Manuela de Queiróz Cruz*
Antônio Carlos Witkoski **
Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Brasil.
manu_queiroz@hotmail.com
RESUMO
Este artigo aborda acerca da criança que habita a várzea amazônica, nas margens do Rio Solimões/Amazonas, especialmente a região da Costa da Terra Nova - Comunidade São Francisco, localizada no município do Careiro da Várzea - Amazonas. Estes sujeitos sociais frequentam a Escola Municipal Prof.ª Francisca Góes, considerada a maior desta localidade. Na sociedade contemporânea em que vivemos, caracterizada pelo adulto que atravessa a temporalidade na infância, temos uma relação estimável entre a criança, o lazer e as maneiras que se comportam quando estão em contato com o brincar, construindo, assim, sua cultura lúdica. O brincar é o principal modo de expressão da infância e uma das atividades mais importantes para que a criança se constitua como sujeito da cultura, o desenvolvimento da criança acontece através do lúdico, ela precisa brincar para crescer. Por meio do universo lúdico que a criança se satisfaz, realiza seus desejos e explora o mundo ao seu redor, tornando importante proporcionar às crianças atividades que promovam e estimulem seu desenvolvimento global, considerando os aspectos da linguagem, do cognitivo, afetivo, social e motor. Esta pesquisa teve como objetivo compreender, através das práticas lúdicas, as representações socioambientais das “territorialidades” das crianças camponesas desta comunidade amazônica. De modo que para se chegar a este objetivo os métodos utilizados foram: a observação participante, o registro de campo, conversas informais e desenhos realizados pelas próprias crianças. As análises foram feitas a partir do processo de socialização, das brincadeiras realizadas e através dos desenhos e verbalizações de dezoito crianças acerca de suas representações, utilizando uma abordagem histórico-cultural vygostiskyana, onde parte-se do pressuposto que organismo e meio estão em constante interação. A pesquisa foi realizada em dois momentos, de acordo com o ciclo hidrológico do Rio Amazonas. A primeira fase ocorreu durante o período de enchente/cheia que correspondeu aos meses de outubro a junho de 2017. Já a segunda fase realizou-se no período de vazante/seca que compõe os meses de julho a setembro. Logo, as crianças varzeanas vivenciam dois momentos de mudanças ambientais diferentes durante o ano e consequentemente representações socioambientais diferentes acerca de uma mesma paisagem, principalmente no que tange as suas atividades lúdicas. A partir destes dados, concluiu-se que as representações socioambientais das crianças varzeanas evidenciam através do lúdico uma floresta sem fim, de mitos que ressignificam seu brincar, seu imaginário no dia a dia, mas também no seu modo de viver. As terras, florestas e águas, mitos e símbolos são aspectos simbólicos do imaginário amazônico que se fazem presente nas brincadeiras das crianças. O ciclo das águas constitui-se como fator construtor das representações socioambientais destas crianças, pois refletem diretamente na escolha de suas brincadeiras, pois em alguns momentos as mesmas podem brincar em alguns ambientes e em outros não podem fazê-lo em detrimento do período da cheia. Os movimentos e lugares de brincadeira realizados pelas crianças, revelam o meio em que elas vivem, pois sob o ponto de vista de sua totalidade, o movimento representa um fator de cultura. O repertório lúdico motriz destas crianças é diversificado e é realizado por meio do brincar livre na natureza amazônica, onde os movimentos acontecem de forma espontânea como pular, saltar, chutar, subir, arremessar, balançar, correr, constituindo-se em elementos importantes para a construção cognitiva e social infantil, bem como sua forma de representá-la no contexto socioambiental.
Palavras-chave: criança varzeana, habitus, brincar, representações socioambientais, Amazônia.
ABSTRACT
This article deals with the children living in the Amazonian floodplain, on the banks of the Solimões / Amazonas River, especially in the. Region, located in Careiro da Várzea - Amazonas municipality. These social subjects attend the Municipal School Prof.ª Francisca Góes, considered the largest of this locality. In the contemporary society in which we live, characterized by the adult that crosses temporality in childhood, we have an estimable relation between the child, the leisure and the ways that behave when they are in contact with the play, thus constructing their playful culture. Play is the main mode of expression of childhood and one of the most important activities for the child to become a subject of culture, the development of the child happens through the playful, she needs to play to grow. Through the playful universe that the child satisfies, fulfills his desires and explores the world around him, making it important to provide children with activities that promote and stimulate their global development, considering the aspects of language, cognitive, affective, social and motor. This research aimed to understand, through playful practices, the socioenvironmental representations of the "territorialities" of the peasant children of this Amazonian community. So that to reach this goal the methods used were: participant observation, field registration, informal conversations and drawings made by the children themselves. The analyzes were made through the process of socialization, the games played and through the drawings and verbalizations of eighteen children about their representations, using a vygostiskyana historical-cultural approach, where it starts from the assumption that the organism and environment are in constant interaction . The research was carried out in two moments, according to the hydrological cycle of the Amazon River. The first phase occurred during the flood / flood period which corresponded to the months of October to June of 2017. The second phase was carried out in the period of ebb / dry that composes the months of July to September. Therefore, varzean children experience two different environmental changes during the year and, consequently, different socioenvironmental representations about the same landscape, especially with regard to their play activities. From these data, it was concluded that the socio-environmental representations of the varzean children show through the ludic an endless forest, of myths that reignify their play, their imaginary in the day to day, but also in their way of life. The lands, forests and waters, myths and symbols are symbolic aspects of the Amazonian imagination that are present in the children's games. The water cycle is a constructive factor of the socio-environmental representations of these children, because they reflect directly in the choice of their games, because in some moments they can play in some environments and in others they can not do so to the detriment of the period of the flood . The movements and places of play performed by children reveal the environment in which they live, because from the point of view of their totality, movement represents a factor of culture. The children's recreational repertoire is diversified and is performed by means of free play in the Amazonian nature, where the movements happen spontaneously such as jumping, jumping, kicking, climbing, throwing, swinging, running, constituting important elements for the cognitive and social construction of children, as well as their way of representing it in the socio-environmental context.
Keywords: varzean child, habitus, play, socioenvironmental representations, Amazon.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Manuela de Queiróz Cruz y Antônio Carlos Witkoski (2018): “O papel do lúdico na construção das representações socioambientais das crianças na ILHA do Careiro da Várzea – Amazonas - Brasil”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/10/construcao-representacoes-socioambientais.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1810construcao-representacoes-socioambientais
1. INTRODUÇÃO
Diversas pesquisas concordam que as crianças manifestam preferência por ambientes naturais, e são especialmente propensas a interagir com seus elementos e processos. Esta atração pela natureza é, em parte, atribuída à íntima relação psicobiológica dos humanos com os elementos e processos do mundo natural. Para Silva et al (2009), a criança se desenvolve através das interações que estabelece com os adultos desde muito cedo. A sua experiência sociohistórica inicia-se nessa interação entre ela, os adultos e o mundo criado por eles, e quando os pais estimulam seus filhos durante a brincadeira se tornam mediadores do processo de construção do conhecimento. Assim, podemos dizer que a brincadeira seria uma reprodução do mundo real pela ótica infantil. Segundo Carneiro e Dodge (2007), o movimento é, sobretudo, para a criança pequena, uma forma de expressão, pois mostra a relação existente entre a ação, o pensamento e a linguagem. A criança consegue lidar com situações novas e inesperadas, age de maneira independente, consegue enxergar e entender o mundo fora do seu cotidiano. Temos várias razões para brincar, pois sabemos que é extremamente importante para o desenvolvimento cognitivo, motor, afetivo e social da criança. É brincando que a criança expressa vontades e desejos construídos ao longo de sua vida, e quanto mais oportunidades ela tiver de brincar mais fácil será o seu desenvolvimento.
Vygotsky (1984) afirma que brincando a criança consegue vencer seus limites e passa a vivenciar experiências que vão além de sua idade e realidade, fazendo com que ela desenvolva sua consciência. Dessa forma, é na brincadeira que se podem propor à criança desafios e questões que a façam refletir, propor soluções e resolver problemas. Brincando, elas podem desenvolver sua imaginação, além de criar e respeitar regras de organização e convivência, que serão, no futuro, utilizadas para a compreensão da realidade. A brincadeira permite também o desenvolvimento físico-motor, bem como o do raciocínio e o da inteligência.
Estamos cientes das razões que levam as crianças a brincarem sejam inúmeras e que o brincar é um direito da criança, conforme Lei 8.069, de 13 de julho de 1990, denominada Estatuto da Criança e do Adolescente de acordo com o Capítulo II, Art.16, Inciso IV que institui o direito de brincar de toda criança, praticar esportes e divertir-se. O propósito deste artigo foi explorar e compreender as representações socioambientais infantis à partir das práticas lúdicas na Comunidade São Francisco, localizada na Ilha do Careiro da Várzea – AM (Costa da Terra Nova). Reigota (2002) apresenta definições de vários especialistas de diferentes ciências sobre ambiente, que segundo o seu ponto de vista indicam que não existe um consenso sobre meio ambiente na comunidade científica em geral; portanto, para ele, a noção de meio ambiente é uma representação social. A representação de meio ambiente é assim revelada quando um lugar determinado é percebido, onde os elementos naturais e sociais estão em relações dinâmicas e em interação. Essas relações implicam processos de criação cultural e tecnológica e processos históricos e sociais de transformação do meio natural e construído.
Assim, os estudos das práticas lúdicas desenvolvidas pelas crianças da Comunidade São Francisco permitiram as discussões acerca das representações socioambientais e dos pontos de ancoragem que as crianças têm acerca do ambiente em que estão inseridas.
2. PROCEDIMENTOS METODOLÓGICOS
O local da pesquisa como mencionado, foi o da Costa da Terra Nova que está localizada na porção ocidental da Ilha do Careiro, a noroeste do município do Careiro da Várzea-AM, domínio da unidade geomorfológica de depósitos de inundação, formando verdadeiros terraços (FRAXE, 2004). É válido ressaltar que este município é o mais próximo da cidade de Manaus, situando-se a 10km, por via terrestre, e a 29km por via fluvial. O município do Careiro da Várzea foi criado pela Lei nº 1828 de 30 de dezembro de 1987, quando se desmembrou do município do Careiro. De acordo com o Sebrae (1995), apresenta-se assentada na produção familiar, que tem como principais atividades: na pecuária (bovinos, suínos e aves), a produção de carne, leite e derivados. Na agricultura, sobressai-se a produção de mandioca, arroz, abacaxi, cana-de-açúcar, cará, feijão, juta, malva, milho e hortaliças. A paisagem do local desta pesquisa é composta pelo depósito de sedimentos novos, chamados de “praias” ou “terra nova”, caracterizados por apresentar uma vegetação de porte baixo (arbustos e gramíneas) e um local mais alto, onde se localizam as casas (restinga ou dique marginal), bem como a plantação de árvores frutíferas. Esta área apresenta estreita faixa de restinga (80 a 100m), pois, logo atrás, também aparecem áreas baixas, onde prevalecem os aningais/chavascais e lagos de tamanhos e formas diversas. Nesta área, observa-se intensa deposição de sedimentos na frente da restinga frontal, fazendo surgir outras terras – daí a denominação de “Costa da Terra Nova” – utilizadas para o plantio de culturas de ciclo curto durante a vazante do rio. No período de águas altas, estas terras novas geralmente ficam submersas, aparecendo somente as casas e sítios sobre a restinga antiga.
Os sujeitos desta pesquisa foram 18 (dezoito) crianças com idade entre 6 a 12 anos, escolhidas por estarem em idade escolar. O local de apoio para a pesquisa foi a Escola Prof.ª Francisca Góes localizada no município de Careiro da Várzea-AM, especificamente na Comunidade São Francisco. A perspectiva científica de subsídio foi feita no campo teórico da Psicologia Histórico – Cultural, onde buscou-se compreender as possibilidades de significados e sentidos sobre o mundo nas interações entre os sujeitos e processo de negociação sobre um determinado processo histórico. Parte-se do pressuposto vygotskiano de que a investigação científica consiste na superação dos procedimentos descritivos com vistas à interpretação das relações dinâmico-causais que sustentam o objeto concreto que é investigado (VYGOTSKI, 2000).
A observação participante bem como a aplicação de um formulário com perguntas abertas aconteceu junto às famílias das crianças que foram sujeitos desta pesquisa com o objetivo de compreender os modos de vida destes e assim reunir o maior número de informações para as conclusões acerca do processo de socialização. Outra técnica de coleta de dados utilizada foram as oficinas de desenhos. Durante as oficinas, as crianças foram estimuladas a desenhar os ambientes em que gostam de brincar, e, assim, realizou-se as devidas entrevistas junto aos grupos de discussão propostos, tentando evidenciar a compressão das representações socioambientais por estes sujeitos.
Profice (2010) afirma que ler o desenho é senti-lo, efetuar uma apreensão distinta da análise e apelar aos recursos emotivos. Trata-se de captar sua mensagem, seu desejo, seus meios de expressão, sua dinâmica, sua função, seu lugar e seu tempo. Em um continuum evolutivo que vai da expressão à comunicação, crianças e adultos se encontram em extremos opostos. O desenvolvimento gráfico retrata este processo de simbolização progressiva que permite distinguir expressão e comunicação, habilidade ainda indisponível nos primeiros anos da infância. Desse modo, o desenvolvimento gráfico da criança acompanha seu amadurecimento psicológico, cuja evolução se desenrola com relativa autonomia em relação ao seu meio. Todos os entrevistados assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido apresentado na ocasião da entrevista, conforme a Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (Brasil, 2012), com Certificado de Apresentação para Apreciação Ética (CAAE: 56216516.4.0000.5020). Como forma de preservar o anonimato dos participantes da pesquisa, estes são identificados neste artigo apenas com as iniciais de seus nomes e suas idades.
Além das entrevistas, foram realizadas conversas informais com os moradores de possibilitadas pela vivência dos pesquisadores no município. Esta vivência foi importante para a compreensão do cotidiano e do modo de vida de seus habitantes, bem como para entender melhor a dinâmica urbana durante o período de veraneio (de dezembro a fevereiro) e nos demais meses do ano. Cabe salientar que, durante o trabalho de campo, foi possível presenciar algumas atividades realizadas no entorno da lagoa, como a presença de grupos indígenas durante o verão, queimadas e cortes de árvores, além de atividades relacionadas à construção civil. Os registros desta vivência foram feitos em diário de campo (Vieira, 2001) e, juntamente com a pesquisa bibliográfica e as entrevistas com moradores, contribuíram para o delineamento e a análise dos dados da pesquisa.
3. RESULTADOS E DISCUSSÕES
3.1. A socialização da criança camponesa
Crianças que crescem entre o encontro dos rios, entre os peixes, entre as árvores, entre gentes. Uma criança “protagonista” de sua própria vida, de sua própria cultura. Essa é a criança camponesa amazônica. Antes de iniciarmos a discussão quanto ao processo de socialização da criança camponesa, é necessário que possamos compreender quem são as famílias e as crianças da várzea amazônica. De acordo com os dados coletados nas 15 casas da comunidade, 11 tinham como moradores crianças e adolescentes, o que indica a importância dessa população no cotidiano das famílias.
A composição familiar mínima era representada pelo casal, e a máxima por 11 membros, caracterizando assim uma rede familiar extensa. Os dados coletados permitem concluir que o arranjo típico de organização dos lares é constituído por famílias numerosas, podendo ter mais de uma geração convivendo em um mesmo ambiente ao mesmo tempo (tios, primos, avós, etc). É válido enfatizar que a criança camponesa da Costa da Terra Nova se torna cada vez mais suscetível a “diminuição” dos valores culturais rurais repassados pelos mais velhos, uma vez que a comunidade está próxima à capital (Manaus) o que facilitaria o contato com as novas tecnologias e a incorporação de alguns habitus urbanos. A modernidade está presente em todo o contexto da comunidade e assim influencia cada vez mais nos comportamentos infantis, inclusive nas brincadeiras.
Segundo Berger & Luckmann (1973), a socialização primária é a primeira socialização que o indivíduo experimenta na infância, e, em virtude, tornar-se membro da sociedade. A socialização secundária é qualquer processo subsequente que introduz um indivíduo já socializado em novos setores do mundo objetivo de sua sociedade. Quando a criança inicia o processo de socialização secundária, que ocorre normalmente no espaço escolar, traz consigo um mundo que acredita ser único. Não o reconhece ou sequer imagina que este mundo pertence apenas a uma realidade pessoal de seus outros significativos (família). Para ele, o mundo que conhece é o único é verdadeiro. Podemos nesta pesquisa, inferir que o processo de socialização primária ocorre através da família e o processo de socialização secundária através da escola, este último, local de importante significado para as crianças, pois, além das atividades escolares, é o lugar que concentra a comemoração de datas, como: Dia das Mães, Dia dos Pais, dentre outros, e assim constitui-se como lugar com grande significado simbólico entre os comunitários, tanto para as crianças quanto para os adolescentes, adultos e idosos da Comunidade.
Para Bourdieu apud Ortiz (1983), o habitus tende, portanto, a conformar e a orientar a ação, mas na medida em que é produto das relações sociais ele tende a assegurar a reprodução dessas mesmas relações objetivas que o engendram. A interiorização, pelos atores, dos valores, normas e princípios sociais assegura, dessa forma, a adequação entre as ações do sujeito e a realidade objetiva da sociedade como um todo. Portanto, os habitus das crianças ribeirinhas são significativos e permeiam o aspecto culturais aos quais estas crianças vivem. Desta forma, tão importante para o entendimento de suas práticas lúdicas, bem como de suas representações socioambientais.
3.2. O brincar da criança ribeirinha da várzea amazônica
Vygotsky (1994) foi um dos pioneiros a considerar o brincar como uma atividade social humana, histórica e culturalmente situada. Ressaltou a importância das brincadeiras de faz-de-conta para o desenvolvimento da simbolização, por possibilitar o surgimento de uma nova relação entre o campo do significado e o da percepção.
Assim, é importante compreendermos o mecanismo psicológico da imaginação e da atividade de criação a ela ligada afim de nos nortearmos no que ocorre no processo de brincadeira infantil. De acordo Vygotsky (2004) a primeira forma de relação entre imaginação e realidade consiste no fato de que toda obra da imaginação se constrói sempre de elementos tomados da realidade e presentes na experiência anterior da pessoa. Para o mesmo autor, a imaginação é base de toda atividade criadora, manifestando-se em todos os campos da vida cultural, tornando também possível a criação artística. A segunda forma de relação entre a fantasia e realidade é diferente, mais complexa, e não diz respeito à articulação entre os elementos da construção fantástica e a realidade, mas sim, àquela entre o produto final da fantasia e um fenômeno complexo da realidade. Quando por exemplo, as crianças camponesas reproduzem desenhos acerca de outras paisagens, baseadas em relatos de adultos, elas não reproduzem o que foi percebido em uma experiência anterior, mas criam novas combinações dessa experiência. Nesse sentido, elas subordinam-se integralmente à primeira lei descrita anteriormente. Esses produtos da imaginação consistem de elementos da realidade modificados e reelaborados. A imaginação adquire uma função muito importante no comportamento e desenvolvimento humanos. Ela transforma-se em meio de aplicação da experiência de um indivíduo, porque, tendo por base a narração ou a descrição de outrem, pode imaginar o que não viu, o que não vivenciou diretamente em sua experiência pessoal.
A terceira forma de relação entre a atividade de imaginação e a realidade é de caráter emocional, ela manifesta-se de dois modos. Por um lado, qualquer sentimento, qualquer emoção tende a se encarnar em imagens conhecidas correspondentes a este sentimento. Assim, a emoção parece possuir a capacidade de selecionar impressões, ideias e imagens consonantes com o ânimo que nos domina num determinado instante, como por exemplo o medo que perpassa diversos sinais no corpo. Assim, o sentimento seleciona elementos isolados da realidade, combinando-os pelo ânimo, e não externamente, conforme a lógica das imagens. Dentre as brincadeiras mais rotineiras e citadas pelas crianças durante as entrevistas estão a de bicicleta, seguida de correr atrás dos patos e galinhas e a terceira mais citada foi com a bola, podendo incluir jogos de vôlei e futebol na quadra e campo, respectivamente conforme gráfico abaixo:
É válido acrescentarmos que a brincadeira de correr atrás dos patos e galinhas está intimamente relacionada à criação de galináceos, típica da pecuária da comunidade da Costa da Terra Nova, o que acaba por aproximar estes animais dos habitantes, logo adquirindo a simpatia e o carinho das crianças e assim de grande destaque nos depoimentos infantis. Tuan (2013) afirma que as crianças têm apenas noções muito grosseiras sobre espaço e lugar. Com o tempo adquirem sofisticação, pois na experiência, o significado de espaço frequentemente se funde ao de lugar. “Espaço” é mais abstrato do que “lugar”. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o conhecemos melhor e o dotamos de valor. A partir da segurança e estabilidade do lugar estamos cientes da amplidão, da liberdade e da ameaça do espaço, e vice-versa.
Assim, Tuan (2013) descreve que o primeiro ambiente que a criança descobre são seus pais. O primeiro objeto permanente e independente que ela reconhece é talvez outra pessoa. As coisas aparecem e continuam a existir somente quando a criança lhes dá atenção, mas logo se introduz em sua consciência nascente a realidade independente do adulto, que existe com ou sem sua atenção, logo o quadro referencial de uma criança é limitado. À medida que a criança cresce vai se apegando a objetos, em lugar de se apegar a pessoas importantes, e finalmente a localidades. Para a criança, lugar é um tipo de objeto grande e um tanto imóvel. A princípio as coisas grandes têm menos significado para elas do que as pequenas.
Tuan (2013) afirma que à medida que a criança cresce suas localizações tornam-se mais precisas, aumenta o interesse por lugares distantes e a consciência da distância relativa, logo as crianças começam a utilizar expressões como: “lá longe” e “lá pra baixo” ou “bem longe”. O horizonte geográfico de uma criança expande à medida que ela cresce, mas não necessariamente passo a passo em direção à escala maior. Seu interesse e conhecimento se fixam primeiro na pequena comunidade local, depois na cidade, saltando para região e assim por diante. Com o passar dos anos, aumenta o laço emocional da criança com o lugar e assim sendo influenciado pelos fatos básicos: se o lugar é natural ou construído e se é relativamente grande ou pequeno. A criança de cinco ou seis anos, não tem esse tipo de conhecimento. Ela pode falar com entusiasmo sobre a cidade ou algum lugar específico, podendo expressar sentimentos positivos ou negativos. Quando os sujeitos da pesquisa foram questionados em relação ao lugar preferido das brincadeiras, obtiveram-se os seguintes resultados:
O terreiro, também citado pelas crianças como um dos lugares preferidos para brincar pelas crianças, é composto pelo terreno ao lado, frente e fundo das casas ribeirinhas, onde se encontra as plantações e árvores frutíferas variadas, além da criação de animais. As crianças utilizam o espaço para brincar preferencialmente no turno vespertino, pois a grande maioria pela manhã estão na escola ou tarefas domésticas e subsistência. As brincadeiras neste espaço de transição foram observadas no período da vazante/seca, no qual era possível ter um solo seco e sólido por completo, o que seria contrário no período de enchente/cheia. As principais brincadeiras registradas nesse espaço foram: bola, bicicleta, “cemitério”, e a construção de “barquinhos” com galhos, folhas, assim caracterizando a produção de “etnobrinquedos”.
3.3. As representações socioambientais das crianças varzenas
À medida que as crianças crescem e ampliam seu campo de movimentação, as crianças se apropriam progressivamente do espaço e desenvolvem sua crescente capacidade de percepção e compreensão. Em um ambiente natural, este processo envolve todos os canais sensitivos e estimula a inteligência naturalística, ou seja, denota uma facilidade de perceber e classificar a organização dos elementos e processos naturais, no sentido de orientar a interação pessoa-ambiente. Como linguagem de apropriação simples e imediata, o desenho que a criança faz de seu ambiente cria todo significativo, mas também um ponto de partida para a discussão de seus elementos. (PROFICE,2010).
Para a análise das representações socioambientais das crianças da Costa da Terra Nova, podemos descrever primeiramente que as mesmas foram estimuladas a realizarem desenhos acerca de suas brincadeiras e onde elas ocorrem, pois, o desenho nos fornece uma perspectiva tanto do ambiente desenhado como de parte do conhecimento do sujeito em formação. Foram realizadas diversas oficinas exploratórias com o objetivo de as crianças expressarem livremente seus potenciais gráfico e experimentarem o material fornecido. Após alguns minutos, foi solicitado que começassem a finalizar o desenho para iniciar o próximo. Os materiais dispostos para as oficinas foram Papel A-4 e caixas de lápis de cor, bem como lápis e borracha.
No momento em que terminavam suas produções, as crianças foram individualmente entrevistadas pela pesquisadora. A entrevista conduzida após a execução da obra permite seu detalhamento por meio da análise dos elementos que a criança desenhou. Seu objetivo é o esclarecimento das interações e informações acerca do conteúdo dos desenhos, bem como da apreciação da criança acerca da atividade proposta. Durante a entrevista foi importante a instalação de um clima de descontração e interesse sobre o desenho e a fala dos participantes. Assim, as falas explicativas e consideradas relevantes foram destacadas e transcritas, a exemplo das figuras 4 e 5 (desenhos).
Os resultados encontrados por meio da articulação dos desenhos, das entrevistas, das histórias de vida permitiram delinear as representações socioambientais que as crianças têm do ambiente de várzea amazônico em que vivem. Nesta pesquisa não foi efetuada a análise detalhada e quantitativa dos elementos, uma vez que o foco desta está voltado para as interações pessoa – ambiente e suas representações socioambientais. O desenho, como instrumento de exploração da percepção ambiental infantil, é de fácil aceitação pelas crianças, mas utilizaram-se outros recursos. Os esclarecimentos prestados pelas crianças, por meio de entrevistas trazem informações não explícitas de seus desenhos, mas que compõem suas narrativas. Como pudemos observar na Figura 6, a criança expressa através do desenho a sua moradia durante as duas dinâmicas do rio (vazante e cheia), porém em sua narrativa descreve a preferência pelas brincadeiras no período da vazante, e ainda justifica afirmando que no período da vazante é possível a brincadeira com bola, o que a torna mais feliz.
A análise da organização dos elementos em cena foi realizada a partir de apreciação qualitativa; onde se teve como norteador a percepção da Gestalt do desenho, ou seja, da configuração visual na disposição de seus elementos e das funções nele envolvidas. À partir dos desenhos e as respectivas transcrições das “falas” de cada participante, pode-se perceber diversos aspectos, como que coincidem com o facilmente visualizado no ambiente de acordo com a história de vida de cada criança e observação participante realizada. Segue abaixo alguns pontos relevantes observados durante a análise.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com base no objetivo desta pesquisa de compreender, através das práticas lúdicas, as representações socioambientais das “territorialidades” das crianças camponesas na Comunidade São Francisco – Careiro da Várzea-AM, verificou-se que os fenômenos sociais, especialmente dentro dos grupos de brincadeiras, acompanham um modelo sistêmico em que os aspectos envolvidos configuram-se como reveladores do modo de vida dos sujeitos. A partir da observação realizada, o ambiente ribeirinho revelou-se como uma composição de sistemas (escola, família, trabalho e religião) significativos para as crianças dessa população.
Na sociedade contemporânea em que vivemos, caracterizada pelo adulto que atravessa a temporalidade na infância, temos uma relação estimável entre a criança, o lazer e as maneiras que se comportam quando estão em contato com o brincar, construindo, assim, sua cultura lúdica. O brincar é o principal modo de expressão da infância e uma das atividades mais importantes para que a criança se constitua como sujeito da cultura. O desenvolvimento da criança acontece através do lúdico, ela precisa brincar para crescer. Por meio do universo lúdico que a criança se satisfaz, realiza seus desejos e explora o mundo ao seu redor, tornando importante proporcionar às crianças atividades que promovam e estimulem seu desenvolvimento global, considerando os aspectos da linguagem, do cognitivo, afetivo, social e motor.
A dinâmica de morar na Amazônia Brasileira, especificamente às margens do Rio Amazonas, configura um relevante neste estudo, pois os ciclos das águas norteiam a vida dos camponeses que lá vivem. Podemos inferir que o rio atua como construtor e fonte de contato, uma barreira, mas também uma ponte ambiental, criando e restringindo as possibilidades de interação entre as crianças. Mesmo com todas as novas tecnologias que possibilitam o acesso à internet, bem como uso de produtos tecnológicos como tablets e smartphones as crianças da Comunidade São Francisco ainda preservam as essências das brincadeiras antigas (naturais). Todas as brincadeiras observadas têm algum tipo de relação com o contexto em que ocorrem, contudo quando trata-se do varzeano amazônico, variados aspectos físicos, sociais e relacionais implicam nos diferentes modos de brincar. Os conteúdos presentes na maioria das brincadeiras observadas ou nos desenhos, refletem o cotidiano da população local, como temas domésticos (cozinha, boneca, comidinha) ou ligados ao modo de subsistência (pescar, conduzir canoa, ajudar com a horta). Tais brincadeiras refletem também fazem parte da vida das crianças, constituindo-se em atividades de valor de trabalho, assim reafirmando o título desta pesquisa e inferindo que as brincadeiras são levadas de forma séria e comprometida pelas crianças camponesas.
No plano afetivo, encontramos tonalidade positiva da interação pessoa-ambiente, demonstrando o apego das crianças aos lugares de brincadeiras. A afeição indica o lugar da pessoa e os sentimentos de familiaridade e segurança expresso na grande maioria dos desenhos com traços que ensejam paisagens agradáveis às pessoas, exceto alguns aspectos negativos que foram explicados pela pesquisadora a partir das transcrições realizadas. Esta exploração revelou que as crianças da Comunidade São Francisco conhecem a paisagem e o seres que a habitam e que tem consciência dos problemas ambientais locais. Este conhecimento advém das experiências interativas cotidianas com o ambiente natural, por intermédio da escola, mas principalmente por meio da família, que assim se torna principal disseminadoras dos valores transgeracionais.
As crianças estão tão conectadas e integradas à natureza que seus brinquedos “nascem” das árvores, da terra, dos rios, dos mitos e costumes, por meio da sua imaginação, seus corpos e os ensinamentos dos pais e avós. Barquinhos, casinhas, piões, espingardas, petecas e faz de conta que reproduzem suas vidas e o universo adulto e contam quem elas são. Rodas e cantigas em que crianças e adultos, juntos e muito à vontade, criam ritos e ritmos na vida desses brincantes. Galhos de árvores, troncos, bichos, milho, sementes, linhas, elásticos, tampinhas de garrafa, caixas de fósforos, ferros velhos, pedras, barbantes, latinhas, chinelos de borracha e faquinhas, isopor, madeiras, cortiças e muita habilidade e imaginação: é assim que crianças das inúmeras comunidades ribeirinhas constroem seus brinquedos e inventam suas brincadeiras e na comunidade pesquisada não se difere.
Referências
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