Jean Henrique Costa*
Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN), Brasil
prof.jeanhenriquecosta@gmail.comResumo
Este curto ensaio tem por objetivo realizar a apreciação crítica de um texto abertamente opinativo produzido por um ex-senador da República. O posicionamento do parlamentar foi sumariamente valorativo, no sentido de não exprimir busca por objetividade, mas sim reproduzir uma particular visão de mundo. Por se tratar da vaga opinião de um “homem da política” – também empresário –, aproveito para escrever em primeira pessoa do singular, tornando o texto mais leve e acessível.
Palavras-chave: lazer; tempo livre; economia; feriados.
Abstract
This short essay aims to carry out the critic appreciation of an openly opinative text produced by a former Senator of the Republic. The position of the parlamentarian was summarilly evaluating, in the order of not expressing a search for objectivity, but rather to reproduce a particular world perspective. Because it is the vague opinion of a "politic man" - also businessman -, I take advantage to write in first person singular, making the text lighter and more accessible.
Keywords: leisure; spare time; economy; holidays.
Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
Jean Henrique Costa (2017): “Ocio improdutivo ou lazer subversivo? crítica da economia política do tempo livre socialmente produtivo”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, (octubre-diciembre 2017). En línea:
http://www.eumed.net/rev/cccss/2017/04/critica-economia-politica.html
http://hdl.handle.net/20.500.11763/cccss1704critica-economia-politica
Revirando arquivos pessoais e documentos guardados, conservados às vezes por zelo, às vezes pela compulsão por arquivamento de papel, eis que encontro uma breve coletânea de textos curtos, de finalidade partidária, editada pelo antigo Partido da Frente Liberal (PFL), hoje Democratas (DEM). Perto de descartar aquele material até então sem uso, percebo um pequeno escrito, de duas páginas, intitulado LAZER PERIGOSO, de autoria do empresário e ex-senador – por Brasília – Lindberg Aziz Cury (recém falecido em 2016).
Antes do descarte definitivo do encarte panfletário, minha curiosidade foi aguçada pelo indigesto título. Decido, então, dar uma lida rápida no material. A justificativa e o objetivo deste ensaio que agora escrevo são frutos de minha insatisfação diante das aflições levantadas pelo ex-senador. Longe de vir reafirmar suas palavras, este pequeno ensaio opinativo fará seu papel crítico de desobscurecer seu pensamento, desvendando o que, como ideologia, está escondido no silêncio das entrelinhas.
Como o escrito de Cury é textualmente abreviado, peço permissão para reproduzi-lo na íntegra sob a forma de citação direta. Meu abreviado exame virá em seguida.
Segue o texto integralmente reproduzido:
“O Brasil precisa mudar de postura frente aos feriados. Um país que pretende entrar firme na competitividade ditada pela globalização fica em desvantagem perante outras nações ao interromper o ritmo produtivo a todo instante por causa dos feriados.
Este é um ano atípico e altamente prejudicial às atividades produtivas. Isso porque os feriados – e são muitos – vão cair quase sempre às quintas ou terças-feiras, levando as pessoas a ‘enforcar’ as sextas e segundas-feiras. Essas pontes se tornam muito prejudiciais a todos os setores produtivos que devem, faça sol ou chuva, seja feriado ou dia útil, cobrir os custos operacionais. Especialmente com os bancos credores.
Estamos festejando quatro dias de Carnaval. Dentro de quarenta dias teremos a Quaresma. Em seguida, vamos comemorar o aniversário de Brasília, em 21 de abril, que cai numa terça-feira. Mais adiante teremos o dia 1° de maio, Dia do Trabalho, que cai numa sexta-feira, e assim por diante. Isso tudo entremeado pelos jogos da Copa do Mundo, na França, e pela movimentação em torno da campanha eleitoral de 3 de outubro.
Como veremos, 1998 será um ano difícil para se programar a produção no Brasil. Cada feriado significa milhões de reais de prejuízo. Não se trata de problema novo. Já na década de 60, o ex-presidente Castelo Branco, preocupado com o excesso de feriados, baixou decreto fixando em oito as datas a serem comemoradas. Nos Estados Unidos são apenas quatro. Mas, aos poucos, fomos esquecendo a orientação séria do ex-presidente e voltamos a ter mais feriados nacionais, estaduais e municipais.
Além do setor produtivo, o sistema educacional enfrenta graves problemas ante tantos feriados. Dificilmente nossas escolas, em todos os graus, poderão levar a cabo seus programas, pois o ano letivo será constantemente interrompido por datas a serem guardadas. Isso reduz perigosamente a qualidade do nosso ensino, comprometendo o futuro de milhões de jovens, que sairão dos colégios e faculdades sem o preparo necessário para enfrentar um mundo altamente competitivo e instruído.
Está na hora de o Brasil encarar com absoluta seriedade o problema que a interrupção provocada pelos contínuos feriados vem causando a todos os setores da vida nacional.
Precisamos fixar, com rigor, os feriados a serem respeitados e abolir os demais. Brincar quatro dias de Carnaval já é demais para um país com tantos problemas como o Brasil. Mas, irresponsavelmente, estamos esticando o reinado de Momo para vários outros dias. E isso não podemos suportar sem ferir nossas pretensões no concerto das nações” (CURY, 1998, p. 51-52).
Primeiramente, o sr. Cury percebe as pausas no ritmo produtivo como momentos de desperdício econômico, algo que pode comprometer a coesão da vida econômica nacional. Nada incomum no discurso, já que, sendo empresário, o mais previsível é querer que suas atividades nunca cessem. Neste prisma, para o trabalhador, resta apenas mais e mais trabalho. O ditado que diz ‘O ócio é o pai de todos os vícios’ poderia ter sido citado como manifestação de sua preocupação para com a vida fora do trabalho das classes trabalhadoras. Vale destacar que domesticar o tempo livre do trabalhador sempre foi uma tarefa central do modo de produção capitalista. O capitalismo se encarregou de fundir a doutrina da salvação da alma e da carne numa só missão: a religião do trabalho. Defender tal argumento é afirmar que a economia rege não apenas a reprodução material das sociedades, mas também a própria condição do ser. Há, neste caso, uma inversão de princípios civilizatórios, pois o Homem deveria estar no centro do processo, e não o dinheiro. Eis que a missão civilizatória do capital não permitiu tamanha humanização da vida social.
Segundo, há uma percepção depreciativa acerca dos feriados. Embora não torne explícito, impera no texto certa imagem caricata do brasileiro como sendo preguiçoso e ávido por ampliar os feriados por meio do chamado dia útil “enforcado”. Não é cabível no século XXI tentar reafirmar certas teorias naturalizantes e essencialistas acerca de um povo, muito menos afirmar que uma população que vivencia extrema desigualdade social pode se dar o luxo de perambular na “vagabundagem”. A figura do flâneur, descrita por Walter Benjamin, no Brasil, está mais para caçador de emprego do que para andarilho contemplador do urbano.
Terceiro, Cury demonstra abertamente seu desejo de americanização do Brasil ao comparar o número de feriados americanos com os feriados brasileiros. Não somos americanos e nem precisamos copiar o questionável modelo americano de vida. Felizmente, o sonho do americanismo no Brasil é mais um desejo de nossas elites conservadoras do que uma realidade concreta.
Quarto – e aí o tom ideológico do texto se torna mais aberto –, são mencionados prejuízos até mesmo ao calendário escolar, como se nossos problemas educacionais fossem resultados da ausência de alguns dias não letivos. Nossos problemas educacionais não são conjunturalmente criados por feriados. Pelo contrário! São estruturais, causados pela falta de investimentos qualitativos e quantitativos na educação pública, expansão do sucateamento das escolas, transformação da educação em mercadoria, desvalorização do ofício docente e desconsideração das desigualdades sociais historicamente construídas. Culpar alguns dias não letivos pela condição de nossa precária educação é, no mínimo, brincar com o bom senso popular.
Há ainda um desrespeito aberto, por exemplo, ao 1º de maio, Dia do Trabalhador. Visto pelo sr. Cury como mais um dia ocioso, o ex-senador parece não reconhecer a importância histórica – e simbólica – desta data.
A frase que melhor marca o desfecho ideológico de sua apressada avaliação é: “Brincar quatro dias de carnaval já é demais para um país com tantos problemas como o Brasil”. Não apenas no Carnaval, mas nas festas juninas e nas mais diversas festas religiosas no Brasil, os indivíduos têm a oportunidade de celebração não apenas de um momento lúdico, mas principalmente de reencontro comunitário e ressignificação identitária, reforçando-se símbolos diversos de nossa formação cultural. Festas populares tradicionais não são simplesmente momentos comuns; são períodos também de reforço de identidades, tempos aglutinadores de sociabilidades e de reencontros com o sentimento de vida comunitária. Descartar ou limitar esses encontros é desprezar a história de muitas das tradições populares brasileiras.
Em linhas gerais, há no texto de Cury um compromisso abertamente neoliberal, um acordo não com o bem-estar dos trabalhadores e de suas famílias, mas com a produção de riqueza que, aliás, é desigualmente distribuída.
O texto, de 1998, foi escrito numa década de profunda precarização das condições e relações de trabalho (MATTOSO, 1999), além do desemprego acentuado, resultado da reestruturação produtiva e da liberalização econômica vivenciada pelo Brasil nos anos 90. Hoje, quase vinte anos depois, o mesmo ímpeto neoliberal vem à tona na atual reforma trabalhista e lei da terceirização, buscando enterrar o trabalhador em mais trabalho às custas de uma “modernização” trabalhista que, via de regra, somente é boa para o capital.
O que é central na preocupação do sr. Cury não é o Homem como apreensão essencial para o desenvolvimento civilizatório, mas sim, a produção. O lazer é visto como algo negativo justamente porque diminui o tempo de trabalho.
O que parece incomodar o sr. Cury e todo o conjunto do discurso conservador é o fato de o lazer poder ser subversivo, podendo mostrar uma ordem das coisas que não está clara aos olhos de quem reproduz sua própria miséria cotidiana no degradante mundo do trabalho. O lazer pode ser um veículo de educação/emancipação, podendo “contribuir não só para a superação das contradições existentes na área específica do lazer, mas também para soluções mais abrangentes, em termos da vida social como um todo” (MARCELLINO, 2002). Eis porque Cury o percebe como algo perigoso. Nesse sentido, mais feriados significam maiores possibilidades de educação no lazer e para o lazer. Mesmo diante da expansão do domínio da indústria cultural no lazer (massificando e racionalizando o lúdico), há sempre a concretude da resistência da cultura como arena de luta por produção simbólica.
O pensamento expresso pelo ex-senador é ainda preconceituoso e elitista. Nossas elites e parte das classes médias não precisam de feriados para o gozo do tempo de lazer. Podem construir uma agenda planejada para o tempo livre. Os trabalhadores assalariados, grande massa da população, são os que mais necessitam de pausas formais no ritmo produtivo para a possibilidade de efetivação de algumas horas de lazer. O sr. Cury parece esquecer que as elites possuem tempo livre, renda e motivação para o lazer (além de capital cultural). Não necessitam de feriados oficiais. Seu pensamento é conservador e desconsidera assimetrias econômicas historicamente criadas e estruturalmente acentuadas.
O ideólogo ainda tenta esconder outra realidade sequer anunciada: muitos trabalhadores usam o feriado para otimizar os denominados “bicos” em busca de fontes extras de renda. Não vivemos uma civilização do lazer! Vivemos na esteira de outra civilização: a do capital. Alguns trabalharão por compulsão e impulso acumulador, mas a grande maioria fará por necessidade, pela luta cotidiana por uma vida melhor.
Cury também não problematiza a questão do consumo. Não percebe, pois, que os feriados otimizam o consumo de certos bens e serviços. Sem consumo surgem as crises de superprodução. Outra vez, o capital desconsidera esta questão e se lança no permanente ímpeto irracional de uma acumulação sem considerar o outro lado do circuito pós-produção: o consumo. Chris Harman (1979), lendo Marx, com didatismo esclarece que cada capitalista teme a competição com os outros. Assim, fazem os seus empregados trabalharem o mais duro possível, pagando salários cada vez mais baixos. O resultado se expressa numa desproporção entre o enorme crescimento dos meios de produção e o crescimento limitado dos salários e do número de trabalhadores empregados. Para Harman, Marx insistia no fato de que esta é a causa principal das crises econômicas, resultando em acumulação de riqueza de um lado, e de pobreza do outro.
Enfim, contrário ao pensamento do sr. Cury, pontuo que temos que lutar por uma ética que invista nos sujeitos não como simples força de trabalho. Retirar do homem sua condição de mero apêndice do capital será o passo decisivo para entender que o que produzirá um futuro melhor não é aumento das horas de trabalho, e sim, mais horas de vivência dos valores lúdicos da cultura. Eis aí uma ruptura emergencial.
Paul Lafargue, já no século XIX, em 1880, percebeu esta emergência.
Uma estranha loucura dominou as classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Essa loucura traz como consequência misérias individuais e sociais que há séculos torturam a triste humanidade. Essa loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda que absorve as forças vitais do indivíduo e de sua prole até o esgotamento. Em vez de reagir contra essa aberração mental, os padres, os economistas, os moralistas sacrossantificaram o trabalho (LAFARGUE, 2003, p. 19, destaque nosso).
Bertrand Russell, ainda na primeira metade do século XX (1935), também denunciou a moral do trabalho como princípio civilizatório.
A moderna técnica trouxe consigo a possibilidade de que o lazer, dentro de certos limites, deixe de ser uma prerrogativa de minorias privilegiadas e se torne um direito a ser distribuído de maneira equânime por toda a coletividade. A moral do trabalho é uma moral de escravos, e o mundo moderno não precisa da escravidão (RUSSELL, 2002, p. 27, destaque nosso).
Logo, ou abandonamos a crença de que precisamos morrer trabalhando para a conquista da felicidade, acumulando bens que muitas vezes não precisamos, ou terminaremos retroalimentando a ideia de que o trabalho dignifica (dogma religioso) e de que tempo é dinheiro (lema de Benjamim Franklin), reproduzindo, assim, as desigualdades e assimetrias que nos escravizam. Os sujeitos terão tempo livre efetivamente “produtivo” quando conseguirem investir na consolidação de uma ordem social mais humanizada para o cotidiano, e não na produção da expansão da barbárie do capital.
Referências
CURY, Lindberg Aziz. Lazer perigoso. Cadernos do PFL – Debates. São Paulo, n. 14, p. 51-52, 1998 (Publicado originalmente no Correio Braziliense, 22. Fev. 1998).
HARMAN, Chris. O que é o marxismo? Marxists.org, 1979. Disponível em: https://www.marxists.org/portugues/harman/1979/marxismo/. Acesso em: 11. ago. 2017.
LAFARGUE, Paul. O direito à preguiça. Tradução de Otto Lamy de Correa. São Paulo: Editora Claridade, 2003.
MARCELLINO, Nelson Carvalho. Lazer e humanização. 6. ed. Campinas: Papirus, 2002.
MATTOSO, Jorge. O Brasil desempregado: como foram destruídos mais de 3 milhões de empregos nos anos 90. 2 ed. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1999.
RUSSELL, Bertrand. O elogio ao ócio. Tradução de Pedro Jorgensen Júnior. 3. ed. Rio de Janeiro: Sextante, 2002.
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