Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


TRABALHO, FORMAÇÃO POLICIAL E CONTRIBUIÇÕES DA ABORDAGEM ERGOLÓGICA

Autores e infomación del artículo

Eloisa Helena Santos*

Willekem Feliz da Silva**

Centro Universitário UNA, Brasil

eloisasantos@uaivip.com.br


RESUMO
Este artigo chama a atenção para a necessidade de se compreender a experiência de trabalho do policial militar como pressuposto para se enfrentar os desafios da sua formação e, consequentemente, da sua atuação. No trabalho cotidiano, esse profissional vive o dilema entre a exigência de cumprimento de normas e a necessidade de recriá-las, uma vez que é confrontado permanentemente com a exigência de criar novas maneiras de agir. Para abordar o tema, faz-se referência às contribuições da Ergologia. Essa abordagem busca conhecer o trabalho humano, realçando nele os saberes que são produzidos pelo trabalhador para enfrentar a distância entre as normas que antecedem as situações concretas de trabalho e as exigências da realidade vivida. Acredita-se que a compreensão da dinâmica da experiência de trabalho do policial militar possa contribuir para a formação do policial militar.

PALAVRAS CHAVE: Policial Militar - Trabalho - Formação - Norma - Transgressão - Ergologia.

RESUMEN

Este artículo llama la atención sobre la necesidad de entender la experiencia laboral del policía militar como requisito previo para abordar los desafíos de su formación y, consecuentemente, su actuación. En el trabajo cotidiano, este profesional vive el dilema entre la exigencia del cumplimiento de las normas y la necesidad de recrearlos, ya que se enfrenta permanentemente a la exigencia de crear nuevas formas de actuar. Para abordar el tema, se refiere a las contribuciones del Ergology. Este enfoque busca conocer el trabajo humano, destacando el conocimiento que es producido por el trabajador para confrontar la distancia entre las normas que preceden a las situaciones concretas de trabajo y las exigencias de la realidad vivida. Se cree que la comprensión de la dinámica de la experiencia del trabajo del policía militar puede contribuir a la formación del policía militar.

PALABRAS CLAVE : Policía Militar - Trabajo - Formación - Norma - Transgresión - Ergology.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Eloisa Helena Santos y Willekem Feliz da Silva (2018): “Trabalho, formação policial e contribuições da abordagem ergológica”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (Julio 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/07/trabalho-formacao-policial.html

//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1807trabalho-formacao-policial

1 INTRODUÇÃO

A atual formação policial militar está em processo de mudança para atender aos anseios sociais, no que se refere à segurança pública. Entretanto, tais mudanças são ofuscadas pelas diversas veiculações pela mídia de ações policiais com uso excessivo da força e violência para a contenção e manutenção da ordem pública.
Ações truculentas por parte de policiais, planejamentos mal executados em ações que envolvem movimentos sociais promovem questionamentos do preparo policial. Os meios de comunicação enfatizam os problemas de tais ações e questionam a formação dentro dos quartéis.
Nesse contexto, diversas mudanças estão sendo realizadas por intermédio da Secretaria Nacional de Segurança Pública (SENASP). No ano de 2003, foram propostas ações de revisão da formação de todas as polícias do país. A proposição de uma formação mais humanizada e alicerçada na garantia de direitos, que aproxime o policial, seja ele militar ou não, da comunidade na qual está inserido e irá prestar seus serviços e a busca por soluções das mais diversas dos problemas encontrados no cotidiano policial, tratam-se de pressupostos amplamente discutidos nas academias policiais.
A atual proposta de formação do policial militar apresenta, pois, um duplo desafio: por um lado, romper com as práticas formativas tradicionais e introduzir as mudanças requeridas para uma formação que prepare os policiais para agir segundo as exigências das diversas circunstâncias, de maneira crítica e consciente das demandas sociais. Por outro lado, conviver com a existência de uma organização tradicional hierarquizada e disciplinadora que produz efeitos na formação e no trabalho do policial militar.
A experiência de trabalho do policial militar expressa esse desafio. Esse trabalhador deve cumprir normas rígidas, mas também as transgredir em várias situações para que o seu trabalho alcance o resultado desejado pela sociedade e por si. Compreender como o policial vive esse paradoxo nos meandros do seu trabalho rotineiro torna-se, pois, elemento indispensável para a formulação de propostas voltadas para a sua formação e, consequentemente, para a sua atuação.

  1. ESTRUTURAÇÃO POLICIAL NO BRASIL

A hierarquia e a disciplina são os pilares das Forças Armadas, bem como das polícias militares. Os postos e graduações permitem que se constitua a hierarquia entre todos os militares. Por sua vez, a hierarquia e a disciplina são conservadas em todas as ocasiões, dentro ou fora do ambiente aquartelar, para a manutenção das normas e o controle do funcionamento da organização militar.
A Constituição de 1988 traz, em seu artigo 142, a hierarquia e a disciplina como bases de estruturação e de funcionamento organizacional das Forças Armadas.
Art. 142. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem (BRASIL,1988, p. 87).
As polícias sofreram modificações estruturais no decorrer das décadas, antes de 1930 não eram militarizadas, mas já traziam o aspecto militarizado no processo formativo. Em 1964, os policiais militares começaram a ser empregados no controle da ordem pública e combate à subversão, comandadas pelo exército, assim a consolidação de características militares fez-se presente na formação das polícias estaduais.
Após a Constituição de 1988, as organizações policiais começaram a sofrer influência política, o que culminou em mudanças organizacionais, uma vez que as polícias, antes integradas e subordinadas ao Exército, passaram a ser subordinadas ao Governador do Estado. Entretanto, as polícias militares permaneceram como forças auxiliares e reservas do Exército e mantiveram as características militares.
Conforme Carvalho (2001), as polícias militares tornaram-se pequenos exércitos sob o controle de governadores. A mudança política promove alterações no alto escalão das polícias, o que pode causar até mesmo resistência por parte dos policiais, uma vez que mudanças no alto escalão, frequentemente, causam mudanças no modelo de ação e combate à violência pelas polícias.

  1. HISTÓRICO DA FORMAÇÃO DOS POLICIAIS DE MINAS GERAIS

Bengochea, Guimarães e Gomes (2004) relatam que a origem da polícia com o sentido de domínio do Estado sobre a sociedade brasileira remonta ao século XVIII, quando atendia à classe dominante autocrática e autoritária. O modelo de polícia era voltado exclusivamente para garantir a autoridade do Estado sob os seus domínios. Nesse período, criou-se a Polícia Militar de Minas Gerais, quando, em 09 de junho 1775, o então Governador de Minas, Dom Antônio de Noronha, autorizado por Dom José, criou o Regimento de Cavalaria de Minas.
Cotta (2001) destaca que a PMMG, desde sua origem no século XVIII, caracterizou-se por implantar a instrução de seus policiais a partir de uma formação militarizada. O adestramento militar e as disciplinas militares eram regulamentados e dirigidos pelo Regimento de Infantaria do Exército.
Hamada (2013) destaca que o processo de profissionalização do policial deu-se, em meados de 1831, com a criação da Guarda Nacional e com a vinda do então Capitão Roberto Drexler, oficial do Exército Suíço, que ficou responsável pela elaboração do modelo formativo e profissionalizante do policial em Minas Gerais. Contudo ainda permaneceu o caráter militarizado.
O período de 1950 até 1960, houve inovações na educação policial militar mineira. Para Hamada (2013), a formação do policial para o trabalho deixou de ser estritamente militar, como na época de Drexler, e passou a ser policial, voltada para atender à nova demanda social e à crescente violência. Com a expansão demográfica desordenada na região de Belo Horizonte, a exclusão social amplia-se e iniciam-se os primeiros aglomerados, gerando necessidade de mudanças na formação e nas formas de trabalho do policial militar.
Com os policiais na execução do policiamento ostensivo, por meio do policiamento ostensivo territorial ou policiamento distrital, a formação desse profissional deixa de ter traços estritamente militares, para ter traços de uma formação para atuação policial que proporcionasse a sensação de segurança com ostensividade e que combatesse a criminalidade. Criam-se assim dois cursos de formação, um de formação de cabos e soldados, que abordava temas como a atuação policial em locais de crimes e outro de formação de oficiais, de formação superior para a manutenção das tropas.
A partir de 1964, o período de regime militar influenciou o modelo de atuação do policial. A atuação de caráter ostensivo foi substituída por uma atuação voltada para o controle da ordem pública e combate à subversão. Hamada (2013) evidencia a fala de Cotta, ao destacar que o período de 1964 a 1984 influenciou a forma de atuar do policial militar, sobretudo em consequência de seu atrelamento ao exército. A prevenção e a repressão à subversão, para o autor, trouxeram perdas no projeto de polícia construído na década de 1950 e atingiu diretamente o ensino policial.
Na década de 1990, com a já promulgada Constituição de 1988, a preocupação passou a ser com a garantia de direitos constitucionais, conforme Hamada (2013):
Na década de 1990, o foco policial começou a se fazer presente na formação e treinamento policial militar, impulsionado pela recente promulgação da Constituição da República em 1988. Os direitos e garantias individuais de todos os cidadãos brasileiros passaram a ser observados como direito conquistado pela sociedade e assim respeitados pela força policial no cumprimento de seu dever constitucional de preservação da Ordem Pública (HAMADA, 2013, p.152).
No ano de 2012, a Resolução nº 4.210 aprova as Diretrizes da Educação da Polícia Militar de Minas Gerais. Essas diretrizes orientam uma melhoria da qualificação profissional, da seleção e recrutamento de policiais, bem como amplia, por intermédio dos centros de pesquisa, a busca por uma educação policial militar de melhor qualidade.
A educação policial militar passa a absorver novas características com o intuito de construir um modelo educacional que propicie uma formação profissional exclusiva, voltada para atividades específicas e com diversas peculiaridades. Ela busca agregar conceituações e normatizações da Política Nacional de Educação brasileira, comum aos demais sistemas de ensino.

  1. A FORMAÇÃO POLICIAL MILITAR: MODELO TRADICIONAL E PROPOSTA DE UM NOVO MODELO

A formação do policial militar é assunto investigado no Brasil. O acesso à caserna é restrito e a polícia militar carrega em seus ombros o regime militar, oriundo do exército, que perdurou décadas até a chegada do processo de redemocratização.
As mudanças sociais, principalmente com a Constituição Federal de 1988, fizeram com que o modelo de formação policial buscasse aprimoramento para atender às mais diversas demandas sociais. Apesar de tardias, as mudanças estão ocorrendo com o aporte da SENASP para a reformulação do modelo curricular de formação das polícias em todo o país.
Os moldes de formação para a guerra, herdados das Forças Armadas, hoje são substituídos por modelos de formação humanizada, de polícia comunitária e de maior proximidade com a sociedade.
Contudo, apesar de mudanças na formação do policial, a segurança pública não encontrou uma forma de diminuir a violência, que, por sua vez, expande em grandes proporções. De um lado, tem-se ainda uma formação policial prescritiva e legalista, que utiliza a própria violência como mecanismo de combate à violência. Além de um sistema jurídico com leis arcaicas e ineficazes, que promovem a sensação de impunidade por parte da sociedade e até mesmo dos policiais.
A formação voltada para o combate ao crime tende a moldar um policial militar para um comportamento legalista, o que é apontado por Poncioni (2005) como uma versão burocrático-militar. Se, por um lado, tem-se a preocupação com a formação do combatente ao crime; por outro lado, falta à essa formação uma preocupação voltada para a negociação de conflitos, prevenção e atendimento às demandas emergidas da comunidade.
Poncioni (2005) assinala que o modelo formativo policial no país permanece com a responsabilidade de superar o “modelo policial profissional tradicional” para que se possa implementar um novo modelo de policial profissional. Apesar de algumas mudanças pontuais, como, por exemplo, a formação policial comunitária, o “modelo policial profissional tradicional” permaneceu e não foi questionado. O autor destaca que faltam às academias de polícia as ferramentas, materiais e recursos humanos que se preocupem com uma reflexão mais aprofundada da formação do policial, com o intuito de buscar excelência no trabalho dos profissionais.

5 DISTÂNCIA ENTRE O TRABALHO PRESCRITO E TRABALHO REAL: CONTRIBUIÇÃO DA ERGONOMIA PARA A ERGOLOGIA

A ergonomia, com os conceitos de trabalho prescrito e real, é uma das fontes inspiradoras da ergologia. A distância entre o prescrito e o real, preconizada pela ergonomia, remete à experiência cotidiana de trabalho, como espaço em que o trabalhador precisa preencher a lacuna sempre existente entre aquilo que ele recebe como prescrição para o seu trabalho e aquilo que ele realiza efetivamente.  A descoberta da distância entre o trabalho prescrito e o trabalho real é uma importante contribuição da ergonomia para se conhecer o trabalho que o policial militar realiza nas situações concretas.
Do ponto de vista técnico, a ergonomia concentra-se no exame do trabalho prescrito que envolve, além das prescrições, as condições ofertadas para a realização do trabalho. Dessa forma, a ergonomia definiu o trabalho prescrito como a ação do trabalhador previamente definida por normas, manuais, orientações formais, tempo, assim explicitando as ações necessárias para o alcance dos resultados esperados.
A ergonomia conceitua o trabalho real, que consiste na realidade laboral do trabalhador, que se vê distanciado da possibilidade de execução da ação estritamente conforme foi previamente estabelecida. Assim, a compreensão que se tem é a de que o trabalho real é a incapacidade de exaurir todos os detalhes inerentes à execução do trabalho. Assim sendo, o trabalho real é a dimensão realizável do trabalho, a possibilidade existente de execução ou não.

6 ERGOLOGIA, TRABALHO E FORMAÇÃO DO POLICIAL

A ergologia aponta, de forma pluridisciplinar, diversos caminhos para a compreensão da atividade de trabalho humana. O centro das atenções é o trabalhador como ser humano. Esta é a concepção que se pretende tomar como referência para se conhecer o trabalho do policial militar. O profissional da segurança pública será visto como ser humano, que não pode ser ofuscado pelo seu trabalho ou pelo estereótipo criado e herdado da sociedade, uma vez que suas ações geram consequências para si e para a sociedade.
Do ponto de vista ergológico, trabalho e atividade de trabalho são dois conceitos que têm conteúdos diferentes. O trabalho é entendido como a ação humana para a realização de determinada tarefa. Trata-se da execução de procedimentos para alcançar algo previamente estabelecido por outrem, dentro de uma lógica que não se preocupa em atender aos anseios do trabalhador.
A atividade de trabalho é o movimento que mobiliza o sujeito para realizar esta tarefa, compreendendo-se aí o colocar em ação seu corpo físico e mental – o corpo-si – seus sabres e valores, consciente e inconscientemente.
A atividade põe o sujeito em relação consigo mesmo, aciona a sua subjetividade e, portanto, traz a marca da singularidade. Nesse processo, o sujeito relaciona-se também com o outro e com a situação de trabalho. Assim, pode-se compreender que uma equipe de trabalhadores realiza um mesmo trabalho. No entanto, cada um deles imprime a sua singularidade, resultado da sua atividade particular.
A atividade é tomada no sentido de atividade interior. É o que se passa na mente e no corpo da pessoa no trabalho, em diálogo com ela mesma, com o seu meio e com os “outros”. Embora essa seja uma ideia abstrata, é muito fecunda e eficaz. Definitivamente, é o que faz com que o trabalho possa se realizar e, de fato, se realiza (TRINQUET, 2010, p. 96).
Assim, surge um problema metodológico para se conhecer o trabalho. O trabalho diz respeito à realização de uma tarefa previamente estabelecida. Já a atividade de trabalho mobiliza o sujeito para colocar na realização dessa tarefa algo de si, na perspectiva de contemplar seus anseios e desejos.
A dificuldade metodológica reside no fato de que, ao falar da atividade do assalariado, introduzimo-nos, infiltramo-nos em sua intimidade, em sua atividade interior, que é muito pessoal. Isso quer dizer que, espontaneamente, ele nos fala de sua tarefa, de seu posto de trabalho; o resultado – material ou intelectual – que é esperado; os procedimentos que deve seguir e colocar em prática; os materiais que utiliza; etc. Isso não lhe traz nenhum problema já que ele não está pessoalmente implicado. Essa situação é geral e válida para todos. Em síntese, ele nos descreve seu trabalho prescrito, seu posto de trabalho. E para ele, seu trabalho é isso e nada mais (TRINQUET, 2010, p. 96).
Toda atividade de trabalho expõe uma dimensão descritível em seus aspectos prescritíveis e uma dimensão enigmática, atinente à experiência de quem realiza o trabalho.  O discernimento sustenta que em toda situação de trabalho localiza-se um lugar esvaziado que obriga o trabalhador a uma mobilização de seus recursos próprios para responder à prescrição (DIAS; SANTOS; ARANHA, 2015). Sendo assim, a atividade de trabalho só pode ser conhecida se envolver o trabalhador no processo de conhecimento. Para alcançar uma apreensão da atividade, a ergologia propõe os conceitos de normas antecedentes, debate de normas, renormalização, dramática dos usos de si, corpo-si, saberes constituídos e investidos, entre outros, o que responde à necessidade de se conhecer o trabalho do policial militar tomado do ponto de vista da atividade.
Além do alto teor prescritivo no trabalho do policial militar, as normas advindas dos ordenamentos jurídicos e da própria instituição determinam o cumprimento e a obediência, cabendo punição caso haja alguma transgressão. De acordo com Beato (1999), a disciplina, a hierarquia, e a obediência cegam as normas regimentais que são atributos do exército, idealizados pelas organizações policiais, que, por sua vez, são incorporados aos cursos de formação de oficiais, que tendem a observar os subordinados como meros executores de normas previamente estabelecidas. Essa realidade contradiz uma especificidade do trabalho policial, a discricionariedade, pois, para que ele seja realizado, há uma exigência de autonomia, iniciativa e até mesmo transgressão de uma norma previamente estabelecida.
O poder discricionário do policial é justamente a marca evidente da distância que existe entre a prescrição do trabalho e a realidade, pois a autonomia, o uso do valor pessoal, da experiência, bem como da relação com o meio mostra a necessidade de liberdade e de recriação de normas anteriores. Conforme Sousa (2013), o policial tem de adaptar o escrito legal à realidade prática do seu dia a dia, sob pena de realizar ou não a tarefa instituída. Dessa forma, o trabalho do policial demanda o investimento de si, além de ter de arbitrar entre valores distintos, podendo até mesmo ser contraditório, para que possa assim administrar a variabilidade que o ambiente expõe, reinventando e recriando novas maneiras de trabalhar.
Esse poder discricionário inerente ao trabalho do policial pode ser uma forma de transgressão de normas antecedentes, podendo viabilizar até mesmo o abuso do poder instituído. É um limiar de escolhas, de negociação interna entre valores, saberes e normas que debatem entre si.  Na atividade de trabalho do policial, há um espaço de negociação interna do sujeito, e que sua ação se desenvolve de forma singular, podendo contrariar normas prescritas, dando margem à própria compreensão da atividade (SCHWARTZ, 2011).
Ao vivenciar situações simples ou complexas durante o trabalho, o policial vai adquirindo e guardando consigo um “modus operandi próprio”, desenvolvendo autonomia na tomada de decisão do dia a dia, apesar de deparar com restrições impostas pela organização. Fazem parte dele o saber constituído, o acadêmico, o aprendido durante a sua formação.
É um saber precedente ao cumprimento do trabalho significativo e substancial, porque possibilitou a elaboração do trabalho prescrito. Contudo, sozinho, não é capaz de esclarecer o que acontece no trabalho real (TRINQUET, 2010). O saber investido é aquele que se apresenta na realidade nua e crua do trabalho, derivado do tirocínio dos trabalhadores, conhecedores da tarefa que desenvolvem.
A formação acadêmica do policial – o saber constituído - tem maior preocupação com o processo de normatização disciplinar do indivíduo.  Nela busca-se formar uma identidade militar que mais se preocupa em manter uma conduta disciplinar para não incorrer em penas que prejudiquem a carreira ou a conclusão da formação.  Entretanto, o policial faz uma seleção daquilo que ele considera importante aprender durante o curso, pois em seu entendimento a realidade possibilitará aprender o trabalho (SOUSA, 2013).
De acordo com Poncioni (2007), a formação policial incorpora um modelo burocrático-militar e de aplicação da lei, no qual o policial é a figura imparcial de aplicação da lei. Ele deve se relacionar com seu público de forma neutra e distanciada, cabendo a ele somente desempenhar as obrigações oficiais e cumprir os procedimentos, independentemente de seus posicionamentos pessoais e a despeito das necessidades do público, que, muitas vezes, não são estritamente enquadradas pela lei.
Sapori (2007) e Poncioni (2005) convergem ao realçarem o distanciamento entre o ensinamento das escolas de formação com a prática vivenciada pelos policias durante o trabalho.  Para esse último,
No que diz respeito, especificamente, à formação profissional do policial, pode-se apontar uma primeira importante consequência resultante do modelo profissional em foco – o descompasso entre o conhecimento adquirido para o desempenho do trabalho policial nos bancos das academias e a realidade na qual se realiza o trabalho cotidiano da polícia. De um lado, dentro da organização, principalmente no período de treinamento, transmite-se a ideia do trabalho policial baseado essencialmente no controle do crime e no cumprimento da lei, com ênfase na importância de sua adesão às regras e procedimentos da organização para o controle do crime nos limites da lei. Além disso, neste contexto, ele experimenta uma enorme restrição com relação à tomada de decisão nas atividades concernentes ao dia a dia da organização. De outro, fora da organização, ele se defronta com uma grande diversidade de situações com relação às quais tem de tomar constantemente decisões que não estão necessariamente de acordo com as diretrizes, procedimentos, ordens gerais, ou mesmo com os processos formais da legalidade, mas têm por objetivo fundamentalmente a aplicação eficiente de certas leis e regras para a manutenção da ordem, muito mais do que o respeito integral à legalidade ou às regras estabelecidas pela organização (PONCIONI, 2005, p. 592).
Ao adentrar o mundo da atividade do trabalho, a ergologia permite decifrar uma parte dessa atividade, que é enigmática e singular, e trazer subsídios para uma formação desse trabalhador preocupada em focalizar sua experiência cotidiana e incorporar os saberes e valores que eles acionam permanentemente para realizar seu trabalho.

7 CONCLUSÃO

Em resumo, este artigo buscou analisar a contribuição que a realidade do trabalho policial pode contribuir para o seu próprio processo formativo, uma vez que a o a atividade policial não consiste somente no estrito cumprimento de normas e regras internas, mas sim na complexidade que envolve atender as demandas advindas da sociedade. Um apanhado histórico mostrou como as policias surgiram com seu caráter e formação militar e como a hierarquia e disciplina contribuem para o processo formativo.
A abordagem ergológica possibilita compreender que as tomadas de decisão nas situações de trabalho não podem ser antecipadas, o que evidencia que elas são potencialmente sensíveis à emersão da singularidade do policial militar revelando a dificuldade encontrada por esse trabalhador devido a extensa normalização a que está submetido, além dos dilemas entre cumprir regras institucionais e exigências legais ao passo da necessidade de transgredi-las. Mesmo correndo o risco de possíveis punições.
Repensar o trabalho do policial militar como campo de produção e reprodução de normas, saberes e valores amplia o escopo de sua formação e chama a atenção para a necessidade de que os processos formativos formais acolham a experiência da atividade de trabalho.
Conclui-se que a ergologia é uma abordagem apropriada para se conhecer o trabalho do policial militar como atividade humana e que a formação desse policial poderá enriquecer-se se agregar a ela os ensinamentos advindos de uma experiência de transgressão de normas antecedentes e prescrições rigidamente produzidas.

8 REFERÊNCIAS

BEATO, Cláudio. Ação e estratégia das organizações policiais. SEGUNDO SEMINÁRIO POLÍCIA E SOCIEDADE DEMOCRÁTICA, Rio de Janeiro, v. 11, 1999.

BENGOCHEA, Jorge Luiz Paz et al. A transição de uma polícia de controle para uma polícia cidadã. São Paulo em perspectiva, v. 18, n. 1, p. 119-131, 2004.

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CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo Caminho. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

COTTA, Francis Albert. Contribuições do Corpo Escola e Escola de Sargentos para o Processo Pedagógico Policial-Militar (1912-1931). O Alferes, v. 16, p. 25-66, 2001.

DIAS, Deise de Souza; SANTOS, Eloisa Helena; ARANHA, Antônia Vitória Soares. Contribuições da ergologia para a análise da atividade de trabalho docente. Revista Eletrônica de Educação, v. 9, n. 1, p. 211-227, 2015.

HAMADA, Hélio Hiroshi. As transformações no sistema de ensino da Polícia Militar de Minas Gerais: um estudo histórico dos modelos de formação profissional. Revista Paidéia, v. 10, n. 14, 2013.

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PONCIONI, Paula. Tendências e desafios na formação profissional do policial no Brasil. Revista Brasileira de Segurança Pública, v. 1, n.1, p. 22-31, 2007.

SAPORI, Luís Flávio. Segurança pública no Brasil: desafios e perspectivas. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.

SCHWARTZ, Yves. Qual sujeito para qual experiência?. Tempus Actas de Saúde Coletiva, v. 5, n. 1, p. 55-67, 2011.

SOUSA, Resângela Pinheiro de. Policiamento ostensivo em áreas de risco: entre o prescrito e o real. p. 195. Dissertação (Mestrado) Universidade Federal de Minas Gerais, 2013.

TRINQUET, Pierre. Trabalho e educação: o método ergológico. Revista HISTEDBR On-line, v. 10, n. 38, p. 93 – 113, 2010.


*Professora do Mestrado em Gestão Social, Educação e Desenvolvimento Local do Centro Universitário UNA (Belo Horizonte). Doutora em Educação, Pós-doutorado em Sociologia do Trabalho e em Ergologia. Mestre em Educação e Graduada em Serviço Social. Foi professora convidada da Universidade de Paris X. Professora aposentada da Faculdade de Educação da UFMG. E-mail: eloisasantos@uaivip.com.br
** Mestrando no Programa de Pós-Graduação Gestão Social, Educação e Desenvolvimento local do Centro Universitário UNA (Belo Horizonte). Pós-graduado em Psicologia do Trabalho pela AVM/UCAM Rio de Janeiro. Graduado em Psicologia pela Faculdade Pitágoras de (Belo Horizonte). Militar da Polícia Militar de Minas Gerais. willekem03@gmail.com

Recibido: 04/03/2018 Aceptado: 03/07/2018 Publicado: Julio de 2018

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