Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


CONFLITO ENTRE DIREITOS FUNDAMENTAIS: O EXERCÍCIO DA MANIFESTAÇÃO CULTURAL VERSUSA VEDAÇÃO À CRUELDADE ANIMAL

Autores e infomación del artículo

Mayara Soares *

Candisse Schirmer**

FEEVALE, Brasil

candisseschirmer@gmail.com



RESUMO
O presente artigo tem como escopo o conflito entres os direitos fundamentais insculpidos na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quais sejam, o direito à cultura e a proteção do exercício das manifestações culturais (artigo 215, §1º) versus a vedação à crueldade animal (artigo 225, §1º, VII). Assim, buscar-se-á saber se é possível a Constituição garantir a proteção dos animais nas manifestações culturais que os utilizam em suas práticas, sem ser necessário proibi-las, bem como questiona-se o porquê de a Farra do Boi, prática típica no Estado de Santa Catarinater sido proibida e o Rodeio Crioulo, tradiçãono Rio Grande do Sul, não. Desta forma, limitando-se as esses dois Estados do sul do país, através do método dedutivo e dapesquisa bibliográfica da doutrina, legislação e jurisprudência pertinentes aos referidos direitos fundamentais, realizar-se-á um estudo de caso que tem por objeto a proibição da Farra do Boi e a legalidade do Rodeio Crioulo.Para tanto, a análise de jurisprudência utilizar-se-á das palavras direito à cultura, manifestações culturais, maus tratos, Rodeio Crioulo e vedação à crueldade animal na busca por decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, acerca de maus tratos ocorridos em Rodeios, e delimitar-se-á entre 20/09/2017 e 15/11/2017.Por fim, conclui-se que a proibição da Farra do Boi ocorreu em decorrência da extrema crueldade infligida aos animais, o que não ocorre na prática do Rodeio Crioulo, que atualmente está regulamentado. Ademais, é possível constatar que a necessidade de proibir uma manifestação cultural em prol da proteção dos animais utilizados em suas práticas, ocorrerá quando de outro modo não for possível protegê-los da crueldade.

Palavras-chave: Direito à cultura, Direitos fundamentais, Farra do Boi, Rodeio Crioulo, Vedação à crueldade animal.

ABSTRACT
The scope of this article is the conflict between the fundamental rights inscribed in the Constitution of the Federative Republic of Brazil of 1988, idly the right to culture and the protection to the exercise of cultural manifestations (article 215, §1º) versus the prohibition of animal cruelty (article 225, §1º, VII). Thus, it will be sought to know if it is possible for the Constitution to guarantee the protection of animals in the cultural manifestations that use them in their practices, without it being necessary to prohibit them, as well as question why the Farra do Boi, a typical practice in the State of Santa Catarina was prohibited, and the Rodeio Crioulo, a tradition in Rio Grande do Sul, was not. Thus, by limiting these two States in the south of the country, through a deductive method and a bibliographical research of the doctrine, legislation and jurisprudence pertinent to the said fundamental rights, a case study will be carried out, whose object is the prohibition of Farra do Boi and the legality of the Rodeio Crioulo.To do so, the analysis of jurisprudence will use the words right to culture, cultural manifestations, ill-treatment, Rodeio Crioulo and fence to animal cruelty in the search for decisions of the Court of Justice of Rio Grande do Sul, about ill-treatment that occurred in Rodeios, and will be delimited between 20/09/2017 and 15/11/2017.Finally, it is concluded that the prohibition of Farra do Boi occurred due to extreme cruelty inflicted to animals, which does not occur in the practice of Rodeio Crioulo, that is currently regulated. Furthermore, it is possible to confirm that the need to prohibit a cultural manifestation for the sake of animals used in these practices will occur when it is not possible to protect them from cruelty otherwise.


Key-words:
Right to culture, Fundamental rights, Farra do Boi, Rodeio Crioulo, Fence to animal cruelty.

 

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Mayara Soares y Candisse Schirmer (2018): “Conflito entre direitos fundamentais: o exercício da manifestação cultural versusa vedação à crueldade animal”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (diciembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/12/conflito-direitos-fundamentais.html

//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1812conflito-direitos-fundamentais

INTRODUÇÃO

O presente artigo tem como escopo a análise do conflito de proteção constitucional entre o direito à cultura, previsto no artigo 215, §1°, e a vedação a crueldade animal, constante no artigo 225, §1°, inciso VII, ambos da Constituição da República Federativa do Brasil. Para tanto, serão utilizados como estudo de caso a Farra do Boi, prática cultural típica de Santa Catarina e o Rodeio Crioulo, tradicional no Rio Grande do Sul, limitando-se a pesquisa a esses dois Estados do sul do Brasil.
Nessa esteira, busca-se saber se é possível a Constituição Federal garantir a proteção dos animais sem proibir o exercício das manifestações culturais, além de verificar por qual razão a Farra do Boi foi proibida e o Rodeio Crioulo não.
Para responder a problemática elucidada, o artigo dividir-se-á em tópicos inter-relacionados,iniciando pela conceitualização dos direitos fundamentais, distinguindo-os dos direitos humanos, para na sequência descrever suas dimensões, e então, abordar o direito à cultura que está previsto no artigo 215, §1º da Constituição e a vedação a crueldade animal tutelada constitucionalmente no artigo 225, §1º, VII.
Partindo de tal premissa, analisar-se-á as manifestações culturais, primeiramente conceituando a Farra do Boi e a decisão do Supremo Tribunal Federal que proibiu seu exercício, para após, identificar o Rodeio Crioulo realizado no Rio Grande do Sul, distinguindo-o do rodeio de Barretos/SP, bem como serão descritas as principais provas realizadas no Sul.Além disso, verificar-se-á a legislação vigente pertinente a esta cultura e como os eventos são regulamentados.
Destarte, através do método dedutivo, utilizando-se da pesquisa bibliográfica, pretende-se conhecer os posicioidntos doutrinários e jurisprudenciais, bem como a legislação em relação aos direitos fundamentais e as manifestações culturais já referidas,tendo em vista o conflito de proteção constitucional criado entre direito à cultura (artigo 215, §1º),e a vedação à crueldade animal (artigo 225, no §1°, VII), em relação às práticas culturais que utilizam animais.
Para tanto, verificar-se-á por meio do estudo de caso a proibição da Farra do Boi e a legalidade do Rodeio Crioulo.Além disso, é necessário referir que a análise de jurisprudência utilizar-se-á das palavras: direito à cultura, manifestações culturais, maus tratos, Rodeio Crioulo e vedação à crueldade animal na busca por decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, acerca de maus tratos ocorridos em Rodeios. A pesquisa delimitar-se-á entre 20/09/2017 e 15/11/2017.
Assim sendo, pode-se dizer que a cultura e suas manifestações devem evoluir junto à sociedade, deixando no passado práticas que submetam os animais à crueldade em prol do entretenimento humano. Em decorrência disso, é importância singular discutir tal questão, eis que ainda que juridicamente os animais não sejam reconhecidos como seres de direitos, a ciência por meio de pesquisas já provou que eles são seres sencientes, ou seja, são capazes de sentir dor, angústia, solidão, medo, amor e raiva, dentre outros sentimentos. 


1. DIREITOS FUNDAMENTAIS: DIREITO À MANIFESTAÇÃO CULTURAL VERSUS A VEDAÇÃO À CRUELDADE ANIMAL


           Inicialmente será conceituada a diferença entre direitos humanos e direitos fundamentais, eis que na doutrina os dois termos são muito utilizados como sinônimos.O doutrinador Ingo Wolfgang Sarlet (2012, p. 249) assegura que tendo em vista o uso recorrente das duas expressões e a importância de tal assunto, faz-se necessário distingui-las.
No entender de Ricardo Castilho (2012, p.14), a conceitualização de direitos humanos está vinculada a “[...] terminologia normalmente empregada em direito internacional, sendo a forma encontrada em diversos tratados e declarações. Liga-se à ideia de proteção do ser humano, em suas múltiplas facetas”. É o que reforça Napoleão Casado Filho (2012, p. 19), quando afirma que “a expressão direitos humanos é normalmente utilizada para se referir aos valores e direitos consagrados em tratados internacionais”.
De outra banda, pode-se assinalar que a expressão “[...] direitos fundamentais é empregada para fazer menção ao mesmo conjunto de direitos, quando inseridos na Constituição”(FILHO, 2012, p.19).  Portanto,

[...] importa deixar aqui devidamente consignado o sentido que atribuímos às expressões “direitos humanos” (ou direitos humanos fundamentais), compreendidos como direitos da pessoa humana reconhecidos pela ordem jurídica internacional e com pretensão de validade universal, e “direitos fundamentais”, concebidos como àqueles direitos (dentre os quais se destacam os direitos humanos) reconhecidos e positivados na esfera do direito constitucional (SARLET, 2012, p. 251).

Outrossim, em relação aos direitos fundamentais, Sarlet (2012, p. 258) expõe que “desde o seu reconhecimento nas primeiras Constituições, os direitos fundamentais passaram por diversas transformações, tanto no que diz com o seu conteúdo, quanto no que concerne à sua titularidade, eficácia e efetivação [...]”.
Foi a partir dessas evoluções, que a doutrina passou a situar os direitos fundamentais em três gerações. No entanto, apesar de se referir à ‘gerações’, insta salientar, que a doutrina contemporânea utiliza o termo ‘dimensões’ dos direitos fundamentais, uma vez que o termo ‘gerações’ transmite a ideia de substituição ou alternância, o que é um equívoco, porque essa classificação diz respeito à evolução histórica de tais direitos, onde uma dimensão complementa a outra.
Destarte, a partir dessa premissa de classificação, em que uma parte da doutrina defende que os direitos fundamentais podem chegar até a sétima dimensão, o presente trabalho limitar-se-á em abordar até a terceira, bem como será utilizado o termo ‘dimensão’.
Deste modo, passa-se para a análise das referidas dimensões, que em decorrência de revoluções históricas, tais como a Revolução Francesa do século XVIII e a Revolução Industrial do século XIX, tem como base os princípios de liberdade, igualdade e fraternidade, de acordo com a ordem em que surgiram. No tocante à primeira, pelos dizeres de Walber de Moura Agra:

Esses direitos de primeira dimensão são igualmente chamados de direitos de resistência, de defesa e direitos negativos. São denominados dessa forma porque se concretizam com a abstenção do Estado em realizar certas condutas. Assim, o direito à liberdade é garantido desde que os entes estatais não coloquem empecilhos no deslocamento dos cidadãos. Estão compreendidos nessa dimensão os direitos civis, políticos e de liberdade (2012, p. 157).

Logo, conforme explica o doutrinador Marcelo Novelino (2012, p. 403), “os direitos de primeira dimensão tem como titular o indivíduo e são oponíveis, sobretudo, ao Estado, impondo-lhe diretamente um dever de abstenção (caráter negativo)”. Dentre tais direitos, Agra cita o “direito de liberdade de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, de propriedade e de igualdade formal perante a lei, de participação política, o devido processo legal, o habeas corpus, o direito de petição etc” (2012, p.158, grifo do autor).
Os direitos da segunda dimensão se distinguem da primeira, porque visam por meio de uma atitude positiva do Estado, prestações sociais com o objetivo de diminuir as desigualdades. Nesta esteira, Sarlet expõe que a segunda dimensão:

[...] não engloba apenas direitos de cunho positivo, mas também as assim denominadas “liberdades sociais”, como bem mostram os exemplos da liberdade de sindicalização, do direito de greve, bem como do reconhecimento de direitos fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao repouso semanal remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho, apenas para citar alguns dos mais representativos (2012, p. 262).

 Em suma, “os direitos de segunda dimensão são os direitos sociais, culturais e econômicos, destinados às coletividades” (AGRA, 2012, p. 158). Assim, pode-se citar assistência social, educação, saúde e trabalho, como exemplos.
Já em relação aos direitos da terceira dimensão, salienta-se que “trazem como nota distintiva o fato de se desprenderem, em princípio, da figura do homem-indivíduo como seu titular, destinando-se à proteção de grupos humanos (povo, nação) [...]” (LAFER, 1991apud SARLET, 2012, p. 262).Consequentemente, Agra contextualiza que:

Os sujeitos da relação dos direitos de terceira dimensão não são mais o cidadão – cidadão ou o cidadão - Estado - a titularidade passa a ser difusa, coletiva, transindividual. O destinatário é o homem em termos de gênero humano, enfocado sob um prisma coletivo. Se o destinatário é coletivo, a responsabilidade para a sua concretização também é coletiva, não dependendo apenas da atuação estatal para assegurar a todos a consecução desses direitos. O cidadão tem especial participação na sua efetivação (2012, p. 159).

Portanto, a terceira dimensão dos direitos fundamentais, abarca os direitos difusos, conceituados pelo artigo 81, parágrafo único, inciso I, da Lei 8.078/90, que dispõe serem interesses ou direitos difusos, os transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato.  Paulo Gustavo Gonet Branco (2009, p. 268), reforça que esses direitos de terceira dimensão “(...) peculiarizam-se pela titularidade difusa ou coletiva, uma vez que são concebidos para a proteção não do homem isoladamente, mas de coletividades, de grupos”.
Nesse contexto, é válida a referência do direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento, ao meio ambiente e qualidade de vida, bem como o direito à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito de comunicação, já que são os direitos mais citados entre os doutrinadores (SARLET, 2012, p. 262).
Diante disso, de acordo com a análise da doutrina referente à terceira dimensão, esses direitos não se direcionam ao indivíduo, e sim, à coletividade, ou seja, todos passam a ser titulares do mesmo direito, podendo exercê-lo ou não, não dependendo mais somente do ente Estatal para isso, como nos direitos de segunda dimensão.

Compreende-se, portanto, porque os direitos da terceira dimensão são denominados usualmente como direitos de solidariedade ou fraternidade, de modo especial em face de sua implicação transindividual ou mesmo universal (transnacional), e por exigirem esforços e responsabilidades em escala até mesmo mundial para sua efetivação (SARLET, 2012, p. 263).

A partir dessa contextualização, no tocante ao direito fundamental à cultura constante no artigo 215 da Constituição Federal do Brasil, é necessário referir que enquadra-se nos direitos de terceira dimensão por possuir titularidade transindividual, eis que o Estado deverá garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, além de ser apoiada e incentivada, tanto a valorização, quanto a difusão das manifestações culturais. Igualmente, dispõe o §1º do artigo 215 que “o Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”.
Portanto, “a cultura sintetiza o modo de expressão de um povo, a forma como ele vive, a sua identidade própria. Por sua importância fundamental, o Estado deve garantir a todos o acesso a ela, apoiando-a e valorizando-a” (AGRA, 2012, p. 851).
Por conseguinte, é definido pelo artigo 216 da Constituição Federal, que o patrimônio cultural é formado por “[...] bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira”. Nesse viés, pode-se indicar que integram referido patrimônio:

[...] I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver; III - as criações científicas, artísticas e tecnológicas; IV - as obras, objetos, documentos, edificações e demais espaços destinados às manifestações artístico-culturais; V - os conjuntos urbanos e sítios de valor histórico, paisagístico, artístico, arqueológico, paleontológico, ecológico e científico.

Assim, conforme informações do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), os bens de natureza material são classificados de acordo com a sua natureza, podendo ser “arqueológico, paisagístico e etnográfico; histórico; belas artes; e das artes aplicadas”. Enquanto o patrimônio cultural imaterial define-se como as expressões, tradições, ofícios e crenças passados de geração em geração, ou seja, as manifestações culturais também são tuteladas pela Constituição Federal de 1988, conforme expõe seu artigo 216, eis que são patrimônio cultural imaterial.
Por fim, ressalta-se que toda manifestação da cultura nacional deve ser incentivada, o que independerá de qual classe social ela faça parte (AGRA, 2012, p. 851). Nesse sentido, a proteção dos animais também será estudada sob o abrigo da Constituição Federal, artigo 225, §1º, VII, onde são vedadas práticas que os submetam à crueldade.
Inicialmente, cabe destacar, que nenhuma Constituição anterior a de 1988, abordou de forma tão pormenorizada e ordenada os direitos e deveres relativos ao meio ambiente como a Constituição Federal de 1988, tida como uma das mais inovadoras do mundo em matéria ambiental(NOVELINO, 2012, p. 1090).
Portanto, foi a partir da CF/88 que o direito ambiental passou a ser tutelado constitucionalmente, desvinculando-se “do instituto de posse e propriedade, consagrando uma nova concepção ligada a direitos que muitas vezes transcendem a tradicional ideia dos direitos ortodoxos: os chamados direitos difusos” (FIORILLO, 2013, p.32).
Desta forma, como já referido anteriormente, o direito ambiental é um direito fundamental da terceira dimensão, além de ser considerado um direito solidário, segundo demonstra o julgamento do Mandado de Segurança n° 22.164 pelo Supremo Tribunal Federal, que teve como relator o Ministro Celso de Mello e parte da ementa declarou que:

[...] A QUESTÃO DO DIREITO AO MEIO AMBIENTE ECOLOGICAMENTE EQUILIBRADO - DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO - PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE. - O DIREITO A INTEGRIDADE DO MEIO AMBIENTE - TIPICO DIREITO DE TERCEIRA GERAÇÃO - CONSTITUI PRERROGATIVA JURÍDICA DE TITULARIDADE COLETIVA, REFLETINDO, DENTRO DO PROCESSO DE AFIRMAÇÃO DOS DIREITOS HUMANOS, A EXPRESSAO SIGNIFICATIVA DE UM PODER ATRIBUIDO, NÃO AO INDIVIDUO IDENTIFICADO EM SUA SINGULARIDADE, MAS, NUM SENTIDO VERDADEIRAMENTE MAIS ABRANGENTE, A PROPRIA COLETIVIDADE SOCIAL. ENQUANTO OS DIREITOS DE PRIMEIRA GERAÇÃO (DIREITOS CIVIS E POLITICOS) - QUE COMPREENDEM AS LIBERDADES CLASSICAS, NEGATIVAS OU FORMAIS - REALCAM O PRINCÍPIO DA LIBERDADE E OS DIREITOS DE SEGUNDA GERAÇÃO (DIREITOS ECONOMICOS, SOCIAIS E CULTURAIS) - QUE SE IDENTIFICA COM AS LIBERDADES POSITIVAS, REAIS OU CONCRETAS - ACENTUAM O PRINCÍPIO DA IGUALDADE, OS DIREITOS DE TERCEIRA GERAÇÃO, QUE MATERIALIZAM PODERES DE TITULARIDADE COLETIVA ATRIBUIDOS GENERICAMENTE A TODAS AS FORMAÇÕES SOCIAIS, CONSAGRAM O PRINCÍPIO DA SOLIDARIEDADE E CONSTITUEM UM MOMENTO IMPORTANTE NO PROCESSO DE DESENVOLVIMENTO, EXPANSAO E RECONHECIMENTO DOS DIREITOS HUMANOS, CARACTERIZADOS, ENQUANTO VALORES FUNDAMENTAIS INDISPONIVEIS, PELA NOTA DE UMA ESSENCIAL INEXAURIBILIDADE [...].

Por conseguinte, convém expor o posicioidnto doutrinário de Ingo Sarlet e Tiago Fensterfseifer, em relação aos direitos de solidariedade que:

[...]encontram-se atrelados à ideia de direitos-deveres, de modo a reestruturar e reconstruir o tratamento normativo dispensado aos deveres fundamentais em face dos direitos fundamentais, com destaque, neste contexto, ao direito (e dever) de proteção e promoção do ambiente. A responsabilidade pela tutela ecológica, portanto, não incumbe apenas ao Estado, mas também os particulares (pessoas físicas e jurídicas), os quais possuiriam, para além do direito de viver em um ambiente sadio, deveres para com a manutenção do equilíbrio ecológico (grifo dos autores, 2012, p. 27).

Conforme é possível constatar, os direitos fundamentais solidários possuem relação com os deveres fundamentais, ou seja, a Constituição tutela a proteção ambiental, estabelecendo no caput do seu artigo 225, que “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”; porém, com esse direito virá também o dever do titular em manter e promover a preservação do meio ambiente.
Nesse contexto, em decorrência do avanço tecnológico e o aumento desordenado da população, além da proteção constitucional dada ao meio ambiente, foi necessário por meio de legislação infraconstitucional, a criação de leis que prevenissem a degradação ambiental, bem como sanções penais para punir quem já tenha praticado o dano, eis que segundo referido anteriormente, o direito fundamental ao meio ambiente, tem como característica inerente o ‘dever’ de preservá-lo e protegê-lo.
Assim sendo, na própria Constituição de 1988, no já referido artigo 225, além de proteger o direito fundamental do meio ambiente, contém no §1º, inciso VII, a vedação a crueldade aos animais, onde dispõe incumbir ao Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Destarte, para complementar a tutela constitucional dos animais, foi criada a Lei 9.605, de 12 de fevereiro de 1998, que em seu artigo 32, define como sanção penal detenção de três meses a um ano e multa para quem abusar, maltratar, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos.
Ademais, além da Lei nº 9.605/98, a legislação infraconstitucional no que tange a proteção ao meio ambiente e a proteção dos animais, é constituída por outras normas preventivas ou repressivas, existentes em âmbito federal, estadual e municipal, onde será punida tanto a pessoa física, quanto a jurídica.
Diante do exposto, importa destacar, que o conflito entre os direitos fundamentais é criado em consequência de tais manifestações utilizarem animais em suas práticas, pois, ainda que definida como uma manifestação cultural, a Farra do Boi, utilizada como contraponto no presente artigo, já teve seu exercício proibido pelo Supremo Tribunal Federal. Todavia, os rodeios praticados no sul do Brasil também utilizam animais em suas práticas, mas não foram proibidos, razão pela qual estão sendo utilizados como um dos objetos da pesquisa. 
Assim, analisar-se-á agora, tais práticas com a finalidade de conceituá-las, para então entender como os animais são utilizados e se são submetidos à crueldade, configurando, assim, o conflito referido.


2. MANIFESTAÇÕES CULTURAIS: FARRA DO BOI E RODEIO CRIOULO

Tendo em vista a diversificada população existente no Brasil, que ao longo da história foi sendo povoado por pessoas dos mais diferentes países, acaba por ser um país multicultural. Desta forma, em todo seu extenso território existem as mais distintas manifestações culturais, que, ainda que por vezes não sejam praticadas diariamente, mantêm-se a tradição de exercê-las durante o ano em épocas específicas.
Portanto, o presente artigo analisará agora a Farra do Boi, manifestação cultural característica do estado de Santa Catarina, que tem origem em Portugal, e foi trazida ao Brasil a partir da segunda metade do século XVII, com a vinda dos açores. Conforme pesquisa empreendida pelo antropólogo Eugenio Pascele Lacerda:

[...] como parte de um esquema geopolítico amplo, o Reino Português, em face da política de ocupação espanhola na América do Sul, empreendeu o povoamento dos territórios fronteiros meridionais com gente de origem lusitana. Os açorianos deslocam-se para várias partes do Brasil (1994, p. 19).

Entretanto, a maior parte da imigração aconteceu nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul (LACERDA, 1994, p. 19), em consequência, os lusitanos trouxeram ao sul do Brasil as brincadeiras com boi, dentre as quais, pode-se citar a dança do boi mamão, boi do campo, boi de vara e a Farra do Boi, que no Estado de Santa Catarina se tornaram tradição.
Em relação à Farra do Boi,o animal é comprado e o valor é dividido entre os participantes que se denominam sócios; depois é isolado sem água e comida, ficando assim por dias, antes de ser solto. Após sua soltura, que conforme Lacerda (1994, p. 27-28), ocorre “normalmente onde há mato, pastos, morros, e praias; também se dá em áreas marcadas e cercadas (mangueirões); em bairros praças e ruas centrais das cidades e vilarejos”, o animal, que nesse momento já está bravo o suficiente para começar a Farra, é perseguido pelos farristas enquanto é espetado, esfaqueado, apedrejado, dentre outros tipos de tortura. Quando o animal já não consegue mais reagir, é capturado, sacrificado e sua carne é dividida entre os ‘sócios’. A prática ocorre geralmente na Semana Santa, indo até o Sábado de Aleluia, sendo que no domingo de Páscoa ocorre o sacrifício do animal (LACERDA, 1994, p. 28).
Neste sentido, mesmo que considerada manifestação cultural e, consequentemente, ser tutelada pela Constituição Federal de 1988, a Farra do Boi foi proibida pelo Supremo Tribunal Federal em 1997, em decisão do Recurso Extraordinário n° 153.531, originário de uma Ação Civil Pública, ajuizada pela Associação Amigos de Petrópolis Patrimônio Proteção aos Animais e Defesa da Ecologia e Outros do Rio de Janeiro, onde o recurso foi conhecido e provido por maioria dos votos, declarando-se que a prática submetia os animais a tratamento cruel, violando, assim, o artigo 225, §1.°, VII da CF/88.
No voto do relator Ministro Francisco Rezek, sustentou-se que não poderia:

[...] ver como juridicamente correta a ideia de que em prática dessa natureza a Constituição não é alvejada. Não há aqui uma manifestação cultural com abusos avulsos; há uma prática abertamente violenta e cruel para com os animais, e a Constituição não deseja isso.

Já o Ministro Maurício Corrêa, dentre seus argumentos, em seu voto contrário ao do relator, afirmou que os excessos praticados que causassem maus tratos, deveriam ser prevenidos e punidos pelo Estado através de seu poder de polícia e que não haveria possibilidade de impedir a Farra do Boi, por ser uma legítima manifestação cultural, protegida pela Constituição Federal, e que aí sim, estar-se-ia à descumpri-la.
Acompanhando o relator em seu voto, o Ministro Marco Aurélio afirmou “[...] que a prática chegou a um ponto a atrair, realmente, a incidência do disposto no inciso VII do artigo 225 da Constituição Federal. Não se trata, no caso, de uma manifestação cultural que mereça o agasalho da Carta da República”.
No mesmo sentido do voto do relator, o Ministro Néri da Silveira, votou por conhecer e prover o recurso, determinando que o Estado de Santa Catarina, em face do que dispõe o artigo 225, § 1.º, inciso VII, da Constituição, adotasse providências necessárias para que não se “repitam essas práticas consideradas atentatórias à regra constitucional aludida”.
No entanto, apesar de ter sido proibida pelo Supremo Tribunal Federal e existir sanção penal nos termos da Lei nº 9.605/98, artigo 32, a Farra do Boi ainda é realizada clandestiidnte gerando riscos tanto para quem participa, quanto para terceiros, já que no desespero da fuga o boi invade residências causando danos físicos e também materiais, eis que o animal não se limita ao espaço destinado à ‘brincadeira’.
Partindo do contexto da Farra do Boi, no Rio Grande do Sul, os gaúchos, bairristas que são, mantêm suas tradições religiosamente,seja em relação ao chimarrão e aos trajes típicos, seja em relação às músicas tradicionalistas e ao Rodeio Crioulo.
No que se refere ao Rodeio, o mesmo é definido como componente da cultura gaúcha, conforme dispõe a Lei Estadual nº 11.719/2002:

Art. 1º - Fica instituído oficialmente o rodeio crioulo como um dos componentes da cultura sul-rio-grandense. Parágrafo único - Entende-se como rodeio crioulo o evento que envolve animais nas atividades de montaria, provas de laço, gineteadas, pealo, chasque, cura de terneiro, provas de rédeas e outras provas típicas da tradição gaúcha nas quais são avaliadas a habilidade do homem e o desempenho do animal. (Redação dada pela Lei nº 12.567/06)

Além disso, em novembro de 2016, o Presidente Michel Temer sancionou a Lei nº 13.364/2016 que eleva tanto rodeio, quanto a Vaquejada, bem como as respectivas expressões artístico-culturais, à condição de manifestação cultural nacional e de patrimônio cultural imaterial.
No tocante ao Rodeio Crioulo, tal prática surgiu no Rio Grande do Sul nos anos 50 e em decorrência do aumento de participantes nos Torneios de Tiro de Laço, na cidade de Campos de Cima da Serra, acabou sendo criado o Rodeio Internacional de Vacaria (COSTA et al, 2016, p. 11), que conforme pesquisa empreendida, é a maior festa tradicionalista gaúcha, se tornando um precedente para que fosse realizada em outros lugares do Estado. Nesse sentido, é necessário distinguir quais provas são realizadas nos rodeios gaúchos, uma vez que o rodeio de Barretos/SP é diferente daquele praticado no sul.
As principais provas dos rodeios gaúchos estão definidas na Lei nº 11.719/02, no Regulamento Campeiro do Estado do Rio Grande do Sul, criado pelo Movimento Tradicionalista Gaúcho, bem como na cartilha de “Orientações e boas práticas para a realização de Rodeios Crioulos” produzida em conjunto pelo MTG, o Ministério Público Estadual, o Conselho Regional de Medicina Veterinária – CRMV/RS e Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Agronegócio – SEAP. As provas remetem à lida campeira e são a de laço, a gineteada, o chasque e a prova de rédeas. A prova de laço é:

[...] realizada em uma cancha, onde o laçador, montado a cavalo, busca laçar a rês pelas guampas, ambos dentro dos limites da raia da cancha. As cordas utilizadas nessas provas deverão ser trançadas em couro e possuir redutor de impacto para o animal. É chamada de armada a parte arremessada na cabeça do bovino e tem medidas que obedecem a categoria do laçador, definida pela idade e/ou sexo (COSTA et al, 2016, p.12).

Nessa prova o animal laçado não é derrubado e possui penalidades na pontuação caso o cavalo atropele o boi, desestimulando o laçador a partir para cima da rês. Na gineteada só é utilizado o cavalo e:

[...] consiste em parar no lombo, montar em cavalo mal domado ou ainda não domesticado (xucro); incentivar o animal para corcovear; sustentar-se somente no tento e crina (isso se a montaria for em crina) enquanto o animal corcoveia; dar pinotes (a cavalgadura). Dentro de várias modalidades a mesma engloba algumas exigências variadas entre o ginete e o cavalo(COSTA et al, 2016, p. 12).

Já a prova de chasque:

[...] será composta por 05 (cinco) cavaleiros. A prova terá início no momento em que os primeiros cavaleiros de cada equipe, apeados, junto à baliza de largada, receberem a mensagem, dentro de um canudo de couro, de uma autoridade da comunidade tradicionalista ou dos juízes. A prova será disputada entre as linhas demarcadas para a respectiva competição. Em cada extremidade da raia será colocada uma baliza. A mensagem somente poderá ser entregue e recebida pelos cavaleiros apeados sem soltar o cavalo depois da baliza oposta, sem auxílio dos companheiros. O mensageiro que deixar cair a mensagem deverá juntá-la, sob pena de desclassificação da equipe. Será considerada vencedora a equipe que por primeiro entregar a mensagem ao juiz de chegada (COSTA et al, 2016, p.13).

A prova de rédeas parece um desfile onde o ginete demonstra as habilidades do cavalo domado, devendo existir uma cumplicidade entre os dois, assim, quando o ginete der o comando o cavalo deverá obedecê-lo.
Contudo, além dessas provas existe a competição Freio de Ouro, que é a mais importante prova Associação Brasileira de Criadores de Cavalos Crioulos (ABCCC), onde participam somente os animais da raça crioula. Referida prova se divide em sete etapas denominadas andadura, figura, voltas sobre pata e esbarrada, mangueira, paleteada/prova do campo e Bayard/Sarmento. Tais etapas, assim como as demais, remetem à lida do campo e nenhuma delas tem como objetivo derrubar o boi ou submeter o cavalo a algum tipo de sofrimento. A andadura, a figura, a volta sobre patas com esbarrada e a Bayard-sarmento tem relação com o trote, doma e submissão do animal ao ginete; já na etapa da mangueira, o cavalo tem que separar um novilho do outro e na prova do campo ou paleteada a intenção é conduzir o novilho entre dois ginetes sem que ele seja derrubado.
Diante do exposto, evidencia-se que nas provas gaúchas o intuito não é derrubar o boi, a mais brusca é a paleteada que, ainda assim,não tem o objetivo de derrubar o novilho.
No entanto, em que pese essa não ser a intenção das provas gaúchas, em decorrência da morte de um bezerro utilizado na prova ‘bulldogging’ em 2011 na 56° Festa do Peão de Boiadeiro de Barretos/SP, o Deputado Federal Ricardo Tripoli com a colaboração União Internacional Protetora dos Animais (UIPA), criou o Projeto de Lei 2.086/2011, que visava a proibição de perseguições seguidas de laçadas e derrubadas de animal, em rodeios ou eventos similares em âmbito federal. Eis que na referida prova o peão salta em cima do animal e tem que imobilizá-lo com as mãos, sendo que nesse momento o bezerro utilizado teve a coluna cervical partida, ficando paralisado e tendo que ser sacrificado.
Consequentemente, o Projeto de Lei gerou reação imediata do movimento tradicionalista em prol do Rodeio Crioulo no Rio Grande do Sul, bem como em outras regiões do país onde também existem práticas similares. Eis que além de uma tradição, os eventos realizados, movimentam a economia local e geram empregos diretos e indiretos. Assim, ele começou a tramitar em maio de 2012 e após ser votado pelas Comissões pertinentes, foi rejeitado em fevereiro de 2016, quando a Comissão Parlamentar de Inquérito dos Maus Tratos, terminou a análise do seu relatório excluindo do texto o PL 2.086/2011.
Apesar do insucesso de toda essa movimentação para proibir o exercício de manifestações culturais que utilizam animais, no Rio Grande do Sul em 2014, já havia sido firmado um Termo de Ajustamento de Conduta nos autos do Inquérito Civil nº 00833.00097/2014, que se originou da representação de um advogado do estado de São Paulo para apurar a possibilidade de maus tratos em rodeios. Em decorrência dele foi criada em conjunto pelo Ministério Público com o Movimento Tradicionalista Gaúcho- MTG e com a Federação Gaúcha de Laço - FGL, tendo como anuentes o Conselho Regional de Medicina Veterinária – CRMV/RS e a Secretaria Estadual de Agricultura, Pecuária e Agronegócio – SEAP a cartilha já referida de “Orientações e boas práticas para a realização de Rodeios Crioulos”.  Ela se embasa no conteúdo da Lei 10.519/02, tem punição prevista nos termos da Lei nº 9.605/98, artigo 32, e se justifica na proteção animal disposta no artigo 225, §1.º, VII, da Constituição Federal, bem como na Lei nº 11.915/2003 que institui o Código Estadual de Proteção aos Animais.
Em seu termo de abertura esclarece que quer dar publicidade aos termos do ajustamento de conduta, bem como estabelecerá:

[...] diretrizes para a realização das provas campeiras e para a organização e estrutura dos rodeios crioulos, manifestação cultural, que integra o patrimônio cultural imaterial do Estado do Rio Grande do Sul, consoante disposto na Lei Estadual n.° 11.719/2002, com o propósito de adequá-lo à proteção animal, prevista no artigo 225, § 1˚, inciso VII, da Constituição Federal e artigo 2˚ da Lei Estadual n° 11.915/2003, sendo vedadas práticas que submetam os animais à crueldade. (COSTA et al, 2016, p.6)

Dentre as disposições constantes tanto na Lei nº 10.519/02, como na cartilha, é imposto ter médico veterinário habilitado e responsável pela condição física e sanitária dos animais, impedindo, assim, maus tratos; os apetrechos técnicos utilizados nas montarias não poderão causar ferimentos nos animais; bem como é expressamente proibido o uso de esporas com rosetas pontiagudas ou qualquer outro instrumento que cause ferimentos aos animais, incluindo aparelhos que provoquem choques elétricos, também, é definida a forma de manejo dos animais e o tempo de descanso deles.
Outrossim, a infração à alguma dessas disposições, nos termos do artigo 7º da Lei nº 10.519/02, poderá acarretar pena de multa de até R$ 5.320,00 (cinco mil, trezentos e vinte reais), além de outras penalidades previstas em legislações específicas. Também será possível de acordo com os incisos do referido artigo, o órgão estadual competente advertir por escrito; ou suspender temporariamente o rodeio; ou, ainda, suspendê-lo definitivamente.
Ademais, para ocorrer qualquer rodeio, o responsável deverá obter antes um Certificado de Adequação Técnica (CAT), sob pena de proibição da realização de Rodeios Crioulos, como na sentença proferida em sede de Ação Civil Pública, Processo nº 022/1.11.0015952-3, interposta pelo Ministério Público, porque as promotoras do evento estavam com o CAT vencido. Dessa forma, as rés foram condenadas à obrigação de não fazerem novos rodeios sem estarem de acordo com as disposições da Lei nº 12.567/06 (alterou a lei nº 11.709/02), sob pena de imposição de multa diária de R$ 20.000,00 (vinte mil reais), além disso, a título de indenização pelos eventos realizados irregularmente, foram condenadas a efetuarem a doação de quatro salários mínimos à ONG A4 ou outra entidade de cunho ambiental que realize trabalhos com animais.
Assim, nos termos do artigo 1º - D, da Lei n º 11.719/2002:

A entidade promotora do rodeio deverá comunicar a realização das provas ao MTG com antecedência mínima de 45 (quarenta e cinco) dias, bem como à Secretaria de Estado da Agricultura e Abastecimento com antecedência mínima de 30 (trinta) dias, indicando o médico veterinário responsável. (Incluído pela Lei nº 12.567/06)
Parágrafo único - A liberação das pistas para laço e demais provas campeiras dependerão do Certificado de Adequação Técnica emitido pelo MTG, que será conferido após avaliação geral de infra-estrutura e de segurança para os participantes e para os animais, inclusive no que tange ao fornecimento de água e ao cercamento das mangueiras e das pistas de provas. (Incluído pela Lei nº 12.567/06).

De acordo com o mesmo dispositivo legal, artigo 1º- B, caberá à entidade promotora também:

[...] ou aos participantes, conforme o caso, a suas expensas, prover: (Incluído pela Lei nº 12.567/06)
I - infra-estrutura completa para atendimento médico, com ambulância de plantão e equipe de primeiros socorros, com presença obrigatória de clínico-geral; (Incluído pela Lei nº 12.567/06)
II - médico veterinário habilitado, responsável pela garantia da boa condição física e sanitária dos animais e pelo cumprimento das normas disciplinadoras, impedindo maus tratos e injúrias de qualquer ordem; (Incluído pela Lei nº 12.567/06)
III - transporte dos animais em veículos apropriados e instalação de infra-estrutura que garanta a integridade física deles durante sua chegada, acomodações e alimentação; e (Incluído pela Lei nº 12.567/06)
IV - cancha das competições e bretes cercados com material resistente e com piso de areia ou grama. (Incluído pela Lei nº 12.567/06)

Portanto, em que pese ocorrerem clandestiidnte Rodeios Crioulos sem o CAT, bem como sem os devidos cuidados e manejo com os animais, como ainda ocorre com a proibida Farra do Boi, denota-se da presente pesquisa que existem diferenças entre as duas práticas, especialmente no tocante à regulamentação.


METODOLOGIA

O presente artigo utilizar-se-á do método dedutivo no estudo do conflito entre o direito à cultura (art. 215, §1º) e a vedação à crueldade animal (art. 225, §1º, VII), ambos direitos fundamentais tutelados pela Constituição Federal de 1988.
Nesse sentido, insta salientar, que esse método “consiste em construir estruturas lógicas, por meio do relacioidnto entre antecedente e consequente, entre hipótese e tese, entre premissas e conclusão” (CERVO, BERVIAN, DA SILVA, 2007, p. 47). Destarte, ele tem como propósito explicar o conteúdo das premissas (LAKONI; MARCONI, 2003, p. 92).
Assim, por meio de estudo de caso, que “corresponde a uma das formas de realizar pesquisas empíricas de caráter qualitativo sobre um fenômeno em curso e em seu contexto real” (LIMA, 2008, p. 34), verificar-se-á a já proibida Farra do Boi, prática típica do Estado de Santa Catarina e o Rodeio Crioulo, tradição no Rio Grande do Sul.
Para tanto, analisar-se-á a jurisprudência, legislação e a doutrina através da pesquisa bibliográfica em sites, revistas, teses e artigos acadêmicos que dissertem sobre os mencionados direitos fundamentais e também sobre as manifestações culturais. Igualmente, cabe referir que a análise jurisprudencial utilizar-se-á das palavras direito à cultura, manifestações culturais, maus tratos, Rodeio Crioulo e vedação à crueldade animal na busca por decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, acerca de maus tratos ocorridos em Rodeios, bem como que a pesquisa ocorreu entre 20/09/2017 e 15/11/2017.



CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não pretende-se aqui, esgotar todas as considerações acerca das questões levantadas no presente artigo, até porque, esse é um tema que merece ser mais estudado, eis que é muito amplo em decorrência da diversidade cultural do Brasil, que possui outras manifestações culturais que utilizam animais em suas práticas e não foram proibidas como a Farra do Boi. Exemplo disso é a Vaquejada, prática típica do nordeste brasileiro e o Rodeio de Barretos/SP, que assim como o Rodeio Crioulo,foram definidos pela Lei nº 13.364/2016 como Patrimônio Cultural Imaterial Nacional. Todavia, as duas práticas citadas, possuem como objetivo nas suas principais provas a derrubada do boi, ponto que se difere do Rodeio Crioulo.
É a partir daqui que se evidencia o fato de que na Farra do Boi, o intuito era acuar o animal, machucá-lo, espetá-lo e apedrejá-lo, para depois de todo esse sofrimento, sacrificá-lo. Tal prática não era regulamentada, não possuía local adequado para ser realizada e muito menos garantia a segurança de quem participava ou de terceiros alheios ao evento, não restando outra alternativa ao Supremo senão proibi-la, como ocorreu no Recurso Extraordinárion° 153.531, eis que submetia os animais à crueldade extrema, desrespeitando, assim, o artigo 225, §1º, VII da Constituição.
Nesse contexto, o Rodeio Crioulo se difere da Farra do Boi por ser regulamentado, não por ser definido por lei como patrimônio cultural imaterial tanto em âmbito estadual, quanto federal, mas por ter sua realização vinculada à normas de segurança tanto relativas às pessoas, quanto aos animais.
Em relação às normas de segurança dos animais, é necessário referir que eles merecem um tratamento justo, digno e por sua proteção ser parte do tema do presente artigo, não se pode deixar de constar, que iniciou-se a presente pesquisa com o posicioidnto de que seria possível provar e argumentar que referida prática deveria ser proibida, que ela estava em desacordo com a Constituição e que haveriam decisões judiciais corroborando com essa ideia. Contudo, não foi possível encontrar as referidas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, área de delimitação do tema, confirmando o que acreditava-se ocorrer nos Rodeios: maus tratos aos animais.
Destarte, como a pesquisa limita-se ao que se pode comprovar, chega-se a conclusão de que o Rodeio Crioulo não foi proibido por não ter o objetivo de causar maus tratos aos animais, tanto aos cavalos, quanto aos bois utilizados nas provas, bem como, pelo fator econômico proporcionado em decorrência da realização dos eventos.
Nesse viés, analisando-se as tradicionais provas dos Rodeios, pode-se constatar que elas não pretendem derrubar os animais ou lhes infligir algum sofrimento, bem como que o material dos apetrechos utilizados como arreio1 está especificado na Lei Estadual nº 11.719/02 e na Lei Federal nº 10.519/02, a fim de que não cause injúrias ou ferimentos nos animais.Ainda assim, caso ocorram excessos ou maus tratos, eles serão puníveis com multa e outras sanções previstas em regulamento próprio conforme dispõem as referidas leis.
Além disso, o Movimento Tradicionalista Gaúcho preferiu adaptar-se e aderir ao Termo de Ajustamento de Conduta, bem como seguir a legislação que dispõe sobre a realização de Rodeios, para evitar que a prática fosse proibida, o que seria uma questão de tempo caso fossem comprovados os maus tratos.
Nesse sentido, ainda que a linha de pensamento quando empreendida a presente pesquisa fosse outra, acreditando-se que os rodeios deveriam ser proibidos, mediante todo o exposto e face a dificuldade de encontrar provas dos maus tratos, e também de encontrar decisões desfavoráveis aos rodeios, mesmo que necessite de mais fiscalização, esta prática está bem regulamentada, não configurando a necessidade de sua proibição.
Diante do exposto, adentra-se noutro problema proposto por este artigo, que é a possibilidade da Constituição proteger os animais sem proibir o exercício das manifestações culturais.
Primeiramente, insta referir, no que tange o Rodeio Crioulo, que não ficou comprovada a crueldade aos animais, não existindo nesse caso um conflito entre o direito fundamental à cultura (art. 215, 1º, CF) e a vedação à crueldade animal (art. 225, 1º, VII, CF), que configurasse a necessidade de proibição da prática, como ocorreu com a Farra do Boi.
Dessa forma, a partir da análise de todo o contexto, foi possível auferir que apenas a Constituição não é o suficiente para resguardar e proteger os animais. Ela necessita de toda a legislação infraconstitucional que já existe, ainda assim, é necessário um trabalho conjunto entre os três poderes para regular, fiscalizar, penalizar e coibir quando necessário, qualquer tipo de mal trato ao qual os animais forem submetidos. Além disso, a necessidade de proibir uma manifestação cultural em favor da proteção dos animais ocorrerá quando não for possível de outro modo evitar a crueldade, sem ser proibindo-a.
Ademais, também é imprescindível que isso parta das pessoas que exercem tais manifestações culturais, eis que não dependerá somente do Estado ou da Constituição essa atitude, porque ainda que não tenha sido comprovado neste artigo os maus tratos aos animais utilizados nos Rodeios, é fato, como já foi referido anteriormente, que eles são seres sencientes e sentem dor, medo, angústia, raiva, amor e estresse. Portanto, além de todo o suporte legal,é inevitável para garantir a proteção desses seres, que as pessoas tenham consciência e comecem a se importar com o fato de que eles podem sentir medo, angústia e estresse, e comecem a se posicionar de forma diversa em relação às práticas que podem submetê-los à crueldade, passando para as gerações futuras um ensiidnto diverso do que receberam das anteriores, de que animais não devem ser utilizados para entretenimento humano.

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Disponível em: <http://g1.globo.com/ceara/noticia/2016/11/michel-temer-reconhece-vaquejada-como-patrimonio-cultural-imaterial.html>. Acesso em: 28 out. 2017.


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SPIGLIATTI, Solange. Bezerro é sacrificado após ficar paralítico em prova na Festa do Peão de Barretos. Estadão. São Paulo. Publicado em: 22 ago. 2011.
Disponível em: <http://sao-paulo.estadao.com.br/noticias/geral,bezerro-e-sacrificado-apos-ficar-paralitico-em-prova-na-festa-do-peao-de-barretos,762026>. Acesso em: 21 mai. 2017.

*Graduanda em Direito da Faculdade Dom Alberto. E-mail: may.soares90@gmail.com
**Mestre em Direito pela UNISC. Doutoranda em Diversidade Cultural e Inclusão Social pela FFEVALE. Coordenadora e docente do Curso de Direito da FADISMA. Docente da Faculdade Dom Alberto. Endereço eletrônico: candisseschirmer@gmail.com
1 Arreio, ou arnês, é a designação de toda a estrutura que se veste em um cavalo para permitir uma cavalgada, um hipismo ou utilizar o cavalo para tração animal. O conjunto que forma o arreio é constituído da sela, estribo, antolhos, suador, bridão, pelego, cabresto, rédeas, armação, cabeçada, embocadura e a manta. Disponível em: <http://dicionarioportugues.org/pt/arreio>. Acesso em: 02 nov. 2017.

Recibido: 16/07/2018 Aceptado: 13/12/2018 Publicado: Diciembre de 2018

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