Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


CRÍTICA AO CONCEITO DE CAPITAL HUMANO

Autores e infomación del artículo

Jean Henrique Costa*

Thadeu de Sousa Brandão**

Universidade do Estado do Rio Grande do Norte, Brasil

jeanhenriquecosta@gmail.com


Resumo

O escrito a seguir apresenta um exercício teórico de crítica ao conceito de ‘Capital Humano’, cunhado inicialmente nos anos 1950 pelo economista Theodore W. Schultz. Apresenta-se uma rápida exposição do conceito, seguida de algumas reflexões críticas, objetivando demonstrar limitações de um conceito pouco explicativo para a compressão das relações de poder nos mercados de trabalho e que ainda oculta certas desigualdades entre indivíduos e grupos sociais.
Palavras-Chave: trabalho; controle; capital humano; ideologia.

Abstract

The paper presents a theoretical exercise in critique of the concept of 'Human Capital', first coined in the 1950s by economist Theodore W. Schultz. A brief exposition of the concept is presented, followed by some critical reflections, aiming to demonstrate limitations of a concept that is not very explanatory for the compression of the power relations in the labor markets and that still hides certain inequalities between individuals and social groups.
Keywords: work; control; human capital; ideology.

Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Jean Henrique Costa y Thadeu de Sousa Brandão (2018): “Crítica ao conceito de capital humano”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (julio 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/07/capital-humano.html

//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1807capital-humano

Tem sido um discurso corriqueiro em estudos e práticas administrativas a constatação de que ter somente ‘pessoas’ nas organizações se tornou insuficiente em contextos complexos e dinâmicos de competitividade e diferenciação empresarial. Para os teóricos (ideólogos!?) da denominada teoria do capital humano – foco deste ensaio de crítica teórica – há organizações que possuem muitos trabalhadores, mas nenhum ou pouco capital humano. Segundo constatam os gestores da ideologia, o trabalhador para a empresa deve ser um ‘ativo’, materializado como elemento agregador de novo valor econômico. Neste sentido, a força de trabalho precisa ser não apenas capacidade física e mental para produzir valor (como pensou Marx), mas expressar um resultado sinérgico, exigindo e despertando inovação e competitividade contínuas. Competência e motivação se manifestariam, então, em ‘talentos’ para as organizações, implicando em maior valor agregado. Sem esta condição básica apregoada pela noção de capital humano, as empresas cairiam na rotina e na simples reprodução do status quo organizacional, suprimindo ou minimizando as potencialidades inovadoras. É neste terreno conceitual que se alicerça a noção de capital humano. Longe de afirmá-la, buscaremos aqui desconstruir seu núcleo geral.
A origem do conceito está ligada ao surgimento da disciplina economia da educação, nos Estados Unidos, nos anos 1950. Theodore W. Schultz, economista da Universidade de Chicago à época, é considerado o principal formulador da ideia de capital humano (Paiva, 2001).

Originalmente, o termo “capital humano” foi aludindo às ideias de alguns professores que, sob influência do paradigma econômico neoclássico e sob a liderança de Theodore Schultz, atuavam junto ao Departamento de Economia da Universidade de Chicago, mas também junto à Escola Superior de Administração e à Faculdade de Direito dessa mesma universidade. O termo remete também a um grupo de economistas que, a partir do início dos anos 1960, influenciados por Milton Friedman (Nobel de 1976), George Stigler (Nobel de1982) e seus discípulos, além de servirem de arauto à defesa do livre mercado, refutavam e rejeitavam os princípios da doutrina keynesiana (Manzoli e Fontenelle, 2016, p. 10).

É importante destacar que esta teoria do capital humano não se refere a uma única teorização. É resultado de um programa mais amplo de pesquisa e, segundo Saul, o núcleo desse programa consiste na ideia de que o indivíduo investe em si mesmo de diversas formas, não apenas visando desfrutar o presente, mas buscando rendimentos futuros, pecuniários ou não (Saul, 2004). Neste sentido, o capital humano significa um conjunto de investimentos em conhecimentos, competências e atributos da personalidade do indivíduo que favorecem a realização do trabalho de modo a produzir mais valor econômico. Isto é, expressa aqui o que o trabalhador possui para oferecer à organização e que gera valor econômico para a empresa e valor social para o trabalhador. Este capital é adquirido pelo trabalhador por meio da educação e da experiência. Para Frigotto (2008, p. 68), “Schultz define o ‘capital humano’ como o montante de investimento que uma nação ou indivíduos fazem na expectativa de retornos adicionais futuros”.
A denominada ‘economia da educação’ passa a ser central nas análises da teoria do capital humano. Diante disso, a educação se torna um fator permanente para o indivíduo, cuja tarefa é se autopromover e se autovalorizar para o mercado. Por conseguinte, o indivíduo passa a assumir um discurso empreendedor de si mesmo, extrapolando a dimensão do controle organizacional para o autocontrole, empreendendo-se como peça fundamental para a empresa. Emerge, então, “[...] a concepção do humano como capital, como uma empresa S/A que deve ser continuamente investida para não perder seu valor de mercado” (Manzoli e Fontenelle, 2016, p. 4).
Tamanho empreendimento teórico surgiu da necessidade de se explicar ganhos de produtividade gerados pelo fator humano na produção. Grosso modo, a conclusão de muitos estudos, à época, mostrou que o trabalhador, quando qualificado por meio da educação, era um dos mais importantes meios para ampliar a produtividade econômica. Portanto, surgiram algumas premissas básicas:
a) o trabalhador passa a ser um diferencial sinérgico em uma organização;
b) a noção de que o trabalhador deve ser funcionalmente alocado no lugar que maximize suas capacidades;
c) necessidade de qualificação permanente;
d) necessidade de motivação permanente;
e) alinhamento das competências individuais com as estratégias organizacionais;
f) cuidado permanente com o trabalhador (manutenção de sua saúde física e mental).
É evidente que esta teoria do capital humano nasce, segundo Saul (2004), num ambiente extremamente fértil, sendo um produto típico do desenvolvimento econômico americano. Destaca o autor que se trata de um produto típico do capitalismo avançado e um elemento “decisivo da atualização e consolidação do conceito de capitalismo sem proprietários, ou sem classes sociais contrastantes” (Saul, 2004, p. 258).
Para Frigotto (2008, p. 67), essa “noção de ‘capital humano’, que se afirma na literatura econômica na década de 1950, e, mais tarde, nas décadas de 1960 e 1970, no campo educacional, a tal ponto de se criar um campo disciplinar” (economia política da educação), requer que se entenda, previamente, que o conhecimento dominante é o conhecimento produzido pelas classes dominantes e que, portanto, não é neutro. Frigotto (2008) é feliz quando afirma que os intelectuais burgueses até percebem como se produz dentro da relação capitalista, mas não como se produz esta própria relação. Diante disso, o autor classifica a abordagem do capital humano como funcionalista, fragmentária, pragmática e circular.
Diante disso, algumas considerações críticas precisam ser mobilizadas para não se permitir uma leitura acrítica e passiva deste conceito.
Primeiramente, o conceito de capital humano desloca para o âmbito individual os problemas estruturais da inserção social (desemprego), do emprego (precarização) e do desempenho profissional (qualificação). Caberia ao indivíduo ser responsável por sua inserção permanente nos mercados de trabalho. Logo, o conceito negligencia assimetrias de renda, capital cultural, capital simbólico e capital social, para usarmos as noções de capital em Pierre Bourdieu (1998).
Segundo, termina possibilitando a queda noutro conceito ideológico: empregabilidade, o filho mais novo da ideia burguesa de meritocracia. O conceito tenta justificar ideologicamente o sucesso de uns e o fracasso de outros, desconsiderando o contexto social do trabalhador.
Frigotto (2008, p. 69) novamente é crítico quando afirma que “para o pensamento liberal, todos os indivíduos nascem com as mesmas predisposições naturais demarcadas pela busca racional do que é agradável e útil. Todos, portanto, aparecem no mercado em iguais condições de escolha individual”. Eis aí uma mercadoria bem vendida: a ilusão da igualdade.
Terceiro, o conceito de capital humano faz da educação um valor econômico, ou seja, só se investe basicamente naquilo que dá retorno. Abre-se, com isso, o caminho para mais tecnificação e pragmatismo dos saberes.
Quarto, em Marx o conceito de capital implica a combinação de capital constante (meios de produção) e capital variável (força de trabalho). Apenas o capital variável (o trabalhador) cria valor novo. Deste modo, o termo capital humano apenas reproduz o conceito de força de trabalho, todavia, exigindo do trabalhador que este se entregue mais ainda à organização capitalista. Torna-se, pois, uma expressão redundante, já que a força de trabalho já é capital variável e somente ela cria valor novo. Temos aí, então, um discurso ideológico para vender promessas de inserção social.
Além disso,

A partir do momento em que a competência e aptidão do indivíduo são vistos como sua máquina, o próprio trabalhador emerge a seus olhos e aos olhos dos outros como uma espécie de empresa, onde seus atributos pessoais passam a ser vistos como “ativos” que necessitam de constante investimento para serem valorizados no mercado. Ao “ser” uma empresa, o indivíduo passa a ser entendido como um empreendedor, mesmo nos casos onde não há em jogo nenhuma busca por atividade autônoma, no sentido estrito do termo. Busca-se autonomia na maneira de “gerir” sua própria empresa, ou, nesse caso, na maneira de gerir a si mesmo, mas não necessariamente autonomia no sentido de desvinculação formal com alguma organização. É nesse sentido que o fenômeno do empreendedorismo passa a ser entendido dentro das empresas como um tema central, que reúne em torno de si uma série de outros fenômenos vitais ao neoliberalismo e ao discurso do capital humano, tais como a criatividade, a flexibilidade e a inovação. (Manzoli e Fontenelle, 2016, p. 11).

Grosso modo, tais constatações fazem emergir uma realidade que permanece ou busca permanecer oculta no conceito de capital humano, isto é, que o conceito procura criar a representação de que o indivíduo é o único responsável pela sua inserção social. O conceito ainda oculta que “há um recrudescimento no desemprego estrutural, precarização do trabalho com perda de direitos e, especialmente, em países dependentes como o Brasil, oferta de empregos que exige trabalho simples e oferece uma baixíssima remuneração” (Frigotto, 2008, p. 71).
Muitos disseminadores dessa propaganda do capital humano até conseguem perceber, minimamente, como são produzidas certas relações assimétricas e desiguais dentro do capitalismo, mas não compreendem como se produzem essas próprias relações. Eis o papel da ideologia hegemônica e da reificação da consciência! Manter a ordem estabelecida.
Aprofundando a discussão, o economista Guy Standing, em seu “O Precariado”, discute a promoção do modelo socioeconómico e contextual que permitiu a constituição desse tipo de teoria organizacional. Segundo ele, após da década de  1970, a ideia passou a ser de que os países deveriam “aumentar a flexibilidade do mercado de trabalho, o que passou a significar uma agenda para a transferência de riscos e insegurança para os trabalhadores e suas famílias”. Temos, por isso, o surgimento contínuo de um “precariado” global” (Standing, 2013, p. 15).
Para Standing, o termo se justifica na medida em que no período supracitado e a posteriori (que variou de país a país), imperou uma política neoliberal onde as economias e sociedade tinham de perseguir uma flexibilidade do mercado de trabalho. Em busca dessa flexibilidade, os mercados poderiam ser mais competitivos e se adequar à realidade então vigente.

A flexibilidade tinha muitas dimensões: flexibilidade salarial significava acelerar ajustes a mudanças na demanda, especialmente para baixo; flexibilidade de vínculo empregatício significava habilidade fácil e sem custos das empresas para alterarem os níveis de emprego, especialmente para baixo, implicando uma redução na segurança e na proteção do emprego; flexibilidade do emprego significava ser capaz de mover continuamente funcionários dentro da empresa e modificar as estruturas de trabalho com oposição ou custos mínimos; flexibilidade de habilidade significava ser capaz de ajustar facilmente as competências dos trabalhadores (Standing, 2013, p. 22).

            Assim, exatamente naquilo que o “capital humano” mais preconiza em termos de “qualidades do trabalhador”, Standing aponta como elemento nevrálgico da precariedade de sua existência como tal. O precariado é formado por indivíduos que possuem relações fragilizadas – de mínima confiança – tanto com o capital, quanto com o Estado, sem as garantias que antes possuía o velho “proletariado”, onde as garantias de trabalho eram fornecidas para garantir subordinação e eventual lealdade. Deste modo, temos um conjunto de pessoas que são desprovidas das sete formas existentes de garantias relacionadas ao trabalho – “e que eram perseguidas pelos socialdemocratas, partidos trabalhistas e sindicatos após a Segunda Guerra Mundial como sua agenda de ‘cidadania industrial’ para a classe trabalhadora ou para o proletariado industrial” (Standing, 2013, p. 27). São elas: Garantia de mercado de trabalho. Garantia de vínculo empregatício. Segurança no emprego (...). Segurança no trabalho (...). Garantia de reprodução de habilidade (...). Segurança de renda (...). Garantia de representação (p. 27-28).
Para Standing, disso decorre outra característica que mina por completo a capacidade de “envolvimento e doação no trabalho” que preconizaria o capital humano: uma absoluta e completa falta de garantia no emprego e a constituição de uma renda social insegura, fazendo com que os membros do precariado careçam de uma “identidade baseada no trabalho”. Tanto pela rotatividade constante a que são submetidos, quanto pela insegurança em si, mesmo quando estão empregados, “ocupam empregos desprovidos de carreira e sem tradições de memória social, ou seja, não sentem que pertencem a uma comunidade ocupacional imersa em práticas estáveis, códigos de ética e normas de comportamento, reciprocidade e fraternidade” (Standing, 2013, p. 31).

Outra característica da ‘precarização’ é o que poderia ser chamado de mobilidade ocupacional fictícia, simbolizada pelo fenômeno pós-moderno de ‘uptiling’ elegantemente satirizado pelo The Economist. Uma pessoa que ocupa um emprego estático, que não leva a lugar nenhum, recebe um título pomposo para sua ocupação a fim de esconder as tendências do precariado (Standing, 2013, p. 38).

Em conformidade com a discussão apontada por Zygmunt Bauman, em sua Modernidade Líquida (2001), Guy Standing (2013) aponta que o precariado também se define pelo “curto prazismo”, onde as formações são superficiais e, ao mesmo tempo, se dão numa perspectiva de não se conseguir pensar a longo prazo – igualmente em Sennett (2012) –, induzida pela baixa probabilidade de progresso pessoal ou de construção de uma carreira tão prometida pelo “capital humano”. Neste sentido, os “multitarefeiros” se apresentam como aqueles que possuem mais problemas em se concentrar e mais dificuldades em excluir a informação irrelevante ou perturbadora. São “incapazes de controlar seu uso do tempo, eles sofrem de estresse, o que corrói a capacidade de manter uma mente desenvolvente que percebe a aprendizagem reflexiva com uma perspectiva de longo prazo” (Standing, 2013, p. 40).
Essa flexibilidade apontada termina por envolver mais trabalho por tarefa do que antes historicamente. Também impõe uma indefinição dos locais de trabalho e, concomitantemente, dos locais residenciais e locais públicos (na maioria das vezes, o indivíduo nunca se fixará numa mesma cidade e até mesmo país). Há, ao mesmo tempo, uma mudança do antigo controle direto taylorista-fordista para outras maneiras de controle indireto, onde mecanismos tecnológicos sofisticados são implantados.

Além da flexibilidade funcional e do trabalho à distância, as mudanças nas estruturas profissionais têm perturbado a capacidade das pessoas de controlar e desenvolver seu potencial profissional. Na era da globalização, os governos desmantelam calmamente as instituições de “autorregulação” de profissões e ofícios e, em seu lugar, construíram elaborados sistemas de regulação estatal. Estes sistemas removeram a capacidade das corporações profissionais de estabelecer seus próprios padrões, controlar a entrada para sua profissão, estabelecer e reproduzir sua ética e maneiras de fazer as coisas, definir as taxas de remuneração e direitos, estabelecer formas de disciplinar e punir membros, definir os procedimentos para a promoção e para outras formas de progressão na carreira, e muito mais (Standing, 2013, p. 68).

Um último problema que o “capital humano” não enfrenta e que é fundamental no entendimento do “precariado” é a pressão para estar o tempo todo atarefado (no trabalho e fora dele). Esses trabalhadores podem assumir vários empregos – e cursos de formação – ao mesmo tempo, seja porque os salários estão caindo e por isso, precisam aumentar a renda, seja devido a manutenção de algum seguro ou mesmo prevenção de riscos. Um mercado de trabalho flexível – pauta indelével da ideologia neoliberal e que se impõe em todos os espaços desenvolvidos ou não do capitalismo contemporâneo – termina tornando a mobilidade do trabalho a característica principal do estilo de vida, e que também termina criando “uma teia de perigos morais e imorais no turbilhão de regras para determinar o direito ao benefício, obriga o precariado a usar o tempo de maneiras que estão fadadas a enfraquecer as pessoas e a torna-las menos capazes de realizar outras atividades” (Standing, 2013, p. 185).
Como já apontamos antes, Standing, mesmo sem citar, está de acordo com Bauman, em sua ideia de uma fase de transição que, mesmo sendo ainda modernidade, o sociólogo polonês denominou de Modernidade Líquida, onde os velhos padrões, códigos e regras que nos conformávamos, e sob os quais os indivíduos podiam selecionar um ou outro como “pontos estáveis de orientação” e que serviam de guia comportamental ou de vida, “estão cada vez mais em falta” (Bauman, 2001, p. 14).
Bauman aponta que esta modernidade liquefeita se pauta pela “responsabilização do indivíduo”: seja no mundo do trabalho, da formação profissional ou da saúde, ou mesmo da segurança pública e da vida pessoal. Temos uma versão “individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos” (Bauman, 2001, p. 15).
No que tange à responsabilização no mundo do trabalho, e que nos ajuda a pensar a questão posta pela teoria do “capital humano”, Bauman nos alerta:

Não se engane: agora, como antes – tanto no estágio leve e fluido da modernidade quanto no sólido e pesado -, a individualidade é uma fatalidade, não uma escolha. Na terra da liberdade individual de escolher, a opção de escapar à individualização e de se recusar a participar do jogo da individualização está decididamente fora da jogada. A autocontenção e autossuficiência do indivíduo podem ser outra ilusão: que homens e mulheres não tenham nada a que culpar por suas frustrações e problemas não precisa agora significar, não mais que no passado, que possam se proteger contra a frustração utilizando suas próprias estratégias, ou que escapem de seus problemas (...). E, no entanto, se ficam doentes, supõe-se que foi porque não foram suficientemente decididos e industriosos para seguir seus tratamentos; se ficam desempregados, foi porque não aprenderam a passar por uma entrevista, ou porque são, pura e simplesmente, avessos ao trabalho; se não estão seguros sobre as perspectivas de carreira e se agoniam sobre o futuro, é porque não são suficientemente bons em fazer amigos e influenciar pessoas e deixaram de aprender e dominar, como deveriam, as artes da autoexpressão e da impressão que causam. Isto é, em todo caso, o que lhes é dito hoje, e aquilo em que passaram a acreditar, de modo que agora se comportam como se essa fosse a verdade. (...) Riscos e contradições continuam a ser socialmente produzidos; são apenas o dever e a necessidade de enfrenta-los que estão sendo individualizados (Bauman, 2001, p. 47).

O efeito disso é catastrófico tanto no aspecto das relações de trabalho como em toda a vida do indivíduo. Focado o tempo todo em seu próprio desempenho (e sem perceber as contradições às quais estão reduzidos), os indivíduos tentam eles mesmos reduzir e tratar suas situações. Mas as “soluções” sempre se apresentam como tarefas individuais a serem cumpridas e por responsabilidades também individualizadas. Buscamos soluções para nossa formação ou para nossa empregabilidade em novas formações ou em culpas individuais: como bem preconiza o “capital humano”. Seja por não usarmos nosso tempo “racionalmente” ou mesmo por não termos nos “dedicado a contento”. Pagamos planos de saúde e escolas privadas e, no extremo, acreditamos no armamento individual como solução para os problemas de criminalidade e violência urbanas. Finalmente, “(...) é o privado que coloniza o espaço público, espremendo e expulsando o que quer que não possa ser expresso inteiramente, sem deixar resíduos, no vernáculo dos cuidados, angústias e iniciativas privadas” (Bauman, 2001, p. 54).
Numa era de múltiplas autoridades (em termos de discurso de verdade, ciência e mesmo sociais e políticas), a Modernidade Líquida nos aponta a perspectiva de pensar uma sociedade onde a esfera pública é voltada para o consumo em si.

A vida organizada em torno do consumo, por outro lado, deve se bastar sem normas: ela é orientada pela sedução, por desejos sempre crescentes e quereres voláteis – não mais por regulação normativa. (...) O principal cuidado diz respeito, então, à adequação – a estar ‘sempre pronto’; a ter a capacidade de aproveitar a oportunidade quando ela se apresentar; a desenvolver novos desejos feitos sob medida para as novas, nunca vistas e inesperadas seduções; e a não permitir que as necessidades estabelecidas tornem as novas sensações dispensáveis ou restrinjam nossa capacidade de absorvê-las e experimentá-las (Bauman, 2001, p. 99).

            Assim como no consumo, o mundo do trabalho é também reduzido a uma relação mercadorizante. O trabalhador, objeto de consumo e consumidor, tem que se adequar a uma agenda flexível de novidades constantes que impedem sua identificação orgânica com o trabalho em si (como apontou Standing) e mesmo com o que preconiza a “teoria do capital humano” em termos de satisfação ou “qualidade do trabalho”. Não pode ocorrer satisfação já que a instabilidade imposta pela precarização só pode gerar, como lembra sempre Bauman (retomando Sigmund Freud décadas antes), ansiedade e um verdadeiro mal-estar civilizatório.
Viver na era do “precariado” ou da “modernidade líquida”, não importando as categorias que se intercruzam em nossa análise, é viver a tentar escapar de uma verdadeira agonia chamada insegurança. A ampla maioria dos que vivem do trabalho no mundo (sem contar com a outra parcela que não consegue renda alguma do trabalho e está sujeita à miséria), quer estar livre do “medo do erro, da negligência ou da incompetência”.
Neste contexto, os trabalhos humanos passam a se dividir em “episódios isolados como o resto da vida humana”. O trabalho passa a ser um jogo, onde “atos de trabalho se parecem mais com as estratégias de um jogador que se põe modestos objetivos de curto prazo, não antecipando mais que um ou dois movimentos. O que conta são os efeitos imediatos de cada movimento; os efeitos devem ser passíveis de ser consumidos no ato”. O trabalho deixa de ser tanto o eixo seguro em torno do qual as identidades e projetos de vida eram construídos, como também deixa de ser concebido como “fundamento ético” da sociedade, ou como eixo ético da vida individual (Bauman, 2001, p. 174-175).
Concordando com Standing, Bauman enfatiza que:

A precariedade é a marca da condição preliminar de todo o resto: a sobrevivência, e particularmente o tipo mais comum de sobrevivência, a que é reivindicada em termos de trabalho e emprego. Essa sobrevivência já se tornou excessivamente frágil, mas se torna mais e mais frágil e menos confiável a cada ano que passa. (...) No mundo do desemprego estrutural ninguém pode se sentir verdadeiramente seguro. (...) “Flexibilidade” é a palavra do dia. Ela anuncia empregos sem segurança, compromissos ou direitos, que oferecem apenas contratos a prazo fixo ou renováveis, demissão sem aviso prévio e nenhum direito à compensação (2001, p. 201- 202).

Assim, a flexibilização e a precarização impostas nesta contemporaneidade (“Líquida” e “Precária”) são sintomáticas da distância entre o preconizado pela “teoria do capital humano” e a realidade vivenciada nos espaços do mundo múltiplo e complexo do trabalho. Se o trabalhador não pode escolher onde trabalhar, o tempo de permanência, o escopo de sua qualificação e nenhuma segurança lhe é oferecida, que “capital humano” afinal surge de tamanha fragilidade estrutural e individual? Tanto Standing como Bauman nos mostram que a contemporaneidade retira todas as bases de estabilidade do trabalho, joga o trabalhador num mar de incertezas e de competitividade. Diante disso, a noção de capital humano necessita ser pensada não como um conceito-fetiche, mas sim através de seus elementos ideológicos que anunciam a venda de um mundo melhor quando, na verdade, estão promovendo a barbárie do capital.

Referências

Bauman, Zygmunt (2001). “Modernidade Líquida”. Tradução de Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Zahar.

Nogueira, Maria Alice Nogueira; Catani, Afrânio. (Orgs.) (1998). “Pierre Bourdieu. Escritos em Educação”. Petrópolis: Vozes.

Frigotto, Gaudêncio (2008). “Capital humano”. In: Dicionário da Educação Profissional em Saúde. Rio de Janeiro: Fundação Oswaldo Cruz/ Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio.

Manzoli, Ana Carolina Jacob; Fontenelle, Isleide (2016). “O modelo de conduta empreendedora do Trainee: uma ilustração do discurso do capital humano deinspiração neoliberal”. Anais... IV Congresso Brasileiro de Estudos Organizacionais - Porto Alegre, RS, Brasil, 19 a 21 de Outubro de 2016.

Paiva, Vanilda (2001). “Sobre o conceito de ‘capital humano’”. Cadernos de Pesquisa, n. 113, pp. 185-191, jul.

Saul, Renato P. (2004). “As raízes renegadas da teoria do capital humano”. Sociologias, Porto Alegre, ano 6, nº 12, p. 230-273, jul/dez.

Sennett, Richard. (2012). A corrosão do caráter: o desaparecimento das virtudes com o novo capitalismo”. Tradução de Marcos Santarrita. Rio de Janeiro: Edições Best Bolso.

Standing, Guy (2013). “O precariado: a nova classe perigosa”. Tradução de Cristina Antunes. Revisão da tradução de Rogério Bettoni. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

*Doutor em Ciências Sociais. Professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. E-mail: prof.jeanhenriquecosta@gmail.com
** Doutor em Ciências Sociais. Professor da Universidade Federal Rural do Semiárido – UFERSA. E-mail: thadeu@ufersa.edu.br

Recibido: 27/05/2018 Aceptado: 19/07/2018 Publicado: Julio de 2018

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