Revista: CCCSS Contribuciones a las Ciencias Sociales
ISSN: 1988-7833


DIREITO À CIDADE: UMA DISCUSSÃO SOBRE O CONCEITO E ALTERNATIVAS PRÁTICAS PARA O PLANEJAMENTO URBANO NO BRASIL

Autores e infomación del artículo

Luiz Henrique Rubens Pastore Alves de Oliveira*

Instituto Federal do Paraná, Brasil

luiz.deoliveira@ifpr.edu.br


RESUMO

O presente artigo se propõe como uma discussão teórica, a partir de uma revisão bibliográfica, sobre o conceito de “direito à cidade” criado por Henri Lefebvre e suas possibilidades de aplicação prática no planejamento urbano brasileiro. Caracteriza-se a cidade capitalista como uma cidade em crise, uma vez que se encontra em contradição seu valor de uso e seu valor de troca. A partir disso, entende-se o direito à cidade enquanto um direito fundamental, uma vez que diz respeito à possibilidade de transformação e criação de um espaço mais igualitário.  Assim, destacam-se algumas estratégias para retomar o valor de uso da cidade como: a criação de espaços de discussão para os conflitos urbanos; a aproximação do discurso do planejamento urbano à realidade brasileira; repensar a efetividade do Plano Diretor; e principalmente a gestão social da valorização da terra, para recuperar a valorização coletiva das propriedades privadas e determinar usos coletivos das mesmas.

Palavras chave: direito à cidade; planejamento urbano; função social da propriedade; valor de uso; instrumentos legais;

ABSTRACT

This paper is presented as a theoretical discussion about the concept of “the right to the city” created by Henri Lefebvre and its possibilities of practical use in Brazilian urban planning initiatives. The capitalist city is a city in crises, due to its contradiction between its use and exchange value.  The right to the city is understood as a fundamental right due to its possibility o radical transformation and creation of egalitarian space. Therefore, some strategies are highlighted to reclaim the use value of the city, as follows: the creation of discussion spaces for urban conflicts; the approximation of urban planning to the Brazilian reality; the analysis of the effectiveness of Master Plans; and specially the social management of land valuing, to recover collective value incorporated in private properties and determine collective uses for urban lands.   

Key-words: the right to the city; urban planning; social function of property; use value; legal instruments;


Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:

Luiz Henrique Rubens Pastore Alves de Oliveira (2018): “Direito à cidade: uma discussão sobre o conceito e alternativas práticas para o planejamento urbano no Brasil”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/04/planejamento-urbano-brasil.html

//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1804planejamento-urbano-brasil

  1. INTRODUÇÃO

O presente artigo1 propõe-se como uma discussão teórica por meio de uma revisão bibliográfica, sobre o conceito de direito à cidade, a negação deste direito dentro da lógica de produção capitalista e algumas estratégias de legitimação do mesmo, no que diz respeitos aos mecanismos legais disponíveis atualmente no Brasil.
Primeiramente é feita uma discussão sobre a produção da cidade capitalista, com enfoque na atuação da especulação imobiliária, os agentes de produção do espaço urbano e as consequentes segregações e exclusões sócio-espaciais. Entende-se que essa cidade existe em uma constante contradição entre o seu valor de uso, inerente a ela, e seu valor de troca, atribuído por meio da lógica capitalista, o que caracteriza o que Lefebvre (2001) chama de “crise da cidade”.
Posteriormente desenvolve-se uma reflexão sobre o conceito de direito à cidade, desenvolvido por Henri Lefebvre, em diálogo com autores que pensam o planejamento urbano, como Ermínia Maricato, Peter Marcuse e Ana Fani Alessandri Carlos. Através deste diálogo é possível entender a cidade enquanto um espaço onde a luta política acontece, não como um receptáculo, mas como protagonista na pressão social por sua transformação.
Por último faremos o levantamento de algumas iniciativas de luta pelo direito à cidade, com destaque para instrumentos legais que em certa medida recuperam a função social da propriedade (garantida na constituição brasileira), enquanto possibilidades de pressão social por uma cidade mais igualitária, como a Contribuição de Melhoria, a Outorga Onerosa do Direito de Construir, a Transferência do Direito de Construir e as Operações Urbanas Consorciadas.

  1. A CRISE DA CIDADE

Para entender a cidade se faz necessário entender o espaço geográfico: uma produção humana contínua, resultante do processo de desenvolvimento da sociedade, onde o homem ao produzir a sua existência, produz e reproduz também o espaço geográfico.  Logo, este é uma criação histórica, resultado da transformação da natureza pelo homem (o trabalho), sendo então impossível dissociá-lo da sociedade. 
O espaço geográfico, para Carlos (2007):

“[...]é condição e meio do processo de reprodução da sociedade, podendo ser sintetizado como produto, num dado momento, do estado da sociedade, portanto, um produto histórico; é o resultado da atividade de uma série de gerações que através de seu trabalho acumulado têm agido sobre ele, modificando-o, transformando-o, humanizando-o, tornando-o um produto cada vez mais distanciado do meio natural.” (Carlos, 2007: 32).

A cidade é um desses produtos da construção histórica da sociedade, (re)construída a partir das relações entre os grupos e as instituições que a compõe. Segundo Lefebvre (2001), ela possui uma especificidade, pois é uma obra bela, muito próxima da obra de arte. Sua produção e relações sociais pressupõem a produção e reprodução dos seres humanos por seres humanos, condição que vai muito além da produção de objetos. Para este autor, por a cidade ser uma obra e, portanto, possuir valor de uso, ela contrasta com o dinheiro, com o capital, com as mercadorias em si. Portanto o uso principal das cidades é “a Festa (que consome improdutivamente, sem nenhuma outra vantagem além do prazer e do prestígio, enormes riquezas em objetos e dinheiro)” (Lefebvre, 2001: 12).
De acordo com Villaça (2012), o este valor de uso é a propriedade/capacidade que o espaço urbano tem de relacionar entre si seus diferentes elementos e isso é uma construção social, ou seja, é produto das relações sociais que extrapolam os limites das terras e das propriedades privadas.
Entretanto, com a industrialização e o surgimento das cidades industriais (ou capitalistas) houve a substituição da criação de obras e suas relações sociais pela criação de meros produtos dotados de um valor de troca, em detrimento do valor de uso (Lefebvre, 2001).
Para Villaça (2012), o valor da terra é constituído de quatro partes, quais sejam:

  1. renda do uso da terra matéria;
  2. juro e amortização do capital investido na e sobre a propriedade (que não varia de acordo com a localização “pura”);
  3. juro e amortização da “terra-localização” enquanto capital socialmente construído (renda que advém de alguma atividade realizada no terreno seja ela produtiva ou não), e;
  4. a valorização da terra, ou seja, a renda que é apropriada do trabalho socialmente construído;

Além disso, o autor acrescenta que o preço da “terra-localização” tem um componente ligado à característica única de determinados terrenos e imóveis, o que lhe confere um status de monopólio.
A partir disso o autor conclui que a maior parte do preço da terra se encontra na expressão monetária do tempo de trabalho socialmente necessário para a construção daquele espaço, além do valor dado ao monopólio, que são expectativas criadas pela sociedade em si e acabam por ser apropriadas por uma pequena parcela da população. Isso permite entender a transformação da terra, do solo urbano, em mercadoria, característica fundamental para entender a produção do espaço urbano e a reprodução do sistema capitalista.
Para Smolka (1979) devido à sua singularidade, o terreno urbano se configura como um “meio de produção necessário e não reproduzível” (Smolka, 1979: 6) que tem seu valor fixado exteridnte a ele e produz uma sinergia urbana, na qual outros terrenos no seu entorno também se tornam mais valorizados.
O autor Sávio Miele (2008) analizando a metrópole paulista evidencia que atualmente as transformações mais gerais do capitalismo, notadamente a reestruturação da indústria e a financeirização do capital, se concretiza materialmente na (re)produção do espaço urbano, através da interligação entre o setor financeiro e o imobiliário na atual reestruturação imobiliária, na qual o espaço urbano passa a ser condição para a reprodução do capital.
Entretanto, Lefebvre reforça que a cidade e a realidade urbana se desenvolvem em constante contradição entre este valor de troca e seu valor de uso. De acordo com o autor, o valor de troca tende a destruir a cidade e a realidade urbana por generalizá-la enquanto mercadoria, tornando-a apenas refúgio do valor de uso (Lefebvre, 2001: 14).
Dessa maneira há conflito entre o valor de troca e valor de uso, da acumulação de capital e do investimento improdutivo, tornando-a um “lugar de consumo e consumo do lugar” (Lefebvre, 2001: 20). Portanto, vivencia-se a “crise da cidade” em escala mundial, na teoria e na prática, pois a cidade mantém sua imagem emprestada das cidades pré-capitalistas (valor de uso), mas está simultaneamente sendo submetida à lógica do capital (valor de troca). Entretanto o núcleo urbano não dá lugar a uma nova realidade, ele se mantém “transbordando, frequentemente deteriorado, às vezes apodrecendo, o núcleo urbano não desaparece” (Lefebvre, 2001: 21).
A crise da cidade se caracteriza por uma crise da racionalidade (estatal, burocrática, econômica) e muitas vezes das instituições urbanas (Lefebvre, 2001). Como um exemplo desta crise de racionalidade podemos citar a afirmação da autora Erminia Maricato (2000) sobre o planejamento urbano no Brasil sempre ter sido deslocado de sua realidade socioambiental.
A autora argumenta que a cidade informal é considerada ilegal, portanto não cabe na lógica do planejamento urbano ou na do mercado imobiliário e nem mesmo dos órgãos de planejamento e estatística, o que caracteriza a ineficiência do Estado em realizar um planejamento tendo por base a realidade urbana brasileira, por estar sempre atrelado a interesses de grupos específicos e seguindo ideias transplantadas de outros países.
Uma outra característica do que se evidencia neste modelo que a autora chama de “matriz postiça” (Maricato, 2000: 136), é a existência de dois planos, o do discurso e o da prática, na qual o primeiro envolve os direitos universais e a normatividade cidadã, mas que na realidade se pratica a discriminação, a desigualdade e a cooptação (inclusive na aplicação de leis).        
Para ela, a urbanização brasileira apresenta algumas características marcantes, quais sejam:

  1. O custo da reprodução da mão de obra não inclui o valor de habitação, assim, não há a possibilidade da compra formal de moradias. Isso leva a invasão de terras urbanas que é uma característica estrutural na urbanização brasileira, que é institucionalizada pelo mercado imobiliário excludente e a ausência de políticas sociais;
  2. Os investimentos públicos favorecem a especulação imobiliária (como por exemplos os investimentos viários, que são, na verdade, investimentos imobiliários), incluindo o sistema de créditos;
  3. A legislação é ambígua e sua aplicação é arbitrária, uma vez que a ocupação irregular é tolerada pelo poder público, mas não em qualquer lugar, o que caracteriza um direito á invasão, mas não um direito à cidade. Por isso não se impõe a lógica judicial, mas sim a do capital.

Como consequências dessa urbanização a autora cita a predação ambiental devido ao crescimento espontâneo, a violência urbana e o aumento da concentração de renda e da desigualdade, uma vez que além de privilegiar uma parte da população ela tem o papel de gerar e captar renda imobiliária.
Esse espaço multifacetado e fracionado, a cidade, é então produzido desta maneira: enquanto construção humana traz características da sociedade, que por ser pautada pelas leis do capital e apoiada pelo Estado na reprodução deste sistema, produz e reproduz um espaço também hierarquizado e desigual. É o que salienta Carlos (2007) ao falar das cidades brasileiras quando diz que “o espaço urbano se reproduz, reproduzindo a segregação, fruto do privilégio conferido a uma parcela da sociedade brasileira.” (Carlos, 2007: 83)
Segundo Corrêa os atores sociais responsáveis pela produção do espaço urbano têm em comum a apropriação da renda da terra, que reproduz as relações de produção capitalista, servindo sempre ao interesse de um agente dominante, o que proporciona o surgimento de conflitos, sendo eles:

  1. Os proprietários dos meios de produção: os grandes industriais são grandes consumidores de espaço, necessitam de grande espaço físico e infra-estrutura para transporte. Portanto, a especulação fundiária não interessa a este grupo, pois o aumento do preço da terra dificulta sua expansão e incide também nos salários de seus trabalhadores. Daí o conflito com os proprietários fundiários, que têm como principal interesse a elevação do preço da terra. Estes conflitos tendem a ser solucionados pelo Estado a favor dos proprietários dos meios de produção, que são quem comandam a vida econômica e política.
  2.  Os proprietários fundiários: estão interessados principalmente do valor de troca e não no valor de uso da terra, fazendo com pressão junto ao Estado, principalmente no nível da municipalidade (pois influi nas leis de uso do solo e zoneamentos), para elevação dos valores de suas propriedades, principalmente com o investimento público em infra-estrutura. Essa valorização não beneficia igualmente todos os especuladores imobiliários, uma vez que uns são mais poderosos que outros. O principal interesse desse grupo é a transformação de áreas rurais em áreas urbanas devido ao valor mais elevado desta última. A expansão da área urbana vai depender de características que permitem uma maior ou menor valorização fundiária: como a estrutura agrária da região (áreas alagadas ou uma área propícia a loteamentos); das características ecológicas do lugar (proximidade do mar, etc.); da existência de infra-estrutura para circulação; e do tipo de uso a que se destina esse solo urbano, podendo ser uma urbanização popular ou de status, que garante uma centralidade social a esta última, mesmo sendo espacialmente/fisicamente periférica, enquanto a primeira são destinados poucos investimentos em infra-estrutura, criando loteamentos populares na periferia urbana.
  3. Os promotores imobiliários: agentes que realizam parcial ou completamente a incorporação, o financiamento, o estudo técnico, a construção e a comercialização do imóvel. Seu principal interesse é criar residências de elevado padrão para a parcela da população que pode pagar por estes tipos de imóveis. Secundariamente, obter ajuda estatal para que permita a construção de moradias populares como crédito aos futuros moradores. A construção desse tipo de habitação é de interesse do Estado por ter um papel fundamental, - ajuda a amortecer as crises cíclicas da economia através do investimento de capital e criação empregos. A criação, manutenção e transformação de bairros nobres são feitas de acordo com os interesses dos promotores imobiliários, se valendo da propaganda para exaltar os atrativos dos bairros. Essa atuação ocorre de maneira desigual e promove no espaço a segregação residencial.
  4. O Estado: sua atuação é complexa e variável, refletindo a dinâmica da sociedade. Entretanto, seu papel principal se dá na implantação de serviços públicos e elaboração de leis de uso do solo. Sua ação é caracterizada pelos conflitos entre as classes da sociedade, tendendo a privilegiar as que estão no poder no momento e desta maneira cria mecanismos que levam à criação e ratificação da segregação residencial. A ação do Estado se dá em três níveis: federal, estadual e municipal. O último, de maior poder sobre o espaço urbano, encobre os interesses das elites locais que atuam intensamente nos setores fundiários e imobiliários.
  5. Os grupos sociais excluídos: classes desfavorecidas têm menor acesso a bens e serviços, sem direito à moradia e “outros sintomas de exclusão” (Corrêa, 2002: 29) como subnutrição, desemprego e doenças. Esses grupos podem ocupar cortiços densamente povoados no centro da cidade, produzir casas através da autoconstrução em loteamentos periféricos ou morar em conjuntos habitacionais criados pelo Estado também na periferia. Entretanto, nenhuma dessas três formas faz da população um agente modelador do espaço urbano; apenas nas favelas os grupos sociais excluídos produzem seu próprio espaço, independente de outros agentes.  Essa produção do espaço é “antes de mais nada, uma forma de resistência e ao mesmo tempo, uma estratégia de sobrevivência”, assim “trata-se de uma apropriação de fato”. (Corrêa, 2002:  30)

Para Smolka (1979), a escassez de solo urbano é uma criação dos proprietários fundiários, na qual a terra é privilegiada enquanto reserva de valor. Além disso, há que se considerar o potencial de valorização do terreno com o tempo, especialmente em relação aos investimentos públicos e privados em modificações do ambiente construído que geram vantagens locacionais para os lotes urbanos.
Segundo o autor, para além das implicações do capital industrial, a atuação das incorporadoras faz com que o objeto de negociação de um terreno passe a ser o seu valor de troca (de acordo com sua valorização futura) e não o seu valor de uso, gerando lucro baseado nesta mercadoria produzida. Isso acontece através tanto da criação de rendas diferenciais antes inexistentes, quanto na homogeneização de espaços em áreas periféricas.
Carlos (2007) argumenta que no capitalismo a apropriação do espaço é legitimada juridicamente pela propriedade privada, logo, a cidade é apropriada de forma desigual pelos indivíduos. Desta maneira “a diferenciação dos usos será a manifestação espacial da divisão técnica e social do trabalho, num determinado momento histórico.” (Carlos, 2007: 81). A diferença pode ser percebida não apenas na forma de morar, mas principalmente no cotidiano das pessoas, no tempo gasto no trajeto casa-trabalho, no acesso à infra-estrutura e no lazer, por exemplo.
Apesar desta mudança de valores provocada pelo capital, segundo Lefebvre o urbano não desaparece, ele se intensifica em comunhão com as relações sociais, tornando-as mais complexas. Os habitantes procuram, mesmo que em pequeno grau, retomar os encontros, o uso dos lugares, dos monumentos, fazendo dali um refúgio do valor de uso:
Ao mesmo tempo que lugar de encontro, convergência das comunicações e das informações, o urbano se torna aquilo que ele sempre foi: lugar do desejo, desequilíbrio permanente, sede da dissolução das normalidades e coações, momento do lúdico e do imprevisível(Lefebvre, 2001: 85).

Carlos (2007) argumenta que a cidade se reproduz em uma lógica contraditória de eliminação dos espaços públicos devido aos processos de valorização do capital, mas ao mesmo tempo de resistência dos mesmos para o encontro e reencontro de pessoas, de apropriação desses espaços.
Assim, é possível entender a (re)produção do espaço urbano da metrópole capitalista enquanto um processo contraditório, no qual existe a insistente pressão para a supressão dos espaços públicos e da vida comunitária, ao mesmo tempo em que a própria cidade é os espaço primordial do encontro, da diversidade, da vida política.

  1. O DIREITO À CIDADE

Segundo Lefebvre (2001), a vida comunitária da cidade, herdada da aldeia, pressupõe uma organização que proporciona e estimula a luta de classes, mas que não impede o apego à cidade nem seu embelezamento. A luta de classes reforça o sentimento de pertencer, fazendo com que esses grupos disputem o amor pela cidade, tendo ela como arena.
Sob a mesma perspectiva Harvey (2008) questiona se os resultados destes conflitos são criativos ou destrutivos, e ao citar as tradições musicais de Nova Orleans, Joanesburgo e no East End de Londres conclui dizendo que “a cidade tem sido por muito tempo um epicentro de criatividade destrutiva”(Harvey, 2008: 13).
Para Carlos (2007), o espaço urbano se produz historicamente com estratégias espaciais diferentes: de um lado a lógica capitalista que o produz como capital fixo (de acordo com as necessidades da reprodução do capital) e do outro a lógica da sociedade que o produz como meio de consumo coletivo. Dessa forma o espaço produzido não pode ser neutro, ele é construído politicamente, seja a partir de elementos naturais ou de elementos históricos (Carlos, 2007: 84).
A estratégia capitalista mencionada é o que Lefebvre (2001) chama de prática analítica, uma ideologia, uma estratégia de classe apoiada pelo Estado, que visa, mesmo que inconscientemente, a segregação. Para o autor, as segregações destroem morfologicamente a cidade a nível local, mas as forças que as produzem são poderosas, globais, pois tem um caráter unitário, organizador, planificado e são aplicadas através da lógica de mercado, do consumo, da ação do Estado. Por isso, ao mesmo tempo em que segrega, essa prática é também integrativa, pois tem como objetivo inserir as classes, principalmente a operária, na ideologia do consumo. “Que resulta disso? Sem nenhuma dúvida, fenômenos paradoxais de integração desintegrante que incidem especialmente sobre a realidade urbana” (Lefebvre, 2001: 103)
Entretanto a sociedade urbana só é possível a partir da simultaneidade e do encontro de tudo que se está separado, disperso, dissociado, segregado. Os fragmentos (os sexos, as classes, as etnias) estão aos nossos olhos, mas ausentes, num estado virtual. Por isso:

O urbano é a obsessão daqueles que vivem na carência, na pobreza, na frustração dos possíveis que permanecem como sendo apenas possíveis. Assim, a integração e a participação são a obsessão dos não-participantes dos não-integrados, daqueles que sobrevivem entre os fragmentos da sociedade possível e das ruínas do passado: excluídos da cidade, às portas do ‘urbano’. (Lefebvre, 2001: 102)

É devido a essa virtualidade, essa segregação, essa vontade de integração, que se torna fundamental pensar em uma cidade mais inclusiva, somente desta maneira é possível produzir um novo urbano. Por exemplo, para Harvey (2008) os direitos dos cidadãos enquanto indivíduos, como o de liberdade e de ser tratado com dignidade, são preciosos, mas é necessário também garantir o direito de todos à “adequadas chances de vida, direito ao suporte material elementar, à inclusão e à diferença” (Harvey, 2008: 16).
Carlos (2007) argumenta que a desvalorização e desumanização do homem são causadas pela coisificação das relações sociais e que esta contradição produz a necessidade de sua superação através de formas de luta. Dessa maneira, uma cidade livre só pode existir a partir de uma condição: a de homens livres. Então, se a cidade é condição, meio e produto das relações da própria sociedade, só é possível transformá-la a partir do momento que conseguirmos transformar o processo de humanização, de constituição do humano.
A partir disso é que Lefebvre (2001) desenvolve a ideia de direito à cidade, que não é simplesmente permitir o uso da cidade, mas sim fazer o que ele chama de “síntese do urbano”, ou seja, pensar em uma cidade diferente, de transformar as relações entre a sociedade e, consequentemente, a realidade urbana. Ele ressalta que lutar por este direito não é retornar às cidades tradicionais, mas sim de transformação e renovação da vida urbana. Assim:
Trata-se de uma superação pela e na prática: trata-se de uma mudança de prática social. O valor de uso, subordinado ao valor de troca durante séculos, pode retomar o primeiro plano, pela e na sociedade urbana, partindo dessa realidade que ainda resiste e que conserva a imagem do valor de uso, a própria cidade (Lefebvre, 2001: 135).

Para Lefebvre (2001) essa mudança, a construção dessa nova cidade, o poder da síntese, só pode ser feito pelo homem político, sendo essa força política vinda das forças sociais, as classes. Segundo ele somente a classe operária pode realizar essas trasnformações, pois cabe a ela mostrar as suas necessidades sociais, coletivas e reivindicar a obra futura. De acordo com ele, quando o proletariado se cala a segregação continua, com o poder de desarticular, de impedir os protestos, contestações e ações, mantendo assim um ciclo vicioso (Lefebvre, 2001).
Para o autor, esta síntese não é efetiva, é uma convergência de elementos que desenha, através da teoria, um horizonte alcançável através de avanços e pulos sucessivos e escalonados.
Por isso a cidade é em si o espaço onde essa luta acontece e, enquanto produto das relações humanas, ela não é apenas o palco, mas também protagonista desta busca da sociedade por uma cidade diferente, transformada. Ao mesmo tempo em que a lógica capitalista tenta negar o direito à cidade para a sociedade, contraditoriamente é na cidade que é possível o encontro, o reconhecimento das causas, a identificação com outras pessoas e grupos e a consciência da sua situação, daí sua potencialidade de transformação. De maneira mais conclusiva Lefebvre (2001) afirma:
O direito à cidade se manifesta como direito superior aos direitos: direito à liberdade, à individualização na socialização, ao habitat e ao habitar. O direito à obra (à atividade participante) e o direito à apropriação (bem distinto do direito à propriedade) estão implicados no direito à cidade. (Lefebvre, 2001: 134)

Em uma contextualização da luta pelo direito à cidade na atualidade Peter Marcuse (2009) discorre sobre qual direito, de quem, e a qual cidade. Para ele há uma convergência de grupos, alianças e movimentos que enxergam o capitalismo como um inimigo em comum e o direito à cidade uma causa em comum. Este direito se trata de uma reivindicação moral fundada em princípios fundamentais de justiça, ética, moralidade, virtude e bem e que não se restringe ao direito de acesso a espaços públicos, à informação e transparência goveridntal, ao acesso ao centro da cidade ou à certos serviços. Trata-se do direito à uma totalidade, uma complexidade, de produzir uma nova cidade não necessariamente como a que conhecemos. Entretanto, seguindo os princípios de Lefebvre, ela não tem como ser prevista em detalhe, ela deve ser pensada como o contrário do que se está estabelecido (Marcuse, 2009).
A seguir são sugeridas algumas possibilidades de luta pelo direito à cidade levantada por alguns teóricos, com destaque para a legitimação da função social da propriedade. Entende-se que a função social da propriedade garantida na Constituição Federal de 1988, é um importante instrumento na luta por uma cidade mais igualitária, podendo se caracterizar como um dos pulos sucessivos em direção a uma cidade radicalmente diferente (como idealizou Lefebvre).
Assim como Marcuse (2009) cita a necessidade de encarar os conflitos relacionados aos direitos nas cidades, Maricato (2000) argumenta sobre a necessidade de não abafar os conflitos, mas sim abrir espaço para o exercício da democracia. Além disso, é necessário também desconstruir a representação ideológica da cidade para poder entender a realidade urbana brasileira e reverter a atual lógica de produção do espaço urbano.
A autora sugere também algumas propostas alternativas para o planejamento e a gestão urbana, sendo possível destacar:

  1. Necessidade de relacionar o conhecimento teórico e empírico do universo urbano para confrontar a exclusão;
  2. Relembrar as experiências realizadas para evitar repetir erros;
  3. Revisar as ideias que vêm do exterior;
  4. Repensar os instrumentos urbanísticos que possuímos, como o Plano Diretor;
  5. Discriminação de terras públicas;
  6. Priorização de instrumentos legais que busquem o controle sobre a propriedade fundiária e imobiliária visando sua função social.

Em relação a este último tópico a autora Fernanda Furtado (2007) discorre sobre alguns dos diversos instrumentos para a gestão social da valorização da terra, através da recuperação de mais-valias fundiárias2 geradas pela coletividade que são apropriadas por proprietários e/ou promotores imobiliários. A autora procura extrapolar a ideia de utilização apenas da Contribuição de Melhoria como instrumento para a gestão social da valorização da terra, apresentando alguns outros elementos e ressaltando a importância de utilização conjunta dos mesmos.
Primeiramente a autora considera que a Contribuição de Melhoria é um tributo facilmente utilizado em administrações municipais, porém de maneira geral é pouco utilizado efetivamente e possui limitações quanto ao recurso disponível, ao valor recuperado, à rejeição cultural e também em não trazer a discussão da prévia distribuição dos recursos públicos. Posteriormente a autora apresenta os seguintes instrumentos presentes no Estatuto da Cidade e suas aplicações para a gestão social:

  1. Outorga onerosa do direito de construir (OODC): instrumento que estabelece coeficientes de aproveitamento básico que devem ser delimitados de acordo com a infraestrutura existente, reconhecendo diferentes potencialidades, além de prever coeficientes sociais ou isenções do pagamento da outorga. Os recursos provenientes da outorga devem ser destinados a um Fundo Municipal e sua aplicação voltada para a transferência socioespacial de renda em áreas de urbanização inadequada. Dessa forma uma parte da expectativa incluída no preço dos terrenos é destinada a interesses públicos.
  2. Transferência do direito de construir (TDC): este instrumento autoriza a transferência do direito de construir para imóveis com uso destinado a equipamentos urbanos ou comunitários, quando for objeto de preservação ou quando estiver destinado à população de baixa renda. A sua utilização requer o cuidado do poder público em determinar as proporções e os usos das áreas públicas e de interesse social a serem incluídas.
  3. Operações urbanas consorciadas (OUC): prevê o pagamento de contrapartidas pela utilização de benefícios que estejam previstos em uma OUC, como alterações nas normas de edificação em determinada área. Isso se aplica a áreas de transformação urbanística estrutural, melhorias sociais e valorização ambiental e a destinação do fundo devem ser orientadas para iniciativas sociais.

Segundo a autora, a partir da utilização conjunta desses instrumentos por parte do poder público (levando sempre em consideração seus potenciais e limitações), os incrementos de renda provenientes da valorização do solo urbano podem ser utilizados em benefício da população como um todo e reverter o histórico processo de exclusão presente na urbanização, garantindo assim a função social da propriedade, prevista na Constituição Federal de 1988.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir do que foi exposto neste trabalho, é possível entender como a cidade enquanto construção histórica, quando tomada pela lógica capitalista, transforma a sua capacidade de ter um valo de uso em mercadoria, ou seja, passa a ter um valor de troca. Para além disso, o solo urbano passa a ter reserva de valor, que é construída em grande parte através de externalidades coletivas, porém apropriadas de maneira particular especialmente por proprietários de imóveis.
Na atual conjuntura do capitalismo global o espaço urbano passa a ser condição para a acumulação de capital, através da interdependência entre o capital financeiro e imobiliário, o que altera a realidade percebida na vida cotidiana dos cidadãos. 
Apesar da mercantilização do solo urbano, o valor de uso continua existindo através da apropriação dos espaços urbanos, caracterizando o que Lefebvre chama de crise da cidade. A força da lógica capitalista está diretamente ligada às classes dirigentes, construindo um espaço desigual, fragmentado e segregado, ao mesmo tempo em que a cidade é o local de encontro, de convergência de pessoas, grupos e ideias.
Por isso há a necessidade latente de realizar a chamada “síntese do urbano” (Lefebvre, 2001) na qual a cidade seja palco e agente de suas transformações, tão desejadas para a maioria das pessoas que nela vivem.
A partir disso, destacam-se alguns instrumentos que podem auxiliar na luta pelo direito à cidade enquanto uma busca sucessiva e permanente, contrários ao que é estabelecido pelo sistema capitalista, como sugere Lefebvre. De acordo com os autores pesquisados podemos citar como estratégias: a criação de espaços de discussão para os conflitos urbanos; a desconstrução do discurso do planejamento urbano e aproximação do mesmo à realidade empírica brasileira; repensar a utilização do Plano Diretor como norteador para políticas públicas; e principalmente a gestão social da valorização da terra, com o objetivo de recuperar a valorização coletiva das propriedades privadas e determinar usos coletivos para as mesmas, através de instrumentos legais como a Contribuição de Melhoria, a Outorga Onerosa do Direito de Construir, a Transferência do Direito de Construir e as Operações Urbanas Consorciadas.

  1. BIBLIOGRAFIA

Carlos, Ana Fani Alessandri. A cidade. São Paulo: Contexto, 2007. (Repensando a Geografia).
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Maricato, Ermínia. As idéias fora do lugar e o lugar fora das idéias, In: Otília Arantes, Carlos Vainer e Ermínia Maricato. A Cidade do pensamento único: desmanchando consensos. Petrópolis: Vozes, 2000, p. 121- 192.
Miele, Sávio A. O lugar dos investimentos imobiliários-financeiros na reprodução capitalista da metrópole de São Paulo. In: X Colóquio Internacional Geocrítica. Barcelona: Universidad de Barcelona, mayo de 2008.
Smolka, Martim. Preço de terra e valorização imobiliária urbana: esboço para o enquadramento conceitual da questão. Textos para discussão interna. Brasília, IPEA, 1979.
Villaça, Flávio. A Terra como Capital (ou A Terra-Localização). In.: VILLAÇA, Flávio. Reflexões Sobre as Cidades Brasileiras. São Paulo: Studio Nobel, 2012.

*Mestre em Geografia pela Universidade Federal do Paraná e docente de Geografia no Instituto Federal do Paraná – Campus Foz do Iguaçu, Brasil.
1 Artigo escrito para a disciplina “Mercado Imobiliário e Produção do Espaço na Cidade
Contemporânea”, ministrada pela Profª Drª Gislene Pereira, no Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade Federal do Paraná.
2 A autora define mais-valias fundiárias como “os incrementos da terra que vão sendo gerados no decorrer das diversas etapas da produção e reprodução presentes no processo de urbanização” (Furtado, 2007: 243)

Recibido: 07/03/2018 Aceptado: 10/09/2018 Publicado: Mayo de 2018

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