Marlo dos Reis*
PPGMDR/UNIFAP, Brasil
marloreis@hotmail.com
Resumo: O presente artigo aponta para as bases de um novo paradigma para a sustentabilidade que contemple os saberes locais dos extrativistas do sul do Amapá como alternativa para a discussão sobre o desenvolvimento na Amazônia. Para esta reflexão se tece um olhar histórico sobre o desenvolvimento amapaense com base em Camilo (2003), Marin e Gomes (2003) onde se resgata a participação positiva das populações indígenas e africanas como elementos decisivos nas dimensões culturais e produtivas nesta formação colonial. No século XX, as características da formação amapaense e a organização e luta dos movimentos sociais são referenciados em Porto e Filocreão com os estudos e publicações que apontam para o protagonismo destas populações e suas ações nas demandas territoriais por desenvolvimento e sustentabilidade. As bases epistêmicas de um novo paradigma que potencialize a sustentabilidade são tratadas com base em Escobar, Costa e Cunha como leituras fecundas em elementos críticos que apontam para uma racionalidade emergente e necessária. Com este diálogo multidisciplinar se pretende contribuir com a construção de um novo olhar sobre o desenvolvimento que considere a dimensão da sustentabilidade em sua centralidade e que parta dos saberes e experiências dos extrativistas e demais povos da floresta como protagonistas de ações eficientes de uma nova racionalidade.
Palavras Chave: Movimentos sociais, Desenvolvimento, Sustentabilidade, Extrativistas.
Resumen: El presente artículo apunta a las bases de un nuevo paradigma para la sostenibilidad que contemple los saberes locales de los extractivistas del sur de Amapá como alternativa para la discusión sobre el desarrollo en la Amazonia. Para esta reflexión se hace una mirada histórica sobre el desarrollo amapaense con base en Camilo (2003), Marin y Gomes (2003) donde se rescata la participación positiva de las poblaciones indígenas y africanas como elementos decisivos en las dimensiones culturales y productivas en esta formación colonial. En el siglo XX, las características de la formación amapaense y la organización y lucha de los movimientos sociales son referenciadas en Porto y Filocreón con los estudios y publicaciones que apuntan al protagonismo de estas poblaciones y sus acciones en las demandas territoriales por desarrollo y sostenibilidad. Las bases epistémicas de un nuevo paradigma que potencie la sustentabilidad son tratadas con base en Escobar, Costa y Cunha como lecturas fecundas en elementos críticos que apuntan hacia una racionalidad emergente y necesaria. Con este diálogo multidisciplinario se pretende contribuir con la construcción de una nueva mirada sobre el desarrollo que considere la dimensión de la sostenibilidad en su centralidad y que parta de los saberes y experiencias de los extractivistas y demás pueblos del bosque como protagonistas de acciones eficientes de una nueva racionalidad.
Palabras clave: Movimientos sociales, Desarrollo, Sustentabilidad, Extractivistas.
Abstract: The present article points to the bases of a new paradigm for sustainability that contemplates the local knowledge of the extractive ones of the south of Amapá as an alternative to the discussion about the development in the Amazon. For this reflection, a historical perspective on the amapaense development is based on Camilo (2003), Marin and Gomes (2003), where the positive participation of the indigenous and African populations as decisive elements in the cultural and productive dimensions in this colonial formation is rescued. In the twentieth century, the characteristics of amapaense formation and the organization and struggle of social movements are referenced in Porto and Filocreão with studies and publications that point to the protagonism of these populations and their actions in the territorial demands for development and sustainability. The epistemic foundations of a new paradigm that enhance sustainability are treated on the basis of Escobar, Costa and Cunha as fertile readings on critical elements that point to an emerging and necessary rationality. With this multidisciplinary dialogue it is intended to contribute to the construction of a new perspective on development that considers the dimension of sustainability in its centrality and that starts from the knowledge and experiences of the extractivists and other forest peoples as protagonists of efficient actions of a new rationality.
Keywords: Social movements, Development, Sustainability, Extractivists.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Marlo dos Reis (2018): “Um outro paradigma de sustentabilidade: os saberes locais dos extrativistas do sul do Amapá”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/07/paradigma-sustentabilidade.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1807paradigma-sustentabilidade
Um novo olhar sobre a história
Foi o mercantilismo que financiou a revolução comercial europeia, e subsequente revolução industrial. Esta acumulação primitiva ocorreu por meio da apropriação das riquezas e culturas ameríndias, as relações de trabalho escravistas impostas a negros e expansão do domínio europeu sobre o mundo. Fizeram uso de congregações religiosas para domesticar e se beneficiar das primitivas práticas extrativistas, explorando os indígenas como mão de obra principal na obtenção das drogas do sertão que deram início à atividade mercantil dos mercadores e companhias comerciais das Coroas Europeias que garantiram uma fenomenal acumulação de capitais.
Na efetivação deste projeto, a historiadora Camilo apresenta análise crítica sobre a historiografia oficial onde os Colonos vindos de Açores são apresentados como os protagonistas desta colonização, os Militares como responsáveis pela Gestão e Construção das Fortificações, ao passo que os milhares de trabalhadores indígenas e africanos ficam relegados ao anonimato, mesmo sendo os braços que efetivamente “carregaram as pedras”.
Em sua proto-história, muito antes da chegada do colonizador europeu, o processo de formação socioespacial amazônico é fruto das ações produtivas materiais e simbólicas de povos pré-colombianos que aqui viveram. Os locais que viriam a ser selecionados para a construção de fortificações, vilas e cidades dos invasores europeus seguiram a localização já adotada pelos indígenas para a construção de suas aldeias. A participação de seus primeiros habitantes na construção da espacialidade amazônica foi a diretriz que orientou os invasores em sua empreitada nestas terras e águas e florestas.
Camilo apresenta muitas informações sobre o trabalho indígena responsáveis pela madeira, palha, fibras e resinas para a construção de barcos e casas utilizando fauna e flora nativas; o peixe, caça, quando faltava o pescado parava a obra por falta de alimentos; na navegação, remo se adoecesse o remador parava a obra por falta de material; na agricultura, onde “o senhor era o agricultor, o indígena trabalhava a terra”, a farinha era a base da alimentação, o algodão desde a plantação até a fiação; as plantas medicinais, suas substâncias e usos no restabelecimento da saúde de toda a população entre outras.
Nesta fase colonial a autora Camilo (2003) relata a importância dos indígenas como aliados estratégicos, tanto do lado dos estrangeiros como dos portugueses, pois vendiam alimentos e possuíam o conhecimento sobre os recursos naturais retirados da floresta e dos rios, além de lutarem durante os confrontos, defendendo seus aliados.
O trabalho dos escravos africanos, por sua parte, foi largamente empregado na construção de prédios civis e militares, retirada de pedras nas pedreiras, serrarias, na lavoura de subsistência, escravos faziam o serviço de sua majestade e também escravos de ganho. Estes elementos apresentam a dureza do trabalho durante a construção da Fortaleza e a invisibilidade e depreciação dos trabalhadores que atuaram no seu erguimento, os que efetivamente “carregaram as pedras”.
A violência do trabalho escravo foi enfrentada pelos indígenas e africanos com muitas estratégias para retomar sua liberdade e autonomia. Em seus estudos, Marin e Gomes (2003) apresentam riqueza de elementos sobre a situação das fugas e mocambos na área de Fronteira entre os impérios Português e Francês na época retratada. São diversos elementos que apontam para as estratégias usadas pelos que fugiam da colonização e escravidão para construir outras lógicas de sobrevivência em liberdade.
Estas práticas de solidariedade e recusa da dominação social levavam os insurgentes a transgredir os códigos coloniais, transpor os limites geopolíticos e ganhar certa autonomia.
Dentre os mocambos do Amapá na época, os mais conhecidos estavam localizados às margens do rio Araguari onde os fugitivos atravessavam matas, cachoeiras, florestas, rios, montanhas e igarapés e se instalavam num espaço bem apropriado para desenvolverem suas atividades com uma relativa segurança.
Nas suas relações econômicas, os mocambos contavam com a ajuda de “cativos das plantações, vendeiros, índios, vaqueiros, comerciantes, camponeses, soldados negros, entre outros” (Marin e Gomes, 2003, p. 04). Neste contexto os negros amocambados, escravos fugidos, libertos ou livres, também indígenas e outros setores sociais, criaram um espaço para contatos e cooperação com os atores além limites nestas fronteiras em formação. O sonho dos escravos fugitivos da Guiana era chegar no Pará onde seriam livres e poderiam comer toda a carne que desejassem. Algo mais estava nos seus sonhos de liberdade: a autonomia de vida e trabalho nos mocambos juntos a fronteira e quiçá a “liberdade” das improvisadas ruas de Belém.
Uma informação interessante do texto de Marin e Gomes (2003) relata que os escravos africanos e negros fugidos de Caiena “procuraram nas margens de fronteiras do Grão-Pará a liberdade, pelo menos aquela que constituiriam com suas comunidades, trocas e integração a micro-sociedades indígenas e grupos de desertores que por ali perambulavam” (2003, p. 17). Então temos nas fronteiras este espaço para a constituição de trocas e negociações de produtos, ideias e projetos de sociedades.
A resistência escrava na Guiana Francesa era feita de vários modos, como a “defesa da margem de autonomia e da vida privada disponível (ou luta por sua ampliação), luta contra os capatazes e a disciplina, sabotagem do trabalho, roubos, uso inteligente da ironia, do sarcasmo e da superstição [...] fugas de escravos e constituição de quilombos” (2003, p. 19). Marin e Gomes (2003) apresentam as diversas estratégias de resistência e sobrevivência a um regime de todo desumano que negava a possibilidade da vida e da liberdade.
Os Mocambos perto da fronteira tinham relações de comércio com colonos franceses, faziam “salgas”, tingiam roupas, plantavam roças, pastoreavam gado e fabricavam tijolos para a construção de fortalezas francesas. Esses mocambeiros visitavam ainda a vila de Macapá na “festa do Natal”. Vinham e estabeleciam contatos com vários escravos, mas “não vinham obrigar os pretos” a fugir, pois para o mocambo só “iriam os que quisessem ir por sua livre vontade” (Marin e Gomes, 2003, p. 25). Este convite gerava adesões entre os escravos negros africanos que fugiam da construção de fortalezas portuguesas onde havia reclamações das péssimas condições de trabalho de africanos ali e as fugas eram constantes.
Esses mocambeiros estavam mesmo na “fronteira da liberdade” e sabiam disso. Um dado sobre a dimensão econômica do Mocambo revela que “o trabalho da caça e das roças é mandado fazer pelo capataz, e logo que se recolhem com a dita caça, ou efeitos da roça ou vão levar à presença do dito, o qual faz a repartição por todos eles” (2003, p. 29). Esta base comunal com partilha equitativa seria um ingrediente muito interessante para ser pesquisado, pois revela um comportamento social específico que vai na contramão das relações hegemonias do sistema escravagista e, posteriormente, capitalista.
Outro resgate interessante para valorizar a experiência destes fugitivos, segundo Marin e Gomes (2003), aponta para um
Cotidiano e a leitura deste eram essencialmente politizados. Em meio às disputas coloniais entre Inglaterra e Holanda pelas Guianas, dizia-se, por exemplo, que alguns índios encontravam-se “influenciados por mulatos de Demerara”, parecendo “satisfeitos da obediência ao atual governo inglês na colônia” Contatos e ideias transatlânticos que circulavam naquela conjuntura eram compartilhados tanto por negros como por índios. Povoações indígenas inteiras, por exemplo, cruzavam os territórios espanhóis em busca de refúgio. (2003, p. 32).
São fragmentos de uma inteligência e consciência coletiva que não encontramos na literatura regularmente, pois o discurso hegemônico oficial os caracteriza com carregadas tintas negativas e depreciativas.
Sobre a possibilidade dos cativos serem “contagiados” pelas “ideias de liberdade” advindas da Europa, através de comunicações com as colônias estrangeiras e os escravos viessem a articular uma grande revolta, Marin e Gomes (2003) afirmam que “
Os escravos não precisaram, necessariamente, de um suposto “ideário revolucionário” advindo da Europa ou do brado de abolicionistas estrangeiros para implementarem seus protestos. Pelo contrário, poderiam perceber, avaliar e reconfigurar esses momentos com significados próprios. (2003, p. 34)
Como consequência desta atuação livre e criativa, a população amapaense se molda nesta sociedade violenta mas numa postura rebelde e contestatória. Como que herdeiros destes rebeldes de outrora, nas reservas extrativistas estas populações vivem do agroextrativismo como estratégia diferenciada, fruto e espaço de luta dos movimentos sociais e sua atuação na construção do desenvolvimento desta região.
Estas comunidades e populações tradicionais continuam enfrentando o projeto “civilizador” das elites que dominam/maltratam/matam, por meio da luta pela sustentabilidade e defesa dos biomas, dos ciclos de água e energia, da vida de outras espécies vegetais e animais e daqueles que ainda vão nascer.
Um estado em formação
Quando do aumento do uso da borracha a nível industrial, os olhares externos voltaram-se outra vez para a região e grande número de migrantes nordestinos veio para a região atrás da riqueza que escorria pelas seringueiras, mas, mais uma vez o sonho de uma vida melhor foi transformado na vida de semiescravidão no meio da floresta dos muitos migrantes, impostas a partir das relações de trabalho do sistema de aviamento.
Estima-se que esse fluxo migratório variou de 160.000 a 260.000 entre 1872 e 1900 e, que a população na região aumentou de aproximadamente 250.000, em 1860, para aproximadamente 700.000, em 1900, um marco na colonização e povoamento destas terras, apenas no inicio do século XX.
Na Amazônia Amapaense, conforme afirma Filocreão (2014), os efeitos da economia da borracha foram visíveis no Vale do Jarí, através do coronelismo onde o cearense José Júlio de Andrade, que chegou no Jarí em 1882 construiu um verdadeiro império a partir da extração e exportação de produtos amazônicos como: castanha, copaíba, borracha, balata e outros, conseguindo se tornar um dos maiores latifundiários do mundo, com posse de mais de três milhões de hectares de terras. Com a borracha, em termos geopolíticos, tem início a intervenção norte-americana na Amazônia e, também na América do Sul.
Segundo Porto, até a década de 1940, a economia da área que corresponde ao atual Estado do Amapá caracterizava-se pela indústria extrativa da borracha, da castanha, do pau-rosa, da madeira, das sementes oleaginosas, pela exploração das minas de ouro e pela criação de gado, notadamente nos Municípios do Amapá e Mazagão, cujo mercado consumidor destes produtos se encontrava em Belém ou Caiena. Some-se a isso, a ocorrência do latifúndio pecuarista, principalmente no Município do Amapá, fornecendo alimento à base aérea americana (2002, p. 5)
O desenvolvimento do território recém-criado foi delegado a grandes projetos que se instalaram devido ao interesse político de grupos econômicos externos, nacionais e internacionais, num ciclo de grandes empréstimos realizados pelo governo militar junto aos credores internacionais que possibilitaram investimentos que culminaram em melhoria das infraestruturas básicas (transporte, energia, urbanização, educação e outras). (PORTO, 2002)
A instalação do território se deu sob a tutela direta da União, que preestabeleceu uma área geográfica, política e juridicamente delimitada, na intenção de preservar o país das ameaças defendendo a fronteira, protegendo as riquezas e melhorando os padrões de vida de seus habitantes, além de expandir a riqueza do país.
Esta característica centralizadora dos Territórios criados no país produziu uma realidade de difícil gestão, pois a autonomia, a competência e a burocracia foram pensadas desde o governo federal, sem a participação da comunidade local, o que resultou numa serie de dificuldades para a estruturação da autogestão, do planejamento racional e das políticas públicas centradas em princípios como a participação e o controle social.
O Projeto da ICOMI (1953), o Projeto JARI (1967) e o Projeto Calha Norte (1982) fizeram grandes investimentos em infraestruturas, sobretudo, nos segmentos dos transportes, energia, comunicação e urbanização. Também foram feitos investimentos pelo governo federal no Território Federal do Amapá (1943) e, posteriormente, no estado do Amapá (1988), somado a políticas de desenvolvimento regional, como por exemplo, o estabelecimento do polo Amapá como um dos polos de desenvolvimento da Amazônia. A criação da Área de Livre Comércio de Macapá e Santana (ALCMS) e o Plano de Desenvolvimento Sustentável do Amapá (PDSA) foram, também, responsáveis pelo desenvolvimento e contribuíram para configurar esta formação socioespacial na segunda metade do século XX.
A exploração e exportação do manganês no Amapá, no período de 1957 a 1997, foi realizada pela empresa Indústria e Comércio de Minérios S.A. – ICOMI e alavancou a economia do Território e a implantação de infraestruturas locais como estrada de ferro, porto, rodovias e uma usina hidrelétrica. Os recursos tiveram forte participação do Estado, via incentivos fiscais e aquisição de financiamento externo e o impacto deste grande empreendimento se fez sentir em vários municípios e deixou marcas que ainda estão presentes. (PORTO, 2002)
Em 1957 a ICOMI realizou as obras de instalações industriais da mina de manganês em Serra do Navio, a Estrada de Ferro do Amapá (EFA) e o Porto de Santana. As obras de construção e urbanização das duas vilas residenciais (company towns) sendo a Vila Amazonas próximo do Porto de Santana e a Vila de Serra do Navio junto à jazida de manganês foram concluídas em 1960. Também as cidades de Porto Grande (Estação Porto Platon) e Pedra Branca do Amaparí (Estação Cachorrinho) foram construídas em consequência do projeto da ICOMI como estações da ferrovia entre a Mina na Serra do Navio e o Porto de Santana.
A cidade de Ferreira Gomes não se encontra orientada pelo trajeto da Estrada de Ferro, mas representa uma estratégica infraestrutura que foi construída parcialmente com recursos provenientes da atividade de mineração da ICOMI sendo apoio logístico para a Usina Hidrelétrica Coaracy Nunes (Usina do Paredão) instalada no Rio Araguari. (SANTOS, 2012)
Outros investimentos também fizeram parte desta formação do Território do Amapá: 1) O Grupo CAEMI (1968) instalou em Santana a BRUMASA, um empreendimento para fabricação de compensados a partir da extração da espécie vegetal virola; 2) A Empresa CADAM – Caulim da Amazônia S/A (1974) foi criada para a exploração da mina nas margens do rio Jari, o processo de lavra no município de Mazagão e responde por mais de 30% da produção brasileira de caulim beneficiado e a segunda maior produção do país; 3) Na década de 1980, as empresas de mineração Novo Astro Sociedade Anônima (1983) e Mineração Yukio Yoshidome Sociedade Anônima (MYYSA) fizeram a exploração de ouro secundário na região de Lourenço, no município de Calçoene, entre 1983 e 1995, extraindo mais de 20 toneladas de ouro nesse período; 4) O Complexo Industrial do Jari (1980) para extração de celulose no extremo sul do território. (AMORIM, 2016)
A análise que se faz necessária sobre estes investimentos no território Federal do Amapá aponta para a tendência de concentração com consequentes efeitos cumulativos. Os aparelhos de suporte dos empreendimentos no perfil de monopólios culminaram na concentração das infraestruturas, impactando em polarização econômica e desequilíbrio demográfico, pois o Estado não disseminou os equipamentos de natureza social de forma equitativa em todo o território, não produzindo dispersão de recursos e investimentos como energia, estradas, escolas e hospitais. (SANTOS, 2004)
Esta tendência brasileira de dispor dos recursos e investimentos públicos com foco em grandes empreendimentos em espaços singulares atende a uma espécie de mito de crescimento econômico que só beneficia as grandes empresas e os monopólios. Nesta simbiose entre o estado e os donos do capital, a difusão geográfica e social do crescimento econômico deixa de ser gerada, acabando por difundir a pobreza por todo o território e a concentração de renda e desenvolvimento em pontos ou polos de crescimento econômico. (SANTOS, 2012)
Este processo de estruturação e reprodução do capitalismo produz desenvolvimento desigual e faz surgir ilhas espaciais de acumulação do capital num iníquo processo de polarização. Esta hierarquia e centralidade refletem em estruturas de dominação embasadas em desenhos assimétricos e irreversíveis, pois são retroalimentados por novos investimentos em capital fixo concentrados naquela área central. Daí segue o ciclo marcado por forças aglomerativas que se apropriam de economias de escala, de proximidade e exclusão dos meios de consumo coletivo nos espaços e núcleos urbanos centrais. Sobre esta dinâmica centralizadora e vertical, Costa e Cunha ponderam que se faz necessário uma outra sistemática organizativa onde “os problemas ambientais, amplamente discutidos nos espaços de negociação global, não podem servir de avalistas para uma política de cima para baixo, onde os interesses de populações locais sejam secundários em relação aos interesses globais.”(2017, p. 23)
A organização espacial do Amapá esteve voltada para atender interesses hegemônicos externos à região, europeus, estadunidenses, do sudeste brasileiro, o que se reflete nos sistemas de engenharia alocados pelo poder público ou por consórcios e arranjos econômicos de grupos privados nas áreas de energia, comunicação, transportes, estrutura urbana e serviços públicos como saúde e educação conforme aponta Costa e Cunha.
A cada projeto instalado novas expectativas foram e ainda são criadas, quando se trata das possibilidades de transformações locais. Essa situação deixou a Amazônia refém de uma economia de grandes projetos, especialmente do extrativismo mineral e madeireiro, bem como da pecuária, sendo que outras possibilidades de uso do território não foram promovidas ou incentivadas, tendo em vista a potencialidade de exploração de recursos não madeireiros advindos da floresta, por exemplo. (2017, p. 24-25)
De 1968 a 1974, o estado brasileiro investiu fortemente em todos os tipos de conexões e redes de atuação nas cidades e regiões. Segundo AMORIM, na Amazônia o objetivo foi completar a posse e o controle do território por meio da instalação de redes de circulação rodoviária, de telecomunicações, urbana, subsídios ao fluxo de capital através de incentivos fiscais a créditos a baixos juros, indução de fluxos migratórios para povoamento e formação de um mercado de trabalho regional, inclusive com projetos de colonização, e superposição de territórios federais. (2016, p. 76)
Movimentos sociais e sustentabilidade: um novo paradigma epistemológico
O cenário pré-estadualização é vivido na década de 1980, quando a Amazônia é sacudida nos debates internacionais, principalmente devido ao seu uso e ocupação desordenada, com impacto negativo na questão ambiental. Surge então com força o debate a cerca da sustentabilidade: 1) a resistência das populações tradicionais em luta por seus territórios e identidades; 2) aumento da pressão ambientalista nacional e internacional contra a devastação dos recursos naturais; 3) o esgotamento do modelo de empréstimos internacionais e a crise do estado brasileiro; 4) a resposta do governo brasileiro às pressões e criação do Ministério do meio Ambiente (1993) e de uma política ambiental. Este embalo por sustentabilidade fomenta também a criação do projeto Calha Norte (1985), a demarcação das terras indígenas e a criação de unidades de conservação.
O país é abalado por uma avalanche social que exige a volta da democracia e o fim da ditadura militar que culmina em eleições em 1985 e uma Assembleia Constituinte que promulga uma nova Constituição Federal em 1988, o momento do nascimento do Estado do Amapá.
Estas intensas transformações político-econômico-administrativas no Estado do Amapá não alteraram a continuidade da dependência das transferências federais e, após a exaustão do manganês que levou à retirada da ICOMI, ressurgiu patente a necessidade da busca por alternativas que respeitem o meio ambiente e incluam as populações tradicionais e povos da floresta. A urgência por desenvolvimento econômico local sustentável levou à elaboração e execução do Programa Governamental de Desenvolvimento Sustentável no estado e resultou na realização de novos pactos para a sua implantação, valorização das potencialidades naturais, incentivos das agências de fomento e ampliação da atuação dos movimentos socais.
As populações tradicionais sempre reagiram frente às tentativas de integração da região amazônica e aos grandes empreendimentos públicos e privados que só fizeram piorar suas condições de vida e reprodução de suas famílias e comunidades. Estes trabalhadores, seringueiros, extrativistas e agricultores amazônidas, se levantaram e aumentaram a pressão sobre suas demandas diante da tensão e os conflitos existentes na região. Segundo Filocreão
Nesse quadro de conflitos os índios, seringueiros, castanheiros e outros camponeses agroextrativistas emergem como novos atores políticos, que através das suas alianças com os movimentos ambientalistas nacionais e internacionais, vão ter poder de pressão e voz junto a um estado que se democratiza. Dessa luta de resistência, (...) surge como principal proposta a implantação de Reservas Extrativistas na Amazônia. (2014, p. 63)
A luta pela manutenção do direito de coletar, caçar, pescar, trabalhar, manter suas culturas e seus direitos em suas terras empodera os Povos da Floresta que criam, em Encontro Nacional no ano de 1985, o Conselho Nacional dos Seringueiros da Amazônia – CNS, hoje Conselho Nacional das Populações Extrativistas conservando a mesma sigla CNS e continuam na luta buscando garantir suas demandas históricas conforme afirma Filocreão
Nesse processo histórico, se constituiu e vem se fortalecendo uma economia agroextrativista na região, onde a exploração agrícola através do cultivo de mandioca, milho, arroz e feijão, associado à coleta de produtos como a castanha, o açaí, resinas, cipós vem garantindo a sobrevivência de um contingente populacional significativo e garantindo a manutenção da floresta em pé nas unidades de uso especial que foram criadas. (2014, p. 132)
Na atualidade, a luta das populações tradicionais se mantém, pois a cultura e o sistema capitalista nesta fase neoliberal globalizada continua representando um entrave para a afirmação de projetos de desenvolvimento sustentável que considere e respeite os povos do Campo, das Águas e da Floresta, pois, segundo Costa e Cunha.
[...] o que pode ser feito por meio da valorização dos interesses das suas comunidades que têm, como base de produção, meios e técnicas produtivas de baixa densidade e de baixo impacto ambiental negativo. Nesse contexto, promover formas de uso do território alternativas e estratégias aos macroprojetos de mineração e do agronegócio, tendo como foco a produção familiar ou em outras escalas de organização social, seja em cooperativas ou não, é um importante fator de geração de renda para a população local e, ao mesmo tempo, também de valorizar outros modelos de relação sociedade-natureza. Uma das formas para alcançar isso é por meio da promoção de iniciativas locais e regionais. (2017, p. 25)
A escalada da lógica capitalista impôs a abertura dos mercados mundiais e a consequente globalização das economias nacionais, o que suscitou um aumento das desigualdades sociais e regionais, situação dramática para os países menos desenvolvidos, devido a vulnerabilidade e fragilidade de suas economias que são menos competitivas.
A situação mais dramática é vivida pela população empobrecida que é a mais afetada, pois não tem condições de responder aos desafios e aos padrões competitivos que exigem qualificação, condições educacionais e institucionais para aproveitar as oportunidades de inserção econômica. Costa e Cunha apresentam a preocupação ao afirmar
“Nesse aspecto, pode-se inferir que as políticas públicas para a Amazônia a utilizam como território estratégico para o interesse do Estado e de grandes empresas, mas sem direcionar o objetivo para os problemas internos que a população amazônida vivencia.” (2017, p. 30)
Este desequilíbrio produz crescimento da tensão e exclusão social e acaba configurando-se como empecilho ao desenvolvimento econômico sustentável da sociedade, estado ou nação, uma vez que impulsiona a violência, destrói a formação de capital social e físico e também o fluxo de possíveis investimentos interno e externo.
O Amapá foi um grande negócio para os europeus durante o mercantilismo; para os estadunidenses e chineses donos das grandes empresas de extração de minério, madeira, celulose e caulim; e continua sendo um grande negócio para as elites locais que se associam aos capitalistas internacionais nestes grandes empreendimentos.
Mas não se configura como um grande negócio para as populações tradicionais do Amapá, os Indígenas, os Extrativistas, os Quilombolas, os Caboclos e tantos Trabalhadores explorados, pois estes não participam das benesses produzidas e das riquezas acumuladas pela elite local e internacional. São as pessoas mais vulneráveis que padecem de fome e miséria quando encerram os ciclos das drogas do sertão, da borracha, do manganês, da base aérea internacional. Vão-se os grandes empreendimentos, ficam os pequenos abandonados à própria sorte.
Compreender estas relações e apresentar alternativas para outras interpretações e proposições deve ser a tarefa epistemológica dos estudos acadêmicos, ao que Escobar propõe:
Enfatizar la importancia de la transformación de la configuración particular de conocimiento y poder establecida por los conocimientos expertos. Con este fin proponía que las ideas más útiles acerca de las alternativas podrían ser obtenidas de los conocimientos y prácticas de los movimientos sociales, más que de los flamantes expertos formados en las grandes universidades del mundo. (2014, p. 31)
Uma crítica embasada do “postdesarollo” sobre as contribuições da ciência e da academia na fundamentação do processo de desenvolvimento como vetor econômico sem preocupação e foco nas dimensões de sustentabilidade e justiça social, sendo que Escobar estende sua crítica às academias latinoamericanas ao afirmar:
las academias de la región parecieran haberse acomodado a las realidades de la globalización a partir de lós mercados y, en general, al modelo neoliberal durante el periodo. Desde finales de los noventa y a través de la primera década del milenio pareciera haberse reactivado el espacio del pensamiento crítico en la región y, hasta cierto punto, una radicalización de la práctica social, particularmente, a partir de los movimientos sociales y, en algún grado, desde los gobiernos progresistas. (2014, p. 36)
Nesta simbiose do estado com o capital, as populações sofrem, pois, a estrada de ferro da ICOMI resta abandonada, enquanto os assentados não têm um ramal para escoar sua produção. As hidrelétricas e os rebanhos de búfalos acabam com a pororoca e mudam os cursos dos rios, enquanto os ribeirinhos não têm energia para ligar uma lâmpada, uma geladeira, uma batedeira elétrica de açaí. O Linhão de Tucuruí cortou a floresta e derrubou inúmeras castanheiras para interligar o estado do Amapá ao sistema nacional de energia, enquanto os extrativistas do Maracá continuam sem usufruir da eletricidade. Macapá e Santana concentram a renda, a riqueza, a elite burocrática e os melhores indicadores sociais, mas as comunidades quilombolas não têm água tratada, escola, posto de saúde.
Este quadro produzido por uma perspectiva obtusa de desenvolver a Amazônia não considera a visão e os saberes produzidos historicamente por suas populações extrativistas, sendo que Escobar manifesta como imprescindível:
dos cambios en las condiciones de producción de conocimiento. El primero es que el rango de productores de conocimiento se ha expandido mucho más allá de la academia y el campo de estudios sobre movimientos sociales y en los estudios sobre las transiciones, en los que la propia investigación de los activistas y su producción de conocimiento se están volviendo centrales para entender lo que son los movimientos, por qué se movilizan y los tipos de mundos que desean construir. (2014, p. 39)
Esta mudança na lógica de estudar e pensar as possibilidades de desenvolvimento apontam para a centralidade dos movimentos sociais, suas práticas e saberes na condução de uma nova racionalidade com bases epistêmicas e econômicas centradas na sustentabilidade.
Esta realidade de abandono e equívocos nas agendas e projetos no tocante às fronteiras produziram uma agenda negativa, de regiões concentradoras e propícias à prática de delitos diversos, marcadamente o narcotráfico, a prostituição, a violência e abusos diversos aos direitos humanos, daí o necessário viés de militarização e controle ser o padrão da concepção de política e ação pública para a fronteira.
A Amazônia é a fronteira das águas doces e limpas em plena crise hídrica, fronteira das espécies ainda não estudadas e catalogadas pela ciência moderna, fronteira da diversidade de gentes e culturas em desenhos singulares de habitabilidade e sustentabilidade, fronteira de saberes e sabores próprios, exóticos, perturbadores, fronteira do que foi e do que ainda poderá vir-a-ser.
Das lutas dos extrativistas e demais campesinos da Amazônia amapaense constituíram uma situação muito especifica em relação à proteção ambiental, pois 72% do território amapaense é formado por áreas protegidas. Parques Nacionais, Reservas Biológicas, Estações Ecológicas, Terras Indígenas, Reservas Extrativistas, Reservas de Desenvolvimento Sustentável, Reservas Ambientais, Assentamentos de Reforma Agrária, Terras de Remanescentes de Quilombos e outras denominações de gestão federal, estadual ou municipal compõe a diversidade de formas e modelos de gestão e manejo dos recursos com proteção a um patrimônio de inestimável valor.
Mesmo todo este estatuto de terra protegida não garante a segurança de suas populações tradicionais, pois a violência tem aumentado nos últimos anos, registrando apenas no ano de 2015 um total de 64 conflitos envolvendo 1.908 famílias do meio rural do Amapá segundo a publicação da CPT intitulada “Conflitos no Campo – 2015”. São ameaças, expulsões e violências de todo tipo contra lideranças extrativistas, quilombolas, indígenas e outros tantos.
É um cenário de disputa com o agronegócio que se impõe sobre o estado do Amapá com apoio governamental para ampliar as áreas destinadas a criação extensiva de bubalinos, monocultura do eucalipto e soja, mineração e grandes projetos hidrelétricos. Para as populações tradicionais se apresenta a necessidade de manter a luta e a organização para fazer do campo e da floresta espaços de produção de trabalho e vida, material e simbólica, guardando múltiplas formas de relacionamento com os recursos naturais por meio de atividades complexas e organizadas, do manejo e associação de atividades adequadas a realidade local.
Considerações
A história da formação do Amapá foi fruto da violenta aliança do estado com a elite econômica capitalista que explorou de forma insustentável os recursos e as culturas nesta porção amazônica.
Os povos indígenas e afrodescendentes enfrentaram o projeto colonizador e construíram suas estratégias de sobrevivência e liberdade culminando em uma trama de movimentos sociais que se erguem contra o poder e a força da elite agrária capitalista nacional e internacional.
Compreender esta realidade e interpretar com um olhar mais próximo de seus protagonistas implica em afastamento crítico da correnteza epistêmica que coaduna com seus algozes e instaurar um outro olhar possível que contemple suas culturas e saberes, lutas e demandas em comunhão e serviço a suas bandeiras históricas por desenvolvimento e sustentabilidade.
Que o ponto de partida sejam suas vozes e suas ações, numa irrupção genuína e inédita de convívio “sentipensante” na relação cultura-trabalho-natureza.
Referências Bibliográficas
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