Renato Gavião
Edson Vieira da Silva Filho
Faculdade de Direito do Sul de Minas
gaviaore@yahoo.com.brA sociologia moderna, de matriz orgânica, assujeitadora e objetificante de Emille Durkheim é usada, ainda hoje como modelo de sustentação de teorias penais maximalistas, especialmente em países de modernidade tardia como o Brasil. Em decorrência da opção por tal matriz teórica surge (ou agrava-se) uma crise de identidade que resulta do constitucionalismo contemporâneo. A seletividade penal é incompatível com um modelo de estado plural, social e democrático, promotor de inclusão social e de garantias. Assim, a partir do princípio da subsidiariedade é necessário que haja um realinhamento do sistema penal como um todo ao modelo constitucional adotado em 1988 pelo Brasil.
Palavras chave: Criminologia, controle social, seletividade penal, subsidiariedade, garantismo.
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Renato Gavião y Edson Vieira da Silva Filho (2015): “A formação de uma clientela preferencial do direito penal no Brasil contemporâneo a partir de Emille Durkeheim”, Revista Contribuciones a las Ciencias Sociales, n. 29 (julio-septiembre 2015). En línea: http://www.eumed.net/rev/cccss/2015/03/direito-penal.html
INTRODUÇÃO
O direito penal contemporâneo recebe a partir de meados do século passado a influencia de Alessandro Baratta, que com sua criminologia critica, afasta várias das analises criminológicas de suas fortes matrizes antropocentristas, próprias da modernidade, dando ênfase à sua construção como mecanismo de manutenção de poder.
É interessante deixar claro que uma vez afastadas as perspectivas clássicas da leitura do crime e do criminoso como entes ontológicos, algo deveria ser criado como pressuposto metodológico. Aqui, surgem as analises econômicas do crime que passa a ser visto como instrumento de proteção de valores dentro de uma sociedade de classes com uma lógica clara de exploração do homem pelo homem.
A partir da nova perspectiva pode-se afirmar que o caráter ideológico ganha papel importante, especialmente no que se refere à criação de uma clientela preferencial do direito penal, que em ultima analise pode ser vista em Zaffaroni como sendo a delimitação de grandes massas de indivíduos, pertencentes as mais baixas camadas sociais, como sendo (extremamente) vulneráveis ao sistema sancionador do Estado.
O objetivo do presente trabalho é a analise do direito penal a partir da criminologia critica como mecanismo de contenção social mais voltada para uma lógica de dominação de controle em uma sociedade de classes do que da efetiva proteção de valores sociais previstos como fundamentais de uma sociedade concreta recém construída a partir de um estado (social) democrático de direito como o nosso, com os obstáculos inerentes aos países de modernidade tardia e suas contradições inerentes.
1 O DIREITO PENAL E O CONSTITUCIONALISMO CONTEMPORANEO À BRASILEIRA
Ora, partindo assim da função do direito penal, ou seja, se configurar como um mecanismo violento do Estado Moderno que se vale do monopólio do uso legítimo da força com a finalidade de produzir, reproduzir e aperfeiçoar valores socialmente tidos como adequados em um determinado tempo e espaço. Tal delimitação torna-se mais clara e objetiva nas constituições que seguem ao segundo pós guerra um novo modo de definição de bens dignos de proteção via direito: os valores fundamentais consagrados na Constituição federal, valores estes como a vida, previsto via de regra no artigo 5 da Constituição Federal.
Nota-se que os valores protegidos pelo direito penal são de suma relevância, tal como o exemplo acima, ou seja, à vida, que “é o pressuposto elementar de todos os demais direitos e liberdades disposto na constituição” 1. O estado tem o dever de proteger à vida, criando mecanismos de proteção, como polícia, sistema prisional, organização de uma estrutura judiciária entre outros deveres.2
A dimensão de proteção do direito à vida é bem colocada por Paulo Gustavo Gonet Branco, que lembra que o Estado tem uma posição de maior responsabilidade e proteção com tal direito quando tratar-se de pessoa sob sua custódia, caso do indivíduo preso em que a jurisprudência atribuiu à responsabilidade civil ao Estado pela morte de detentos, mesmo que o delito não seja causado por um agente público. 3
Acontece que a Carta Magna cria uma ampla lista de valores fundamentais considerando o novo projeto ligado ao projeto homem a partir das novas perspectivas do estado contemporâneo. A promoção de valores assume o lugar da simples declaração e proteção. Assim, não podemos restringir o direito penal somente à proteção do direito à vida, pois existem outros valores protegidos constitucionalmente em que cabe a tutela pelo direito penal, tal como a liberdade, propriedade e segurança, entre outros.
Nota-se que com a ampliação do rol de valores fundamentais e possibilidades dadas à pessoa humana, mais notadamente com relação à sua dignidade o grau de direitos sindicados, a partir da concepção do individuo como ser plural, aumenta as inefetividades dos sistemas de proteção jurídica.
A efetivação de garantias via direito traz uma serie de efeitos colaterais e é importante lembrar que a busca do controle social a partir da intervenção do Estado, especialmente em um estado assumidamente mínimo deve dar-se em caráter subsidiário, vale dizer, o controle social jurídico só é aceito quando os demais mecanismos sociais de controle e promoção de valores se mostram insuficientes. É o principio da subsidiariedade. Mais especificamente, ao falarmos em proteção via um direito sancionatório, podemos invocar uma segunda vez tal subsidiariedade: ou seja, a proteção de tais valores é insuficiente através de outros ramos do ordenamento jurídico, uma vez que não podemos aplicar uma medida judicial de ordem cível ou administrativa ao individuo que retirou o bem mais importante de um ser humano, ou seja, à vida, bem como, não se pode aplicar a mesma pena ao individuo que entrou em e uma residência e atentou contra a liberdade sexual de outrem e, assim por diante.
Daí conclui-se que o direito penal deve ser utilizado como “ultima ratio”, ou seja, somente quando os outros ramos do direito oferecerem uma proteção insuficiente aos bens jurídicos. Desta forma entende-se que o direito penal é fragmentário e subsidiário, pois protege os bens jurídicos mais relevantes e contra os ataques mais intolerantes. É o limite entre a civilização e a barbárie.
O desvio de finalidade do direito penal ocorre por diversos fatores, pois, como bem lembra Edilson Mongenout Bonfim, em sua obra Direito penal da sociedade, o direito é criado por homens, motivo pelo qual sofreu desvios, desviando de sua função “pro societate” e, indo na contramão de direção, ora atingindo o cidadão que integra o corpo social, por vezes confuso em razão das usas inúmeras normas profusas e, com isso deixando de ser um instrumento democrático, embora derive desta. 4 Um exemplo da utilização do direito penal por grupos detentores do capital, é a despenalização dos chamados “crimes sistêmicos” ou, como preferem alguns, os crimes de “colarinho branco”, e com isso mostrando um direito penal seletivo e manipulador pelo poder vigente.
É inevitável que grupos detentores do poder tendam a proteger seus próprios valores e interesses, porém, o Brasil é um estado democrático de direito, onde a legitimidade das escolhas cabe ao povo, através de representantes devidamente eleitos, onde o direito deve ser utilizado para conter o gozo social provocando um baixo nível de conturbação social. A respeito do tema, recorremos a Lenio Streck, que afirma que em nosso país, sob a ótica do estado democrático de direito, o direito deve ser visto como instrumento de transformação social ocorre uma desfuncionalidade do direito e das instituições encarregadas de aplicar a lei. Ou seja, nosso direito é fruto de um sistema liberal-individualista-normativista de produção do direito 5 .
Ora, o direito penal, há tempos, vem sendo utilizado como meio de controle de classes que devem ser submissas e, o próprio direito penal assujeita e dá senão a certeza, pelo menos claros indícios da inferioridade para alguns, postos junto ao senso comum como perigosos (ou potencialmente perigosos), assim, tal inferioridade faz-se sentir, na ausência de resistência, à dominação das classes mais pobres e, mais do que isso, dos desfavorecidos, dos excluídos etc. O sistema jurídico é utilizado por aqueles que detêm o poder como forma de controle social, entorpecendo os indivíduos em processo de alienação e valendo-se das agencias do estado, como por exemplo, os órgãos policiais6 , como meio de repressão a tal classe social trabalhadora e, com isso etiquetando o indivíduo como marginal.
Vale mencionar Ferrão referindo-se a tal dualismo que equipara o desprovido de bens ao desprovido de moral individual ou social, tendo-o como perigoso e/ou nocivo socialmente (...) firmemente se assente nos princípios de verdade moral e social de que as penas são providências coercitivas e reparadoras do mal resultante dos malefícios e de que, para se aplicarem com justiça, os juízes, condenando, não fazem mais do que tornar a iniciativa da apreciação da perversidade dos malfeitores, apreciação que somente pode encontrar o seu complemento durante a execução penitenciaria ou correcional 7.
Ao retirar dos indivíduos a possibilidade de igualdade ou de tratamento igualitário, por parte das agências de contenção social do estado, retira-se suas expectativas enquanto pessoas, enquanto seres humanos. Assim, minando seu ego o fulminamos enquanto mão de obra, desqualificando seu trabalho, logo, desvalorizando-o enquanto seguimento da produção capitalista. Do mesmo modo, a mão de obra barata e dócil. Quando o operário não se vê como individuo não pode valorizar sua força de trabalho e, assim o desqualifica como individuo reduzindo-o a coisa.
Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, a respeito do tema, afirmam que todo o sistema penal, incluindo órgãos judiciários, sistemas penitenciários, polícia, entre outros, formam um discurso externo coerente de contenção a criminalidade, porém, internamente, se contradizem entre si por diversos fatores, um deles é o interesse do grupo dominante.8
A função de controle social ideológico a partir da sanção penal fica clara em Michel Focault, quando afirma que o sistema prisional é um meio de docializar certos indivíduos, evitando que os mesmos se tornem sem controle, uma vez que através da prisão o individuo é controlado pelos órgãos do sistema penal, uma vez que é obrigado a comunicar seu paradeiro, informar sua residência, ser conhecido no meio policial, evitando com isto, que membros de certa classe social, em regra menos favorecida, se juntem e se fortaleçam longe dos olhos do estado. Em suma, é um meio eficiente de ter pessoas marginalizadas centralizadas e controladas, ou como diz Focault “produzir o delinqüente como sujeito patologizado”.
Diante desta perspectiva de Focault, a prisão é um meio necessário para a efetividade do sistema, uma vez que é criada para não funcionar, pois, é comprovado que gera um alto custo, bem como é obvio que gera a reincidência. Sendo assim, perguntamos, será que o homem não teve a capacidade, até agora, de criar um meio que funcionasse efetivamente de forma a prevenir o crime ou se o modelo atual de prevenção de crime, tal como a prisão, é útil para certo modelo de sociedade? Neste aspecto fica a interrogação, uma vez que não há uma resposta concreta para tal indagação pois ao mesmo tempo que o sistema é criado para não funcionar e como forma de manipulação de classes desfavorecidas, por sua vez o crime faz parte de um contexto social e, não deixará de existir.
Para que o controle seja exercido de maneira eficaz, a perspectiva humana do indivíduo deve ser fragilizada ao extremo para que seja levada a cabo a docilização dos corpos indóceis, tornando-os úteis. Para Foucault tal dinâmica (assujeitadora e objetificante) atende as idéias de dominação e reprodução do modelo ideal do indivíduo servil em uma sociedade industrial. Focault ainda ressalta que a prisão é basicamente composta pelo isolamento ou por um trabalho banal que faz o individuo se sentir inútil, além de provocar a reincidência, pois, uma vez solto, o ex-detento não consegue emprego que lhe pague o suficiente para satisfazer suas necessidades básicas e, vendo-se obrigado a voltar à delinquir, deixando sua família em situação de miséria e, instituindo, com isto, gerações de potenciais delinqüentes.9
2 O DIREITO PENAL COMO CONTROLE SOCIAL VIOLENTO
Como exposto, o direito penal é um meio de controle social violento, pois tem essa necessidade frente aos direitos de que lhe são postos sobre sua égide de proteção, onde a violação de tais direitos acarreta, em uma resposta efetiva do sistema penal como um todo, principalmente dos órgãos policiais, que agem em um primeiro momento logo após a ocorrência do delito.
Nota-se que a violência do direito penal advém de sua imensa responsabilidade de manutenção da paz social e, diferentemente dos demais ramos do direito, que também tem a atribuição de manter o regular convívio social entre os indivíduos. Porém, ao direito penal cabe a proteção dos bens jurídicos mais importantes do ser humano. É importante deixar claro que a hipótese do emprego da força para a preservação/promoção de valores sociais é indesejável, mas inerente aos mecanismos de controle social (em qualquer nível), devendo ser admitida somente em ultima instancia, quando a violação de direitos fundamentais for de tal monta relevante que a contenção por intermédio da força, letal inclusive, se imprescindível for, atenda dois critérios: que a intervenção se dê em nível proporcional ao mal social a ser contido e sua utilização seja o ultimo recurso para conter a violação concreta.
Uma vez que a esfera de proteção do direito penal é atingida, cabe a ele a árdua missão de violar direitos. Inclusive os igualmente constitucionais, ou seja, retirar as possibilidades de concretização da plenitude do individuo como pessoa humana que por intermédio da imposição de uma pena (ação mediata) quer pela constrição física violenta (ação imediata).
A aplicação de uma pena, por vezes, é uma medida tão violenta quanto o crime cometido e, porque não falar que até mais violenta, o que configura um sério problema. A resposta desproporcional à violação tem, para Bentham, naquilo que excede o cálculo utilitarista, um grau intolerável de injustiça.
Outro aspecto interessante é o fato do direito penal não pedir permissão para invadir a esfera de direito do indivíduo, uma vez que através do estado-poder, este, com total autonomia, invade a esfera de direitos do individuo infrator e retira seus direitos com toda a violência do poder estatal. Nota-se, que o individuo infrator, no momento em que pratica o crime, sendo este inafiançável e em flagrante delito, sem as circunstancias das excludentes de ilicitude, tem de forma imediata sua esfera de direitos invadida pelo estado-poder, que de pronto lhe retira um dos bens mais valiosos, ou seja, a liberdade.
No Brasil, a privação da liberdade do ser humano acarreta na retirada do indivíduo do meio social em que vive e o coloca em um sistema prisional que se encontra falido, que favorece o aumento da criminalidade em seus vários aspectos, tendo em vista a impossibilidade de ressocialização e a permanência de grupos criminosos em seu poder, onde a presença do estado existe apenas de maneira superficial, pois os verdadeiros comandantes são lideres de grupos organizados. Podemos aqui citar o Comando Vermelho, organização criminosa que nasceu na cadeia a partir de uma liga de presos. 10
Ao mencionar o tema organização criminosa criada nos presídios brasileiros, necessário um breve comento a respeito da facção criminosa, denominada Primeiro Comando da Capital, que com o passar dos anos, com as inúmeras prisões de membros da facção demonstrou ser institucionalizada e apresentar um Estatuto, onde uma de suas versões encontra-se apreendida no processo 14-2782-7 da comarca 0106, onde mostra tratar-se de uma facção altamente organizada, com recursos financeiros provenientes de práticas criminosas e que age no interior dos presídios brasileiros, demonstrando o fracasso estatal frente ao sistema prisional brasileiro.
Zaffaroni ao comentar a respeito da realidade de nosso sistema prisional descreve que
os riscos de homicídio e suicídio nas prisões são mais de dez vezes superiores aos da vida em liberdade, em meio de uma violenta realidade de motins, abusos sexuais, corrupção, carências medicas, alimentares e higiênicas, alem de contaminações devido a infecções, algumas mortais, em quase 80 % dos presos provisórios.11
Sobre o tema, interessante é a ponderação de Valter Fernandes e Newton Fernandes a respeito da prisão onde afirmam que as mesmas servem para que novos crimes sejam ali aprendidos, planejados para o futuro e arquitetados, quase à perfeição, em face das experiências trocadas pelos colégios de marginais, dos mais diferentes crimes, que sem nenhuma racionalização são agrupados em expiação a seus delitos. A cadeia, então, em vez de instrumento de custódia para recuperação de presos, passa a ser verdadeira escola de graduação e, não raro, pós-graduação para o cometimento de toda espécie de delituosidade12 .
Nota-se tratar-se da reprodução de valores sociais dentro de uma perspectiva concreta, ou seja, os valores estabelecidos dentro do sistema prisional estão fora do padrão social, ou pelo menos do padrão social comum dos indivíduos que vivem em liberdade. Isto quer dizer que um indivíduo para sobressair em uma cadeia, deve possuir costumes diferentes dos que estão fora deste ambiente prisional.
No entanto, não é de hoje que o sistema penal no Brasil invade nossa esfera de liberdade de forma abrupta e violenta e até mesmo mais violenta que o encarceramento. Como exemplo, recorremos à Zaffaroni ao abordar a respeito da intervenção estatal a partir de padrões repressivos em que o Brasil se acostumou historicamente em virtude de regimes ditatoriais vivenciados. Zaffaroni cita inúmeros casos, sendo um deles a invenção do chamado “esquadrão da morte” que era responsável pela execução sumária de acusados ou suspeitos de crimes patrimoniais e até mesmo de mendigos. Tal esquadrão pertencia ao DOPS/DOI-CODI, o qual Zaffaroni convencionou chamar de subsistema penal 13.
No entanto, apesar da violência do sistema penal, ele se faz imprescindível, pois é através dele que direitos relevantes inerentes ao ser humano são assegurados, bem como a paz social, pois, como aponta Durkhiem é impossível uma sociedade em que o crime não exista. A grande questão é como a sociedade se relaciona com ele e quais instrumentos de controle jurídicos postos para contê-lo em níveis mínimos aceitáveis. Isto quer dizer que uma sociedade, por mais complexa que seja sua estrutura, sempre terá em seu seio de convivência a criminalidade, em menor ou maior taxa, porém, o crime sempre existirá e o sistema penal, como conseqüência, terá que agir. No entanto, quando o sistema penal entra em ação ele entra de forma violenta, pois isto é o que o diferencia dos demais sistemas jurídicos existentes, e é essa violência que o faz com que seja respeitado e temido pelo ser humano, caso contrário, poderíamos viver em um estado de barbárie, pois as outras esferas jurídicas não oferecem o poder de intimidação oferecido pelo direito penal. Sendo assim, o direito penal é violento, essa violência é indesejável, porém, ela é tolerada (quando extremamente necessária) como ultima ratio.
Inevitável falar da violência do sistema penal sem falar de seu importante elemento, que é a pena, todo o sistema sancionatório efetivamente instituído passa por uma crise de justificação. Questões como a validade de sua função geral negativa, sob o argumento da intimidação e, com isso evitando o crime, tal em sua função geral positiva, sob o argumento de que o cidadão não infrator teria confiança no sistema social com um todo e, principalmente no sistema penal. Este último argumento, como bem lembram Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista, aproxima-se da tese de Emile Durkheim, onde o delito também tinha função positiva ao suscitar coesão social14 .
Enfim, desde sempre, tenta-se justificar a pena em seus mais diversos aspectos, lhe atribuindo varias funções, como prevenção especial positiva e negativa, onde a positiva o individuo ia ser melhorado e a negativa os efeitos de inferioridade do individuo infrator seria neutralizado. Para a teoria do direito penal mínimo a pena evitaria a vingança privada e estaria com a vítima no momento do fato e com o autor no momento da aplicação da pena, ou seja, estaria sempre com os mais fracos e somente nos casos mais graves. 15.
Nota-se que a violência do direito penal não se encontra somente no fato da restrição da liberdade, mas sim em vários outros aspectos, onde o individuo passará não só por um sistema prisional, mas por uma polícia muitas vezes repressora com resquícios do período ditatorial e, sem preparo suficiente para garantir aos direitos fundamentais do cidadão infrator, bem como por uma justiça lenta em que a conclusão do processo prolonga por anos, ocasionando ao individuo infrator da lei penal, não só um desconforto físico, como também emocional, ainda que em liberdade, pois, uma pessoa de acordo com o homem médio, sofre os anseios do processo, ou seja, um homem em sã consciência, sabendo da existência de um processo penal em que o mesmo é a parte ré, com certeza terá seu fator emocional prejudicado. Destarte, que estamos tratando da hipótese de um indivíduo que realmente infringiu a lei penal, salvo os inúmeros casos em que uma pessoa é investigada e processada e ao final do processo concorre a seu favor uma sentença absolutória.
Aury Lopes Junior e Gustavo Henrique Badaró afirmam que
o direito penal e o processo penal são provas inequívocas de que o Estado Penitencia (usando a expressão de LOIC WAC_QUANT) já tomou, ao longo da história, o corpo e a vida, os bens e a dignidade do homem. Agora, não havendo mais nada a retirar, apossa-se do tempo16 .
Em razão da nítida violência do direito penal é que o mesmo deve ser utilizado de maneira subsidiária, ou seja, deve se ater somente aos crimes mais graves, que são aqueles praticados com violência ou grave ameaça ao ser humano, em que o individuo infrator se prevalece do estado de fragilidade da vitima, seja essa fragilidade em virtude de sua idade, sexo ou porte físico, em razões do local do fato criminoso, em razão da ocasião em que a vitima foi abordada pelo criminoso, pelo objeto utilizado por este para a prática do delito, enfim, por inúmeros fatores, tanto de natureza física, como psicológica, como em razão de tempo, local e circunstâncias em que o delito foi cometido.
Da mesma maneira, o direito penal deve agir contra os ataques a bens jurídico relevantes, como a vida, que é o bem jurídico primordial do ser humano e do qual advém todos os demais direitos, pois sem ela não poderíamos falar em liberdade, patrimônio, moral, enfim, em nenhum outro direito. Porém, o ser humano possui uma gama de direitos, e não só a vida é relevante, mas também a integridade física, a liberdade de locomoção, a liberdade sexual, o patrimônio, enfim, direitos que merecem a devida intervenção penal.
Nota-se que não se pretende aqui, defender a não aplicação do direito penal, mas a aplicação digna do direito penal, qual seria a aplicação para os casos que realmente necessitam de sua intervenção, bem como a submissão do individuo infrator a um sistema que realmente implique em uma ressocialização e recolocação posterior no meio social, bem como um direito penal aplicado a todos os cidadãos cometedores de crimes graves e intolerantes e não um direito penal aplicável apenas a uma parcela de indivíduos, que de forma totalmente arbitrária é submetido à violência do poder estatal, sem a mínima dignidade humana e, a partir daí será taxado até o fim de sua existência humana como um criminoso e sua dignidade social subtraída pela sociedade, uma vez que em liberdade.
Por fim, trazemos aqui o pensamento de Michael Focault sobre os verdadeiros fins do direito penal, tema que será foco do próximo capitulo do presente trabalho.
Focault entende que a prisão: não reduz a criminalidade; produz reincidência; fabrica delinquência; não corrige; não pune e que seus objetivos são:
1- Ideológicos: Reprimir e reduzir o crime e;
2- Reais: Reproduzir a criminalidade tipificando crime de classes dominadas e excluindo os crimes de classes dominantes. Reproduzir as relações sociais (submissão ao poder das classes dominantes)
Para FOCAULT, o aparente fracasso do projeto técnico-corretivo da prisão, na verdade, é o seu êxito. Ou seja, a constituição de uma massa criminalizada é útil porque controla a população não criminalizada, encoberta os crimes das classes dominantes e atua como centro de controle 17 .
3 SELETIVIDADE DO DIREITO PENAL E A SELEÇÃO PENAL A PARTIR DO MODELO ORGANICISTA DE DURKEIM
Para abordar o tema da seletividade do direito penal, onde é possível visualizar um direito penal seletivo, onde apenas uma parte do grupo social é vitimizado pelo direito penal elitista, recorrere-se à criminologia radical que tem como expoente no Brasil Juarez Cirino Dos Santos.
O ideal da criminologia radical é identificar a desigualdade social como geratriz de um modelo criminógeno em nossa sociedade, para que seja possível entender e tratar o fenômeno passando pelo fenômeno econômico. No entanto, entende-se que é necessário ligar a política socialista com a criminologia para não se transformar em um ideal frágil. Tal ligação diminuiria a criminalidade e diminuiria a exploração econômica, uma vez que a referida corrente criminológica entende que quem detém o capital é quem impõe as regras e reprime os trabalhadores, desempregados etc.
Juarez Cirino afirma que as normas penais criminalizam delitos praticados especialmente pela classe dominada e não criminaliza delitos praticados pela classe dominante, como exemplo, não criminaliza crimes econômicos. Em razão desta não criminalização, ocorre o favorecimento tanto da criminalidade da classe dominante por razões de garantia de impunidades 18 como também favorece o crime da classe dominada, na medida em que grupos marginalizados têm maiores probabilidades ao crime 19.
A criminologia critica a criminologia tradicional no sentido de que ocorre uma estigmatização, onde detentos e ex-detentos ficam fora do mercado de trabalho e, com isso passam para a prática de atividades ilegais (crime também é uma indústria – capital ilegal) e são utilizados em esquadrões fascistas de repressão operária e sindical.
Sendo assim, o conceito burguês de crime exclui a classe dominante e só pune a criminalidade individual da classe dominada. Contudo, a criminologia radical defende o direito à segurança pessoal, a vida, a saúde, e as igualdades econômica, sexual e racial, pois entende que são direitos básicos, onde a violação de tais direitos passa a constituir crimes por empresas e instituições, relações sociais capitalistas, indivíduos etc...
A ideologia radical nasceu de um conceito proletário de crime fundado em direitos humanos, que entende que a origem do crime se situa nas condições estruturais do capitalismo, separando a situação da criminalidade individual da criminalidade estrutural, sendo aquela a resposta pessoal de sujeitos em situações adversas.
Juarez faz uma crítica a idéia do caráter fragmentário do direito penal, ao afirmar que tal característica apenas mascara essa intenção do direito penal em criminalizar condutas típicas das classes dominadas.
Notadamente a criminologia radical não surgiu por acaso, e sim de estudos, tais como de Jankovic, em 1977 e com o reforço dos estudos de Rusche e Kircheimer, que vinculam a prisão como meio de produção e reprodução de mão-de-obra, ou seja, faz uma relação entre prisão e mercado de trabalho.
Isto significa que, em situações de crise econômica, produz maior desemprego, maior criminalidade e maior número e maior rigor de prisões.
A criminologia radical20 vislumbra o direito penal como meio de controle social e como conseqüência, seletivo, onde apenas a classe menos favorecida economicamente é alvo do direito penal. Como exemplo cita o fato de antes a modalidade criminosa ser, em sua maioria, delitos de “sangue”. Porém, com a desigualdade econômica, aumentou a incidência de delito patrimonial, o que afetou interesses da burguesia, razão pela qual, os crimes patrimoniais foram submetidos a penas rigorosas. Ou seja, no medievo era fácil notar que os crimes em sua grande maioria eram de homicídio, de sangue, porém, na modernidade, o objeto jurídico mais afetado, passou a ser o patrimonial, onde as principais vítimas são os burgueses, sendo assim, a pena de tal crime passou a ser mais rigorosa, pois quem exerce o poder é a classe burguesa. Daí vislumbramos um direito penal a serviço da classe dominante. 21
Para a criminologia radical, com a burguesia no domínio social, cria-se um sistema penal privilegiado, onde crimes do colarinho branco são compensáveis pela certeza de impunidade, motivo pelo qual tais crimes se tornam um investimento lucrativo, pois as penas são de multa, transação penal e criação de tribunais especiais 22.
Em suma, no sistema atual, a prisão deixa de ser um aparelho às margens do sistema penal e passa a ser o centro de controle social na sociedade capitalista, tendo com isto um cunho político e econômico 23.
Contudo, a linha de pesquisa da criminologia radical apresenta como solução, coordenar a luta contra o uso capitalista do estado e organização capitalista do trabalho, onde a prisão seria utilizada para os casos mais duros (ex: homicídio) ocorrendo uma descriminalização, despenalização e desencarceramento, passando por um tratamento comunitário, ou seja, por controles de programas comunitários onde o processo de ressocialização deixaria de ficar a cargo do Estado e passaria para a comunidade. Em síntese, deixaria de ser uma criminologia de repressão para passar a ser uma criminologia de libertação 24 .
Porém, defende ao mesmo tempo criminalizar delitos praticados pelas classes dominantes, como a criminalidade econômica e política, no sentido de diminuir as diferenças de classes 25 .
Sobre a seletividade do direito penal e a criminologia critica, Alessandro Baratta entende que a criminologia crítica visa deslocar a atual política criminal, ou seja, uma migração do direito penal, que atualmente se aplica somente à camada desfavorecida da sociedade, para a aplicação também daqueles que detêm o poder e que praticam atos nocivos à sociedade, tais como crimes ambientais, econômicos, políticos etc., uma vez que a criminalidade está presente em todas as camadas sociais, porém, as classes dominantes são imunes à aplicação da lei penal. Sendo assim, é notável que na criminologia liberal exista uma criminalidade realmente perseguida 26 .
Muito interessante a ponderação de Eugenio Raul Zaffaroni e Nilo Batista a respeito do tema, onde afirmam que o delito praticado pela camada social mais desfavorecida é mais tosco, ou seja, sem inteligência, com ausência de aprimoramento, sendo assim, são tidos como os únicos delitos. Nas palavras dos mencionados autores:
O estereótipo criminal se compõe de caracteres que correspondem a pessoas em posição social desvantajosa e, por conseguinte, com educação primitiva, cujos eventuais delitos, em geral, só podem ser obras toscas, o que só faz reforçar ainda mais os preconceitos racistas e de classe, à medida que a comunicação oculta o resto dos ilícitos cometidos por outras pessoas de uma maneira menos grosseira e mostra as obras toscas como os únicos delitos. Isto leva a conclusão publica de que a delinqüência se restringe aos segmentos subalternos da sociedade. 27
Em síntese, nota-se que a criminalidade existe em todas as camadas sociais, porém, somente a camada mais desfavorecida sofre a ira do direito penal e, tais pessoas passam a serem taxadas socialmente de criminosas, o que gera ainda mais diferença social, uma vez que sua mão de obra, que já era baixa em razão do seu nível intelectual, passa a ser ainda mais baixa, pois o individuo fica impedido de ter um emprego de confiança e outros fatores discriminatórios que nós já conhecemos.
Por sua vez, crimes econômicos, ambientais, entre outros, são praticados por indivíduos ocupantes de uma classe social mais favorecida, e consequentemente com um nível intelectual mais apurado, onde sua descoberta se torna mais difícil, o acesso a um bom defensor e utilização dos inúmeros recursos protelatórios que o ordenamento jurídico disponibiliza, são mais bem utilizados, além do próprio sistema penal oferecer instrumentos que acarretam na não aplicação da pena, tal como termo de ajustamento de conduta, sursis, entre outros e, com isto, aumenta a diferença entre classes sociais, cria uma seletividade no sistema penal, criando uma sensação de que somente pessoas de determinados estereótipos praticam crime, como por exemplo, pessoas que vivem em determinada comunidade, pessoas que se vestem de determinada maneira, que possuem determinada cor de pele, etc..
Nota-se que aqui não pretendemos fazer críticas aos mecanismos penais de não aplicação da pena privativa de liberdade, mas tão somente demonstrar que o direito penal é aplicado de maneira desigual de acordo com as diferentes classes sociais, bem como mostrar que nosso sistema penal é seletivo, uma vez que classes economicamente e intelectualmente desamparadas estão mais suscetíveis a aplicação do sistema penal em relação aquelas classes economicamente e intelectualmente privilegiadas.
Pesquisas de Émile Durkheim em relação à formação de grupos sociais também nos levam a seletividade do direito penal, uma vez que nos mostra que as pessoas se juntam em grupos que são compostos em razão da sua igualdade. Exemplo disto são grupos de pessoas que se juntam e até mesmo são tidos como excluídos, pelo fato de se vestirem de determinada maneira diferente das demais pessoas de uma sociedade. Tal igualdade pode também se dar por uma determinada ideologia, como exemplo o “Black Blocks” e uma determinada torcida de futebol. Enfim, inúmeras são as igualdades que podem aproximar-se as pessoas em razão de usas características, formando assim grupos sociais.
O sociólogo Émile Durkhein afirma que tal conclusão se dá através de um processo de dedução, aonde, com a presença de determinado número de características, chega-se a conclusão da formação deste grupo. Ocorre que, tais grupos podem ser de inúmeros gêneros, bem como um grupo tido como criminógeno. Como ilustração, retornamos ao exemplo das pessoas que residem em determinada comunidade vista pelos munícipes locais como criminosos, em razão do alto índice de ocorrências policiais, existência da prática do delito de tráfico de drogas, homicídios, enfim, ocorrendo uma generalização de tal comunidade com o perfil criminoso.
Existem três características apontadas por Durkheim que permitem deduzir o individuo a partir do grupo, são elas a exterioridade, coercitividade e generalidade. São os fatos sociais, que possuem as características de serem exteriores aos indivíduos, se impor a eles e ser comum a todos os indivíduos que devem ser estudados pelo sociólogo.
A exterioridade significa que os fatos sociais existem fora do individuo, isto significa, por exemplo, que quando nascemos já existe uma língua pela qual teremos que ter o conhecimento porque ela já está pronta no meio social, vem de fora.
A coercitividade significa que os fatos sociais exercem uma coerção sobre os indivíduos que vivem em uma sociedade. Exemplo: se não falarmos a língua posta naquela determinada localidade, pagaremos o preço da ausência de comunicação com os demais indivíduos daquele meio social.
A generalidade significa que o fato social é geral, ou seja, ele é coletivo, é difundido no seio da sociedade, em razão das crenças, tendências e grupo de determinada sociedade 28 .
Émile Durkhein também explica os fenômenos sociais, afirmando que estes são exteriores aos indivíduos, onde o autor quer dizer que a mentalidade dos grupos não é a mesma dos indivíduos, ou seja, que os fatos residem na sociedade que os produz, e não em suas partes, não nos membros dos grupos. O fato social é tudo o que se produz na sociedade e pela sociedade, tudo que afeta e interessa ao grupo de alguma maneira 29 .
Émilie Durkheim nos ensina a pesquisar como sociólogo e, nos mostra que é necessário eliminar todas nossas noções prévias, nossas crenças políticas e religiosas, concentrando nossas atenções nos fatos, e ter como objeto de pesquisa um grupo definido por características que lhe são comuns, assim como chamamos de crime toda ação que é punida e fazemos do crime o objeto de uma ciência especial, a criminologia30 . Sendo assim, para explorar os fatos sociais, o sociólogo deve considerá-los por um ângulo onde eles se apresentem isolados de suas manifestações individuais, a fim de que não soframos influencias ao realizar uma pesquisa.
Durkheim diz que, em razão disto, os mesmos fatos são qualificados de forma diferente, segundo os sentimentos pessoais do pesquisador, como benéficos ou desastrosos e que todo fenômeno social, ainda que permaneça ele mesmo, possa adquirir formas diferentes de acordo com cada caso 31.
No entanto, o autor ressalva que o pesquisador deve perder o hábito de julgar as instituições como boas ou más, de forma indistinta, devendo também observar a fase em que os fenômenos ocorreram, ou seja, verificar o período evolutivo em que um fenômeno social se deu, de forma a serem analisados de maneira semelhantes. Com isso, estaríamos apenas classificando os fenômenos em grupos de acordo com as suas semelhanças e diferenças.
Assim procedendo, o sociólogo classifica o fato como geral e verificará se as condições que determinaram essa generalidade no passado ainda estão presentes, ou se elas mudaram, onde, no primeiro caso são classificadas como normais e no segundo não 32.
Émile Durkheim ressalva que um fato social que os criminologistas tratam como patológico é o crime, porém, o autor afirma que o crime ocorre em todas as sociedades e de todas as espécies, não havendo sociedade em que o crime não exista. Sendo assim, aplicando as regras acima descritas, o crime pode ser tratado como anormal, como exemplo, no caso de atingir uma taxa exagerada de criminalidade, caso contrário não, ou seja, o crime é um fato normal e é impossível existir uma sociedade isenta dele. Ele deve ser tratado como um fato de saúde pública em uma sociedade saudável.
Faz também uma ponderação, que o crime e sua maior e menor gravidade são dados pela consciência comum de uma sociedade e afirma que o mesmo é necessário, útil e indispensável para a evolução da moral e do direito e, caso eles não existissem, seria porque os sentimentos coletivos teriam chegado a um grau de intensidade sem precedente na história.
Muitas vezes o crime também é necessário à evolução de uma sociedade, como ocorreu em Atenas, onde Sócrates era tido como criminoso. A partir deste ponto de vista o criminoso não deve ser visto como um corpo estranho no meio da sociedade, mas sim como um agente regular da vida social. A diminuição exacerbada da criminalidade também não pode ser vista com muito entusiasmo, pois, sendo o crime um fato social normal, sua queda pode significar alguma perturbação social.
Sendo assim, o crime deve ser tratado como um fator normal e deve ser trabalhado para manter seu índice dentro do normal e, uma vez que perturba a ordem, deve se trabalhar para mantê-lo em seu estado de normalidade. Dessa maneira, não se deve buscar um ideal inalcançável, impossível, tal como ausência de criminalidade e, sim, deve-se buscar agir como um médico prevenindo a eclosão de doenças e, quando elas se manifestam, tentá-la curá-las.
Contrariamente a visão de Comte e de Spencer, que entendem que o homem, o individuo, é a base da sociedade, que é do homem que tudo surge e que não é a sociedade que reage sobre o individuo, sendo assim, a sociologia seria corolário da psicologia, Durkheim entende que é na sociedade que deve explicar a vida social, pois é ela que impõe a maneira de agir e de pensar do individuo, pois é necessário que as consciências sejam associadas, pois é de tal associação que surge a vida social.
Para ele o grupo pensa, sente e age de forma diferente de que fariam os seus membros de forma isolada 33. O sociólogo explica isto, dando o exemplo de que o homem individualmente não tem a opção de escolher o país em que nasce, a educação que recebe, bem como se irá entrar ou não na vida coletiva. Diante disto, as representações, emoções e as tendências coletivas, não têm como causa geradora à consciência dos indivíduos e, sim, as condições sociais em que se encontra o corpo social em seu conjunto34 .
Sendo assim, as causas que determinam um fato social, devem ser buscadas em fatos sociais antecedentes, e não entre os fatos da consciência individual; A origem de um fato social de alguma importância deve ser buscada na constituição do meio social interno. A psicologia deve auxiliar a sociologia, mas não deve ser o centro do seu estudo. As etapas da história ocorrem de forma distinta, não se sucedem. O estado precedente não produz o seguinte, embora a evolução, em regra, ocorra no mesmo sentido 35 .
Em sua concepção, o homem é fruto e produto do meio social em que está inserido, onde este meio gerará como conseqüência a seletividade do grupo, uma vez que este grupo será diverso do oficial.
No entanto, de acordo com as explicações do sociólogo, o individuo sofrerá a influência do grupo, mesmo que este seja voltado à criminalidade. Isto ocorre porque o homem sofre a influência do ambiente externo, ou seja, do meio social em que vive. Em razão disto, podemos explicar o fato da criança que vive em certas comunidades do Rio de Janeiro, se apoderar de uma metralhadora com o fim de protegerem a “boca de fumo”. No caso em tela, essa criança necessita disto para ser igual aos demais traficantes da favela, que usam o vestuário da moda e possuem a simpatia feminina daquela comunidade.
Inegavelmente, que essas características semelhantes que formam grupos diferentes daqueles oficiais, contribuem para a seletividade que, como explicada por Émile Durkheim, tal seletividade pode até mesmo ter a força de uma pena. É evidente que tal seletividade também contribui para a criminalidade ou, ao menos pensarmos que existe a criminalidade somente em determinado grupo, pois como pudemos verificar, a criminalidade está presente em todas as camadas sociais, porém, em razão da seletividade do direito penal, temos a falsa impressão de ser um atributo negativo apenas de certa parcela da sociedade.
Como visto, Durkheim nos explica como chegamos a formação de grupo social. Porém, tais grupos, também auxiliam para um direito penal seletivo, uma vez que ocorre uma dedução de grupos criminógenos, ou seja, indivíduos que se agrupam em razão de determinadas semelhanças, podem ser generalizados e vistos como “delinqüentes”, pelo simples fato de pertencer a algum grupo social em razão de sua semelhança com os demais indivíduos. Exemplo atualmente em evidencia é do individuo que sai às ruas para protestar legitimamente em razão de uma causa e, por pertencer ao grupo com os mesmos ideais, é visto como delinqüente e desordeiro sem que nunca tivesse quebrado intencionalmente uma caneta se quer.
O problema é que a partir a construção durkheiniana damos o álibi necessário para a construção de rótulos sociais e estigmas que recaem sobre grupos sendo automaticamente repasados para seus membros. Ora, assim, temos que a partir de aprioris inválidos, selecionamos boa parte da clientela penal. Tal seleção se mostra presente durante toda a persecução riminal, pasando pela prevenção policial, pelos procedimentos investigativos, por um processo que menospreza as garantias (de alguns com elevado grau de desdém) até o sistema prisional, que reproduz toda a lógica do sistema.
Sendo assim, como visto no exemplo acima, há uma dedução onde indivíduos são selecionados e generalizados por pertencerem a determinado grupo, construindo assim a ideia de que há realmente um comportamento criminoso esperado em alguns seguimentos sociais. Tal comportamento esperado é o que torna tão improvável a ocorrência de delitos nas camadas superiores da sociedade como previsível a violação da lei penal por outras menos favorecidas. A seleção penal reproduz esse imaginário que se sustenta pela ideia da generalidade, coercitividade e exterioridade que marcam o grupo na persectiva durkheiniana
Conclusão
Entendendo assim o direito, especialmente o penal como uma instancia subsidiaria de gestão do poder em sociedade a partir do controle social violento por parte do estado fica necessária uma leitura de como tal dinâmica repressora deve, amoldando-se ao estado (social) democrático de direito pode conter o gozo social como diria Lenio Streck, sem recair em um modelo de estado tirânico para que tenhamos uma percepção real das dimensões do problema uma analise critica, desvinculada das categorizações próprias da racionalidade moderna se faz necessária.
Não obstante, além do direito penal não estar sendo utilizado de maneira subsidiária, também vem sendo aplicado como mecanismo de seletividade social, uma vez que apenas parcela da sociedade é atingida pelo direito penal, sendo outra camada da sociedade beneficiada pela não aplicação do direito penal. Em decorrência disto, sugerimos por um direito penal de igual aplicação a todos os membros de um corpo social, a fim de que se evite uma diferenciação de aplicação do sistema jurídico, uma vez que essa diferenciação só gera sensação de injustiça aos que sofrem a força do sistema jurídico e sensação de impunidade para aqueles que não são atingidos pelo direito penal, onde, em ambos os casos só favorece ao aumento da criminalidade.
É notório que a criminalidade cometida por uma parcela mais favorecida do meio social, é tão grave como os demais crimes praticados pela camada menos favorecida, porém, naquelas, o individuo causador do dano ao bem jurídico é contemplado pela impunidade, que advém por diversos fatores existentes tanto no ordenamento jurídico como fora dele. Podemos citar a existência de inúmeros recursos, a existência de instrumentos do sistema jurídico em que acarretam na não aplicação da pena por delitos tipicamente praticados por indivíduos mais favorecidos dentro da sociedade, como exemplo dos delitos econômicos, dos delitos praticados contra administração pública etc, onde o fato mais notório e recente foi o mensalão. Outra causa de não aplicação do direito penal, que não podemos descartar é a corrupção existente em todas as instituições de aplicação do direito penal.
No entanto, não estamos pregando por um direito penal mínimo, máximo, ou abolicionista, mas sim por um direito penal aplicado somente aos delitos mais graves, onde proteja apenas os bens jurídicos mais relevantes e seja aplicado de forma igual a todos os membros de uma sociedade. No Estado moderno, não é mais cabível nos depararmos com sistemas prisionais em que imensa maioria dos detentos possui determinada cor de pele, qual seja a cor negra, bem como na grande maioria dos detentos o índice de escolaridade baixo e de condições econômicas baixas.
Também não é admissível nosso sistema penal estar lotado de usuários de drogas, que são presos por estarem servindo de “aviãozinho” ao tráfico de drogas, com a finalidade de sustentar seu vicio, enquanto os grandes traficantes estão nas ruas a serviço da criminalidade.
Á respeito da analise da criminalidade na perspectiva de Émile Durkheim, na qual o crime é um fenômeno social normal e, uma vez que este diminui exacerbadamente ou deixa de existir, significa que aquela sociedade está doente, é uma visão sociológica muito atraente e, mesmo nos dias de hoje, podemos até mesmo falar que moderna, porém, de perigosa concordância.
Natural verificarmos hoje, em muitos municípios, índice zero de homicídio por muitos anos, o que não significa que os sentimentos daquele corpo social chegaram em seu patamar máximo, bem como não é possível afirmar que aquela sociedade está doente.
Porém, inegável que o ambiente social contribui com a seletividade e com a formação de grupos tidos como criminosos, no entanto, não podemos descartar que o crime é realidade de todas as camadas sociais, mas, em virtude de uma padronização, principalmente por parte das instituições policiais, em que se dirigem em determinadas comunidades quando querem apresentar a força policial nas ruas, como também se dirigem apenas à alguns indivíduos, já taxados como criminosos, é que a taxatividade ou a seletividade aparece com mais ênfase. Para ilustrar melhor o fato descrito, recorreremos novamente ao exemplo da comunidade, ou seja, em uma reunião envolvendo os lideres da segurança publica do Rio de Janeiro, onde ficou determinada a ocorrência de uma enorme operação policial.
Onde será a provável operação policial, no bairro do Leblon ou na comunidade do Alemão? Da mesma maneira no município de São Paulo, onde será que ocorrerá a operação policial, na favela de Heliópolis ou no bairro Jardins? Nos dois casos, muito provavelmente, para não dizer com absoluta certeza, pode-se chegar à conclusão de que na comunidade do Alemão no município do Rio de Janeiro e na comunidade de Heliópolis no município de São Paulo. Mas será que no bairro do Leblon no Rio de Janeiro não existem criminosos ou traficantes, bem como no bairro dos Jardins em São Paulo? Com certeza sim, mas não para este direito penal seletivo, como o modelo atual brasileiro.
A crítica do sistema penal a partir de matrizes modernas acaba por servir de álibi para um modelo seletivo, ineficiente como sistema, antigarantista e consequentemente antidemocrático, o que viola a constituição do Brasil contemporânea, que tem como meta construir um Estado Social Democrático de Direito.
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1 MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocencio Martirez; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito constitucional. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2009. p. 393.
2 Ibidem, p. 398.
3 Ibid., p. 398.
4 BONFIM, Mongenout. Direito penal da sociedade. Belo Horizonte: Del Rey, 1997.
5 STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica jurídica em crise – uma exploração hermenêutica de produção do direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2011.
6 Que é importante ressaltar possa nem ser necessariamente os promotores das maiores violações, mas, com certeza, são os mais visíveis, o que também facilita a alienação, promovendo uma perspectiva maniqueísta onde há de um lado o homem de bem(ns) e de outro os malfeitores.
7 FERRÃO, Francisco Antonio Fernandes da Silva. Theoria do Direito Penal aplicada ao código penal portuguez, comparado com o código do Brazil, leis patrias, codigos e leis criminaes dos povos antigos e modernos. Lisboa: Imprensa Nacional, 1857. vol. VII. p. 109.
8 ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito penal brasileiro: primeiro volume – Teoria Geral do direito penal. 4. ed. Rio de Janeiro: Renavan, 2011. p. 49.
9 FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. 23. ed. Petrópolis: Vozes, 1987. p. 215-242.
10 SÁ, Alvino Augusto de; SHECAIRA, Sérgio Salomão (org.). Criminologia e os problemas da atualidade. São Paulo: Atlas, 2008. p. 219.
11 ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit.,p.126.
12 FERNANDES, Valter; FERNANDES, Newton. Criminologia integrada. 3. ed. São Paulo: RT, 2010. p. 377.
13 ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit., p. 477 – 479.
14 ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit.,p.122.
15 Ibidem, p. 125-128.
16 LOPES JUNIOR, Aury; BADARÓ, Gustavo Henrique. Direito ao processo penal no prazo razoável. 2. ed. Belo Horizonte: Lumen Juris, 2009. p. 6.
17 FOUCAULT, Michel. Op. cit., p. 56-57.
18 SANTOS, Juarez Cirino dos. A criminologia radical. Rio de Janeiro: Forense, 1981. p. 34-35.
19 Ibidem, p. 30-32.
20 Variante da criminologia crítica de Alessandro Baratta, trazida ao Brasil por Juarez Cirino dos Santos
21 Ibidem, p. 51-52.
22 Ibidem, p. 51-52.
23 Ibidem, p. 53.
24 Ibidem, p.79-85.
25 Ibidem, p.79-84.
26 BARATTA, Alessandro. Criminologia crítica e crítica do direito penal. Rio de Janeiro: Revan, 2011p. 198.
27 ZAFFARONI, E. Raul; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Op. cit.,p. 48.
28 LEMOS FILHO, Arnaldo; BARSALINI, Glauco; VEDOVATO, Luis Renato et al. Sociologia geral e do direito. 3. ed. Campinas/SP: Alínea, 2008. LAKATOS, Eva Maria; MARCONE, Marina de Andrade. Sociologia geral. 7. ed. São Paulo: Atlas, 1999.
29 Ibid., p. 25.
30 Ibid., p. 55-58.
31 Ibid., p. 73.
32 Ibid., p. 78.
33 Ibid., p. 110-115.
34 Ibid., p. 116.
35 Ibid., p. 119 – 126.
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