Bartolomeu Leite da Silva (CV)
blsic@hotmail.com
Universidade Federal da Paraíba
Resumo
Mundo da vida (Lebenswelt) é um tema que surge no campo de uma filosofia fenomenologicamente transformada, num cenário onde a filosofia da consciência já se despediu, ao alcançar limites e incompletudes de sua tradição. Husserl propõe uma função nova para este conceito que se situa no campo de um dado primordial da consciência, com a diferença de que o sentido estabelecido por este conceito alcança universalmente todos os sujeitos que, através de procedimentos lógico-psicológicos, compartilham a compreensão de algo, ou seja, o mundo da vida refere-se ao modo de fundamentação dos atos da consciência na Fenomenologia.
Palvaras-chaves: Mundo da vida, filosofia da consciência, crise ética, sentido, fundamentação.
Mundo da Vida é um tema presente permanentemente na filosofia husserliana. Porém é na obra “Crise das Ciências Europeias e a Fenomenologia Transcendental” que o conceito de mundo da vida aparece de forma clara e tematizada, carregado de sentido e destinado a suportar uma certa aplicabilidade na na relação epistemológica entre a filosofia e as ciências. Seria uma guerra contra o naturalismo que já se prefigura, ou seria mais um conceito que remediará a situação já complicada pela teoria do conhecimento kantiana, a saber, a impossibilidade da filosofia como discurso científico nos moldes de uma ciência da natureza? Ao tomarmos este conceito para análise, neste artigo, objetivamos fazer uma leitura breve de passagens e problematizações referentes ao conceito, ou seja, objetivamos fazer uma aproximação conceitual deste tema, em Husserl, tomando por base a obra acima referida, evitando envolver um debate maior sobre a questão, no sentido das consequências filosóficas oriundas da sua abordagem. A título de exemplo, podemos citar os usos do conceito de mundo da vida retrabalhado por J. Habermas. Para este, o mundo da vida aparece como algo imediatamente disponível para os atores sociais sob a forma de significados e/ou representações disponíveis para todos. Com isso, a questão do sentido se torna comum e as decisões possíveis através de acordos racionais. Mundo da vida se mescla com os atos de fala. É ele que, mesmo pré-reflexivamente, se faz presente nas ações linguísticas dos falantes no mundo. O ato de fala atualiza esses dados de consciência.
Mundo da vida: com esta tematização, Husserl preocupa-se, entre outras coisas, em encontrar uma fundamentação fenomenológica para uma ética da ciência e da técnica no mundo contemporâneo, dado que a filosofia da consciência não conseguiu alcançar um patamar de discurso desejado, capaz de dialogar com a ciência, sobretudo se tomarmos a via do criticismo kantiano. Dessa forma, o mundo da vida encerra a pergunta por um saber apodítico e universal, cujo tema também é universal, tendo em vista que a “crise” por que passa o mundo científico se radica na desvinculação do mesmo com respeito ao sentido da vida e à finalidade da história. Isto é devido sobretudo pela perda da fé do homem na razão humana. Esta “perda da fé” na razão significa, para o homem, a desapropriação da fé em si mesmo, da fé naquilo que essencialmente o constitui. A perda da fé na razão humana, enquanto “crise da razão”, deve-se ao fato da crise que afeta a própria filosofia, enquanto “saber universal”. Esta crise da filosofia, por sua vez, se evidencia por um certo ceticismo com respeito à possibilidade da metafísica, a chamada “crise do fundamento” na filosofia contemporânea. Esta “crise do fundamento” conduz o homem a uma falta de perspectiva, a uma crise de sentido em relação a ele próprio, ao saber constituído e ao mundo. No fundo, percebemos que isto é o resultado, segundo Husserl, de uma falta de fundamento numa filosofia universal que atue como guia do saber e do agir humano. Isto significa uma falta de confiança do homem na própria razão.
Em que consiste esse “saber universal” que serviria como base ou fundamento? É necessário, agora, dizer alguma coisa sobre a competência deste saber universal. Seria, por acaso, pura saudade da metafísica, dos conceitos universais, das determinações éticas, das delimitações metafísicas do objeto, de uma base segura para o conhecimento? Competência deste saber universal seria, então, conferir sentido último a todo ser. Tendo em vista isso, mundo da vida é um conceito contraposto a mundo das ciências, na medida em que estas permanecem fechadas numa crise de sentido. Mundo da vida aparece como uma categoria básica para pôr em marcha a busca de uma fundamentação crítica do saber em geral. A contraposição entre mundo da vida e mundo das ciências formam o ponto de partida das análises de Husserl sobre o mundo da vida como chave que permite entrar no cerne do problema da crise da ciência moderna. Não se trata de uma crise teórica sobre os fundamentos das ciências, mas de uma crise da vida moderna, crise que penetra diretamente na convivência e consciência coletiva, e que se estende aos problemas éticos. Trata-se, então, de uma crise ética e de sentido.
Mundo da vida comporta um a priori concreto, enquanto o mundo das ciências está preso a certas idealizações. Esta idealizações formam um mundo fechado em si, integrado pelas objetivações do mundo com a própria consciência. Estas idealizações devem sua origem à fé obcecada no triunfo do objetivismo científico, triunfo este que implica no esquecimento do mundo da vida e da subjetividade transcendental. Obcecadas as ciências com a ideia de um “ser em si objetivo”, tornaram-se insensíveis para o sentido do ser, que vem dado na subjetividade. Neste sentido, as idealizações das ciências estariam aportadas numa espécie de a priori lógico-objetivo. Enquanto saberes adscritos ao mundo técnico, as ciências pecam por ingenuidade, pois nada têm a dizer ao homem sobre as suas reais necessidades vitais. Elas têm como suporte o fazer (know how) do mundo técnico. A técnica, neste sentido, constitui uma “categoria pretenciosa” mediante o que se pretende explicar a história e a vida. Para Husserl, a crise aparece quando a técnica troca o meio pelos fins; com isso, ela converte-se numa idealidade objetivada, constituindo-se, de certa forma, num historicismo, sobretudo por comportar um problema grave de fundamentação. Ao trocar o meio pelos fins, ela eleva a segundo plano o acontecer do homem (da humanidade), em detrimento do acontecer de si própria. Em consequência disso, ocorre a perda do sentido da vida e da história, fato que resulta em evidentes conflitos entre a técnica e o humanismo. Estes conflitos geram a crise do mundo técnico, que por sua vez exige para si o direito de explicação absoluta da realidade, implicando diretamente na perda do significado das ciências para a existência humana. Também as ciências desentenderam-se dos problemas que afetam o homem num mundo transformado, e por isso se mostram incapazes de colocar e responder a pergunta pelo sentido da vida.
Para solucionar a crise que afeta o homem, Husserl conclama o mundo da vida como a esfera imediatamente presente de idealizações originárias. Mundo da vida (LebensWelt), significa, pois, o resgate da subjetividade transcendental, e não o mundo bruto dos objetos. Lebenswelt é a instância capacitada para conferir sentido às coisas e discorre, por sua vez, segundo uma representação do cosmos que não coincide com aquela representada pelas ciências da natureza, na medida em que pretendem ser uma versão única do real, mas que, na verdade, é prévia a elas. A ciência surge na medida em que constitui um âmbito de experiências pré-científicas e pré-categoriais, o que significa dizer, um a priori concreto. E quando as ciências dirigem o olhar para o pré-científico, elas aí encontram uma surpresa: os valores morais. Tendo em vista isso, devem responder agora ao que seja a ciência, bem como à questão do sentido para a humanidade. Portanto, a tematização do mundo da vida esclarece-nos que a pergunta pela crise não é outra coisa senão a pergunta pela “crise ética” de que padece o mundo técnico moderno por causa do problema de fundamentação das ciências. Esta fundamentação remete a um âmbito de evidências primordiais, as quais constituem o mundo da vida. As ciências descobrem-se a si mesmas como meras construções teóricas de outras evidências mais originárias: as evidências do mundo da vida (Lebenswelt). O saber científico fica, assim, definido como mero processo de idealização da realidade concreta, cuja consistência aparece homologada ao mundo da vida.
Com esta breve exposição conceitual, dizemos que a experiência do mundo da vida acontece em níveis pré-científicos. Com isto, Husserl pretende criar uma concepção de consciência em que o saber das ciências não passa de uma dimensão parcial do mundo da vida, ao mesmo tempo em que tenta recuperar a esfera do pré-científico, do mundo da vida, lugar de onde as ciências emergem. Pois foi exatamente essa desvinculação entre ciência e mundo da vida a responsável pela crise em que vive o mundo moderno em face da técnica. A solução da crise se pautaria, assim, no seguinte: a) recuperar e tematizar o mundo da vida como sendo o lugar de onde as ciências tiram seu assentamento; b)uma vez recuperada a esfera do mundo da vida, esclarecer a relação entre ele e as ciências, tendo em vista as verdadeiras construções científicas, e, com isso, calcular corretamente o seu valor e o seu alcance.
Historicamente, o conceito de mundo surge com Husserl, e está voltado a questões concretas de uma compreensão filosófica na contemporâneidade, onde a questão do fundamento se torna problema urgente a ser trabalhado, sob pena de a filosofia perder o bonde da história e emoldurar-se enquanto discurso metafísico. O conceito de mundo da vida surge trazendo as esperanças de reabilitação da fenomenologia transcendental a questões que, em termos conceituais, apenas as ciências empírico-analíticas conseguiam incorporar em seu discurso. Ligado ao campo da fundamentação, mundo da vida traz as condições de um conceito que consegue encerrar em si uma cadeia de significados capaz de conduzir um discurso pela “unidade” da filosofia em meio às situações adversas oriundas das ciências particulares. A noção de “essência”, segundo Husserl, aponta para a originalidade perdida dos conceitos, como também para uma unidade de pensamento capaz de reabilitar o discurso filosófico como “ciência”.
Mundo vivido, portanto, surge como conceito enfrentando os dissabores de uma tradição filsófica encurralada por uma situação histórica de uma “setorização” da filosofia, ou seja, a filosofia só consegue dar conta de “setores” no campo do conhecimento humano, ao mesmo tempo em que as questões de método se tornam urgentes, tornando-se não apenas imposição, mas condição de sobrevivência da própria filosofia. Fenomenologia como método é o grande avanço que renasce com a filosofia nos tempos de crise da metafísica clássica, depois de Kant.
Referências
HUSSERL, Edmund. La crise des sciences européennes et la phénomènologie transcendentale. Trad. De Gerard Granel. Paris: Edittrice CLUEB, 1986.
HABERMAS, J. Escritos sobre moralidad y eticidad (coletânea). Trad. de Manuel J. Redondo. Barcelona: Paidós, 1991.
HABERMAS, J. Connaisance et Intérêt. Trad. de Gérard Clémeçon. Paris gallimard, 1976. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1968 e 1973 (posfácio).