Elaine Cristina Musculini (CV)
elainemusculini@hotmail.com
Universidade Federal da Grande Dourados
RESUMO
O presente artigo tem, timidamente, o intuito de iniciar uma reflexão de como o espaço é pensado e construído hoje, e o que podemos vir a entender por “nossos espaços”. Existe uma gama de possibilidades e questões para pensarmos os espaços, e em dados momentos, elas se entrecruzam, fazem movimentos dinâmicos e dialéticos ao mesmo tempo. Podemos perceber, de um lado uma desfronteirização, ampliando o horizonte do “mundo sem fronteiras”, sem limites, e nos dizeres de Hanciau “abre novos campos de aceitação e identidade” (2005, p. 140); e de outro lado, visualizamos uma fragilidade, uma insegurança quando evidencia-se o processo de globalização. A categoria de análise “espaço” coloca-se em ângulo privilegiado de abordagem, existe a idéia pós-moderna de “espacialização” como teoria social do momento. Essa espacialização nos remete a uma globalização e a consequente imaginação de existência de espaço livre e sem limites. Este termo – livre – por sua vez, envia-nos a idéia de algo bom, o objetivo almejado por todas as sociedades, e é claro que os espaços não deveriam ter limites nessas circunstâncias. Surgem duas “imaginações geográficas” acerca do espaço global, e totalmente antagônicas: o espaço livre e o espaço dos lugares locais, onde percebe-se a diferença, a desigualdade. Espaços, território, territorialidades, fronteiras, limites, globalização, mundialização, são imagens (visuais e não visuais), são processos, são formas que podemos visualizar como também experimentar, cotidianamente e a partir de várias reflexões, vários olhares.
PALAVRAS-CHAVE: Espaço, Território, Territorialidades, Globalização, Fronteira.
COMPREENDER O ESPAÇO
Antes mesmo de tentar perceber os “nossos espaços”, precisamos analisar o que é o espaço, como ele se forma ou melhor dizendo, é formado, suas peculiaridades, para virmos tomá-lo como nosso.
Como aponta Santos, 2002:
Espaço. Finito ou infinito, relativo ou absoluto, receptáculo ou, simplesmente, um “invólucro” dos objetos, o uso de tal categoria é, sem dúvida, e em nossos dias, praticamente obrigatório em qualquer tipo de debate acadêmico. (p. 15-16)
Muitas vezes cometemos a falha de, ao tentar compreender o espaço, utilizarmo-nos de recursos que só nos fazem descrevê-lo, e não entendê-lo. Isso reduz a sua importância, haja vista que ela passa da matéria pura e simples e desemboca numa rica imaterialidade. Ou nas palavras de Santos, “espaço tem se mostrado muito mais uma categoria da metafísica que da física propriamente dita”. (2002, p. 17)
Podemos perceber, através de leituras de discursos em torno do espaço, que vários pensadores – sejam eles filósofos, teólogos, geógrafos, etc – tendem a separar o sujeito e o objeto, fazendo com que o objeto seja algo metafísico, ou seja, abstrato, paradigmático, divinizado.
Ainda para Santos:
Assim, no campo da geografia, tornou-se possível construir todo um discurso sobre um conjunto de objetos que, na verdade, não existem enquanto tais: o relevo, o clima, enfim, o mundo físico ou, visto por outro ângulo, a sociedade, a economia e os mais diferentes temas geográficos cujo único fundamento é, na verdade, a reificação de parcelas do real, transformando-as em objetos mortos com base num conceito de espaço que, na melhor das hipóteses, indica-o como abstrato. (2002, p. 23)
Para a verdadeira compreensão desse fenômeno que é a construção/reconstrução espacial, precisamos refletir sobre o movimento que cria e recria essa espacialidade, incluindo nessa reflexão, a ação humana. Espaço e tempo como sendo categorias básicas da ciência moderna, precisam ser analisados a partir do movimento da sociedade. A identidade do indivíduo realiza-se na construção da identidade dos lugares. Para Santos, a construção cultural da humanidade é, entre outras coisas, a construção de sua geografia. (2002, p. 23)
A categoria espaço tornou-se rica em significados e fica complicado eleger algum que expresse realmente nosso pensamento. Isso ocorre porque construímos um jogo simbólico na nossa relação com o mundo. Essa construção só acontece porque existe algo novo ocorrendo, porém sempre correlacionado com algo já construído, ou seja, uma dialética de construções e reconstruções. Um processo contínuo de fusão e ruptura, nas palavras de Santos, isso implica em algum tipo de deslocamento, ir e vir são o ato primário da construção.
Temos, hoje, uma sistematização simbólica entre espaço e tempo, criada a partir das transformações advindas do desenvolvimento da sociedade burguesa. Nos dizeres de Santos:
Produto e condição do processo, o que pensamos ser espaço e tempo são, na verdade, a ferramenta que possuímos para sistematizar a nossa relação com o mundo da maneira como hoje ele se nos apresenta. O mundo da acumulação, que só se torna praticamente possível na medida em que conquista o controle sobre a dinâmica das coisas, criou, a seu favor, o discurso da “transformação”, pois a mera descrição é incompatível com um processo produtivo que, cada vez mais e melhor, deve colocar tudo de que dispõe – matéria prima, máquina, força de trabalho, etc. – a serviço da produção e reprodução ampliadas dos processos de apropriação do trabalho. (2002, p. 29)
Como podemos perceber, a construção espacial só é possível porque existe uma transformação, gerada a partir da ação de um ente, de vários entes, de toda uma sociedade. Como aponta Raffestin (1993), o espaço só existe em função dos objetivos intencionais do ator (p. 147).
PERCEBENDO “NOSSOS ESPAÇOS”
“Nossos espaços” são, então, “nossas construções”, “nossas transformações” no mundo. A partir dessas construções, reconstruções, ações no/do espaço, temos a formação dos territórios e territorialidades (nossos territórios e nossas territorialidades). O espaço é, portanto, anterior ao território. Como aponta Raffestin:
O território se forma a partir do espaço, é o resultado de uma ação conduzida por um ator sintagmático (ator que realiza um programa) em qualquer nível. Ao se apropriar de um espaço, concreta ou abstratamente (por exemplo, pela representação), o ator “territorializa” o espaço. (1993, p. 143)
O território é o espaço onde colocamos alguma energia, algum trabalho. Ainda nos dizeres de Raffestin, o espaço é a prisão original e o território é a prisão que os homens constroem para si. Em graus diversos, em momentos diferentes e em lugares variados, somos todos atores sintagmáticos que produzem territórios.
As formações socioespaciais, em geral, estão intimamente ligadas às mudanças da própria sociedade, como parte dela, portanto, e incluindo a historicidade de seus agentes, que produzem e reproduzem relações sociais. Porém, há de se salientar que essa formação não ocorre de maneira linear e sem contradições: a espacialidade é muito mais complexa, onde se interagem diferentes elementos – materiais e imateriais –, tanto econômicas quanto sociais, culturais e políticas.
Essa dinâmica espacial é estudada pela Geografia através dos fenômenos que ocorrem nas sociedades e que participam da produção do espaço, tentando decifrar os “porquês” das práticas e disputas sociais.
Como esse arranjo socioespacial é algo dinâmico e que está constantemente em mutação, é difícil delimitar os diversos territórios por medidas, por metros, por fronteiras visíveis como cercas, muros. É necessário compreender o território além desse conceito de espaço delimitado.
Para essa compreensão, necessário se faz analisar o território sob uma visão, não meramente ligada à questão política e às relações de poder inerentes a ela, mas visualizar outros aspectos tão importantes quanto, como por exemplo, a questão da identidade, a questão cultural, os movimentos sociais que fazem com que o território se transforme no local da vida, no âmbito das experiências pessoais. Outro ponto importante a ser salientado é que não é o espaço puro e simplesmente um local parado no tempo, ermo, pacato, ao contrário, ele está em constante movimento. Isso não quer dizer que o local migre, ande, mas que o espaço é o lugar das práticas, o local dos acontecimentos sociais, que são feitos e refeitos pelas pessoas que nele estão inseridas. São essas ações que se fazem e perfazem e que constituem o território.
Faz-se importante compreender o conceito de território na Geografia. Há diversos autores que discorrem sobre o tema, e cada qual trata do assunto de acordo com suas concepções teórico-metodológicas. Há as vertentes políticas, econômicas, culturais, naturais, mas dentre todos os conceitos analisados, encontra-se pontos de comum acordo.
Raffestin dá ao conceito de território um caráter político, enfatizando o espaço onde se constrói uma nação, as fronteiras e a ação do homem na transformação do meio. Outro significado político é o de Friedrich Ratzel, onde o território é ponto de partida para o exercício do poder, não destacando muito a diferença entre território e o solo.
Já Rogério Haesbaert discute o território nas suas mais variadas formas, tanto político, quanto econômico e social. Politicamente, descreve o poder que delimita e controla um espaço; no que se refere ao aspecto econômico, é o espaço onde é empregado o fator capital-trabalho; e o território social, aquele que é produzido tem por base a inclusão e exclusão de indivíduos ou grupos, por exemplo. Como aponta o autor:
- política (referida às relações espaço-poder em geral) ou jurídico política (relativa também a todas as relações espaço-poder institucionalizadas): a mais difundida, onde o território é visto como um espaço delimitado e controlado, através do qual se exerce um determinado poder, na maioria das vezes – mas não exclusivamente – relacionado ao poder político do Estado.
- cultural (muitas vezes culturalista) ou simbólico-cultural: prioriza a dimensão simbólica e mais subjetiva, em que o território é visto, sobretudo, como produto da apropriação/valorização simbólica de um grupo em relação ao seu espaço vivido.
- econômica (muitas vezes economicista): menos difundida, enfatiza a dimensão espacial das relações econômicas, o território como fonte de recursos e/ou incorporado no embate entre classes e na relação capital-trabalho, como produto da divisão “territorial” do trabalho, por exemplo. (2006, p. 71)
Na perspectiva de Marcelo Lopes de Souza (2001), o território é conceituado do ponto de vista político e cultural, salientando as relações de poder não apenas do Estado, mas também de grupos, indivíduos. Para este autor, no interior da sociedade existem vários territórios, como, por exemplo, o território da prostituição, do narcotráfico, das gangues, etc.
Marcos Aurélio Saquet, por sua vez, discorre sobre o território da seguinte maneira:
O território é produzido espaço-temporalmente pelas relações de poder engendradas por um determinado grupo social. Dessa forma, pode ser temporário ou permanente e se efetiva em diferentes escalas, portanto, não apenas naquela convencionalmente conhecida como o ‘território nacional’ sob gestão do Estado-Nação (2004, p. 81)
Para o autor Manoel Correia de Andrade, o território é visto e analisado sob os aspectos econômicos, políticos, jurídicos, de controle de determinado espaço:
O conceito de território não deve ser confundido com o de espaço ou de lugar, estando muito ligado à idéia de domínio ou de festão de uma determinada área. Deste modo, o território está associado à idéia de poder, de controle, quer se faça referência ao poder público, estatal, quer ao poder das grandes empresas que estendem os seus tentáculos por grandes áreas territoriais, ignorando as fronteiras políticas (1995, p. 19)
Faz-se necessário também diferenciar os territórios a partir das distinções dos sujeitos que os constroem, quer sejam eles um grupo de indivíduos, de empresas ou instituições. Toda a forma de se apropriar desses territórios, de controlá-los, mudam conforme a cultura, o comportamento de cada sociedade. Nesse sentido, há uma certa manipulação do território, no intuito de controlar os comportamentos, as relações. Nesse sentido, Sack afirma que “a territorialidade, como um componente do poder, não é apenas um meio para criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter grande parte do contexto geográfico através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado”. (1986, p. 219)
Rogério Haesbart, no mesmo sentido diz:
todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar “funções” quanto para produzir “significados”. O território é funcional a começar pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo (“lar” para o nosso repouso), seja como fonte de “recursos naturais” – “matérias-primas” que variam em importância de acordo com o(s) modelo(s) de sociedade(s) vigente(s). (2005, ANAIS X Encontro de Geógrafos da América Latina)
Na medida em que transpassa a relação de poder, tanto econômica, quanto social, política, para os espaços vividos, aqueles que são experimentados, sentidos, realmente vivenciados, os territórios passam a serem múltiplos, tornando múltiplos, também, os espaços vividos.
Dentro desse espaço transformado e trabalhado, existem as ações individuais, de pessoas que compartilham interesses, necessidades, isto é, a sociedade produz o espaço de acordo com seus interesses, porém em consonância com outros fazeres, múltiplas trajetórias. A este respeito, Gomes diz:
essa relação da sociedade com o espaço pressupõe a existência de indivíduos, ou seja, unidades autônomas, com variadas gamas e níveis de expectativas, interesses, propostas e práticas sociais. As diferenças entre esses indivíduos são, em princípio, infinitas, e os únicos fundamentos comuns são a consciência da diversidade e a crença de que a associação dessas diferenças pode ser a estratégia mais adequada para se ter êxito na realização de seus interesses, tanto aqueles que são gerais quanto os particulares a cada um. (2004, p. 119)
Este mesmo autor aponta que a noção de território é decorrente de uma delimitação espacial, e que o fato de estabelecer limites, cria-se uma classificação e uma separação das coisas que têm como parâmetro fundamental sua distribuição no espaço.
o território é um conceito que atua como uma das chaves de acesso à interpretação de práticas sociais circunscritas a uma dada porção do espaço. O território é o limite dessas práticas, o terreno onde elas se concretizam e, muitas vezes, a condição para que elas existam. (2004, p. 136)
Tem-se, então, algo importante a ser considerado: a diversidade de fazeres, de viveres no local. Esta proximidade dos lugares decorrentes de uma vida cotidiana dos laços sociais. Para Ortiz:
quando nos referimos ao “local”, imaginamos um espaço restrito, bem delimitado, no interior do qual se desenrola a vida de um grupo ou de um conjunto de pessoas. Ele possui um contorno preciso, a ponto de se tornar baliza territorial para hábitos cotidianos. O “local” se confunde assim com o que nos circunda, está “realmente presente”, nos acolhe com sua familiaridade. (1997, p.56)
Cada personagem nesse espaço constitui um elemento específico, e a sua essência exprime uma identidade, e todos eles expressam suas relações com o lugar.
Apesar dessas pessoas estarem em constante contato, e próximas umas das outras, num plano físico, as suas realidades não se articulam, cada qual tem seus propósitos, e a partir disso podemos afirmar a existem de múltiplos territórios. De acordo com Ortiz, nesses espaços manifestam-se as “implicações das histórias particulares a cada localidade, realidades que não se articulam necessariamente com outras histórias, mesmo quando imersas no mesmo território”, e ainda, notar o “espaço como um conjunto de planos atravessados por processos sociais diferenciados”.
E quando esses territórios passam a ser espaços vividos? Quando essas pessoas inserem no local os seus olhares, seus fazeres e viveres de modo a tomá-lo como seu? De acordo com Bonnemaison “A correspondência entre o homem e os lugares, entre uma sociedade e sua paisagem, está carregada de afetividade e exprime uma relação cultural no sentido amplo da palavra”. (2002, p. 109).
As pessoas percebem diferentemente os locais, inserindo cada qual seus sentimentos, de acordo com critérios vários, um sabor, um cheiro, uma beleza, um apego, dentre outros. Ainda para Bonnemaison:
A territorialidade se situa na junção dessas duas atitudes; ela engloba simultaneamente aquilo que é fixação e aquilo que é mobilidade – dito de outra maneira, os itinerários e os lugares. (...) a territorialidade é compreendida muito mais pela relação social e cultural que um grupo mantém com a trama de lugares e itinerários que constituem seu território do que pela referência aos conceitos habituais de apropriação biológica e de fronteira. (2002, p. 110)
Ainda para o autor podemos estabelecer dois parâmetros conceitos sobre o espaço, um social e outro cultural, sendo que o primeiro é produzido, concebido em termos de organização e produção, e o segundo é vivenciado, concebido em termos de significação simbólica. Para ele:
a territorialidade de um grupo ou de um indivíduo não pode se reduzir ao estudo de seu sistema territorial. A territorialidade é a expressão de um comportamento vivido: ela engloba, ao mesmo tempo, a relação com o território e, a partir dela, a relação com o espaço “estrangeiro”. Ela inclui aquilo que fixa o homem aos lugares que são seus e aquilo que o impele para fora do território, lá onde começa “o espaço”. (2002, p. 114)
Ainda sobre a territorialidade, Gomes aponta que:
É possível afirmar que os três principais fatores da territorialidade humana são a classificação das coisas e das relações por área, o controle de uma determinada porção do espaço e a comunicação da efetividade desse poder. A expressão da estratégia utilizada para o aparecimento de uma territorialidade em grupos humanos é, portanto, fruto de uma dinâmica social, revelado por um certo código de condutas que poderíamos chamar de cultural e o acesso ao controle muito mais sutil do que simplesmente aquele ditado pelo uso da força ou da intimidação direta. Tudo isso se relaciona a necessidades e interesses muito mais complexos do que a simples reprodução física do grupo. (2004, p. 136-137)
Existe, de acordo com Gomes, uma progressão das identidades territoriais, que se origina a partir das diferenças existentes entre os grupos e até mesmo indivíduos. Temos então uma gama de identidades traduzidas no espaço, em virtude das dicotomias, das disparidades, e porque também não dizer, dos conflitos. Conforme o autor:
O território próprio ao grupo é concebido como um terreno onde as regras que fundam a identidade gozam de uma absoluta e indiscutível validade. A predominância do nível coletivo é total, e a oposição e a diferenciação são estabelecidas em relação à figura de um outro, que é exterior ao grupo. O espaço é, sob essa dinâmica, sempre objeto de conflitos, pois estabelecer um território de domínio de um grupo significa a afirmação de sua diferença em oposição aos demais. Esse fenômeno é também conhecido como tribalização e é em parte o responsável pela transformação da imagem da cidade contemporânea. (...) Ela traduz a idéia de mosaico, de unidades independentes justapostas. (2004, p. 180-181)
Todas essas construções são possíveis porque no espaço existe ‘movimento’, isto é, o espaço se territorializa a partir das contradições, das ações, das relações, no tempo.
a territorialização constitui e é substantivada por diferentes temporalidades e territorialidades, resultado e condição dos processos sociais em interação com a natureza exterior ao homem; é marcada pelo movimento de reprodução de relações sociais (...) (SAQUET, 2008, p. 45)
Para o autor, para o pesquisador é necessária a cautela de estar atento aos detalhes na compreensão da multidimensionalidade e da multiterritorialidade, umas vez que os territórios estão interligados, e ligam-se de diferentes formas, incessantemente. Ainda para ele:
O movimento é fruto de determinações territoriais, materiais e imateriais, ao mesmo tempo; de contradições sociais; das forças econômicas, políticas e culturais que condicionam os saltos. A matéria e a idéia, conjugadas, estão em movimento constante, em que, há superações, articulações territoriais, internas e externas a cada território. (2008, p. 47)
Para Haesbaert, a multiterritorialidade, num sentido tradicional seria algo como a sobreposição de territórios.”hierarquicamente articulados, encaixados”.
A realização da multiterritorialidade contemporânea, fica evidente, envolve como condições básicas a presença de uma grande multiplicidade de territórios e sua articulação na forma de territórios-rede. Estes, são, por definição, sempre, territórios múltiplos, na medida em que podem conjugar territórios-zona (manifestados numa escala espacialmente mais restrita) através de redes de conexão (numa escala mais ampla). (2008, 32)
A multiterritorialidade seria então uma emergente maneira de encarar a ‘apropriação’ do espaço, onde percebemos o território a partir das relações sociais construídas no espaço, e não simplesmente um espaço ermo, parado. A formação das territorialidades não é um fenômeno advindo apenas de instituições, de entidades como o Estado, como organizações financeiras, dentre outros órgãos, como também construídas a partir de vivências, de fazeres, de trajetórias individuais. Importante então se faz entender e estudar a multiterritorialidade em consequência do que hoje nos está colocado, isto é, territórios analisados a partir de uma ótica em movimento, em constante construção, em mutação, e não mais um território imóvel.
Após todas essas leituras e tentativas de compreender a dinâmica espacial, podemos pensar que o território, hoje, como espaço dominado, usado e apropriado, manifesta um sentido múltiplo, se em escala, seja em dimensão, e que será corretamente entendido a partir de uma concepção de uma multiterritorialidade. Estes seriam nossos espaços, nossos lugares, que produzimos, reproduzimos, tomamos como próprios, e que interagem com espaços, lugares, produções de outros agentes, de diversas formas e maneiras. Existe movimento, existe ação, existe dinamismo, existe Geografia.
ESPAÇOS SEM FRONTEIRAS?
Como já mencionado anteriormente, temos hoje, a idéia de que o espaço é um ângulo privilegiado de abordagem. Espacializar é o verbo da moda. Nas palavras de Massey: espacialização da teoria social. De acordo com a autora:
Um exemplo produtivo deste fato foi a preocupação pós-colonial de reelaborar os debates sociológicos sobre a natureza da modernidade e sua relação com a globalização. Sem dúvida, para um certo número de autores, a “globalização” foi a principal forma tomada por esse esforço de espacializar o pensamento sociológico. (2008, p. 99)
Existe uma idéia de que a globalização retrata um mundo totalmente integrado, uma imaginação de instantaneidade, e como aponta Massey, isso remete a um novo disfarce, o espaço como a coerência sem costuras de uma estrutura estruturalista. (2008, p. 118)
O termo “globalização” é um dos mais usados ultimamente, e também mais poderosos em nossas imaginações geográficas e sociais. Remete-nos à idéia de uma mobilidade desimpedida, de espaço livre e sem limites.
Podemos perceber nos discursos que nos são impostos como “verdades”, uma forma específica de globalização do momento – capitalista, neoliberal, conduzida por multinacionais, etc. – e que é considerada como única e inevitável forma de sistema. Qualquer ordem contra essa norma irá encontrar a resposta de que o mundo se tornará cada vez mais interconectado.
Esses discursos conduzem – principalmente, para não dizer totalmente – os países do Sul de que há um modelo a ser seguido, o modelo do desenvolvimento, o modelo do crescimento, o modelo dos países do Norte, que é o caminho para uma forma de modernização, do atual, no novo, do certo.
Ainda de acordo com Massey:
No Sul é esta compreensão do espaço do futuro (como espaço comercial global sem limites) que permite a imposição de programas de ajustamento estrutural e seus substitutos. É esta compreensão da inevitabilidade dessa forma de globalização que torna legítima a imposição de políticas voltadas para a exportação na economia de um país a outro, a priorização das exportações sobre a produção para consumo local. (2008, p. 128-129)
Enquanto isso, o Norte continua como base para decisões, e perpetuam a idéia de que não há nada que possa ser feito para frear os efeitos da globalização. Este é o projeto, esta é a ideologia imposta.
Esta idéia de espaço global é uma imagem através do qual o mundo está sendo feito, e não necessariamente a descrição desse mundo. Isto é, ao invés de percebermos um espaço dividido e delimitado, visualizamos um espaço sem barreiras e aberto. Porém sabemos que o mundo não é dessa maneira, totalmente globalizado, o próprio fato de que existem países se empenhando em fazê-lo é prova de que o projeto está incompleto. Como aponta Massey:
isto é mais do que uma incompletude – mais do que uma questão de esperar que os retardatários os alcancem. Há múltiplas trajetórias/temporalidades aqui. Mais uma vez, como no caso da modernidade, está é uma imaginação geográfica que ignora as subdivisões estruturadas, as necessárias rupturas e desigualdades, as exclusões das quais depende o sucesso de prosseguimento do próprio projeto. (2008, p. 129)
Na verdade, o que ocorre é a globalização da economia, e como aponta Oliven:
Hoje, mais do que multinacionalizada, a economia está se caracterizando por grandes corporações transnacionalizadas, com o capital espalhado em diferentes nações, vendendo frequentemente mais fora do que dentro de seu país de origem, recrutando executivos em qualquer lugar do mundo a partir de critérios de eficiência e não mais de nacionalidade. (2006, p. 165)
E vemos então, que esses processos desencadeiam também questões no âmbito da cultura, criando-se estilos de vida mundializados. Podemos perceber claramente que existem padrões de consumo e de gosto que refletem essa internacionalização da cultura. Ainda de acordo com Oliven:
Se antigamente as culturas tendiam a ser associadas a um território e a identidades definidas, o que se verifica atualmente é um cruzamento das fronteiras culturais e simbólicas que faz com que haja uma desterritorialização dos fenômenos culturais. Uma manifestação simbólica que surge num contexto migra para outros e é recontextualizada. É claro que essa adoção não é passiva e implica sempre reelaboração. Isso significa que as culturas se tornam cada vez mais híbridas. (2006, p. 166)
Ocorre aí uma intensa dialética: por um lado temos a idéia (imaginária) de globalização dos espaços, como um “mundo sem fronteiras”, onde podemos ser/estar qualquer espaço/tempo. Nesse sentido, fechamos os olhos então para muitas problemáticas colocadas em nosso plano do vivido, como por exemplo, as fronteiras reais, isto é, materiais, existente entre o México e os Estados Unidos da América; ou os confrontos no Oriente Médio; ou as profundas desigualdades sociais (e também espaciais) que não precisamos ir tão longe para visualizarmos, estão estampadas cotidianamente nas ruas, debaixo da ponte, nas favelas, nas aldeias indígenas, dentre muitos outros locais onde as disparidades não se mostram, mas sim, gritam.
Porém, por outro lado, essas diferenças se recolocam às nossas reflexões e percepções. À medida em que o mundo se torna mais complexo e se internacionaliza, há um processo inverso que possibilita a construção e/ou afirmação de identidades. Ainda de acordo com Oliven:
Se a unificação nacional ocorrida no passado se mostrou contrária à manutenção de diversidades regionais e culturais, o mundo está em parte assistindo justamente à afirmação das diferenças. (2006, p. 166)
Com a globalização/mundialização, a tendência é o mundo torna-se cada vez menor, por não ter mais espaços para abarcar, e com isso, é natural que os atores sociais procurem objetos de identificação mais próximos, e não mais o “mundo do Norte”. Podemos perceber a emergência de novos discursos, diferentes sujeitos, dinâmicas de fronteiras. Enfrentamos uma cultura em movimento que resulta em novas temporalidades, novas regionalizações. A dialética reside no fato de que o mundo globalizado gera tanto as fronteiras que se apagam, dissolvendo os localismos, como tanto acirram as questões identitárias, nos dizeres de Hanciau:
Figurando um “ir-e-vir” não apenas de lugar, mas, também, de situação ou época, a dimensão de fronteira possibilita o surgimento de algo novo, híbrido, diferente, mestiço, um “terceiro”, que se insinua na situação de passagem. (2005, p. 134)
A dinâmica desse “ir e vir”, faz nascer virtualidades e contrariedades, complementaridades e antagonismos, que têm por resultado, configurações novas, imprevisíveis. (Hanciau, 2005, p. 138). Esta poderia vir a ser a real idéia de mundo globalizado. Que viesse como um contraponto, como um contra-discurso à hegemonia do capital, contra a globalização perversa.
EM BUSCA DE UMA CONCLUSÃO
Sem ter a pretensão de encerrar um assunto tão complexo e importante, podemos dizer que espacializar é, antes de qualquer coisa, o modo pelo qual nos apropriamos do espaço, criamos, construímos nossos territórios e territorialidades, vislumbramos e identificamos nossos limites, nossas fronteiras.
E a partir dessa reflexão de construção de “nossos espaços”, podemos perceber e iniciar uma caminhada no intuito de questionar a globalização, a ideologia do “mundo sem fronteiras” que ora nos é colocado como discurso competente e hegemônico.
Percebemos nesses discursos que a globalização é colocada como inevitável, a economia, tecnologia, culturas dominantes, são colocadas para além do debate político, fazendo dessa tal mundialização, o único caminho a ser seguido. Fazendo isso, estamos fechando os olhos às multiplicidades espaciais, não reconhecemos que existem outras dinâmicas de territórios, de identidades.
Vislumbramos uma globalização perversa, que abarca apenas espaços que são interessantes, rentáveis, ela não é um movimento que abarca tudo, muitos ficam à margem de todo o processo. Temos então essa globalização que possui cães farejadores para detectar pessoas que se escondem em porões de navios, pessoas morrendo na tentativa de cruzar fronteiras, pessoas, precisamente, tentando “buscar as melhores oportunidades. (Massey, 2008, p. 132)
A globalização neoliberal como prática material e como discurso hegemônico é ainda mais uma em uma longa série de tentativas de subjugar o espacial. E atentar para as essências das espacializações é primordial para iniciar um processo de resistência e/ou fomentar/fortalecer processos já existentes, no intuito de construir alternativas contra a lógica do capital.
Nossos espaços nos espaços do mundo são nossas “territorializações”, nossas formas de nos apropriar/utilizar dos lugares. Nessa nossa trajetória, nos vemos envolvidos por processos que vão além de nossas vontades: processos hegemônicos, relações de poder, dentre outros, que nos fazem acreditar (ou não) que vivemos num mundo criado para nós, sem fronteiras, que somos livres e não temos nenhum impedimento para “ir e vir”. Em consequência disso, deparamo-nos com os limites (mesmo que invisíveis a priori), de um mundo construído para e por sujeitos que não estão interessados em globalizar, mas sim em cerrar as possibilidades de uma verdade mundialização, que seria a contenção das disparidades, das dicotomias, respeitando as diversidades locais, regionais e das identidades.
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