Kelly Cardoso da Silva*
UNISINOS, Brasil
kellycardosoo@hotmail.com.
RESUMO
Com o advento do capitalismo, o Estado não pode abandonar sua anterior configuração de Estado-fiscal, vez que dependente da drenagem de excedente de produção sob a forma de recursos econômicos para convertê-los em capital administrativo. Com isso, a vigilância e o controle ainda se fazem necessários como forma de conter as ameaças e riscos advindos pela modernidade. Todavia, tem-se um paradoxo, consistente no fato da coexistência desse Estado de vigilância com a permeabilização de fronteiras para os fluxos econômicos de capital, bens e trabalho.
PALAVRAS-CHAVE: Estado. Território. Repressão.
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Kelly Cardoso da Silva (2018): “Estado, território e repressão: da vigilância à globalização”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (abril 2018). En línea:
https://www.eumed.net/rev/cccss/2018/04/estado-territorio-repressao.html
//hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1804estado-territorio-repressao
1. INTRODUÇÃO
Muito embora a exploração do trabalho assalariado seja a principal determinante do modo de produção capitalista, há outras características essenciais à reprodução do capital, dentre elas, em particular, as ligadas à função de consumo. Nesse sistema, a economia exige não só a reorganização dos fatores produtivos para minimização dos custos de produção, mas também da reordenação estrutural da circulação das mercadorias a fim de reduzir os gastos com a colocação dos produtos no mercado. A padronização dos bens de consumo torna-se, assim, um paradigma exigido para a redução de custos de produção e o incremento de bens e serviços para o aumento da lucratividade. Quando esses paradigmas do capital são estendidos em nível global, tem-se o fenômeno chamado de globalização. A globalização é a expansão do capitalismo e possui um forte viés homogeneizante, fazendo com que as práticas sociais sejam padronizadas em prol da produção e do consumo em escala mundial. Mas, como é próprio das contradições do capitalismo, a igualação dos modos de produção e consumo se realiza como fonte de desigualdades sociais. Cria-se um processo de empobrecimento e exclusão ao permitir que capitais circulem livremente pelo globo, sem comprometimento territorial. Trabalhadores podem ser realocados para sua exploração em qualquer parte do mundo; consumidores podem ser excluídos da ciranda de consumo em qualquer lugar.
Se o mercado internacional, típico da economia mercantilista, esteve invariavelmente ligado às políticas nacionais (por isso mercado “inter-nacional”), a globalização simplesmente ignora os limites territoriais geopoliticamente definidos, e, consequentemente, as fronteiras. A solidez das barreiras fronteiriças dos Estados e seus meios de repressão, com seus muros, grades e cercas predispostos a garantir sua soberania tributária, mostra-se incapaz de conter a fluidez das relações globalizadas: livre circulação de mercadorias, de capitais e de trabalho.
2. ESTADO, TERRITÓRIO E REPRESSÃO: DA VIGILÂNCIA À GLOBALIZAÇÃO
Quando se coloca a questão do quid da segurança pública, a reação imediata é a de compreendê-la como uma razão de Estado cuja finalidade é a proteção da sociedade. Trata-se de uma reação quase instintiva ao inegável fato de que a segurança pública é determinada na arena política, decidida como política de segurança e se expressa pelo exercício da força pública, cujos meios estão legitimados pela soberania estatal. Esse locus tão natural da segurança pública e, ipso facto, da repressão criminal, entretanto, não resiste a um prescrutar histórico. A formação dos territórios estatais como territórios de controle e de repressão da criminalidade são fenômenos mais ou menos recentes e sua correta percepção demanda uma análise mais detida de sua constituição.
É preciso lembrar, nesse passo, que a punição nem sempre se deu para a proteção da sociedade como razão de segurança pública e nem sempre o sistema repressivo era estatizado. Os institutos penais nascem, na antiguidade, amalgamados a questões familiares ou religiosas, como sistemas de vingança, purificação ou de reestabelecimento da sacralidade que foi quebrada pelo infrator. Dois princípios governam a constitutividade dos sistemas penais antigos: o princípio de pertença e o princípio da sacralidade. O princípio de pertença governa os sistemas de vingança privada, aplicável quando, sob o pálio da solidariedade familiar ou tribal, um membro do grupo era atingido pela ação infracional de outrem. Nesse caso, a reação criminal poderia variar de acordo com a pertença do infrator, ou seja, se se tratava de uma infração cometida por um membro da própria família ou tribo ou se pertencente a outro grupo rival1 . Em sua vez, o princípio da sacralidade se realiza pela purificação do mal cometido pelo infrator. A sanção (do latim, sanctio) tem por finalidade restituir o que era santo, santificar, consagrar o tabu violado a fim de que o mal advindo do delito não contagie todo o grupo2 .
Em qualquer caso, percebe-se que a punição não está relacionada ao exercício de uma razão pública sobre uma determinada porção territorial, mas antes a um vínculo determinado pelo jus sanguinis, laços de família ou de origem comum (toten) ou por razões míticas ou religiosas. Mesmo nas sociedades antigas em que a organização política teve uma significativa expressão, como a Grécia, o sistema punitivo não se destinava à proteção do corpo social, mas ao restabelecimento da ordem cósmica que foi perturbada pelo ato infracional. Jaeger (JAEGER, 2013) revela que no início da formação política de Atenas, Sólon, o grande legislador grego, atribui a culpa pelo destino do homem ao próprio homem, e não mais aos deuses. Cabe aos homens tomarem consciência de sua responsabilidade por suas ações a fim de conformá-las à legalidade intrínseca ao cosmo. O castigo divino não mais consistiria em pestes ou más colheitas, mas se realizaria pela desordem que geraria no corpo social (JAEGER, 2013). Para o pensamento more geometrico grego, a ordem cósmica dependia da harmonia entre as partes e o todo e a justa medida dessa harmonia era a proporção, consubstanciada como virtude máxima: a justiça. A desordem era o caos, a desproporção, a injustiça. A organização política era o reflexo natural da organização cósmica e o homem, como animal político, estava imerso nesse cosmo. Por isso, respeitar as leis da cidade era respeitar a legalidade cósmica, indicando a inexistência de distinção entre o jus e o fas.
Os antigos mecanismos de punição também não se apresentavam como manifestações de poderes estatais e assumiam formas compatíveis com os sistemas de punição. Sacrifícios, ordálias, duelos, banimentos eram procedimentos aplicáveis difusamente na sociedade, ainda que eventualmente a organização política pudesse institucionalizar alguns desses mecanismos.
O declínio de Roma não só assinala a passagem do mundo antigo para a era medieval, como também coincide com a fragmentação dos territórios dominados pelo império romano, com processos de despovoamento e regressão urbana. Esses processos levaram a uma particular forma de organização política e econômica, o feudalismo. Ao tempo que liga organicamente o homem à terra para prover sua subsistência econômica, o domínio territorial representa, por isso mesmo, um domínio político. A esfera pública era personificada na figura do rei, cuja extensão de poder era determinada pelo tamanho de suas posses fundiárias. Com efeito, em eras medievais, o poder do soberano era mensurado pelo tamanho de suas propriedades: quanto maior o domínio territorial, maiores eram as condições de o soberano estabelecer vínculos de suserania e vassalagem que lhe assegurassem uma posição dominante, ou ao menos defensiva. Com os limites territoriais impostos pela concorrência de soberanias reais, que deveriam ser igualmente respeitadas, não havia espaço para a expansão externa. Se na antiguidade o objetivo do imperador era imperar sobre o mais vasto território, ora o poder se conforma com a coexistência de soberanias que competem entre si. Além disso, o poder real sofria a concorrência do poder dos senhores feudais, proprietários de terras que, por isso mesmo, detinham proeminência política em seus domínios. Daí a necessidade de o soberano colonizar o aparato judiciário e policial, como forma de exercício de poder.
A complexidade das relações feudais, nas quais o poder se espraiava pelas finas teias de conexões difusas entre senhores feudais, camponeses, clero e nobreza, passaram então a figurar como grandes instrumentos de dominação real. A vigilância policial e a repressão judiciária são monopolizadas pelo rei a fim de que o poder do soberano não sofra concorrências internas. Por óbvio que essa perspectiva de monopólio da disciplina pelo soberano não lhe confere exclusividade de exercício de poder: apenas reconfigura a dispositividade disciplinar existente na sociedade. Desse modo, o aparato jurídico funciona sob um sistema binário de permissão-proibição, cuja guarida é a lei penal. Um ato criminoso passa a ser considerado um regicídio, uma afronta que lesa o soberano. As execuções penais serão públicas para que seja exemplar, e quanto maior o grito do apenado, mais retumbante é o poder real. A punição criminal torna-se uma política pública, como assinala Foucault (FOUCAULT, 2013, p. 68):
Uma noção absolutamente nova aparece: a infração. Enquanto o drama judiciário se desenrolava entre dois indivíduos, vítima e acusado, tratava-se apenas de dano que um indivíduo causava a outro. A questão era a de saber se houve dano, quem tinha razão. A partir do momento em que o soberano ou seu representante, o procurador, dizem “também fui lesado pelo dano”, isto significa que o dano não é somente uma ofensa de um indivíduo a outro, mas também a ofensa de um indivíduo ao Estado, ao soberano como representante do Estado; um ataque não ao indivíduo, mas à própria lei do Estado. Assim, na noção de crime, a velha noção de dano será substituída por infração. A infração não é um dano cometido de um indivíduo contra outro; é uma ofensa ou lesão de um indivíduo à ordem, ao Estado, à lei, à sociedade, à soberania, ao soberano. A infração é uma das grandes invenções do pensamento medieval. Vemos assim, como o poder estatal vai confiscando todo o procedimento judiciário, todo o mecanismo de liquidação interindividual dos litígios da alta idade média.
Essa breve narrativa histórica é suficiente para algumas considerações acerca da repressão criminal. Em especial, o caráter do sistema repressivo não é determinado como desenvolvimento de ideais, mas depende essencialmente do modo de organização dessa sociedade e, em particular, do modo de apropriação econômica dessa sociedade. Se a existência material do ser humano depende intrinsecamente da relação metabólica do homem com a natureza, mediada pela atividade laborativa humana, é curial notar que as objetivações humanas são sempre determinações dessa existência. Isso não se passa diferente com os sistemas de repressão criminal, que são manifestações de um específico modo relacional de uma determinada (em espaço e tempo) sociedade. A colonização do sistema repressivo na idade média, por exemplo, é uma forma de composição do xadrez político engendrado de acordo com o caráter do sistema econômico dominante naquele período. E mesmo quando há mediações de certas formas de estrutura, como a religiosa, não se pode desgarrar do componente econômico que lhe determina as bases. A passagem bíblica de Caim e Abel, na qual Deus (Jeová) aceitou o tributo ofertado por Abel (ovelha), mas não aceitou de Caim (produtos da terra) pode ilustrar essa percepção. Caim, tido como homem bom, era pastor, cuidava de suas ovelhas pelas mãos de seu trabalho. Caim, figura má, era agricultor, e, supostamente, deixava que a terra fizesse seu trabalho. Essa narrativa religiosa parece comprovar a importância do modo de produção na construção mítica. No oriente médio, o pastoreio era o modo de produção dominante e o pertencimento a um grupo que preza essa atividade como principal parece moldar as características essenciais atribuídas ao mito: ser pastor é ser bom, e é ser agraciado pela força mítica de Jeová. A ira divina que recaia sobre Caim representava a punição repressiva àqueles que não se determinavam em conformidade com a ideologia religiosa dominante, a qual, por sua vez, era ela mesma conformada ao modo de produção econômica daquele território.
É nesse sentido que é possível falar, com Marx (MARX, 2003), sobre as categorias de infraestrutura e superestrutura. A infraestrutura se caracteriza pela combinação de dois elementos estruturais: o modo de produção e as condições ecológicas e geográficas determinadas. Estas são as fontes das quais o homem pode extrair os meios de sua existência. Já a outra é a combinação de forças produtivas – isto é, a articulação dos meios materiais e intelectuais que uma sociedade aciona no processo de trabalho – e de relações sociais de produção - ou seja, as formas sociais de acesso aos recursos e controle social dos meios de produção; de redistribuição de força de trabalho; e de distribuição dos frutos do trabalho. Por conseguinte, pensamento e linguagem podem funcionar como elementos da infraestrutura como componentes das forças produtivas, vale dizer, como meios intelectuais, ou o conjunto de conhecimentos da natureza e conjunto de processos técnicos. Assim, o processo de trabalho não é apenas material, mas também ritual, simbólico e nesse conjunto de ideias, esquemas, estratégias residem ideologias. As superestruturas que se formam a partir dessa infraestrutura encontra-se pré-condicionada pela infraestrutura: pré-condicionada e não limitada ou reduzida. As superestruturas, por sua vez (normas jurídicas, formas parentais, formas políticas, formas religiosas etc.) refletem a infraestrutura e sobre ela se desdobram, nesta se fazendo também refletir, produzindo novas formas de ordenação da infraestrutura, em movimento dialético e contínuo.
Daí o erro daqueles que, como Weber (WEBER, 2013), vislumbram o econômico como uma derivação das formas religiosas. O erro está em considerar apenas um dos aspectos da questão, que é a retroalimentação religiosa, como mediação da atividade humana sobre a economia. Em particular, o capitalismo não é uma derivação da ética protestante, mas a ética protestante é, em si, uma manifestação da organização econômica. A substituição do martírio cristão pela ascese protestante consubstanciada no trabalho revela, a um tempo, uma ancoragem ética para o desabrochar do capitalismo como também a própria mediação religiosa sobre a economia. O declínio do poder da Igreja Católica corresponde ao declínio do poder econômico da terra - inclusive das propriedades católicas -, e a derrocada do próprio feudalismo como sistema econômico e político dominante.
A organização econômica sob a forma capitalista exige as correspondentes formas de organização política, social, familiar, etc., que lhe correspondam. E é sob essas condições que se reconfiguram as instâncias do poder político, em particular, o Estado. O aparato estatal, que antes servia ao modo de produção feudal, é colonizado para a consolidação e expansão do sistema do capital3 . De início, o influxo do poder estatal é canalizado para a formação dos mercados nacionais, que exigiam uniformidade de leis, regulamentos, moeda, instituições. Como bem lembra Polanyi (POLANYI, 2000, p. 290):
A história econômica mostra a emergência de mercados nacionais não foi, de forma alguma, o resultado da emancipação gradual e espontânea da esfera econômica do controle goveridntal. Pelo contrário, o mercado foi a consequência de uma intervenção consciente, e às vezes violenta, por parte do governo que impôs à sociedade a organização do mercado, por finalidades não-econômicas.
A racionalidade econômica do capital ressente-se da necessidade de homogenização das manifestações econômicas e a formação dos mercados nacionais atende uma parte dessa expectativa mediante a criação de um espaço destinado a reger-se pelas leis de oferta e procura. Neste ponto ocorre também uma significativa mudança no modo relacional do Estado com o território. Se sob a égide do feudalismo o poder absoluto imprescindia da terra como seu objeto (de poder), sob a regência do capitalismo nascente o território passa a ser tratado como um espaço de controle das manifestações econômicas: os limites dominiais transformam-se em fronteiras de controle. Com efeito, se a nova forma de manifestação da riqueza era o acúmulo do trabalho sob a forma de capital, o domínio da terra transmuda-se em soberania territorial, e o Estado patrimonial cede passo ao Estado fiscal. Desse modo o mercado pode funcionar como um território relacional sobreposto ao território soberano. De um lado, um espaço destinado exclusivamente a reger-se pelas leis de oferta e procura e responsável pelo progresso; de outro, um espaço de controle disciplinar predisposto a manter a ordem econômica e que se alimenta do progresso econômico, drenando fiscalmente o excedente de produção do trabalho.
É inevitável que, nesse contexto, a repressão penal também sofra a influência das modificações da ordem material: as sociedades punitivas transmudam-se em sociedades disciplinares. De fato, se nos primórdios do Estado absolutista o monopólio do poder de repressão era um requerimento para imprimir uma descontinuidade do poder emanado de outros centros de gravitação do poder, como senhores feudais, igreja, outros soberanos, etc., evitando assim a concorrência, o Estado disciplinar se realiza pela continuidade das relações privadas para exercer sobre elas o controle necessário ao livre exercício mercantil e de acumulo de capital. O deslocamento do objeto do poder que, antes era exercido sobre a terra passando ao corpo do indivíduo importou no câmbio das estratégias cartográficas para fins de conquista militar de territórios para o mapeamento do sujeito. O território deixa de ser encarado sob uma perspectiva puramente dominial para tornar-se um espaço de ordenação disciplinar.
Para que o território econômico possa funcionar como uma instância de racionalidade por meio de ações destinadas a um fim4 , conforme a descrição de Weber (WEBER, 1974), fazia-se mister dele expurgar toda a interferência irracional que a as contradições sociais pudessem suscitar. Desse modo, a empresa capitalista podia proceder ao cálculo racional de seu lucro contrapondo microeconomicamente suas receitas com os seus custos contábeis, relegando ao território estatal os demais custos sociais – danos ambientais, contingências sociais, repressão criminal – cujo contraponto são as receitas fiscais. Sobre isso, Marx (2010, p. 30) observou que a economia nacional não considerava o trabalhador em seu tempo livre, mas “[...] deixa, antes, essa consideração para a justiça criminal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a política e o curador da miséria social”. A distinção entre duas ordens jurídicas, um direito civil-comercial e um direito penal serve bem a essa dualidade territorial sobreposta. Em sua vez, o direito civil serve à econômica impondo formas típicas de aquisição da propriedade para o favorecimento do acúmulo de capital e também uma livre forma de figuras contratuais que servem à expansão do capital. A seu turno, o direito penal assegurando a repressão às injunções sociais.
É curial notar que, a despeito da ilusão de existência de duas ordens distintas – a econômica, governada por oferta e procura e a estatal, governada pela política – ambas se submetem à mesma matriz de racionalidade, lidando quantitativamente com suas questões: enquanto a economia mensura o lucro, o Estado governa sobre as contingências estatísticas: número de crimes, quantidade de desempregados, etc. Para se mostrar tão eficiente como uma empresa e a fim gerenciar estaticamente a sociedade, o Estado deve se determinar racionalmente como aparato burocrático: “A superioridade puramente técnica da organização burocrática foi sempre a razão decisiva do seu progresso com relação a toda outra forma de organização. O mecanismo burocrático é para as demais organizações como a máquina o é para os modos de produção não mecanizados” (WEBER, 2011, p. 37), pois
A burocratização implica em particular a possibilidade ótima de colocar em prática o princípio da especialização das funções administrativas conforme regulamentações estritamente objetivas. As atividades particulares são confiadas a funcionários especializados que, com a prática, vão aprendendo cada vez mais. A resolução 'objetiva' dos assuntos pressupõe primeiramente uma resolução conforme as normas calculadas e 'sem levar em conta as pessoas (WEBER, 2011, p. 39).
Esse racionalismo homogenizante do Estado atende a uma agenda de demandas da economia, enquanto reproduz uma matriz de racionalidade reificante que domina todas as formas de expressão da sociedade5 . Desta maneira, a matriz de racionalidade estruturante do capitalismo faz recuar as antigas formas de mediação do poder, como a igreja e a esfera pública cortesã, fazendo-se-lhes substituir pelo Estado racional-burocrático, e, consequentemente a ética religiosa pela secularização moral adequada a seus fins – o direito penal legalizado e judicializado: se a igreja continuava a curar as almas desviadas, ao Estado cumpria o deve de disciplinar os corpos.
O modelo de controle envolve a apropriação social da dimensão espaço-temporal para a disciplina em todas as esferas de manifestação social. O espaço é arquitetado para comportar uma distribuição hierárquica e funcional dos corpos: corpos enfileirados, enquadrados funcionalmente para favorecer a vigilância. O tempo é distribuído para o controle e mensuração da eficiência da atividade: tempo de produção6 , tempo de estudo, tempo de cumprimento de pena:
O “poder disciplinatório” como descrito por Foucault depende basicamente da vigilância, no sentido de manutenção da informação, especialmente na forma de registros pessoais de histórias de vida mantidas pelas autoridades administrativas. Mas ele também envolve a vigilância no sentido da supervisão direta. Nesse sentido, prisões e asilos dividem algumas características generalizadas das organizações modernas, incluindo o local de trabalho capitalista, além de uma variedade de outras organizações. Todos incluem a concentração de atividades por um período do dia, ou por um período na vida dos indivíduos, em locais especialmente construídos para isso. Devemos considerar o poder disciplinatório como um subtipo de poder administrativo em geral. É este último que provém de procedimentos disciplinatórios, a partir do uso regularizado da supervisão, com o objetivo tanto de inculcar quanto tentar manter certas peculiaridades no comportamento daqueles sujeitos a ele (GIDDENS, 2008, p. 205).
O controle nas zonas de fronteira, sob a forma de aduana, não difere, por óbvio, do modelo geral estabelecido. Trata-se de uma zona de vigilância para o controle espaciotemporal de corpos e mercadorias, tráfego e tráfico, com ascendência do elemento econômico7 . Não é por outra razão que há um predomínio de controle e repressão institucionalizados sob figuras jurídicas de caráter econômico como descaminho, contrabando (inclusive hodieridnte para proteção de propriedades industriais e de marcas, sob a forma de combate à pirataria), ainda que conjugadas com outros elementos de higienização (controles sanitários, combate ao tráfico de drogas, etc.).
Mas o amadurecimento do capitalismo sob a forma da industrialização, especialmente no século XVIII, trouxe novos componentes que suscitariam mudanças estruturais tanto no modo econômico como estatal. Sem capacidade de absorver toda a produção da indústria, os mercados nacionais careciam transcender das fronteiras nacionais expandindo seu raio de alcance para proporções mundiais. Ainda sem condições de se estabelecer por suas próprias forças, a economia demanda a força estatal para desbravar novos mercados, sob a forma de políticas nacionais de comércio exterior, transformando os Estados em agências diplomáticas de comércio exterior. As políticas nacionais defensivas, por meio de barreiras comerciais e a concorrência pela obtenção de matérias-primas, turvavam o projeto de expansão mundial do capital e a degeneração desse projeto alcançou seu cume com a eclosão das duas grandes guerras mundiais ocorridas nos primórdios do século XX.
Duas constatações inevitáveis foram tomadas: a incapacidade da economia de mercado de prover, por si, o bem-estar da população e a inaptidão dos Estados nacionais de conduzirem o processo de mundialização do capital. Duas mudanças de eixo se fizeram necessárias para a expansão mundial do capital. Em primeiro plano, o Estado-nação teve de se converter em Estado-providência para dar conta do bem-estar nacional, ante a insuficiência da economia para fazê-lo; em segundo plano, o descolamento da economia dos territórios nacionais para a criação de um mercado global que funcionasse sob a racionalidade das leis de oferta e procura – a globalização.
A saga do capital global conduz algumas consequências inevitáveis. O Estado não pode abandonar sua anterior configuração de Estado-fiscal, uma vez que continua (cada vez mais) dependente da drenagem de excedente de produção sob a forma de recursos econômicos para convertê-los em capital administrativo. A vigilância e o controle ainda se fazem necessários, mas as fronteiras devem se permeabilizar para os fluxos econômicos de capital, bens e trabalho.
Assim, tem-se que toda forma de manifestação social é sempre um produto não-determinístico da materialidade sensível. Ainda que mediadas por razões religiosas, familiares, estamentais, etc., há sempre uma razão econômica (em sentido material) que subjaz a racionalidade das relações sociais. Jeová não pune Caim simplesmente porque Caim é mau, mas sobretudo porque é agricultor, e ao vivente nas regiões áridas, que pouco obtém da agricultura (como eram os Judeus na antiguidade), é mais importante divinizar o pastor, representado por Abel. Na idade média, o poder absoluto coloniza o aparato judicial-punitivo como forma de manter a higidez de seus domínios realengos. A própria noção de família, e consequentemente o sistema de vingança privada, abrange uma comunidade biológica e patrimonial, conforme demonstrado por Engels (2002). As sociedades não transmudam sua orientação de punitiva para o de vigilância por outras razões senão por uma necessidade material-econômica da qual emergem as formas sociais correspondentes. As formas de controle (gerenciamento de riscos, vigilância patrimonial, repressão a criminalidade) demonstram uma necessidade intrínseca de reprodução dessa matriz determinante. É claro que amalgamadas a essas superestruturas estão as pessoas e suas materialidades, viventes e sua irremediável necessidade econômica de sobrevivência, humanos em suas relações de intercâmbio sensível.
3. CONCLUSÃO
A globalização produz efeitos ambíguos nas relações humanas em razão de sua própria ambiguidade ínsita. A criação de um espaço imaginado que transcenda os territórios e os limites físicos e políticos para que nesse espaço prevaleça uma lógica comercial que se descole das ordenações nacionais faz com que esse “território” se torne um “não-lugar”. Mas esse não-lugar afeta decisivamente os lugares. Os espaços onde a organicidade se desenvolve, onde o impera o reino da necessidade, são condicionados pelo desbordamento da eficácia das leis que vigoram no território global e as estratégias de vida dos indivíduos, a estruturação das relações sociais, não podem simplesmente ignorar a lógica centrífuga da globalização.
Essa alteração global também reflete nas formas de controle e repressão do Estado, havendo uma alteração na sociedade em sua orientação punitiva que passa a ser de vigilância em razão de uma necessidade material-econômica da qual emergem as formas sociais correspondentes, criando-se com tal vigilância uma categorização social e um paradoxo consistente no fato dos indivíduos serem seduzidos pelo mercado/consumo e ao mesmo tempo tornarem-se objetos destes.
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*Mestre em Direito Público pela UNISINOS; Doutoranda em Sociedade, Cultura e Fronteiras pela UNIOESTE; Professora de Direito Penal no Centro Universitário Dinâmica das Cataratas em Foz do Iguaçu/PR; Assessora no Ministério Público Federal; e-mail kellycardosoo@hotmail.com.