Vivian da Silva LOBATO *
UFPA, Brasil
vislsp@hotmail.com
RESUMEN
El presente artículo tiene como objetivo investigar cómo construyen su profesionalidad docente egresados del curso de Pedagogía, en el contexto de la educación ribereña amazónica. El estudio se inserta en el entrecruzamiento de los temas de formación docente, profesionalidad docente y educación ribereña. El marco de referencia teórico cuenta con los estudios de SACRISTÁN (1999); CONTRERAS (2002); ROLDÃO (2005, 2008); TARDIF (2002); NÓVOA (1999). Para la recolección de datos, se formaron dos grupos focales entre los egresados del curso de Pedagogía de las Aguas, del Campus de Abaetetuba de la Universidad Federal de Pará. Tras la recolección y la transcripción, se agruparon los datos según la elaboración de categorías de significados, partiendo de direcciones que el propio discurso de los entrevistados señaló. El contenido fue analisado de acuerdo con el marco teórico-metodológico utilizado para la investigación.
Palabras clave: profesionalidad docente; formación inicial; egresados; educación ribereña.
ABSTRACT
The purpose of this research is to investigate how Pedagogy graduates build their teaching professionality, in the realm of riverine rural education in the Amazonian region. The study inserts itself among the themes of teachers’ training, teaching professionality, and riverine education. The theoretical framework is based in studies by SACRISTÁN (1999); CONTRERAS (2002); ROLDÃO (2005, 2008); TARDIF (2002); NÓVOA (1999). For data collection, two focus groups were created comprising graduates from the Water Pedagogy course of the Federal University of Pará campus in Abaetetuba. After the collection and transcription, the data were assembled according to meaning categories, established from the directions pointed by the interviewed participants’ own discourse. The content was then reviewed in accordance to the theoretical-methodological framework used in the research.
Key words: teaching professionality; initial training; graduates; riverine education.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Vivian da Silva LOBATO (2018): “A constituição da profissionalidade do professor Ribeirinho”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/04/profissionalidade-ribeirinho.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1804profissionalidade-ribeirinho
INTRODUÇÃO
O período de formação de um curso de Pedagogia representa o momento em que futuros professores entram em contato com conteúdos e práticas específicas, que deverão nortear e balizar sua atuação profissional. De fato, estudar os conteúdos didáticos e realizar atividades práticas são aspectos determinantes na constituição da profissionalidade e das práticas dos futuros educadores. Porém, na transição entre a formação universitária e a adaptação à realidade dos ambientes de trabalhos surgem novos fatores. Nem sempre a realidade corresponde ao imaginado e o novo professor se encontrará diante de novas relações que transformarão a percepção que tem de si mesmo e do mundo. Assim, o presente artigo apresenta resultados iniciais de uma pesquisa realizada com alunos egressos do curso de Pedagogia das Águas, formação esta oferecida pela Universidade Federal do Pará, em parceria com o INCRA/PRONERA. Os dados foram coletados por meio de dois grupos focais. Ao todo, 18 professoras (ex-alunas) participaram desses dois grupos focais. Por questões de preservar o anonimato, atribuiu-se nome fictício a elas, na apresentação das falas.
REFERENCIAL TEÓRICO
As profissões diferenciam-se pelos conhecimentos que lhe são específicos e pela configuração de uma prática coerente com as demandas de um determinado ofício. Segundo Bazzo (2007), profissionais de cada área desenvolvem valores, atitudes, habilidades e destrezas mais ou menos homogêneas ao seu grupo.
Conforme Perez Gómez (1995, p. 110):
O profissional competente atua refletindo na ação, criando uma nova realidade, experimentando, corrigindo e inventando através do diálogo que estabelece com a realidade (...) o profissional reflexivo constrói de forma idiossincrática o seu próprio conhecimento profissional, o qual incorpora e transcende o conhecimento emergente da racionalidade técnica.
Segundo Popkewitz (1995), “Profissão é uma palavra de construção social, cujo conceito muda em função das condições sociais em que as pessoas a utilizam” (p.38). Para o mesmo autor, tal designação pode ser utilizada para identificar um grupo formado, competente, especializado e que corresponde a confiança pública.
Pensar a profissão docente é refletir sobre vários assuntos e uma complexidade de concepções de “ser professor”. Muitas questões permeiam a profissão docente, sendo importante refletir sobre a imagem e a função do professor ao longo do tempo e sobre como ela se configura hoje. De acordo com Nóvoa (1999, p. 10), “É verdade que os professores estão presentes em todos os discursos sobre a educação. Por uma ou por outra razão, fala-se sempre deles”.
Nóvoa (1999) defende que no século XIX ocorreu a expansão da educação escolarizada e a institucionalização da formação do professor: as escolas normais, que consolidaram o “perfil” do professor, abriram, no entanto, mais espaço para um maior controle dos docentes por parte do estado. Segundo o autor, a partir da segunda metade do século XIX, a profissão docente passou a ser marcada por contradições, pois os professores não eram das classes populares, mas também não eram burgueses e, mais, deveriam relacionar-se com todos os grupos sociais. Era um momento em que esses profissionais não necessariamente eram considerados intelectuais, ainda que precisassem ter instrução.
Diversos autores passaram a utilizar a expressão profissionalidade docente para se referir ao conjunto de requisitos profissionais que tornam alguém um professor ou professora (NÓVOA 1995; SACRISTÁN 1999; CONTRERAS 2002; ROLDÃO 2005).
Bazzo (2007), entende que a profissionalidade seria a condição em potência, isto é, um estado anterior a ação que permite exercer uma determinada profissão.
Roldão (2005) defende que a profissionalidade é “aquele conjunto de atributos, socialmente constituídos, que permitem distinguir uma profissão de outros muitos tipos de atividades, igualmente relevantes e valiosas” (p. 108). A autora também considera a profissionalização “como o caminho para o estatuto de profissionalidade” (p. 110). A autora dá preferência ao uso do termo profissionalidade ao termo profissionalismo, pois, de acordo com ela, este último possui uma carga valorativa aliada ao “bom profissional”.
A profissionalidade é construída desde a formação inicial e ao longo da atividade profissional, mas precisa ser reconhecida para que seja conscientemente administrada pelo docente, para que, em um processo deliberado, ele possa construir seus saberes e seu saber-fazer de acordo com o contexto sociocultural em que está inserido (ROLDÃO, 2005).
Segundo Roldão (2008) o que caracteriza a ação docente é o ato de ensinar, entendendo ensinar como:
[...] a especialidade de fazer aprender alguma coisa (a que chamamos de currículo, seja de que natureza for aquilo que se quer ver aprendido) a alguém (o ato de ensinar só se atualiza nesta segunda transitividade corporizada no destinatário da ação, sob pena de ser inexistente ou gratuita a alegada ação de ensinar). (p. 95)
Para Roldão (2008) a função intrínseca do professor é ensinar, fazer aprender. Mas é justamente porque aprender é um processo complexo e interactivo que se torna necessário um profissional de ensino. Roldão explica que a “ação de ensinar” vai além de “professar um saber”, principalmente, devido à facilidade de acesso à informação que os alunos dispõem nos dias atuais. Para a autora, a ação de ensinar deve vincular-se à mediação e a dupla transitividade na relação professor-aluno.
Roldão (apud Gorzoni, 2016), define quatro descritores da profissionalidade, são eles: a especificidade da função, o saber específico, o poder de decisão e o pertencimento a um corpo coletivo. A especificidade da função se refere a natureza específica da atividade, sua utilidade e reconhecimento social. Seu saber específico é o domínio de um saber próprio e profissional. O poder de decisão diz respeito à possibilidade de exercer com autonomia a própria atividade, com consequente responsabilidade social. O pertencimento a um corpo coletivo “refere-se ao reconhecimento, por parte de todos aqueles que exercem a atividade docente, de que pertencem a um coletivo profissional, que defende a credibilidade e a exclusividade do saber que produzem e que define quem pode/não pode exercer a atividade” (Gorzoni, 2016, p.22).
Sacristán (1999) defende que o professor não deve ser compreendido como um técnico ou como um improvisador, mas sim como um profissional capaz de utilizar seu conhecimento e experiência para se desenvolver em contextos pedagógicos práticos. O autor aconselha o professor a valorizar a consciência da prática sem desvalorizar a teoria.
Ele compreende a profissionalidade como algo que é específico da ação docente, ou seja, um conjunto de comportamentos, conhecimentos, habilidades, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor. Ele também afirma que a profissionalidade está em constante processo de reelaboração, de acordo com o contexto cultural e social em que a escola está inserida.
Define, ainda, a profissionalidade como um pensamento prático, capaz de articular ideias e ações. Assim sendo, a profissionalidade está baseada nos saberes e no saber-fazer do professor, isto é, ensinar, orientar o estudo do aluno, preparar aulas, avaliar, organizar os espaços e etc.
Por fim, acredita que a profissionalidade e a formação estão de certa forma articuladas. Para o autor, a formação docente (inicial e continuada) não deve abordar somente conteúdos e técnicas, mas também envolver as questões psicológicas e culturais dos professores, em vista de um desenvolvimento pessoal e profissional do coletivo.
Contreras (2002) afirma que a valorização profissional dos professores dar-se-á aliada à defesa dos valores profissionais que, para ele, são a autonomia, a responsabilidade e a capacitação. O mesmo autor defende que a profissionalidade vai além do trabalho de ensinar, pois abarca os valores e as intenções que se almejam na profissão. Dessa maneira, é a forma como o professor concebe o ensino e as finalidades que lhe atribui que vão determinar suas qualidades profissionais.
Contreras (2002, p.72) afirma que, ao defender a sua profissionalidade, os docentes estão reivindicando:
Maior e melhor formação, capacidade para enfrentar novas situações, preocupação por aspectos educativos que não podem ser descritos em normas, integridade pessoal, responsabilidade naquilo que se faz, sensibilidade diante das situações delicadas, compromisso com a comunidade e etc.
Ainda segundo o autor, existem três dimensões para o desenvolvimento da profissionalidade. A primeira é a obrigação moral, isto é, compromisso moral com o crescimento pessoal e humano de seus alunos. Este crescimento vai além do saber conteudista, haja vista que, a prática do professor também influencia na formação de valores e opiniões dos alunos. Assim, sentir-se comprometido com o desenvolvimento moral de seus alunos e com a formação de valores, é também um comprometimento com o bom ensino, no entendimento de Contreras (2002), pois, somente o professor pode transmiti-los ao estudante, justamente por entender a autonomia como valor profissional.
A segunda dimensão da profissionalidade é o compromisso com a comunidade. É importante estimular a participação da comunidade no processo educacional, o que não exclui a autonomia docente. O compromisso com a participação da comunidade está aliado à dimensão social e política da educação, necessária para que a escola cumpra sua função social.
A terceira dimensão refere-se à competência profissional, que não se restringe ao emprego de saberes técnicos e de recursos didáticos. Para o autor a competência técnica está afinada com o compromisso com a comunidade e com o compromisso moral de bem formar o aluno. Contreras (2002, p. 83) afirma que “temos que falar de competências profissionais complexas que combinam habilidades, princípios e consciência do sentido e das consequências das práticas pedagógicas”. Essa competência não se limita ao conteúdo disponível, mas exige intelectualidade que possibilite ampliar o conhecimento. Para o autor também está no rol dessa competência profissional o afeto, a intuição, a improvisação, a construção e a boa preservação das relações sociais na sala de aula e fora dela.
Enfim, pensar a profissionalidade docente como processo de constituição das características próprias da profissão, adquirindo saberes necessários ao desenvolvimento de suas atividades, como também desenvolvendo atitudes, valores, habilidades para aprimorar o exercício profissional docente, é consenso entre os autores que discutem o assunto. Partindo dos autores aqui mencionados, pode-se afirmar que a profissionalidade está associada a um tipo de desempenho e conhecimentos específicos, em constante reconstrução, de acordo com o contexto histórico e social.
Análise e discussão inicial
Neste tópico apresentaremos a análise preliminar dos resultados dos grupos focais e a discussão das categorias de significados, são elas: a formação no curso de Pedagogia das águas, o aprendizado de ser professor, saberes necessários para trabalhar junto às comunidades ribeirinhas, o que é especifico do “ser professor”.
A formação no curso de Pedagogia das Águas
Sobre a formação, durante o curso de Pedagogia das Águas, foi relatado que o curso sempre trabalhou a questão “com que alunos eles iriam trabalhar?”, e ainda que mais da metade das professoras que participaram do grupo focal já trabalhassem em sala de aula, foi o curso de Pedagogia das Águas o principal responsável por proporcionar experiências formativas que possibilitassem reflexão na ação e sobre a ação; ou, para aquelas que ainda não trabalhavam, experiências de encontro com o “sentir-se ribeirinha”. As entrevistadas verbalizam as duas vertentes de mudança: reconhecer o aluno como um sujeito ribeirinho, bem como reconhecer-se ribeirinha.
A partir do momento que a gente se valoriza como ribeirinho, a gente começa a mudar a concepção das outras pessoas também; isso a gente transmite para os nossos alunos. Nós não vamos dizer para os nossos alunos: “você é filho de pescador”, “pescador não vale nada” e sim ensiná-lo a valorizar que ele é filho de pescador com muito orgulho. Quer dizer, você muda a sua concepção e transmitimos isso para os nossos alunos (Laura).
Um aspecto muito frisado durante o grupo focal foi a Pedagogia da alternância1 utilizada como um componente curricular do curso de Pedagogia das Águas: o “tempo-escola, tempo-comunidade”. Assim, quando estavam no tempo-escola/universidade, trabalhavam mais os conteúdos teóricos das disciplinas, planejavam as atividades seguintes e avaliavam as etapas anteriores. Durante o tempo-comunidade, realizavam as atividades teórico-práticas, nas comunidades de cada um, fosse com pesquisas sobre a própria realidade ou com o próprio trabalho nas escolas.
A gente vinha para campo, a gente fazia pesquisa, a gente chegava na Universidade e ia apresentar. Depois, o que a gente aprendia lá, a gente vinha praticar em sala de aula. Nessa época, estava bem novo. Eu lembro que, muitas das atividades trabalhadas lá eram pouco conhecidas para nós, mas lá nos passamos a conhecer melhor, e isso contribuiu com o nosso aprendizado e com o aprendizado das crianças (Miriam).
Vale ressaltar que as experiências de aprendizagem que aconteceram durante o curso, especialmente, as que articularam o tempo-escola/tempo-comunidade, mostraram-se significativas e ricas na construção de saberes e foi muito apreciada pelos alunos.
As entrevistadas destacaram como um aspecto importante do curso a possibilidade de fazê-las refletir sobre suas práticas que já vinham desenvolvendo:
Antes do curso de Pedagogia das Águas ainda era aquele método tradicional das carteiras enfileiradas uma atrás da outra; era nesse método que a gente trabalhava. Depois do curso, a minha aula passou a ter organização, eu passei a organizar a sala mais em círculo, a colocar o aluno para pesquisar mais. Às vezes peço que os alunos entrevistem o pai, tia, e esse aluno, quando traz o resultado para a sala, e quando apresenta lá na frente para todos, ele está se desenvolvendo (Miriam).
Sobre a formação para os sujeitos do campo, Fonseca e Medeiros (2006) defendem que formar para a vida e para a cidadania, na perspectiva da educação do campo, significa compreender que o currículo vai além dos conteúdos disciplinares, pois, são as diversas interações da vida do aluno. Sendo assim, é necessário atentar para o constante diálogo entre teoria e prática em diversos contextos socioculturais.
Esse relato deixa explícito o valor da prática como formadora da profissionalidade. As falas revelam aprendizagem e percepções mais significativas no aspecto que se refere à articulação dos conhecimentos científicos ensinados na academia, com os próprios saberes da experiência.
A partir dessa proposição, não seria utópico acreditar que o curso de Pedagogia das Águas conseguiu propiciar as mediações necessárias que foram capazes de produzir reflexões.
O curso de Pedagogia das Águas me fez compreender a questão: “que tipo de sujeito eu vou trabalhar”, porque eu estou trabalhando com crianças ribeirinhas. Antes eu já trabalhava, então entrei no curso de Pedagogia das Águas, eu comecei a mudar algumas coisas. Com aquele aluno das ilhas tem que ter uma metodologia diferente para trabalhar, porque não é da cidade. Eu tenho que saber escolher o conteúdo e saber como trabalhar aquele conteúdo, porque estou trabalhando com crianças ribeirinhas (Laura).
Os ricos relatos permitem repensar a formação docente, no caso específico da pesquisa, a formação ministrada por meio do curso de Pedagogia das Águas, pois, mesmo acreditando que os egressos têm o direito de escolher trabalhar no campo ou na cidade, existem os laços com o lugar onde se viveu e/ou se vive. Por isso, ao formar professores, das e para as ilhas, é necessário conhecer e considerar o contexto histórico, comunitário, e os projetos de vida desses sujeitos.
A formação no curso de Pedagogia das Águas foi uma experiência ímpar e que contribuiu para a reorganização desses olhares dos egressos, tanto no sentido de ver-se como um sujeito ribeirinho e não sentir vergonha disso, quanto no de reconhecer o aluno ribeirinho como um ser mergulhado em uma cultura própria, rica de significados que podem ser aproveitados no dia a dia da escola.
- O aprendizado de ser professor
Os relatos indicam que o aprendizado de “ser professora” aconteceu sobretudo na prática.
Na época, vieram para o Setor Campompema algumas vagas para trabalhar com Educação Infantil. O pessoal da minha comunidade, Vila Nogueira, sugeriu que eu trabalhasse com uma dessas vagas da Ed. Infantil. Então, eu já gostava, já brincava de ser professora, porém eu não tinha a prática de ensinar ninguém... eu fui adquirindo experiência em trabalhar com crianças e eu fui gostando cada vez mais, através da prática, eu aprendi a ser professora (Miriam).
Para as professoras entrevistadas os saberes adquiridos através da experiência constituem fundamentos da sua competência: Tem a teoria né, mas a prática é totalmente diferente (Rafa).
Os relatos também destacam a importância da troca de experiências para o aprendizado docente.
Eu fui estagiar na casa da Nazaré (risos), ela trabalhava com Ed. Infantil e ela me explicava tudo. Eu ia “pegando” essa pratica dela para mim; eu ia aprendendo com ela porque eu achava demais bonito como ela fazia aquela aula com aquelas crianças, e aí eu ia me “espelhando” nela (Vera).
Tanto o saber construído na experiência cotidiana, quanto a troca de experiências relatadas ratificam o seguinte fato: o ensino se desenvolve num contexto de múltiplas interações.
Segundo Tardif (2002), o docente atua em interação com outras pessoas. A atividade docente não é exercida sobre um objeto. Ela é realizada concretamente numa rede de interações em que o elemento humano é representado por símbolos, valores, sentimentos e atitudes.
Os relatos vão ao encontro do que Roldão (2005) entende como o processo de constituição da profissionalidade docente. Para que haja a construção da profissionalidade docente é necessário a prática, pois é em torno de uma situação educativa concreta que o professor mobiliza os conhecimentos científicos e metodológicos das ciências da educação.
Saberes necessários para trabalhar junto às comunidades ribeirinhas
Ao tratar dos saberes que envolvem a docência, discute-se também um aspecto fundamental que é a competência profissional.
Com relação aos saberes necessários para trabalhar junto às comunidades ribeirinhas, com alunos que estudam no campo, os relatos apontam que o professor precisa ter sensibilidade para lidar com aquela comunidade e saber valorizar os conhecimentos dos estudantes daquele local, fazendo a devida “ligação” entre o conhecimento científico e o empírico, valorizando a autoestima do aluno e ampliando os horizontes deles para o conhecimento que vai além do sensível, além do dia a dia; conhecimento esse que se encontra com a sistematização trazida pela Escola e amplia os horizontes e possibilidades acadêmicas desses alunos.
Um dia desses tivemos uma experiência com um professor lá na escola que desenvolveu os assuntos a partir do açaí. Aí a gente foi perceber o quanto essas crianças sabem. Eles sabem o valor da rasa2 do açaí, eles sabem o quanto o peconheiro ganha, eles sabem o quanto o pai ganha numa venda de açaí, quanto eles gastam para trazer para a cidade (Débora).
O relato nos mostra que embora os alunos ainda não tenham apreendido o conhecimento científico sobre estes conceitos, eles conhecem a realidade. Para trabalhar com essas populações o professor precisar fazer essas devidas articulações.
As entrevistadas destacaram o trabalho com “temas geradores”, como um importante método capaz de articular os conhecimentos científicos, com os saberes locais que o aluno possui. Porém, esse trabalho com o tema gerador não fica restrito ao “local”, mas há o movimento de universalizar este conhecimento para que o aluno do campo tenha propriedade e autonomia para escolher o caminho que deseja seguir. “Trabalhamos com o tema gerador, mas não ficamos só no local, temos que universalizar, porque quando os nossos alunos quiserem sair daqui... nós também teremos ensinado o universal para eles” (Vera).
As educadoras entrevistadas objetivam partir da realidade dos alunos para a sistematização dos conhecimentos e utilizam os temas geradores como forma de metodologia, o qual está fundamentado nos estudos do educador Paulo Freire (1993) e pautado na concepção dialética e na prática-teoria-prática como forma construir o fazer-pensar. Assim, demonstram o compromisso com a formação científica dos alunos, sem desconsiderar suas características próprias e sua condição sociocultural.
De acordo com as entrevistadas o saber necessário para trabalhar nas ilhas abrange as dimensões técnicas e ético-politicas. A dimensão técnica se refere ao domínio dos conteúdos necessários para atingir os objetivos de ensino. A dimensão ético-política está na preocupação em trabalhar com os temas geradores, não só em articular a teoria com a prática para facilitar o aprendizado, mas também em formar um aluno consciente da realidade e do lugar onde vive e se desenvolve.
Sacritán (1999) advoga o estabelecimento de bases morais para a profissionalidade docente, haja vista que a ação docente tem consequências ético-morais. Os saberes relacionados à docência não podem se restringir ao domínio de conteúdos disciplinares, porque são saberes que adquirem sentido em contextos socioculturais, fundamentados em valores socialmente definidos.
Assim, fica evidente a necessidade de mobilizar diversos saberes. As professoras entrevistadas demonstram se preocupar muito com valores e posturas pessoais, aliados a uma preocupação afetivo-formativa com o aluno do campo, como vemos no relato:
Eu acho assim: que uma linguagem que era muito usada nas ilhas “as crianças tinham que estudar para não ser como os pais”. Eu cheguei a ouvir isso de alguns professores: “que vocês se formem para que vocês não sejam iguais aos pais de vocês”. Hoje a gente muda esse discurso. Hoje na escola eu costumo dizer assim para os alunos, quando eles estão desinteressados: “vocês precisam estudar porque os pais de vocês vão precisar de vocês. Quem é que vai cuidar do açaizal de vocês? Quem é que vai ajudar o teu pai a cuidar do dinheiro? (Débora).
Dentro das dimensões da profissionalidade descritas por Contreras (2002), o autor aponta como competências profissionais complexas características utilizadas pelos docentes, como: afeto, sensibilidade e intuição. São elementos que podemos extrair das falas das entrevistadas.
- O que é específico do “Ser Professor”
Entendemos que o conceito de profissionalidade docente é entendido como aquilo que “é específico na acção docente, isto é, o conjunto de comportamentos, conhecimentos, destrezas, atitudes e valores que constituem a especificidade de ser professor” (SACRISTÁN, 1999, p.64).
Pesquisar como egressos do curso de Pedagogia constroem sua profissionalidade docente, no contexto de educação rural ribeirinha amazônica, indica-nos que, mesmo que as entrevistadas não conheçam o conceito de profissionalidade, a prática e a significância dele como tal, é constantemente retomada e reelaborada. É possível constatar tal situação no depoimento abaixo:
O professor é aquele que vai formar aquele cidadão para o mundo e para as outras profissões que o cidadão queira exercer; é a base. Saber que tenho que preparar aquele aluno para o mundo e para exercer qualquer profissão que ele quiser seja médico, engenheiro, pescador ou advogado, é saber que você não está preparando a criança para ser um mero profissional, mas também um ser humano de valores. A questão mesmo da formação como ser humano e cidadão (Rafa).
Nesse sentido, a profissionalidade vai além do trabalho de ensinar, já que também engloba os valores e as intensões que se almejam na profissão (CONTRERAS, 2002). Pelo que se interpreta deste depoimento acima, a função docente se define pelas necessidades sociais, a que o sistema educativo deve dar resposta.
Chakur (2001, p. 29-30), identifica traços característicos do “ser professor”, os quais são nomeados pela autora de aspectos integrantes da profissionalidade docente: “competência em habilidades técnico-pedagógicas, competência em habilidades psicopedagógicas, responsabilidade social, compromentimento político, engajamento na rotina institucional e investimento na própria formação”.
De acordo com os relatos das entrevistadas consegue-se perceber a constituição da profissionalidade docente em todos esses aspectos identificados por Chakur (2001, p.29-30). A competência técnico-pedagógicas, que, segundo a autora, se resume basicamente nas tarefas de: “definir objetivos, organizar conteúdos, eleger procedimentos, selecionar materiais e recursos didáticos, planejar atividades para os alunos”. Identifica-se as tarefas na fala de Lia:
Antes a gente trabalhava apenas com livros. Se viesse morango no livro a gente trabalhava morango, mas só no livro, porque aqui não tem morango. Os alunos de onde eu trabalho plantam o açaí, o jambu, a banana, então, depois do curso de Pedagogia a gente começou a trocar por frutas locais. Antes, só trabalhávamos com livros da SEMEC/Secretaria Municipal de Educação.
A entrevistada demonstra a preocupação em organizar conteúdos e selecionar materiais e recursos didáticos que estão relacionados à localidade dos alunos. Há um cuidado maior na seleção dos métodos e procedimentos de ensino visando aproximar o conteúdo escolar da realidade do aluno.
O segundo aspecto da profissionalidade denominada por Chakur (2001), a competência em habilidades psicopedagógicas, exigida geralmente da relação professor-aluno, mostra-se na fala da entrevistada:
Você chega na sala de aula e se depara com aluno que já conhece as letras e com outros alunos que nem conhece as letras; um que senta para escutar a gente, outro que só corre; outro que bate no coleguinha. São muitas dificuldades, além do serviço público não atender a gente. (Débora).
A competência em habilidades psicopedagógicas da professora aparece no esforço para trabalhar com personalidades e comportamentos diversos, e com conflitos presentes na dinâmica da sala de aula.
O terceiro traço característico do “ser professor” que Chakur (2001) entende como integrante da profissionalidade docente é a responsabilidade social, expressa no relato da professora entrevistada:
Pense no caso dos meninos do Campompema, depois que eles entraram no Ensino Médio, eles começaram a fazer uma rabeta melhor, eles aprenderam cálculo e começaram a aplicar isso na fabricação da rabeta. Então, eles conseguiram fazer uma rabeta que corre mais, que economiza mais combustível e utiliza menos madeira; eles aprenderam que a educação deve ser sim usada para o campo e o campo pode sim ser desenvolvido com a Educação (Alice).
A responsabilidade social da entrevistada manifesta-se na preocupação com o preparo das novas gerações para o comprometimento social e também ambiental dos sujeitos. A professora destaca uma forma de aplicação dos conteúdos escolares, pelos alunos, na realidade vivida por eles. Com isso todos saem ganhando: a comunidade, o meio ambiente, os alunos e o campo, que passa a ser utilizado de forma responsável, o que possibilita o seu desenvolvimento.
Charkur (2001) também destaca como um traço característico da profissionalidade docente o investimento na própria formação. Sobre esse aspecto, das dez professoras entrevistadas, quatro já concluíram a especialização e duas começaram a cursar especialização em agosto de 2017. Além disso, as professoras destacam o compromisso de participar de programas de formação continuada como o PACTO e o Pro-letramento, como importantes momentos de aprendizados, trocas de experiências que contribuem significativamente para a construção da profissionalidade de cada uma delas e, consequentemente, para a melhoria do quadro geral da escola: “na Escola do Campompema, depois que saímos da universidade, aliado aos cursos que fizemos (Pacto, Pro-Letramento), conseguimos melhorar muito o IDEB da Escola” (Nadia).
CONSIDERAÇÕES PROVISÓRIAS
Com este estudo inicial, percebe-se que a investigação da temática tem possibilitado identificar um percurso de pesquisa relacionado à profissionalidade, desenvolvido com características próprias, mas em compasso com uma tendência nacional, no âmbito das pesquisas sobre ensino e formação docente. Os resultados iniciais da investigação mostram o lugar ocupado pelos saberes da formação acadêmica e dos saberes construídos na prática profissional e, mais importante é quando os dois se articulam sem um se sobrepor ao outro.
Os relatos apontam que o processo formativo no curso de Pedagogia das Águas foi importante para que os egressos pudessem se reconhecer como sujeitos ribeirinhos e, assim, sentirem-se valorizados como tal. Consequentemente, essa valorização da cultura, do lugar, do saber e do ser ribeirinho transborda na sala de aula, por meio da seleção de conteúdos, por meio da valorização da experiência de comunidade do aluno que é filho de pescador, que é filho de quem trabalha com a coleta do açaí, que é filho de quem trabalha com a plantação do jambu, por exemplo. São aspectos da prática docente que as professoras que participaram da pesquisa já ouviam falar, contudo foi durante o curso que conheceram mais profundamente, ao cursarem as disciplinas e ao trabalharem esses conteúdos de acordo com a metodologia do tempo-escola/tempo-comunidade.
Diante disso, os resultados iniciais indicam que as professoras estão em processo de constituição da profissionalidade, já que é construída desde a formação inicial e ao longo da atividade profissional, mas precisa ser administrada pelo docente, para que ele possa construir seus saberes e seu saber-fazer de acordo com o contexto sociocultural em que está inserido (ROLDÃO, 2005).
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