Helen Kaufmann Lambrecht *
Daniel Maurício Viana de Souza**
Diego Lemos Ribeiro ***
Universidade Federal de Pelotas, Brasil
hklmuseologa@gmail.com
RESUMO
O presente artigo busca tratar da questão dos objetos “mortos” nos museus e como estes possuem propriedades invisíveis que os tornam “vivos”, devendo estas propriedades serem “despertadas” para que as coleções tornem-se animadas. Traremos uma discussão a respeito da alma dos objetos e como ela é substanciada através de três fatores principais: musealidade, ressonância e agência, sendo esses aspectos, bases para o avivamento de objetos em museus. Além disso, apresentaremos a perspectiva biográfica dos objetos como mais uma forma de avivamento dos objetos, dando como breve exemplo, algumas informações a respeito de entrevistas realizadas que almejam compreender estes aspectos.
Palavras-chave: Alma dos objetos. Biografia dos objetos. Museus. Objetos vivos. Objetos mortos.
RESUMEN
El presente artículo busca tratar de la cuestión de los objetos "muertos" en los museos y cómo éstos poseen propiedades invisibles que los hacen "vivos", debiendo estas propiedades ser "despertadas" para que las colecciones se animen. En el caso de los museos, la resonancia y la agencia, son estos aspectos, bases para el avivamiento de objetos en museos. Además, presentaremos la perspectiva biográfica de los objetos como otra forma de avivamiento de los objetos, dando como breve ejemplo, algunas informaciones acerca de entrevistas realizadas que anhelan comprender estos aspectos.
Palabras-clave: Alma de los objetos. Biografía de los objetos. Museos. Objetos vivos. Objetos muertos.
ABSTRACT
This article deals with the question of "dead" objects in museums and how they have invisible properties that make them "alive", and these properties must be "awakened" in order for the collections to become animated. We will bring up a discussion of the soul of objects and how it is substantiated through three main factors: museality, resonance and agency, these being the basis for the revival of objects in museums. In addition, we will present the biographical perspective of the objects as a way of reviving the objects, giving as a brief example, some information about interviews conducted that aim to understand these aspects.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Helen Kaufmann Lambrecht, Daniel Maurício Viana de Souza y Diego Lemos Ribeiro (2018): “Alma e biografia dos objetos como formas de avivamento de coleções em museus”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (septiembre 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/09/alma-biografia-museus.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1809alma-biografia-museus
1 INTRODUÇÃO
“Não gosto tanto dos museus. Muitos são admiráveis, nenhum é delicioso. As idéias de classificação, conservação e utilidade pública, que são justas e claras, guardam pouca relação com as delícias.” (VALÉRY, 1931)
A epígrafe que dá início a este ensaio, do filósofo francês Valéry (1931), aponta para o fato de que os museus, em sua visão, são lugares com pouca relação com a vida, enfadonhos, estagnados no tempo, espaços nada deliciosos. Este ponto nos instiga a reflexão para a ideia de morte e vida nos museus. Ao adentrarmos em alguns museus contemporâneos, percebemos que muitos encontram-se parados no tempo, asseverando aquela velha expressão de que “museu é lugar de morte e de coisa velha”. Não obstante, essa afirmação condiz com a situação que presenciamos nas instituições. Acreditamos que as delícias mencionadas pelo autor, seriam os aspectos emotivos que despertam os objetos nas pessoas.
Os objetos do passado sempre chegaram ao presente através do olhar que os captou; a sedução e o segredo que eles contêm nem sempre estão presentes no objeto em estado de pureza, como haveria de estar, mas se encontram quase sempre no espectador e no presente. (HUYSSEN 1994, p. 51)
Diante disso, ponderamos que o que mobiliza os objetos nos museus é a musealidade, que redunda no olhar sensível das pessoas sobre as materialidades. Esse deslocamento, porém, costuma descontextualizar os objetos de suas teias vitais, em outros termos: sua morte semântica. A morte simbólica ocorre quando não há ressonância por parte do público. Conforme complementa Huyssen (1994):
É o olhar vivo que atribui aura ao objeto, apesar de essa aura depender da materialidade e opacidade deste. Não podemos questionar esse fato caso o museu continue a ser considerado um meio de ossificação e morte [...]. (HUYSSEN 1994, p. 51)
Seriam os museus irrelevantes por “guardarem” somente a morte e as coisas velhas? Para o grande público, a resposta pode ser afirmativa, porém, os museus são valorosos nesse cenário pois devem ser agentes culturais e patrimonializadores, ser referentes identitários, nos proporcionar conhecimentos, questionamentos e reflexões, além de serem espaços para a diversidade e a democracia. Porém, em via de regra, a realidade das coleções – as quais deveriam ser potenciais instrumentos para alcançar esses desígnios – é atualmente associada a morte, no sentido de não serem providas de vida, serem sem almas. Chagas (2007) admite que os museus são devoradores e que “preservar também pode implicar uma ação contra a vida." (CHAGAS 2007, p. 213).
De acordo com as informações dos autores até aqui citados, podemos antever que em muitos casos, os museus preocupam-se primeiramente, ou quase essencialmente, com a questão estética, física, o que realmente está visível, esquecendo-se que concomitante a isto temos o invisível, o que não se vê a olho nu, o que tornaria os objetos, digamos, “vivos”. Do mesmo compasso dos pensamentos destes autores, Ingold (2012) em seu trabalho intitulado “Trazendo as coisas de volta à vida”, traz uma analogia, metafórica, a esta questão da vida e da morte:
O pássaro é o seu voar; o peixe, o seu nadar. O pássaro pode voar graças às correntes e vórtices que ele introduz no ar, e o peixe pode nadar velozmente devido aos turbilhonamentos que ele causa com o movimento de suas nadadeiras e cauda. Cortados dessas correntes, eles estariam mortos. (INGOLD 2012, p. 33)
O autor nos faz pensar que, neste mesmo sentido exposto por ele, os objetos que são doados aos museus, não deveriam perder as funções vitais que os tornam vivos, ou seja, não deveriam ser “cortados dessas correntes”. Podermos considerar que as correntes seriam as ligações com as pessoas e o sentido destes para elas. Ingold (2012) ainda menciona que onde há vida, a relação essencial não se dá entre matéria e forma, mas entre materiais e forças: “Trata-se do modo como materiais de todos os tipos, com propriedades variadas e variáveis, são avivados pelas forças do cosmo, misturadas e fundidas umas às outras na geração de coisas.” (INGOLD 2012, p. 26). Através desta ideia do avivamento “pelas forças do cosmos”, reiteramos que dar vida aos objetos estaria ligado ao invisível e a alma perpetuada por estes.
Sendo assim, a função dos museus seria a de oferecer um sopro de vida ao que parece morto e dinâmica ao que parece inerte. Mas como fazer isso afinal? Neste artigo abordaremos sobre uma das facetas possíveis para este avivamento das coleções. Através de uma discussão inicial sobre o potencial dos objetos de conectarem o visível ao invisível, quando postos em dinâmicas sociais, perceberemos como esta vertente do visível/invisível proporciona pensarmos a relação dos objetos mortos nos museus com o sujeito que o vislumbra em busca, seja de respostas às suas questões, de lembranças ou de conhecimentos. É esta dinâmica entre sujeito e objeto que traz vida às coleções, permite descobrirmos o invisível no objeto visível e, digamos, “morto”.
Esta propriedade invisível, que é consubstanciada através da relação do objeto com um sujeito, pode ser intitulada de “alma”. Este conceito será abordado neste trabalho, nos atendo ao que seria a alma dos objetos. Posteriormente, apontamos a questão das biografias dos objetos, elencando como os objetos carregam consigo uma trajetória de vida, que pode vir a ser uma das modalidades de compreensão da alma dos objetos e de reconexão entre os objetos e as pessoas, além de um instrumento para o avivamento das coleções. Como exemplo para esta suposição, traremos a análise de duas entrevistas realizadas sobre a biografia de objetos de um museu.
2 A INVISIBILIDADE NA MATERIALIDADE
Mauss (1974) aponta que para os povos Maoris (povo nativo da Nova Zelândia), os objetos (taonga) são fortemente ligados à pessoa, são veículos de seu mana (magia/alma), de sua forma mágica, religiosa e espiritual. Esses objetos pessoais possuem poderes espirituais (hau) que são transmitidos através de dádivas (trocas, presentes). Ao possuir um taonga de outra pessoa, de certa forma, possui-se um vínculo de alma com essa pessoa, pois a própria coisa tem uma alma, é alma. Mauss (1974) complementa que “se a noção de espírito nos pareceu ligada à de propriedade, inversamente esta se liga àquela. Propriedade e força são dois termos inseparáveis; propriedade e espírito se confundem.” (MAUSS 1974, p. 133). Desta maneira, os objetos possuem propriedades invisíveis, que podemos definir como “alma” e que estão conectadas aos seus possuidores. A vitalidade do objeto e da sua alma depende da conexão entre objeto-sujeito-contexto; caso seja separado dessa rede, perde sua vida. Este objeto não seria nada caso fosse deslocado a um museu sem referência à sua vida pregressa.
Pomian (1997) descreve que os objetos oferecidos aos deuses ou aos mortos são intermediários entre o nosso mundo e o do além, entre o profano e o sagrado, são objetos que representam o longínquo, o oculto, o ausente, são mediadores entre o espectador que os visualiza e o invisível de onde veem. Além disso, o autor afirma que esses objetos são intercessores entre o sujeito que os olha e os toca, e o invisível. No caso dos objetos de tesouros reais ou principescos, Pomian (1997) menciona que eles representam o invisível, pois se referem a uma tradição, pertenceram a uma pessoa famosa e conservam a memória dos fatos passados. Sendo assim, também são intermediários entre os espectadores que os olham e o invisível.
Geralmente os museus ocupam-se com o corpo e deixam de lado os simbolismos e a alma de seus objetos. Para elucidar, Pomian (1997) estabelece o conceito de “semióforos”, para designar os objetos dotados de um significado e possuem o potencial de conectar o visível ao invisível. Deste prisma, os museus ao recebem um objeto, devem manter, transmitir e intensificar o valor simbólico que este dinamiza, conforme complementa Soares (2014):
[...] se dar é transmitir o valor das coisas e das pessoas, ligando-as umas às outras em uma relação que parte do plano do profano, guardar é uma forma de transmitir com mais intensidade aquilo que há para além da matéria objetal das coisas, e portanto toca o plano do sagrado. (SOARES 2014, p. 24)
Desta forma, apreendemos que os objetos possuem atributos sagrados que estão além do seu corpo material. Concordamos com Meneses (1998) ao afirmar que:
Os atributos intrínsecos dos artefatos, é bom que se lembre, incluem apenas propriedades de natureza fisico-química: forma geométrica, peso, cor, textura, dureza etc. etc. Nenhum atributo de sentido é imanente. O fetichismo consiste, precisamente, no deslocamento de sentidos das relações sociais – onde eles são efetivamente gerados - para os artefatos, criando-se a ilusão de sua autonomia e naturalidade. Por certo, tais atributos são historicamente selecionados e mobilizados pelas sociedades e grupos nas operações de produção, circulação e consumo de sentido. Por isso, seria vão buscar nos objetos o sentido dos objetos. (MENESES 1998, p. 91)
O que Meneses (1998) questiona, é que os objetos em si não possuem sentidos sozinhos, eles não possuem autonomia própria, somente serão providos de significados e simbolismos quando postos em dinâmicas sociais, ou seja, quando as pessoas os atribuem, quando falam por eles e os avivam por intermédio da relação sujeito/objeto. Nessa perspectiva, é necessário que as coleções, além dos estudos voltados para o material (corpo), para as propriedades intrínsecas, sejam interpretadas simbolicamente (alma), por intermédio das propriedades extrínsecas.
Acreditamos que através da relação sujeito/objeto, possamos compreender esses aspectos que estão invisíveis nas materialidades através das representações que são feitas sobre eles, tornando os bens, tanto materiais quanto imateriais, possíveis patrimônios. Sendo assim, abordaremos neste trabalho, como esta relação pode ser vista como uma forma de compreender a alma dos objetos, assim como, esta pode vir a ser um potencial instrumento de avivamento das coleções, juntamente com a abordagem biográfica.
3 ALMA DOS OBJETOS
Consideramos que a alma dos objetos se consubstancia devido a vários fatores, dentre eles, a relação entre sujeito e objeto (a musealidade), os aspectos simbólicos que eles desencadeiam nos sujeitos (afeto, emoção, identificação, ressonância) e como os objetos agem sobre as pessoas (agência). Estas questões podem vir a ser subsídios para pensarmos sobre uma manifestação da alma dos objetos, além de apreendermos que a alma anima e traz vitalidade aos objetos.
A nosso ver, podemos ponderar que a “alma das coisas” (GONÇALVES; GUIMARÃES; BITAR, 2013) está relacionada ao invisível, ao imaterial, ao que não percebemos a partir da materialidade. A origem da palavra “alma” vem do latim anĭma,ae, que significa sopro, ar; princípio da vida 1. O termo “animar”, nos faz pensar no que estamos discutindo a respeito de avivar os objetos em contexto museal, que são associados à morte. “Animar” vem do latim animus, que designa a ideia de alma e é também relacionado a “Anima”, que tem relação com ser vivo e respirar 2. Nesse sentido, os museus devem se ocupar dos sentidos e do ânimo dos objetos, de sua dinâmica, de sua alma, e não apenas das suas materialidades. De que adianta preservar o corpo sem pensar nas suas almas? E como mobilizamos essas almas?
Conforme citamos anteriormente, consideramos que a alma se consubstancia através de alguns fatores: musealidade, ressonância e agência. Abordaremos a seguir sobre estes conceitos e como eles podem influenciar na ativação da alma dos objetos e consequentemente, animar os objetos mortos.
Podemos considerar que os objetos nos museus estão atrelados ao conceito de musealidade. Para Desvallées e Mairesse (2014) a musealidade é produto da musealização, ou seja, através dos processos de musealização é produzida uma imagem que substitui a realidade a qual os objetos foram selecionados, e esse modelo de realidade construído, constitui a musealidade, “como um valor específico que emana das coisas musealizadas. A musealização produz a musealidade, valor documental da realidade, mas que não constituiu, com efeito, a realidade ela mesma.” (DESVALLÉS; MAIRESSE 2014, p. 58). Diante disso, podemos avaliar que a musealidade e/ou o valor que emana das coisas musealizadas, citado pelos autores, pode vir a ser uma expressão do que buscamos entender por alma dos objetos. A alma propende dar sentido às coisas.
Bruno (2006) define a musealidade como a percepção contextual da cultura material, cujo objetivo final seria a preservação. Já Scheiner (2005), afirma que a musealidade seria um valor atribuído pelas pessoas.
A musealidade é reconhecida por meio da percepção que os diferentes grupos humanos desenvolvem sobre esta relação, de acordo com os valores próprios de seus sistemas simbólicos. Como valor atribuído (ou assignado), (sic) a percepção (conceito) de ‘musealidade’ poderá mudar, no tempo e no espaço, ajustando-se aos diferentes sistemas representacionais de cada grupo social. (SCHEINER 2005, p. 95).
Desta forma, acreditamos que a musealidade seja um processo que caminha junto com a musealização, através da atribuição de valores e significados pelas pessoas. A musealização seria um possível indutor da alma dos objetos. Contudo, o processo de musealização, sozinho, em termos apenas técnico-científicos, não garante a energia da alma. A alma ganha força em seu caráter relacional, portanto, no seio social. Os processos de musealização deveriam atentar para essa dinâmica, no sentido de reconectar os objetos às suas teias semânticas. A relação que é apontada por Scheiner (2005) na citação acima, complementa o que abordamos a respeito da alma ser dinamizada e compreendida a partir da atribuição de significados aos objetos pelos sujeitos.
A partir dessa explanação, entende-se que o objeto não é “portador” de uma alma autonomamente, ao contrário, a alma estaria justamente na relação sujeito-objeto, em uma dinâmica cultural complexa e viva. Acreditamos que esta dinâmica, além de possibilitar o entendimento da alma do objeto, seria uma forma de avivamento das coleções, isto é, um objeto vivo é um objeto com valores e significados constantemente atribuídos pelas pessoas.
Outro fator que consideramos influenciável na alma do objeto e na sua vitalidade, é a ideia de ressonância:
Por ressonância eu quero me referir ao poder de um objeto exposto atingir um universo mais amplo, para além de suas fronteiras formais, o poder de evocar no expectador as forças culturais complexas e dinâmicas das quais ele emergiu e das quais ele é, para o expectador, o representante. (GREENBLATT, 1991 apud GONÇALVES, 2005, p. 19)
Por intermédio desse conceito, entendemos que os objetos geram efeitos e identificação social nas pessoas, desencadeiam aspectos simbólicos nos sujeitos, como afeto e emoção. Poulot (2011) diz que:
Para além da diversidade de objetos que devem ser adotados, conservados, tratados, as inúmeras maneiras como as coisas se tornam objetos apropriados para se pensar, entre a reivindicação patrimonial e o saber histórico, alimenta hoje uma história das emoções e das memórias. (POULOT 2011, 479).
Esses aspectos simbólicos, emotivos e afetivos podem ser compreendidos como a alma. A alma não está no objeto e nem somente nos processamentos técnico-científicos, mas na relação emotiva que é alimentada pelos sujeitos e alimenta os processos de patrimonialização. Podemos considerar que a ressonância, a maior aproximação entre sujeitos e objetos, pode ser interpretada como um efeito ou resultado possível da “alma das coisas” (GONÇALVES; GUIMARÃES; BITAR, 2013). Por este enfoque, estimular a relação emotiva que é despertada entre um sujeito e um objeto, também pode ser um modo de avivamento de objetos nos museus.
Gonçalves, Guimarães e Bitar (2013) complementam que a alma dos objetos é atribuída pelos sujeitos, os objetos possuem uma alma que se completa na relação entre as pessoas.
É preciso também não esquecer que, enquanto portadora de uma alma, de um espírito, as coisas não existem isoladamente, como se fossem entidades autônomas; elas existem efetivamente como parte de uma vasta e complexa rede de relações sociais e cósmicas, nas quais desempenham funções mediadoras fundamentais entre a natureza e cultura, deuses e seres humanos, mortos e vivos, passado e presente, cosmos e sociedade, corpo e alma, etc. (GONÇALVES; GUIMARÃES; BITAR 2013, p. 8).
Nesse sentido, os objetos são impregnados de sentimentos, simbolismos e memórias. É através da compreensão de como se relaciona sujeito e objeto em um determinado cenário, que se manifesta a alma. A alma é, por esse aspecto, o produto e o processo da evocação e do trabalho de memória. As memórias evocadas por meio da relação do sujeito com os objetos museológicos, podem nos dizer muito sobre esse objeto, mas também, sobre a pessoa que está narrando-o. Esse testemunho, essa narrativa, nos faz perceber qual a alma do objeto, que é construída em comunhão com as pessoas que o narram e o dão significado.
Conforme estabelece a Declaração de Québec (2008)3 , sobre a preservação do "Spiritu loci" ou “espírito do lugar”, o espírito do lugar é transmitido pelas pessoas e “é por meio de comunicação interativa e participação das comunidades envolvidas que o espírito do lugar é preservado e realçado da melhor forma possível.” (QUÉBEC 2008, p. 04). Consideramos então que a ressonância, ao gerar efeitos, identificação e emoção nos sujeitos, torna os objetos vivos.
Podemos considerar que essa questão abordada acima está atrelada ao conceito de “agência”. De acordo om Ingold (2012), se as pessoas podem agir sobre os objetos, então, os objetos agem de volta. Segundo Latour (2005), os objetos não apenas fazem parte da sociedade, eles ajudam a construí-la. O autor aponta para o fato de que tudo aquilo que modifica o estado das coisas ao fazer alguma diferença é um ator na relação. Soares (2014) complementa que, “uma vez criadas, utilizadas e colocadas em performance, as coleções criam conexões que são delas próprias. E, por vezes, são elas – através de sua agência – que determinam as ações humanas, e não o contrário.” (SOARES 2014, p. 23).
Deste prisma, consideramos que os objetos "vivos" agem sobre nós; não são apenas passivos nas relações sociais. Os objetos vivos, por essa lógica, têm alma. Se os objetos agem sobre os sujeitos e vice-versa, podemos antever que a biografia deste também influencia naquele. O que seria a biografia de um objeto sem possuir conexões com a biografia de uma pessoa que agiu sobre ele e reciprocamente? Veremos a seguir sobre como a perspectiva biográfica como vir a ser um animador dos objetos estagnados em museus.
4 BIOGRAFIA DOS OBJETOS COMO FORMA DE AVIVAMENTO DAS COLEÇÕES EM MUSEUS
A herança dos primeiros museus, como os gabinetes de curiosidades e antiquários, persiste até hoje. Ainda perdura a quantidade de acervo em detrimento da qualidade e aquisições sem critérios de seleção, pois muitos museus ainda não possuem políticas de aquisição, gerando assim, reservas técnicas com feição de depósitos, objetos mal conservados e mudos, ou seja, sem serem pesquisados ou passarem pelo processo de musealização, apenas expostos ou guardados. Muito mais do que isso, acredita-se que os objetos, sozinhos, são capazes de despertar memórias e falarem sobre si mesmos.
De acordo com Dohmann (2013) é vital a presença dos objetos na vida humana; somos cercados por uma infinidade de materialidades, somos objetificados e coisificados. O autor acrescenta que todos os “objetos, coisas, troços e tralhas” (DOHMANN, 2013) estão repletos de sentidos e significados, e até de ressignificados, sendo-lhes atribuídos valores e simbolismos.
Baudrillard (2004), menciona que os objetos com funções práticas de uso, possuem um estatuto social de “máquina”, porém, ao serem abstraídos do status de uso, privados de sua função original, adotam um estatuto estritamente subjetivo, tornam-se objetos de coleção, tornam-se “objetos”. Ainda, acrescenta que o objeto antigo não possui mais utilidade prática, ele serve unicamente para “significar”. Desta configuração, Bellaigue e Menu (1994) expõem que os objetos quando inseridos em contexto museal, ganham um novo sentido, uma nova identidade. São mais do que meros instrumentos do dia-a-dia, são, em realidade, mediadores de vivências e memórias. Gonçalves (2007) complementa que os objetos materiais:
São pensados como um sistema de comunicação, meios simbólicos através dos quais indivíduos, grupos e categorias sociais emitem (e recebem) informações sobre seu status e sua posição na sociedade. (GONÇALVES, 2007, p. 20)
O autor ainda adiciona que os objetos, enquanto um sistema de símbolos que condiciona a vida social, organizam ou constituem o modo pelo qual os indivíduos e os grupos sociais experimentam subjetivamente suas identidades. Desta forma, entendemos que os objetos museológicos possuem a função de indicadores de memória, cuja materialidade pode criar pontes com uma paisagem que está no plano do invisível, do imaginado; paisagem essa que é percebida e projetada no campo das subjetividades. Em outros termos, importa pensar os objetos como semióforos (POMIAN, 1997), mediadores entre um universo visível (materialidade) e um horizonte invisível (imaterialidades).
Importa ressaltar, contudo, que a invisibilidade das materialidades, não pode ser capturada pelo simples ato de contemplá-las. Como alerta Meneses (1998, p. 91) “nenhum atributo de sentido é imanente”, e justamente por isso “seria vão buscar nos objetos o sentido dos objetos”. O estudo da cultura material deve ser abrangido, portanto, através das relações sociais em que os objetos circulam, em que são valorados e singularizados.
Nesse sentido, a abordagem biográfica dá suporte para vermos as imaterialidades, por intermédio da relação que as pessoas travam com os objetos em contextos delimitados, que podemos definir como a ideia do fato museal. De acordo com Guarnieri (1981) o fato museal é a relação profunda entre o homem e o objeto em um cenário institucionalizado - ou seja, um museu - no qual esta relação comporta vários níveis de consciência, dentre eles, a “percepção (emoção, razão), envolvimento (sensação, imagem, ideia), memória (sistematização das ideias e das imagens e suas relações)” (GUARNIERI 1981, p. 123). Por meio da definição de fato museal, percebemos que o conceito reúne quase todos os fatores e propriedades fundamentais que já abordamos e residem na ideia de alma e que contribui para o avivamento das coleções.
Conforme sugerido por Kopytoff (2008), os objetos possuem uma biografia cultural que merece ser (re)construída; biografia essa que busca (re)conectar os objetos ao tecido social. A concepção biográfica introduzida por Kopytoff (2008) faz-nos pensar na demanda fundamental dos museus, a qual os objetos devem ser estudados em situação, nos contextos sociais em que estão. É preciso considerar também que esses objetos, antes de serem entregues aos museus, passaram por distintos processos de singularização, por diversas fase de vida, sofrendo deslocamentos de sentidos. Bonnot (2015) aponta que:
O significado de um objeto é uma noção que a perspectiva biográfica coloca fundamentalmente em causa. Mais que o objeto em si, é, evidentemente, seu estatuto social e simbólico e a interpretação que dele fazem os seus manipuladores, que se enriquecem e se adicionam às representações das quais ele foi o suporte desde a sua produção física. (BONNOT 2015, p. 137)
Desta forma, os objetos passam de utilitários a objetos de patrimônio. A abordagem biográfica auxilia no estudo das coleções e a entender os objetos em dinâmica social. De acordo Kopytoff (2008), a biografia de uma coisa, é a história de suas singularizações, classificações e reclassificações. Ainda complementa que ao fazer a “biografia de uma coisa”, devemos nos questionar da mesma forma que faríamos com a construção de uma biografia das pessoas. Além disso, o autor propõe que devemos nos preocupar em saber como este item foi construído culturalmente e dotado de específicos significados. Podemos apreender que todas as etapas de vida de um objeto, fazem-no e tornam-no dinâmico, e, ao adentrar em um museu após a sua vida utilitária “chegar ao fim”, essas etapas devem continuar, pois aquele objeto teve e ainda tem significância, ainda age sobre as pessoas e vice-versa, possuindo o potencial de musealidade e ressonância, sendo de fundamental importância que o mesmo mantenha-se vivo dentro da instituição.
Alberti (2005), acrescenta que a vida de um objeto de museu, possui três fases: inicia com a fabricação ou coleta (no caso arqueológico) e aquisição pelo museu, juntamente com as transições de significado; perpassa pelo uso do objeto dentro de uma coleção, passando pela musealização, pesquisa, exposição, dentre outras atividades museológicas; e, é complementada com o papel que adquire na experiência dos visitantes do museu, na relação entre o objeto e seu espectador. O autor dá ênfase a esta última etapa, afirmando que o sujeito-espectador é parte do processo de construção da biografia dos objetos, ou seja, o estudo da relação do objeto com os sujeitos é fundamental, extrapolando a questão técnico-científica.
Os objetos de museus possuem, então, uma trajetória de vida, desde a sua criação, pertencimento a uma pessoa, aquisição e percurso dentro de um museu (MENESES, 1998). Soares (2014) complementa que os objetos ao adentrarem os museus e as coleções, não morrem totalmente para a sociedade de onde vêm, eles adquirem uma nova vida social e iniciam uma nova etapa em suas trajetórias. Além disso, contribuem para percebermos que:
A partir de um conjunto de objetos, as informações sobre a sociedade na qual eles foram produzidos e utilizados são enriquecidas e dotam o material com o estatuto de testemunho da atividade humana. (BONNOT 2015, p. 141).
Sua trajetória de vida somada aos olhares interpretativos e os usos simbólicos, oferecem os contornos da alma dos objetos e tornam-nos vivos. É, portanto, a justaposição entre sua biografia e a relação intersubjetiva entre sujeito e objeto que se manifesta a alma. Oportuno grifar que é inócuo buscar a alma dos objetos nos próprios objetos, visto que o sentido destes está “fora” de sua realidade física; a alma é fruto de evocação, do trabalho de memória empreendido na relação entre objetos e sujeitos. Através da sua biografia poderemos encontrar meios para interpretar a sua alma, posto que, conforme vimos anteriormente com Gonçalves, Guimarães e Bitar (2013), as coisas não existem isoladamente, elas são parte de uma rede de relações sociais e cósmicas e são mediadoras do visível com o invisível.
Os objetos somente serão providos de sentidos quando estabelecermos os vínculos a eles conectados. Não basta pensarmos somente no contexto daqueles objetos, mas acima de tudo, nas dinâmicas e relações sociais, que são produtoras de contextos diversos. Nessa perspectiva, é necessário que as coleções sejam interpretadas simbolicamente, em outros termos, apenas pesquisar e salvaguardar, não é o suficiente, é preciso que as pessoas percebam simbolicamente esses objetos, subjetivamente, “por definição, o invisível é o que não se pode atingir, que não se pode dominar com os meios que normalmente se utilizam na esfera do visível.” (POMIAN 1997, p. 69).
Os objetos mediam sentimentos, simbolismos e memórias, aos quais estão relacionados ao contexto social ao qual foram criados, reproduzidos, usados e descartados por seus donos - e em contexto museal, muitos encontram-se hibernantes à espera de ressignificações e novas leituras. Após perderem o sentido de uso no cotidiano, os objetos carregam consigo, em potência, histórias e memórias que podem vir a se tornar narrativas sobre um passado presente. Por essa ótica, entendemos que a biografia potencializa o processo evocativo, que é elemento fundamental para manter a vitalidade do objeto e da sua alma.
5 AVIVANDO OS OBJETOS NO MUSEU
Os objetos guardam as memórias dos sujeitos. Nora (1993), diz que “a memória se enraíza no concreto, no espaço, no gesto, na imagem, no objeto” (NORA 1993, p. 9). Ao vê-los, tocá-los ou simplesmente lembrá-los, as narrativas desabrocham. Desta forma, não só a biografia dos objetos aparece, mas também a sua alma e os significados que eles representam, entusiasmando a sua vitalidade. Ferreira (2008) afirma que “são, portanto, as narrativas pessoais que dão aos objetos dilacerados pelo tempo, [...] o sentido de patrimônio” (FERREIRA 2000, p. 37). As memórias e identidades, assim como as biografias e as invisibilidades que não percebemos na materialidade dos objetos, podem ser narradas e percebidas através da oralidade. De acordo com Errante (2000) todas as narrativas são narrativas de identidades, “são representações da realidade nas quais os narradores também comunicam como eles veem a si mesmos e como eles são vistos pelos outros.” (STEIN 1987, VOLKAN 1988 apud ERRANTE 2000, p. 142). Assim como questiona Izquierdo (1989):
Memória é nosso senso histórico e nosso senso de identidade pessoal (sou quem sou porque me lembro quem sou). Há algo em comum entre todas essas memórias: a conservação do passado através de imagens ou representações que podem ser evocadas. Representações, mas não realidades [...] (IZQUIERDO 1989, p. 89).
De acordo com que Izquierdo (1989) aborda, podemos refletir que, em certa medida, aquilo que se projeta para fora do referencial visível do objeto, pode ser uma dimensão da alma dos objetos. Toda memória e representação identitária evocada por intermédio dos objetos museológicos, são símbolos afetivos que proporcionam a ativação do objeto e de sua alma.
Sendo assim, diante do que foi exposto, buscamos desvendar memórias, identidades, compreender as invisibilidades e avivar os objetos, por meio do dizer, por meio da oralidade. Com base em entrevistas realizadas para uma pesquisa que estamos desenvolvendo para o mestrado do Programa de Pós-Graduação em Memória Social e Patrimônio Cultural da Universidade Federal de Pelotas (UFPEL), – que versa sobre a alma dos objetos por intermédio das narrativas orais e da biografia de objetos – percebemos alguns aspectos referente a perspectiva biográfica que há relação com a manifestação da alma e avivamento das coleções. As entrevistas foram orientadas com perguntas acerca dos objetos doados, sobre a vida dos entrevistados e suas relações com estes itens.
Os objetos doados pertencem ao Museu Cláudio Oscar Becker, que fica na cidade de Ivoti, RS-Brasil. O Museu é destinado a história da cidade e da imigração alemã e foi inaugurado em 1995. Atualmente está organizado dentro de uma casa em estilo enxaimel 4, integrando a paisagem e formando um conjunto que remete a meados de 1830 e início do século XX, conhecido por “Núcleo de Casas Enxaimel”. A instituição possui uma quantidade significativa de acervo, formado através de doações da comunidade e moradores da região. São aproximadamente 1600 objetos, dentre roupas, utensílios domésticos e mobiliários.
O primeiro item analisado para a nossa pesquisa, foi um colchão de palha, doado por uma senhora de 70 anos. Ao perguntarmos sobre a importância do acervo em geral do Museu, a entrevistada argumentou que é necessário que o museu guarde, cuide bem e mostre os objetos para o conhecimento do público.
[...] as pessoas se preocupam e vão doar pro museu, porque eles sabem que lá é guardado, lá alguém vai olhar, alguém vai ver. E assim em casa, as vezes tu guarda as coisas e ninguém vai ver. E acaba sendo quebrado, guardado e nunca mais ninguém vê. Então acho que é muito interessante essas coisas do museu expor para as pessoas, que nem vocês, mais novos, veem o que nós tínhamos e nossos avós tinham antigamente. Por isso que eu acho muito interessante o museu, para as pessoas relembrarem a história [...] agente relembra para que os mais novos conheçam, vão conhecer, vai aumentar o conhecimento deles. (KRUG, 2017)
De acordo com as palavras da entrevistada, apreendemos que a comunicação e difusão do acervo são essenciais como formas de dar continuidade a vida e a história daquele artefato. Porém, conforme explicitamos anteriormente, não basta somente preservar através da materialidade e da contextualização, e sim por intermédio das relações e dinâmicas que circundam tais objetos, através da musealidade e da ressonância que eles podem gerar.
Referente a trajetória de vida do objeto e sua relação com ele, a entrevistada discorreu sobre diversos pontos:
Eu dormi num colchão desses, eu dormi! E uma vez por ano agente trocava a palha né, porque a palha virava um pó, tinha pó embaixo da cama. Ele não tinha plástico na época, não era tão consistente. [...] Então, sempre quando tinha a festa do Kerb5 , era trocada a palha do colchão. [...] Eu todos os dias arrumava a minha cama e espalhava (a palha). Mas tinha pessoas que nunca arrumavam isso, ficavam o ano inteiro assim. Levantavam de manhã e já iam pra roça, voltavam de noite e deitavam do mesmo jeito na cama de novo. [...] Ele foi utilizado até 1970 por aí. Depois que nós casamos, eles viram o colchão de mola né. Mas a vó dormiu em colchão de palha até que ela morreu. (KRUG, 2017)
O principal assunto abordado pela entrevistada foi dar ênfase para a informação de que o objeto pertenceu, em último momento, à sua mãe. Neste instante, lembramos do mencionado por Meneses (1998), de que há biografia das pessoas nos objetos, pois através do objeto doado nossa interrogada falou bastante referente a vida de sua mãe.
Chegou uma certa época que a mãe dormia sozinha. Meu pai também dormiu, em camas separadas. Porque a mãe era mais gordinha e o pai era magrinho. E a mãe era sempre muito doente da cabeça (emocionada). ‘Ai, eu não posso fazer isso, eu tô doente’. E quando as pessoas perguntavam como ela vai, ‘Ah, eu tô sempre doente, eu não sei’. Ela ficou um tempo assim bem ruim né, deprimida, e naquela época não tinha depressivos. E acho que durante a menopausa ela ficou depressiva, daí ela ficou um tempão, não sei quanto tempo que ela só tinha roupa de pijama, essas coisas que ela usava e não usava outras roupas e de repente ela melhorou, ficou diferente. Mas daí, eles já tinham uns colchões, esses colchões eram de... não era essa palha, era outra palha. Os primeiros colchões tinham outra palha, uma palha da roça mesmo. (KRUG, 2017)
Outro ponto a se levantar, é sobre o conceito de “agência” discutido anteriormente. Percebemos que conforme ocorria uma ampliação das memórias por meio do artefato, podemos corroborar com Ingold (2012) e Latour (2005) ao afirmar que os objetos agem sobre as pessoas, pois a entrevistada ficou emocionada ao discorrer e lembrar sobre as dificuldades que sua mãe enfrentava.
O entrevistado seguinte doou cerca de dez itens ao Museu e o indagamos a respeito de alguns que consideramos durante a conversa, serem mais relevantes para ele. O senhor entrevistado possui 59 anos e doou os seguintes objetos: louças de cozinha e uma cadeira de balanço. Ao perguntarmos sobre as louças doadas, as memórias foram florescendo e o entrevistado discorreu acerca de uma antiga Sociedade a qual os itens pertenceram, antes de serem de sua posse.
Esses itens pertenceram a uma Sociedade que foi construída em 1932. [...] Eles estragaram tanta coisa, jogaram tanta coisa fora. [...] Essa sociedade existe até hoje e se chama Sociedade Teuto Brasileira de Bolão de Nova Vila. [...] A minha mãe trabalhava ali com a minha tia e eles trabalhavam ali com essas louças. [...] Essas louças eram utilizadas em eventos até que foram aposentadas e compradas louças novas. (WEBER, 2018)
Após serem descartadas, as louças pertenceram à sua família:
Quando a louça chegava a ser antiquada, era descartada. [...] E a minha mãe foi pegando e trazendo. [...] Como eles não tinham muito dinheiro, a louça que eles conseguiam, eles conservavam. [...] E tudo isso foi passando de geração em geração. (WEBER, 2018)
Todo este conjunto de louças, possuem uma mesma ligação: eram utilizados para servir à mesa. Eles foram base para o entrevistado expor referente a comidas típicas alemãs, relatou sobre o conhecimento que ele tem de como os seus antepassados faziam e comiam as refeições. Neste momento, percebemos como esses objetos possuem a capacidade de agir sobre as pessoas, gerar efeitos e identificação. O entrevistado demonstrou ter muito orgulho de sua história e de seus antepassados. Estes objetos possuem, assim, o potencial de ressonância: “É o olhar vivo que atribui aura ao objeto.” (HUYSSEN 1994, p. 51). Assim como afirma Gonçalves (2003), os patrimônios são bons para agir, construir e formar as pessoas:
O patrimônio é usado não apenas para simbolizar, representar, ou comunicar: é bom para agir. Essa categoria faz a mediação sensível entre seres humanos e divindades, entre mortos e vivos, entre passado e presente, entre o céu e a terra e entre outras oposições. Não existe apenas para representar idéias e valores abstratos e para ser contemplado. O patrimônio, de certo modo, constrói, forma as pessoas. (GONÇALVES 2003, p. 27).
Referente a biografia da cadeira de balanço feita em palha, o sujeito informou que pertenceu a sua tia e depois a sua mãe:
Ela curtiu muito essa cadeira, ela foi muito curtida. Só que ela não é tão antiga, ela deve ter uns 50 ou 60 anos. [...] Quando ela morreu, eu peguei a cadeira e coloquei no sótão, cuidei dela para não estragar. Até a minha mãe em algum período usou aquela cadeira. A minha mãe usou ela e depois o meu pai comprou uma cadeira de ferro de balanço pra ela. Daí eu coloquei essa no sótão. (WEBER, 2018).
Consideramos que estas informações, mesmo embrionárias, tornaram um colchão de palha escondido embaixo de uma colcha, um conjunto de louças guardado em uma reserva técnica e uma cadeira de balanço que se encontra exposta em um canto do Museu, sem quaisquer informações, em objetos dinâmicos. Objetos que tiveram importância para uma família e fazem parte da história da cidade, agora poderão, por intermédio da nossa pesquisa, serem melhor apreciados pelos moradores da região e demais visitantes que ficarão a par de suas trajetórias.
Além disso, através das informações fornecidas pelas entrevistas, percebemos que a abordagem biográfica enriquece nossa compreensão do contexto social e nos auxilia na construção da biografia cultural, reconectando o objeto às redes mais complexas, entrelaçando-o à estrutura social. Como estipulado por Bonnot (2015) anteriormente, essas informações dotam os materiais com o estatuto de testemunho da atividade humana. E conforme sugerido por Latour (2005), os objetos precisam ser percebidos como uma estrela: “com um centro cercado de muitas linhas que irradiam, com uma multiplicidade de condutores mínimos transmitindo de um lado para o outro.” (LATOUR 2005, p. 177).
Portanto, através também da musealidade, consideramos que um objeto vivo é um objeto com valores e significados atribuídos pelas pessoas, conforme percebemos nas entrevistas mencionadas. Nesse sentido, a percepção da alma, por intermédio das narrativas sobre a biografia de um objeto, traz vida aos objetos mortos. Os sujeitos ao manipularem, interpretarem e narrarem sobre os objetos, mediam significados e ressignificados que fazem parte da trajetória biográfica dos objetos, enriquecendo o seu estatuto social e simbólico, colaborando para compreendermos estes aspectos.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Baseado no que foi exposto, acreditamos que os objetos possuem uma alma que é constituída e revelada a partir da relação com a sociedade. Podemos ponderar que os objetos nos museus podem manifestar uma alma, esta que pode ser desvendada a partir das percepções das pessoas. Eles possuem o potencial de ativar memórias, lembranças e histórias, atribuídas pelos sujeitos. Os museus são de extrema importância nesse cenário, visto que, são detentores desses objetos e precisam, nessa perspectiva, trabalhar conjuntamente com a comunidade, atribuindo e construindo as significações que serão relevantes para a sociedade, o que tornará e manterá os objetos vivos.
Ao percebermos a biografia dos objetos, percebemos a sua alma. A alma tem um sentido de atribuir valor e animar um objeto. Para compreendermos o valor é preciso colocar os objetos em contexto, entender os seus usos pretéritos e sua trajetória; e animá-lo colocando-o em dinâmica social, colocando-os em contato com as pessoas que, em última instância, integram sua rede semântica.
Consideramos que além das informações abordadas sobre os objetos que foram doados ao Museu Cláudio Oscar Becker, estes objetos serviram como ponto de escape para a memória de outros assuntos que estão no seio pessoal e familiar dos entrevistados. Desta forma, os objetos doados ao museu agiram diretamente sobre seus antigos donos, fazendo-os relembrar e narrar a respeito destes objetos, mas também das memórias das suas histórias familiares, que são histórias da própria comunidade. As biografias destes itens estão relacionadas com a biografia dos entrevistados e das pessoas que o possuíram (como é o caso de suas famílias), com as relações e círculos aos quais este objeto pertenceu.
Podemos intuir, através dos conceitos estabelecidos neste trabalho, que o que mantém o objeto vivo é colocá-lo constantemente em dinâmica social; compreendendo seu valor e significado através da musealidade; percebendo seu potencial de ressonância social; entendendo o modo como ele age sobre as pessoas e vice-versa. E, ao contrário, devemos evitar o que os congela e os mumifica, ou seja, a estagnação e o pensamento de que o objeto exposto ou em reserva técnica fala por si só.
O que podemos dizer, diante das considerações apresentadas, é que percebemos que no instante em que os objetos tornam-se evocadores de memórias, despertando emoções e afirmando identidades, podemos considerar que há uma alma nos objetos. Ponderamos que os objetos que são providos de alma possuem vida, em oposição àqueles que são "desalmados". Acreditamos, conforme estabelecido por Klee (1973), que forma é morte, porém, dar forma é vida (KLEE, 1973, p. 269 apud INGOLD, 2012, p. 26). Nesse sentido, os objetos apenas expostos ou armazenados nos museus, são apenas formas, é necessário dar ou atribuir forma (almas, valores, significados) a estes objetos, para que estes tornem-se vivos.
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