Lia Sipaúba Proença Brusadin*
Mestre e Doutoranda em Artes pela Universidade Federal de Minas Geais, Brasil
liaunesp@hotmail.com
No século XVIII, o Rio de Janeiro se tornou sede do vice-reino português, com isso, um novo modo de pensar e outros tipos de sociabilidade começaram a fazer parte do cotidiano. Objetiva-se analisar algumas perspectivas culturais implementadas enquanto fatores de uma dinâmica eminente. A metodologia aplicada foi a análise comparativa entre aspectos sociais, culturais e urbanos - hábitos, artes, arquitetura e literatura -, fundamentados na narrativa de viajante. Tais transformações, refletiram uma nova imagem de urbanidade para a cidade, fomentando outra vivência para as pessoas.
Palavras-Chave: Rio de Janeiro, Vice-reino de Portugal, Urbanidade, Dinamismo, Cultura.
SOME CULTURAL PERSPECTIVES IN RIO DE JANEIRO AS THE SEAT OF THE VICEROYALTY OF PORTUGAL
In the half of the 18th century, Rio de Janeiro became the seat of the portuguese viceroyality, with it, a new way of thinking and new types of sociability began to integrate and become part of the daily life of its inhabitants. Aims to analyze some of those cultural perspectives installed as dynamic eminent factors. The methodology is based on analysis between social, cultural and urban aspects - habits, arts, architecture, literature -, granted on narrative of travel. These changes reflected a new image of urbanity to the city, in fact, promoted another experience for people.
Key-Words: Rio de Janeiro, Viceroyality of Portugal, Urbanity, Dynamism, Culture.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Lia Sipaúba Proença Brusadin (2018): “Algumas perpectivas culturais na cidade do Rio de Janeiro como sede do vice-reino de Portugal”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (noviembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/11/rio-janeiro.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1811rio-janeiro
1. Introdução
Durante o século XVIII, com o intuito de melhorar o controle da saída de ouro do Brasil e defender os interesses portugueses no sul da colônia, o Marquês de Pombal, sob a regência de D. José, transferiu da capital do Estado do Brasil de Salvador, na Bahia, para São Sebastião do Rio de Janeiro, no ano de 1763. Esse foi um período que a ação político-administrativa estava permeada pelas aspirações do iluminismo cujo ideal também refletiu na sociedade, tanto no reino quanto no ultramar.
Foi uma nova perspectiva de racionalização e, juntamente, com o ouro das Minas Gerais, a partir de 1763 resultou numa melhora para a cidade do Rio, a qual se tornou o principal centro da colônia, local de residência dos vice-reis. A partir disso, foram se intensificando os surgimentos de construções modestas e um comércio de ofícios e bens materiais. Isto posto, o presente estudo analisa a construção dos fatores culturais que se instalavam e transformavam o Rio de Janeiro no momento em que a cidade se converte em capital do vice-reino português. Assim, foram selecionados alguns elementos culturais que constituíram o cotidiano carioca daquela época, tais como: costumes e práticas diários; livros, escritores e público; as artes e artistas coloniais, bem como, a arquitetura e urbanidade. Tendo em vista este panorama, o contexto investigado foi ponderado por meio dos preceitos da História Cultural1 .
Desse modo, a história cultural é mais uma ferramenta necessária para o empreendimento histórico coletivo, como os outros tipos de história, dá uma contribuição indispensável para o entendimento ainda mais amplo da história, muito embora, nenhum tipo de história retoma a uma compreensão literal dos fatos, visto que o fazer história é quase sempre a visão de alguém narrada por outro. Contudo, foi analisada uma história sociocultural cujo objetivo é ponderar e questionar como dentro de cada grupo, se processa a transmissão daqueles ou daquilo, cuja sociedade acha importante legar às gerações vindouras.
A cultura não deve ser pensada somente como um campo particular de práticas e produções, é preciso pensá-la também como um conjunto de significações nos discursos e comportamentos aparentemente menos culturais. Defendemos a tese de que já havia uma cultura própria no Rio de Janeiro colonial, durante a segunda metade do século XVIII.
Foram selecionados e examinados aspectos que estruturaram o dia-a-dia no Rio de Janeiro, dentre os quais refletiam uma dinâmica cultural na cidade já em meados do século XVIII. Assim sendo, reportou-se à relatos de viajantes que passaram pelo Rio na época, muitas dessas descrições foram elogiosas às suas paisagens naturais e, ao mesmo tempo, retrataram o estranhamento desses estrangeiros em relação às práticas e à própria cultura da urbe, consequentemente, da colônia como um todo. Tais fatores refletiram numa nova imagem de urbanidade, ou seja, outra vivência naquela cidade.
Práticas na sede do vice-reino de Portugal
A cultura na colônia no início do século XVIII era marcada por uma religiosidade, sendo os clérigos os seus principais divulgadores. As instituições eclesiásticas eram o alicerce e a religião a principal forma de expressão na sociedade. Em virtude disso, o período anterior à elevação do Rio de Janeiro à sede do vice-reino de Portugal foi caracterizado por uma expressão cultural baseada essencialmente na religião. A cultura científica era assim, fortemente marcada por um empirismo, assinalado principalmente por aplicações práticas e não necessariamente argumentações teóricas (Renou, 1991).
Contudo, já em meados do século XVIII verifica-se o surgimento de uma cultura explícita luso-brasileira, ainda que titubeante. O dinamismo cultural carioca vinha surgindo de forma lenta, escassa, mas sempre em diálogo com o processo de colonização e suas transformações políticas, econômicas, sociais e, especialmente culturais.
A cidade do Rio de Janeiro encontrava-se entre os principais portos do ultramar. Era o grande porto redistribuidor das importações originárias da Europa, Ásia e África; concentrava mercadorias da região centro-sul para a reexportação. Desse modo, o reino já cogitava a possibilidade da transferência da capital da Bahia para o Rio de Janeiro, pois esta última se localizava mais ao sul e era considerada a cidade mais importante depois de Salvador.
Devido a ascensão da cidade do Rio de Janeiro à capital do vice-reino resultou numa pujança social e econômica em ritmo crescente. Tal fator fez com que irrompesse um aumento das necessidades espirituais de toda espécie, já que a cultura ainda estava associada às questões religiosas naquele primeiro momento, essa demanda foi atendidas pela proliferação de associações religiosas. Em sua maioria, eram associações leigas, isto é, as irmandades e as ordens terceiras, as quais se ocupavam da caridade pública e da mútua assistência entre os irmãos. As associações laicas foram responsáveis por um mecenato artístico, pois eram eles que custeavam à construção e ornamentação de seus templos; além da realização das festividades religiosas.
Os ambientes dessa associações, igreja, capelas e oratórios, se tornaram locais de sociabilidade entre os fiéis; era uma forma de identidade coletiva dos confrades pela via de um exclusivismo religioso, na busca de autonomia religiosa. Negros e mestiços também possuíam confrarias próprias de culto, que também representavam um veículo de desenvolvimento das relações de sociabilidade e identidade própria, embasada na identidade católica. Chahon (2001) aborda a diversidade do catolicismo vivido e dos cultos no âmbito privado e público, ora dentro das igrejas ora em oratórios ao longo das vias públicas, estes eram polos aglutinadores e suportes materiais para a perpetuação do próprio catolicismo, o que transformou essa vivência em redes de sociabilidade religiosa.
Todavia, além dessa sociabilidade religiosa havia hábitos de etiqueta, moda, culinária, comércio, festas, música, etc. Tais manifestações eram parte da vivência do Rio de Janeiro, eram importadas da Europa e, posteriormente, aclimatadas no Brasil. Alguns desses hábitos foram descritos por viajantes que visitaram a cidade, relatando suas impressões em formato de diário de viagem.
A partir das pesquisas de França (1999), à respeito das visões de estrangeiros sobre o Rio colonial, nos referimos aos testemunhos de Aguirre e Barrow. Dom Francisco de Aguirre (1756 - 1811) pertenceu a Real Armada de Sua Majestade Católica, a bordo da embarcação Santíssimo Sacramento e partiu de Lisboa chegando a Baía de Guanabara em 10 de Março de 1782. Outro viajante foi John Barrow (1764 - 1848) intendente da comitiva de Lorde Macartney à China, sua missão aportou posteriormente no Brasil. Ambos apresentam os relatos mais descritivos do Rio durante o século XVIII narrados por estrangeiros.
Os relatos são impressões individuais, as quais podem ser distorcidas conforme a percepção e experiência de cada viajante. O viajante Aguirre cita que os hábitos alimentares cariocas eram destacados por:
No tocante à alimentação, os naturais do Rio de Janeiro, como sucede em todos os países do mundo, têm suas iguarias regionais. Informaram-me, porém, que essas especialidades são muito miseráveis, apesar de a caça, as aves, as verduras, o pescado e tudo mais serem abundantes na região. A carne de vaca é vendida a um vintém a libra e sua quantidade é razoável. A carne de carneiro é horrível. Uma galinha vale uma pataca e o pescado, muito abundante, pode ser adquirido a preços muito baixos. A alimentação dos menos abastados consiste basicamente de pescado e farinha (França, 1999: 163).
Dessa maneira, havia uma oposição visível entre a cultura da culinária local e a da cultura europeia, em relação aos produtos e ás técnicas culinárias, sobretudo, devido à repugnância dos reinóis e estrangeiros com muitas das comidas brasileiras.
Numa cidade que já era considerada grande na época, no Rio, as refeições iam além do ambiente doméstico e familiar; encontravam-se casas de pasto e botequins que iam surgindo cada vez mais. As casas de pastos, nome dos restaurantes na época, serviam geralmente jantares em salas separadas. Os botequins, consistiam num comércio de petiscos aliado a algum tipo de jogo. No ano de 1789 o Rio de Janeiro possuía 14 casas de pasto, em 1792, 17 casas, e em 1794 eram o total de 18 casas. Nas casas de pasto havia sempre dança, música e álcool, ou seja, modinha, lundu e cachaça (Edmundo, 1951).
No que tange a indumentária, caracterizada pelo conjunto de vestimentas de uma determinada época, local e cultura; também se relaciona aos papéis que os indivíduos desempenhavam na sociedade e com as suas profissões. Assim, o trajo variava de acordo com os diferentes grupos sociais e seus níveis monetários, todos possuíam um traje oficial. Existiam regras estabelecidas pela etiqueta que determinavam de maneira rígida como se vestir em certas ocasiões: bailes, rituais religiosos, missa, enterros, casamentos, batizados, etc.
Aguirre fala sobre os usos e costume das vestimentas dos portugueses habitantes da colônia, assim descreve a moda feminina:
As mulheres do Rio de Janeiro vestem-se como as de Portugal. Há algumas senhoras que não dispensam o uso da mantilha e dos penteados adornados com fitas. O que mais interessa-lhes, porém, é estarem bem calçadas e empoadas. Para iram às igrejas ou a qualquer outra parte, usam sempre uma capa de castor – seja qual for a estação do ano. As fidalgas portam, em geral, saia e manta. Durante a Semana Santa, quando as vestimentas ganham maior luxo, as saias são abertas na frente e deixam a mostra um saiote bordado em ouro e prata. Nessa ocasião, as senhoras portam uma grande quantidade de pedras preciosas e fazem-se acompanhar de igual número de escravos. Os portugueses que as contemplam julgam que estão diante das mais formosas damas do universo (França, 1999:161).
Não obstante, ocorria na cidade do Rio de Janeiro, durante a segunda metade do século XVIII, uma preocupação em enaltecer o papel positivo dos espetáculos cênicos na educação dos povos, em resposta à visão que julgava a teatralização como profana e ameaçadora dos bons costumes e valores cristãos. Tal fato mostra a existência de um modelo empresarial de gestão operística e teatral, já praticado em Portugal nesse período, e que migrou para a colônia.
A monarquia se aproveitava de qualquer motivo, como aclamações, aniversários, casamentos, nascimentos na família real, eventos políticos relevantes, para agenciar festejos públicos. Eles continham luminárias, fogos de artifício, cavalhadas, corridas de touros, cortejos e desfiles, arrumação de tropas, bem como, cerimônias religiosas. Conforme Silva (1986), a frequência da grandiosidade das festas públicas esgotava os cofres municipais, eram tantos os dias santos e festas religiosas no ultramar, assim, as festividades eram ambientes de sociabilidade e trocas culturais.
A cidade foi se expandindo, crescendo em população e se adensando culturalmente, converteu-se em ponto de passagem de autoridades e profissionais que se dirigiam às capitanias do interior e aos territórios do sul da colônia. Não era mais viável continuar encenando, exclusivamente sobre palcos improvisados nas ruas e praças, ou em terrenos baldios ou em fundos de quintal; isso já não condizia com os novos tempos da cidade que se tornara sede do império português, nem respondia à qualidade de sua potencial plateia. Foi o momento de implantar teatros públicos em recintos fechados para acompanhar as transformações que nessa matéria operavam na Europa. Muitos desses espetáculos aconteciam na primeira Casa de Ópera 2 da cidade do Rio de Janeiro.
A atividade musical desenvolvida no Rio de Janeiro foi reflexo da profusão que essa arte adquiriu na Europa. Os monarcas portugueses se afeiçoavam e conheciam a boa música, foi o século XVIII, época das Luzes, momento em que surgiram muitos compositores renomados. Um importante compositor dos tempos coloniais foi o Padre José Maurício Nunes Garcia (1767 - 1830), era mulato e foi ordenado presbítero em 1792, e em 1798 foi nomeado mestre da Capela da Sé no Rio de Janeiro, encarregado pelo governo para compor a música para as festas públicas, sobretudo na posse dos vice-reis.
A extraordinária acolhida à música no Rio de Janeiro advém do apreço pela qualidade dos profissionais que produziam e interpretavam, supõe-se existir um ensino regular de instrumentos variados, de atualização permanente dos repertórios e, professores formadores desses profissionais. O ensino da música era ministrado em conventos, mosteiro, seminários, igrejas e quartéis. Foram nos coros das igrejas que muitos músicos do Rio de Janeiro se formaram, eram mantidos por doações de fiéis; os coros também se tornaram uma oportunidade para a criança se alfabetizar e aprender latim.
Professores tinham um número de alunos fixos e, igualmente, comerciantes, fabricantes ou reparadores de instrumentos musicais, respondiam a essa demanda. Com isso, se organizava um mercado correlato à música, quando não era para consertar ou vender, era para alugar um instrumento de todos os tipos e para todas as necessidades. Muitos estrangeiros que visitaram o Brasil elogiavam a música aqui escutada.
Incentivado pelo poder real ilustrado, despontaram na cidade, já no final do século XVIII, iniciativas de pesquisas a serem feitas nos diversos ramos da ciência. O Estado passou a contratar investigadores e recompensar aqueles que inventassem empreendimentos que beneficiassem o governo. Isso gerou um certo cosmopolitismo na colônia, pois o Estado buscava sábios de todos os lugares, dentro e fora do Brasil. Destacamos a figura do mineiro Frei José Mariano da Conceição Veloso, que estudou com os franciscanos do Rio de Janeiro história natural e, posteriormente, seguiu para Portugal como editor de estudos técnicos, memória e trabalhos sobre as plantas pertencentes à flora brasileira; ainda, organizou a obra Flora Fluminense, publicada em 1790, em que catalogou 400 espécies das matas que rodeavam o Rio (Del Priore; Venâncio, 2001).
Difundiu-se assim, um movimento academicista no ultramar, fundamentado numa perspectiva literária das academias da primeira metade do século XVIII. A Academia Científica do Rio de Janeiro, foi instalada pelo vice-rei marquês do Lavradio, era composta de uma assembleia ou academia de exame das coisas que se encontravam no continente, no que se referia à questões de natureza animal, vegetal e mineral. Tinha o objetivo de informar ao público as descobertas realizadas com as pesquisas.
Conforme Candido (2000), a Academia Científica, foi fundada no Rio em 1771 por médicos e, depois, foi reformada sob o nome de Sociedade Literária em 1786. Esta instituição durou intermitentemente até 1795. Seus feitos foram a propagação da cultura do anil e da cochonilha, além disso, introduziu os processos industriais na colônia. A academia também promoveu estudos sobre as condições de salubridade da cidade do Rio de Janeiro.
Desse modo, os costumes, hábitos e praticas do Rio de Janeiro durante a segunda metade do século XVIII influenciavam e eram influenciados pelo mundo além mar. A cidade se tornou o principal porto para o escoamento de ouro da região de Minas Gerais e de outras regiões da colônia, isso permitiu um dinamismo de uma cultura nascente e própria daquela cidade. Assim, essas transformações do cotidiano colonial davam a qualquer tipo de pessoa a oportunidade de “subir na vida”, ou como era comum na época, tornar-se uma “pessoa honrada”. Nessa perspectiva de hábitos e práticas, podemos destacar a apropriação de livros e sua circulação, que contribuíram para o processo de construção e incremento cultural deste período.
2. Livros, intelectualidade e uma Sociedade Literária do Rio de Janeiro
Durante o período colonial, os locais públicos da literatura foram os auditórios de igreja, as academias e os ambientes designados para as comemorações. O escritor não existia enquanto papel social definido, vicejava enquanto atitude marginal de outras categorias: sacerdotes, juristas, administradores, etc. As manifestações do tipo literária que ocorreram até a segunda metade do século XVIII se pautaram no signo da religião e eram embasadas na literatura europeia.
No período do reformismo ilustrado português, entre os anos de 1750 e 1822, valorizou-se o conhecimento, todavia, ao mesmo tempo, foram combatidas ideias de livros julgados nocivos ao poder real, estabelecendo assim, interdições. Logo, uma característica fundamental da cultura no segunda metade do século XVIII, foi a ausência de tipografias locais que divulgassem os escritos de sua elite ilustrada, que se viu obrigada a recorrer à imprensa do reino ou, então, a fazer circular cópias manuscritas de suas produções literárias ou científicas. Ao contrário da Espanha, Portugal não pensou de modo algum em criar em seu império no ultramar os dois tipos de instituição que mais contribuíram para a divulgação da cultura escrita: a Imprensa e a Universidade (Silva, 1986).
Havia uma forte vigilância por parte da Igreja e do Estado na circulação de livros, censuravam muitas leituras, coibindo de certa forma as atividades de comércio e a profissão dos livreiros. Eram tradicionalmente feitas encomendas de livros por cartas a livreiros de Lisboa ou do Porto. Os livros também poderiam ser adquiridos por meio de pedidos a parentes ou amigos que tivessem com viagem marcada para o reino. Conseguiam, da mesma maneira, ter contato com obras proibidas e contrabandeadas através de navios estrangeiros aportados no Rio de Janeiro
Apesar da repressão, os livreiros continuavam ser ativos em sua profissão, já no século XVIII, instalaram-se na cidade do Rio de Janeiro. Encontravam-se “lojas de vender livros” que comercializavam obras oriundas de Portugal na cidade. No que diz respeito às lojas de livros no Rio de Janeiro setecentista, alude-se a narrativa de Barrow:
No Rio de Janeiro, após ter muito procurado, encontramos duas lojas de livros. Não foi preciso muito tempo para perceber que essas casas não tinham nada parecido com aquilo que procurávamos. Os catálogos dessas duas lojas compunham-se basicamente de velhos manuais de medicina e de alquimia, além de muitas histórias da igreja e de suas querelas teológicas e de algumas crônicas dos feitos memoráveis da casa de Bragança. Não havia nada referente ao Brasil (França, 1999: 219).
A posse de livros situa a presunção de que os livros possuíam para certos leitores, um uso de natureza profissional, ao passo que era um conhecimento necessário para o ofício aos quais se dedicavam, assim, tornavam-se fonte de entendimento para o exercício profissional. Destacavam-se dentre os proprietários de livro na colônia: advogados, clérigos, médicos, boticários, navegadores e militares e os mercadores de livros.
Foi somente no final do século XVIII que apareceram as bibliotecas na colônia, cuja maioria das encomendas de livros era feita pelos colégios religiosos. Contudo, bispos, particulares e leigos tinham bibliotecas, mas em geral a população não utilizava livros, a não ser as obras de devoção. As raras livrarias dispunham de livros autorizados pelo governo português na maioria obras sobre a vida litúrgica. A Bíblia, nessa época, era praticamente ignorada. A criação literária e a difusão das obras se limitavam a um grupo restrito, composto principalmente pela elite.
O livro no século XVIII era um elemento dos grupos com posses, um objeto de status e ostentação, era valorização de aparências e do saber através dos livros. Os livros também definiam as redes de sociabilidade.
Na América Portuguesa, os leitores atribuíam aos livros, subentendendo-se aqui toda a sorte de impressos, múltiplas utilidades. Enquanto objetos de leitura, os impressos eram fontes de conhecimento, de deleite, meios de acesso ao sagrado e elementos de ornamentação. Os livros, ademais, afiguravam-se como fatores de poder, contribuindo para que seus leitores questionassem ou, inversamente, para que viessem a reforçar a ordem estabelecida, fosse ela política, sexual, religiosa ou econômica, nos âmbitos privado e público. Para os leitores, os livros, assim, inscrevam-se em relações de saber, poder e prazer, sendo importantes nas vidas privada e pública, definindo redes de sociabilidade. (Villalta, 1999: 349 - 350).
Silva (1986) refere-se ao aparecimento da Academia Literária do Rio de Janeiro, que foi uma forma de sociedade fundada em 1785, pelo vice-rei Luís de Vasconcelos e Souza, ele tentou constituir um conclave secreto que deveria discutir democraticamente “a Filosofia em todos os seus aspectos”. As academias setecentistas tiveram papel de desenvolvimento de ideias, transformando-se em núcleos de sociabilidade e aplicação e estímulo literário. Foram reuniões ocultas que deram origem a clubes secretos contra ideias absolutistas. A Sociedade Literária passou a ser recriminada pela Devassa, devido a sua suposta simpatia pelos conjurados de Minas; os membros dessa agremiação foram presos e submetidos a prolongados interrogatórios em 1794.
Jacsó (1997), ao analisar a sedição e vida privada refere-se à Sociedade Literária do Rio de Janeiro, cujos membros ainda que tenham implantando novas formas de sociabilidade de fundo burguês e democrático no interior de uma sociedade estamental e escravocrata, vinculavam-se mais ao espaço privado das residências na prática dos novos ideais. Assim sendo, os ensaios de rupturas dos limites da vida pública se engendravam no interior do espaço privado.
O poeta Manuel Inácio da Silva Alvarenga (1749 - 1814) pertenceu a essa Sociedade Literária o Rio de Janeiro, embora tenha nascido em Vila Rica, não pertenceu ao grupo mineiro dos Inconfidentes. Ele se formou em Direito pela Universidade de Coimbra, ao voltar para o Brasil foi morar na cidade do Rio, onde pelo fato de ser membro da Sociedade Literária permaneceu preso por quatro anos. Anos mais tarde, retornou à Lisboa; escreveu o poema herói-cômico “O desertor das Letras”, publicado no Rio de Janeiro com o financiamento do próprio Marquês de Pombal, um déspota esclarecido.
Outro poeta da época foi José de Santa Rita Durão (1722? - 1784), que escreveu o poema épico Caramuru, impresso pela primeira vez em 1781. Ele faz uma descrição detalhada das produções naturais brasileiras com elogios à fertilidade do solo do país.
Diferente dos demais, Domingos Caldas Barbosa (1738 - 1800), foi um poeta popular, mestiço natural do Rio de Janeiro. Foi o introdutor da “modinha” nos salões de Lisboa, seu grande sucesso foi Viola de Lereno, publicado em 1798. É uma poesia que trata do lundum, dança dos negros, considerada obscena pelos brancos, tinha um vocabulário brasileiro (Borba, 1969).
Com a elevação do Rio de Janeiro à condição de capital do vice-reino de Portugal, desde 1763, estimulou e aumentou o número de pessoas envolvidas no setor de serviços com formação superior, cuja leitura era uma exigência do próprio exercício profissional, além da constituição de uma civilização mais urbana. A distribuição da posse de livros diferenciava-se conforme a categoria profissional e a sua posição social; o gozo dos livros concentrava-se entre os detentores da propriedade de terras e escravos, marcadamente entre aqueles que a conjugava a dedicação à carreira sacerdotal, ao direito, à cirurgia e à farmácia, ou ainda, ao comércio, à navegação, aos estudos, às atividades militares e ao exercício de cargos públicos (Villalta, 1999).
Todavia, o século do ouro trouxe mudanças para a literatura; a nova riqueza alimentada pelo ouro empurrou para o Sudeste boa parte dessa vida literária em formação. O Rio de Janeiro, escoadouro da riqueza mineral e capital colonial, da mesma forma que as cidades mineradoras, passou a sediar novas expressões estéticas. Por isso, o livro, a leitura, a escrita, de determinado texto não são necessariamente o real, possuem outro sentido e outra realidade visada pelo texto. É preciso compreender as obras literárias na sua própria criação como a necessidade de representação do mundo, uma prática social que figura normas valores e tradições. Apesar do elevado número de analfabetos na colônia, a leitura e os livros foram uma forma de sociabilização, agindo e influenciando reciprocamente com as artes sobre o meio e sobre os aspectos culturais que englobavam a vida social daquela época.
3. Artes e artistas setecentistas
As obras de arte se vinculam com as identidades e memórias sociais de dada época na construção e representação do mundo social e cultural, descrevendo a sociedade tal como pensam que são ou queriam que fosse.
Nas épocas das festividades litúrgicas dos setecentos, eram encomendados aos artistas muitos trabalhos, consequentemente, era necessário criar, renovar e reparar. Os artistas ou artesãos especializados recebiam encomendas das irmandades, ordens terceiras e conventos, bem como, da câmara e de ricos particulares. Cada artífice trabalhava individualmente, sendo difícil falar de uma escola da totalidade desses artífices. No entanto, existiram as oficinas, locais de trabalho manual, onde mestres, escravos, aprendizes e oficiais executavam totalmente ou parcialmente suas obras.
No século XVIII é difícil fazer uma distinção clara entre o que se entendia por arte e por ciência, como também a delimitação entre as chamadas artes menores e as belas artes. Tanto as atividades artesanais quanto a artística estavam conectadas e eram parte, a cada momento, das populações. Um único artista poderia desempenhar diversas funções ao mesmo tempo, as exigências dos que encomendavam as produções não permitiam que os artistas se especializassem em apenas uma atividade, realizando a execução de peças e obras novas e, igualmente, seus reparos. Muitos desses artífices eram brancos, pardos, negros, ou reinóis.
A alta administração colonial se dava em atividades relacionadas com a arquitetura militar e a arquitetura civil. A arte religiosa no ultramar é fruto de uma atividade coletiva, pois a arquitetura religiosa engloba trabalhos de engenheiros, escultores, entalhadores, pintores e imaginários, de ourives e marceneiros. Com efeito, é de grande a variedade a arquitetura religiosa desse período, não só pelos materiais utilizados, como também na fatura das formas das fachadas, plantas e decoração.
Aguirre retrata a celebração da Procissão do Triunfo e do Enterro, festividades em ocasião da Semana Santa, realizadas pela Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. Ele comenta à respeito de suas decorações e dos materiais usados durante o cortejo:
As comemorações da Semana Santa são verdadeiramente magníficas e instigam a devoção. Tivemos a oportunidade de assistir aos ofícios da catedral e de acompanhar duas procissões: a do Senhor Morto, na Sexta-Feira Santa, e a do Triunfo, no Domingo de Ramos. Ambas saíam do convento dos carmelitas e, no seu decorrer, eram representados os diferentes passos da vida do Redentor, bem como alguns episódios da Sua paixão. Em nenhuma dessas procissões vimos metais ricos nas imagens; somente os andores eram dourados, mas feitos de madeira. Essas procissões são formadas exclusivamente pelos numerosos irmãos professos e noviços da Ordem Terceira dos Carmelitas e pela comunidade dos religiosos de Nossa Senhora do Carmo. O hábito dos seculares não difere do dos regulares, salvo pela ausência capuz. O ato é representado com extrema gravidade, causando forte e boa impressão. (França, 1999:164).
Ao lado de uma arte religiosa extremamente desenvolvida, mesmo ao nível particular, como as capelas e oratórios das casas rurais e urbanas, destacou-se também a arte profana, sobretudo na pintura. Como o exemplo das telas paisagísticas do pintor ítalo-brasileiro João Francisco Muzzi, que representam o Incêndio e Reedificação do Recolhimento de Nossa Senhora do Parto 3 em 1789, retratando a cidade do Rio de Janeiro naquela época. E, ainda, os seis painéis 4 atribuídos a Leandro Joaquim que retraram aspectos da paisagem da cidade do Rio de Janeiro e da Baía de Guanabara.
O grande problema na análise dos pintores e pinturas coloniais foi saber se existiu uma organização profissional dos artistas, isto é, de pintores e escultores. Não se tem documentos que comprovem a existência de uma organização profissional de pintores no Rio de Janeiro do século XVIII, porém, em livros antigos das irmandades e ordens terceiras citam com frequência os trabalhos prestados por pintores e escultores, tal circunstância também foi característica em outras regiões do Brasil.
Nesse propósito, a maioria das obras religiosas era executada por meio de um programa iconográfico exigido ao artista encomendado pelas comunidades religiosas que pagavam pelo trabalho. Todavia, isso não queria dizer que os artistas seguiam a regra o programa imposto a eles, mas sim que os pintores produziam exclusivamente sob encomenda, tal qual era na Idade Média e Renascimento.
Os artistas e construtores que atuaram no Rio de Janeiro do século XVIII não dispunham de cursos oficiais oferecidos pelo Estado, como os de artilharia e infantaria, aberto a militares e poucos civis que desejavam aprender os fundamentos da arquitetura militar e civil. A transmissão do saber se fazia por meio do contato pessoal do aprendiz com o mestre, passando de geração para geração, estes últimos possuíam alunos aprendizes em suas oficinas ou nas obras que estavam realizando. Em um primeiro momento, os artistas eram quase autodidatas, observavam as formas e as técnicas de obras de pintura e escultura oriundas dos reinos europeus, porém, em sua maioria, aprendiam o ofício com o mestre, dos quais muitos vieram de Portugal. Além disso, haviam os manuais, tratados e também as gravuras que serviam de exemplo a esses artistas coloniais.
Com afeito, a cidade do Rio de Janeiro nos seus aspectos urbanos e artísticos assumiu um papel de centro gerador e irradiador da cultura e das artes e da ciência já no século XVIII. Doravante, a vida cultural vai timidamente se desenvolvendo e, assim, trouxe vitalidade à arquitetura daquela cidade, bem como para as outras diversas regiões da colônia.
4. Arquitetura e urbanidade na nova capital do vice-reino português
Na Europa, ao longo do século XVIII, um ideal racionalizador foi absorvido e propagado pela elite ilustrada. A partir disso, a atitude política do despotismo esclarecido surgiu do desejo de conciliar absolutismo com a necessidade de reformas sociais. Ocorreu então, uma intensificação de um novo modo de pensar a cidade, isso repercutiu no ultramar. Para os iluministas a cidade era o polo principal de manifestação e propagação da civilização, onde adequava os indivíduos às luzes proporcionando educação física e mental aos homens. Em todo século, as concepções sobre a cidade ideal foram relidas e readaptadas por diversas maneiras e em diferentes lugares: “a partir de um diálogo simultâneo entre as Luzes e aspectos como a tradição, a cultura local e as necessidades dos que regiam a sociedade” (SILVA, 2006: 31).
Entretanto, as especificidades da colônia limitaram o pensamento ilustrado, o poder real se impunha de forma estratégica para uma melhor administração colonial. Durante o reinado de D. José, com a ascensão do Marquês de Pombal ao poder, aconteceu uma racionalização dos traçados urbanos e uma mudança no projeto de urbanização do reino perante a colônia. Esse novo conceito de cidade marca a assimilação da ilustração pela colônia; as novas concepções estéticas e ideológicas influenciariam a cidade do Rio de Janeiro, sobretudo, após a sua elevação à sede do vice-reino de Portugal em 1763.
No século XVIII, não era estabelecida para as cidades coloniais a diferenciação que hoje existe entre urbanismo e arquitetura. A arquitetura estava quase que limitada ao campo da edificação, visto que a distinção entre as duas áreas aconteceu somente no final do século XIX. Os tratados dos projetistas coloniais continham, sobretudo, as análises dos edifícios e dos monumentos das cidades, sem utilizar a palavra urbanismo com o sentido atual. Dessa maneira, foi utilizado para designar o caráter urbanizado das cidades da época o termo urbanidade, o qual se refere às particularidades e civilidade das pessoas que vivem nos centros urbanos.
O termo (“urbanizar”) expressava o comportamento civilizado, revestido de urbanidade, qualidade própria das pessoas que viviam numa urbe ou núcleo urbano em oposição ao morador do campo, ao lavrador, visto como bruto e ignorante. Se alguma distinção havia, esta se colocava em outro nível e se fazia a partir das noções de civil e militar. Assim, havia o campo da “arquitetura militar”, que tratava das fortificações, das armas de guerra e de todo engenho voltado para a prática militar e bélica. À medida que os armamentos foram se sofisticando, os arquitetos, que antes também projetavam ou exerciam a “arquitetura militar”, passaram a ser substituídos por um novo tipo de profissional, que veio chamar “engenheiro militar”, ligado ao ramo da Artilharia e do Exército. O outro campo era o da “arquitetura civil”, exercida tanto por arquitetos quanto por engenheiros militares, mestres-de-obras outro qualquer profissional ligado a esse campo (Cavalcanti, 2004: 284).
A arquitetura dependia fundamentalmente da ação dos vice-reis e governadores, preocupados com a defesa dos seus territórios, mandaram construir ou reparar fortalezas em pontos estratégicos. Quando ocorreu a transferência da sede do vice-reino da Baía para o Rio de Janeiro, o conde da Cunha, primeiro vice-rei a residir na cidade, ficou alarmado com o estado precário da defesa e, sobretudo, com a falta de engenheiros. Em 1767, recebeu o general alemão Böhm para dirigir o exército e mais três engenheiros: o brigadeiro sueco Funck, o coronel José Custódio de Sá Faria e o brigadeiro Francisco João Roscio, para a construção e reconstrução das fortalezas.
O ensino da arquitetura militar no Rio de Janeiro começou por volta do século XVII, período de restauração das fortificações da cidade; no decorrer do século XVIII foram os engenheiros militares os responsáveis pelos projetos de edificações, arruamentos, cais, fortificações, pontes, estradas, chafarizes e aquedutos mais significativos. São poucas as informações à respeito da atuação de arquitetos e paisagistas nativos da colônia, sobressai a figura de mestre Valentim, artífice polivalente, dentre várias obras de talha e fundição, em relação a arquitetura, projetou o Passeio Público e reformou o edifício Recolhimento do Parto após o incêndio que o destruiu.
As cidades brasileiras, à maneira das espanholas, possuíam uma rede urbana que decorria da presença dos portos e do tráfico marítimo. A grande praça quadrada encontra-se no centro da cidade e suas outras faces eram compostas pelo palácio dos vice-reis, câmara municipal e a casa da moeda. Não eram edifícios ostentosos, eram construídos a partir da pedras oriundas de Lisboa; no caso das casas, eram construídas de acordo com o gosto do empreendedor. Mesmo assim, no Rio, cada pequena praça, servia de adro a uma igreja, é o caso do largo do Carmo, onde reunia todos os elementos da vida social, sem parecer tão rígido e calculado quanto às praças espanholas.
Holanda (2005), afirma que as construções brasileiras eram irregulares no traçado das cidades, não havia rigor, método ou previdência na criação. Tudo era desigual, a maior parte das cidades brasileiras possuía uma topografia acidentada ligada por ladeiras, existindo uma separação entre cidade alta e cidade baixa. No Rio de Janeiro as casas eram bastante regulares, sendo construídas em pedra granítica, em sua maioria, possuíam varandas de ferro ornamentadas com duas bolas ou maçãs de chumbo. Encontravam-se casas com dois andares ou somente de rés-do-chão, as lojas sem janelas e a porta ficava aberta para a rua o dia tdo, onde se instalava o comércio.
O intendente Barrow descreve suas impressões sobre as casas e as ruas cariocas do século XVIII:
Muitas das casas de São Sebastião são bem construídas. Em geral, são edifícios de dois andares, cobertos com telhas e ornados com balcões de madeira, instalados nas sacadas do andar superior. As casas mais belas têm um ar barroco e sombrio em decorrência das grades de madeira entrelaçadas, usadas para substituir o vidro das janelas. As ruas da cidade são retas e, com raras exceções, muito estreitas; as principais são pavimentadas dos dois lados com largas pedras de granito. Não se deve esperar que as ruas de uma colônia portuguesa tenham calçadas, afinal, esse é um luxo que raramente se encontra fora da Inglaterra. As casas comerciais são largas, adequadas para seus fins e razoavelmente bem servidas de mercadorias e manufaturas europeias. (França, 1999: 216 - 217).
Geralmente, os cronistas sempre tratavam da uniformidade das construções do período colonial, sendo lotes estreitos e compridos com pouca variedade formal, caracterizados por uma falta de salubridade, as casas eram consideradas escuras e abafadas. Nelas necessitava-se do trabalho escravo para o abastecimento de água e esgotamento sanitário. As moradias eram bastante simples, com um conforto básico e sem requintes decorativos (Santos, 2005). No relato de Barrow, é observada essa padronização, o viajante acrescenta ainda as marcas barrocas nas construções e a presença de comércio de produtos vindos dos reinos.
Toda obra de edifício ou arruamento era fiscalizada pela câmara de vereadores e deveria sempre ser comunicada quando um proprietário desejasse realizar uma obra nova, reforma ou algum acréscimo. As ordenações do reino estabeleciam as regras básicas a serem obedecidas, delimitando as edificações em seus devidos lotes.
Por meio de muitas contendas sobre arruamentos e melhoramentos da cidade, pouco a pouco o Rio foi ampliando o número de logradouros pavimentados. Nas primeiras décadas do século XVIII, os lugares pavimentados já eram maioria; além de arruamentos, outras obras públicas foram efetuadas para o provimento de água, em virtude da construção de chafarizes. As construções e as obras de arquitetura e urbanização proporcionaram a cidade do Rio de Janeiro e seus habitantes um caráter de urbanidade, civilidade e sociabilidade, por meio de uma dinâmica cultural própria em meados dos setecentos.
5. Considerações finais
A construção da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro durante a segunda metade do século XVIII foi concebida por profissionais ou artistas que nela residiram e viveram. A sociedade carioca desse período passou por profundas transformações devido a descoberta do ouro da mineração. Isso diversificou as atividades urbanas e urbanizou a sociedade, melhorou o mercado consumidor interno, gerou uma população composta por profissionais liberais, artesãos e artífices, dessa forma, amenizou a hierarquização bipolar da sociedade patriarcal latifundiária colonial.
Em vista disso, o século do ouro torna-se o responsável pelo desenvolvimento do interesse pelas “coisas da inteligência ou do saber” entre alguns homens da elite urbana, principalmente de Minas Gerais, Bahia e Rio de Janeiro. Muitos desses senhores mandavam seus filhos para estudar em universidades europeias, principalmente em Coimbra. Na Europa, eles entravam em contato com as ideias filosófico-liberais dos iluministas europeus, trazendo-as para o ultramar, incrementando assim, a vida intelectual, política, administrativa, científica e cultural no século XVIII e, posteriormente, século XIX.
Considera-se que havia no Rio de Janeiro, durante a segunda metade do século XVIII, uma sociabilidade e dinâmica cultural próprias, marcada por conflitos, disputas, resistências, negociações, manifestações e, acomodações próprias da experiência do viver em colônias.
Os textos dos viajantes analisados trazem muita informação contraditória, visto que alguns acham a cidade limpa e bem construída, outros imunda. Esses relatos, assim como as artes, a literatura, dentre outros elementos de urbanidade da época, necessitam de interpretações minuciosas considerando as influências culturais e as intenções de seus autores e mesmo de seu público.
A cultura nesses novos ambientes urbanos coloniais gerou condições para contestar o estatuto colonial; durante a segunda metade do século XVIII, aconteceu certa ruptura desse estatuto vinculada a mudanças políticas, sociais e econômicas. Os ensaios sediciosos no final do século XVIII mostram a erosão de um modo de vida, uma crise geral do antigo regime na colônia. O privado invade o público num questionamento do sistema e desagrado perante o poder reinól. As ações contestatórias de inconformismo no espaço colonial requerem um novo espaço social de alternativas para o ordenamento político da colônia. Isso acarretou no esgotamento dos padrões tradicionais e, voltou-se, para uma nova cultura política, econômica e novas formas de sociabilidade.
Portanto, a cidade do Rio de Janeiro ao se tornar capital e sede colonial do império português em 1763, fica mais urbana, isto é, mais civilizada e aberta às mudanças culturais que já vinha sofrendo ao longo dos anos. Tais modificações se manifestam através das artes, da literatura, de hábitos, dos seus habitantes, ou seja, a sociedade como um todo se articulou com esses aspectos dinâmicos da cidade. Esses fatores refletiram em novas redes de sociabilidade e compõem a memória, a história e a identidade carioca dos setecentos.
Referências Bibliográficas
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1 A História Cultural faz parte de um campo fragmentado, em um equilíbrio entre diferentes períodos históricos, regiões do mundo e disciplinas. Na tradição francesa, o termo “cultura” está associado à Escola dos Annales, das mentalidades, das sensibilidades ou representações coletivas (Lucien Febvre e Marc Bloch), bem como da cultura material (Fernand Braudel) e da imaginação social (Jacques Lê Goff).Recibido: 10/05/2018 Aceptado: 15/11/2018 Publicado: 28/11/2018