi ouvindo suas narrativas que descobrimos que foram heroínas da floresta. Imperadoras dos saberes, ricas de coragem, de superação, que desenvolveram seus próprios métodos de sobrevivência. Tornaram-se ricas sim, não de condição financeira, mas de outros valores que dinheiro algum pode comprar. Entregaram-se à Amazônia, sem temor, sem temer. Foram as mais importantes soldadas(os) da borracha, sem dúvida as verdadeiras heroínas da floresta Amazônica.
REFERÊNCIAS
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