Contribuciones a las Ciencias Sociales
Diciembre 2011

MODERNISMO E CONTEMPORANEIDADE NAS CRÔNICAS DE RUBEM BRAGA E ARNALDO JABOR



Cleber José de Oliveira (CV)
Rogério Silva Pereira

cleberolivera@hotmail.com




RESUMO:
Esse trabalho compara crônicas de Rubem Braga e Arnaldo Jabor, respectivamente, cronistas modernista e contemporâneo. Assume que seus textos são crônicas de momentos histórico-discursivos diferentes, e de relações de comunicação literárias diferentes – realizando isso à luz de Bakhtin (2002); mostra as especificidades e continuidades desses momentos em um e outro autor, tentando contribuir para uma hipótese geral, a saber: em que medida é possível demarcar fronteiras críticas entre a literatura modernista e a literatura contemporânea.

Palavras-chave: crônica brasileira, modernismo, contemporaneidade, fronteiras



Para citar este artículo puede utilizar el siguiente formato:
de Oliveira, C. y Silva Pereira, R: "Modernismo e contemporaneidade nas crônicas de Rubem Braga e Arnaldo Jabor", en Contribuciones a las Ciencias Sociales, diciembre 2011, www.eumed.net/rev/cccss/16/

RUBEM BRAGA E A CRÔNICA MODERNISTA

O Modernismo, tradicionalmente e segundo a crítica, inicia-se no Brasil a partir da Semana de Arte Moderna de 1922, sob a bandeira da valorização do nacional, principalmente da cultura popular, e sob uma tensa relação com as manifestações artísticas, culturais e ideológicas advindas da Europa (CANDIDO, 1975). Nesse contexto, germinam diversas obras literárias, entre elas Macunaíma (1928) de Mario de Andrade, no qual o autor reúne a miscigenação do povo brasileiro e sua cultura em torno do personagem que dá nome ao romance (ANDRADE,1928), com intuito de, junto a outras expressões artísticas, consolidar uma identidade brasileira, dentro de um projeto de nação (CANDIDO, 2000) em que a cultura popular tem status de alicerce da nacionalidade. Para que isso se tornasse um fato, o outro Andrade, Oswald, entendia que era “preciso manter e exaltar os caracteres brasileiros e destruir os importados”(ANDRADE, In: Manifesto Antropofágico, 1928).
Diante disto, e sob a luz de alguns teóricos (CANDIDO, 2000; MICELI 2001, WALTY, 2001), sabemos que o modernismo brasileiro esteve ligado de várias formas à consolidação da nação brasileira ao longo do séc. XX. Seus artistas estiveram ligados ao Estado Brasileiro, e as linhas gerais dos vários projetos do Modernismo estando também ligados à constituição de um conceito de povo brasileiro, projeto ideológico e nacional por definição (MICELI, 2001; CANDIDO, 2000). Entendemos que alguns escritores modernistas, em nome deste projeto, assumiram determinadas funções, sendo representar o povo e mediar as relações entre povo e poder algumas dessas funções.
De posse dessas informações, e, por meio da analise das crônicas, “A Palavra” (1959); e  “O Padeiro” (1956) que estão reunidas no livro Ai de ti, Copacabana (1999). Buscaremos obter indícios a respeito dessas características modernistas presentes em Rubem Braga. E também como são construídas as relações de mediação e representação entre o que aqui chamaremos de “o cronista”, sendo este, a voz que se manifesta nas crônicas citadas, e, seu publico leitor. Comecemos com um trecho da crônica “A Palavra”:

Tanto que tenho falado, tanto que tenho escrito – como não imaginar que, sem querer feri alguém? Às vezes sinto, numa pessoa que acabo de conhecer, uma hostilidade surda, ou uma reticência de magoas. Imprudente ofício é este, de viver em voz alta. (BRAGA, 1999,p 157, grifo nosso).

Neste primeiro trecho de “A Palavra” o cronista com seu olhar treinado no jornal para flagrar as “insignificâncias” do cotidiano (Cf.ARRIGUCCI,1987), tenta intuir a hostilidade e a magoa em alguns de seus leitores.  Agindo reflexivamente o cronista chega a afirmar que seu oficio é imprudente às vezes, vide grifo. Num tom de lamento e com certa angustia tenta nos convencer que, tendo eventualmente magoado esse ou aquele leitor, não o fez com intenção: “Como não imaginar que sem querer feri alguém”. Aqui aparece um cronista preocupado com seu leitor, ansioso por se comunicar com esse leitor da melhor maneira possível; um cronista que acaba explicitando essa preocupação.
Vejamos este segundo trecho da mesma crônica:

 Às vezes, também a gente tem o consolo de saber que alguma coisa que se disse por acaso ajudou alguém a se reconciliar consigo mesmo ou com a sua vida de cada dia; a sonhar um pouco. Agora sei que outro dia disse uma palavra que fez bem a alguém [...] (BRAGA, 1999,p 157).
            
Aqui, segue o tom. O cronista continua se manifestando como alguém preocupado com o bem estar das pessoas, dos leitores. Ressalta que seu objetivo é trazer um pouco mais de alegria e sonho a vida destes, por meio deste mesmo oficio de cronista. O que se vê, nesse sentido é que o cronista vai constituindo uma relação de empatia com seu leitor e, além disso, a todo o momento realça o contato entre ambos.
A pergunta que ressalta neste ponto é: “quem é esse leitor?” Podemos dizer, genericamente que esse leitor é o público consumidor de jornais dos anos 50 e 60, que é o período em que Braga escreve. O tom de preocupação não é casual e isolado. Ao contrário, perpassa  todo o conjunto das crônicas presentes em Ai de ti Copacabana. O que veremos mais à frente é que Braga é mais do que figura preocupado em entreter seu leitor; sua preocupação não é mera retórica. Braga é figura central, “empenhada” em construir e consolidar uma sociedade brasileira em que pobre o excluído social tenham lugar – e isso na esteira do Modernismo político-literário daquele período. Essa discussão fica mais clara à frente.
Ainda em “A Palavra” constatamos o caráter de mediação assumido pelo cronista, sobre isso observemos essa passagem:

 Tenho uma amiga que certa vez ganhou um canário [...] Mas o canário não cantava [...] Um dia minha amiga estava sozinha em casa, distraída, e assobiou uma pequena frase melódica de Beethoven – e o canário começou a cantar alegremente. Uma frase espontânea e distraída [...] agora sei que alguma coisa que eu disse distraído – talvez palavras de algum poeta antigo – foi despertar melodias dentro da alma de alguém [...] E isso fizesse bem ao coração do povo; iluminasse um pouco as suas pobres choupanas e as suas remotas esperanças [...] (BRAGA, 1999,p 157)

Note-se que toda a representação textual se constrói de forma a parecer displicente, despretensiosa, vide o uso recorrente do vocábulo “distraído”. Porém, se atentarmos um pouco mais, buscando a profundidade do texto, podemos perceber o empenho do cronista para se configurar como espécie de mediador e representante do povo. Podemos ver isso representado no quadro abaixo:

Povo
e
Canário

Cronista
     e
Amiga

Poeta Antigo
e
Beethoven

   
Cultura Popular


   Mediador

 

Cultura Erudita

Observe-se as correspondências. Entre o canário mudo que deveria cantar melodias simples e Beethoven, aquele que compõe grandes sinfonias, está a Amiga, espécie de estimuladora e de mediadora que levaria a sinfonia de Beethoven até o canário. Da mesma forma, entre o povo que tem o coração desesperançado e o Poeta Antigo que compôs versos de esperança, está o cronista, também figurando como espécie de estimulador e de mediador e que traria os versos de esperança até o povo. Num esquema mais amplo, podemos pensar no canário (o passarinho amarelo) e no povo como dimensões da cultura popular, enquanto que Beethoven e o Poeta Antigo seriam os representantes da cultura Erudita – e que estariam eventualmente distante do povo. Nesses termos, o cronista, aqui entendido como mediador, tomaria para si a função de aproximar as duas culturas, de fazer a mediação entre a cultura popular e a cultura erudita. Não é preciso ir muito longe para se concluir que estamos diante de uma síntese central da ideologia nacionalista do Modernismo de 22 e de seus desdobramentos. Nessa ideologia o intectual tinha a função de mediar, como vimos, as relações entre as diversas classes sociais e entre povo e poder (Estado). A se pensar com Antonio Candido isso é verdadeiro. Essa função auto-atribuída pelo cronista, em seu ponto de vista, é uma virtude. O cronista, assim, como muitos dos intelectuais modernistas engajados no projeto de nação brasileira, seria também uma espécie de missionário empenhado com o desenvolvimento (político, social, econômico) de sua comunidade             ( CANDIDO, 1975). Dentre suas funções estaria a de mediar às relações entre povo e poder. Ou como diz Arrigucci Jr, o cronista através de seu texto faz da solidariedade social um valor básico ( ARRIGUCCI, 2001).
Em boa parte de sua produção, Braga quer sugerir que está na mesma condição do povo, como se pode observar no trecho seguinte da crônica O Padeiro:

[...] me lembro de um homem modesto. Que quando vinha deixar o pão à porta do apartamento [...] avisava gritando: -Não é ninguém, é o padeiro! Interroguei-o uma vez: “então você não é ninguém?”. Explicou: -Muitas vezes ouvia a pessoa que o atendera dizer: “não é ninguém, é o padeiro” [...]  Eu não quis detê-lo para explicar que estava falando com um colega, ainda que menos importante. Naquele tempo eu também, como os padeiros, fazia o trabalho noturno [...] E recebi dentro do meu coração a lição de humildade daquele homem entre todos útil e entre todos alegre; “ não é ninguém é o padeiro!.”[...] Era pela madrugada que deixava a redação de jornal [...] muitas vezes saia levando na mão um dos primeiros exemplares rodados, o jornal ainda quentinho da maquina, como pão saído do forno [...] além de reportagens ou notas que eu escrevera sem assinar, ia uma crônica com meu nome. O jornal e o pão estariam bem cedinho na porta de cada lar [...] (BRAGA, 1999, p 37).

Aqui, Braga coloca em evidência a vida de um simples e anônimo homem do povo - no caso um padeiro, que entendemos ser a representação de toda uma classe social, a dos trabalhadores mais humildes. Esta postura é assumida por Rubem Braga e pela grande maioria dos cronistas que escreveram entre as décadas de 50 e 80 ( ARRIGUCCI, 1987), momento da vida brasileira entendido como sendo a fase de ouro da crônica nacional            (SIMON, 2006). Momento em que se propõem várias discussões em torno da inclusão social na esteira do modernismo literário, do populismo, do desenvolvimentismo, etc. Nesse período circulam além das crônicas de Rubem Braga, as de Carlos Drummond de Andrade, Stanislaw Ponte Preta, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, dentre outros, escritores de estilo reconhecidamente modernista, e que têm a referida preocupação de inclusão expressa acima.
A crônica em questão se estrutura de modo coerente com o restante das crônicas de Rubem Braga e com o projeto estético-político em que está inserido – nesse caso, o Modernismo brasileiro e essa sua preocupação com a inclusão.Ainda sobre o trecho, vemos que o cronista tenta uma aproximação com o padeiro, buscando afinidade e empatia.
Pode-se aqui também ser esboçado um quadro de correspondências entre cronista e padeiro, crônica e pão , e, de oposições.

Padeiro

Homem do povo

Trabalhador humilde / braçal

O pão:
bem concreto

Útil

Artesão

Cronista

Elite

Trabalhador intelectual

A crônica: bem imaterial

supérfluo

Escritor

O esforço de Braga é o de relativizar as diferenças milenares entre os ofícios. O padeiro artesão, ligado ao trabalho braçal, se opõe ao artista, o escritor cronista, ligado ao trabalho intelectual; o útil, “o pão nosso de cada dia”, se opõe ao supérfluo que é a arte (sobretudo a crônica, cujo caráter artístico se põe sempre em questão) – etc. Aproximando ofícios, Braga também aproxima classes sociais: padeiro e cronista pertencem a classes sociais distintas, uma pertence ao mundo do trabalho mal remunerado das classes sociais subalternas, o outro, ainda que, eventualmente empobrecido, ou mesmo pobre, circula nas classes sociais médias e altas. Um, não raro é não-letrado; o outro, por definição deve se letrado. Sobretudo nos anos 50, quando essa crônica é escrita, essas diferenças são muito mais expressivas que nos dias de hoje. De resto, o letramento no Brasil sempre foi índice de pertencimento à elite cultura, econômica e material – claro que com raríssimas exceções.
A crônica ganha, por outro lado status de bem necessário, tanto quanto “o pão nosso de cada dia”. A crônica então aparece como o alimento do espírito, assim como o pão é o alimento do corpo. A crônica é balsamo ligeiro que aquece o espírito e traz alivio e esperança ao coração do povo, como vimos em “A palavra”, analisada acima. O que se vê também, é o cronista tentando fazer-se útil, como se sua tarefa não fosse meramente a de entreter e divertir. No limite, o pão, metonímia da comunhão entre homens (lembremos o pão da eucaristia cristã), empresta à crônica sua capacidade de unir, de tornar “colegas” padeiro e cronista, de torná-los “companheiros” (lembremos aqui também que na palavra “companheiro” está a palavra “pão”; a etimologia de “companheiro” remonta a “compartilhar o pão”).
Além disso, no trecho, destaca-se a reflexão sobre a humildade. O cronista recebe do padeiro uma lição de humilde: o padeiro é ninguém – e o cronista, escritor-autor de reportagens que por vezes sequer assina, é também figura anônima. O cronista, nessa linha, permite-se aprender com o homem do povo e transmite a lição que aprende ao seu leitor.
Outro aspecto importante. O cronista aprende “por acaso”, aprende de ouvido. O padeiro, sem ser um especialista, de repente ensina ao cronista. E este tem a sensibilidade de aprender, de perceber nas palavras do padeiro uma lição. Aqui, novamente uma ética do acaso, que vemos em crônicas acima analisadas (ex., “A Palavra”). As lições que recebe vêem-lhe quase sempre por acaso, através das coisas e das pessoas mais simples; aprende-se sem que pessoas e coisas queiram dar lições ao cronista.
Por meio das analises feitas até aqui, já se pode esboçar um perfil da voz que fala nas crônicas de Rubem Braga. Pode-se dizer que Braga fora influenciado pelos preceitos modernistas da década de 20 e 30, principalmente no que diz respeito à estilização de uma linguagem simples, criada para comunicar à moda Brasileira (CANDIDO, 1981-4). Braga nesse aspecto é o cronista por excelência; conseguindo reconhecimento como literato exclusivamente por suas crônicas, conseguiu também imprimir em suas crônicas um tom displicente, de quem esta falando coisas sem maior conseqüência, como se pusesse de lado à preocupação com o lado verídico do assunto abordado em sua crônica e do veiculo que a projeta (ARRIGUCCI, 1987). Com isso tornou-se o referencial da crônica nacional despertando a admiração na critica literária nacional como afirma Davi Arrigucci Junior:

[...] A sensibilidade de Braga para a poesia das coisas parece ter-se aguçado no trato profundo com o próprio meio moderno que escolheu para se exprimir, como se o jornal lhe tivesse afinado o senso do instantâneo e do perecível. É muito raro ver um cronista descrever seu dia de caminhada sob o céu azul, à maneira de um Braga [...] (ARRIGUCCI JR. 1987, p. 49).
 
Em síntese, as crônicas, até aqui analisadas, configuram a visão social de um autor que colocou seu talento em prol de um projeto que valoriza o popular e tenta atenuar as diferenças entre as classes. Pois, num país como o Brasil, onde se costuma identificar superioridade intelectual e literária devido ao nível de requinte gramatical utilizado na escrita, Braga por meio de suas crônicas operou facetas de simplificação e naturalidade neste gênero discursivo. Neste sentido Rubem Braga é um legitimo intelectual comprometido com o projeto ideológico modernista dos anos 50 e 60. Por isso, em suas crônicas é recorrente a tentativa de amenizar as diferenças entre classes sociais distintas, ou seja, o cronista em Rubem Braga escreve sob a perspectiva de um projeto que tentou concretizar uma comunidade nacional, uma nação brasileira.

ARNALDO JABOR E A CRÔNICA CONTEMPORÂNEA

Segundo alguns críticos a crônica contemporânea brasileira ao se distanciar de algumas características, perdeu parte do êxito que fora conquistado entre as décadas de 50 a 80 (ARRIGUCCI JR., 2001; SIMON, 2006). De fato, passando os olhos pela produção atual, vemos que alguns cronistas contemporâneos abdicaram destas características. Tomemos como exemplo as crônicas de José Simão publicadas diariamente na Folha de São Paulo:

 Buemba! Buemba! Macaco Simão Urgente!  Direto do País da Piada Pronta! Dólar esta derretendo, afirma Guido Mantega! O dólar está ‘desmantegando’! E olha a declaração do ministro Jobim: “Vira copos é o objetivo do governo federal” E o Lula: “ Então vira mais um ai”. Rarará! E, se é pra relaxar e gozar, muda o nome para Viracopulas [...] É mole? É mole mas sobe. Ou como diz aquele outro, é mole, mas trisca pra ver o que acontece! Rarará. (simão@uol.com.br) (SIMAO, FOLHA DE SÃO PAULO, 2007, grifo nosso)

Este trecho ilustra a afirmação dos críticos no que diz respeito às diferenças entre crônica modernista e crônica contemporânea. A primeira diferença (a) se refere à linguagem que, em Braga, é permeada pela literariedade e pela ficcionalidade, como vimos em Braga e como atestam alguns importantes críticos­­­­­ (CANDIDO, 1981; ARRIGUCCI JR., 1987). Diferentemente, em Simão, essas características são exoneradas e substituídas pelo sarcasmo, coloquialismo vulgar, pela sátira e pelas acidas criticas ao sistema social e seus governantes, atingindo quase o escracho inconseqüente. Neste sentido, pode-se afirmar que José Simão, em suas crônicas, não é comprometido com o literário, já que esta característica também é excluída de sua escrita, como um todo.
A segunda diferença (b) é a forma de contato entre cronista e leitor, agora mais dinâmica graças à Internet. Prova disto é o endereço eletrônico disponibilizado para contato, vide grifo. Com isso, Simão configura, a seu modo, uma “mão dupla” em sua crônica, no sentido de contato com o leitor. Se em Braga, como vimos, o esforço do cronista é o de trazer o leitor para dentro da própria crônica, isso não desaparece em Simão, mas com nuances bem típicas da contemporaneidade – caso do e-mail ali grafado.
Porém, na produção de alguns cronistas que escrevem na contemporaneidade, pode-se notar um esforço para manter em suas crônicas certas características modernistas, entre elas a literariedade, como informa Simom “Cabe reconhecer que a concepção de uma crônica que mantém características literárias e/ou ficcionais sobrevive nos dias atuais, ainda que com menos intensidade” (SIMOM, 2006, p.164). Diante disso, pode-se dizer que alguns cronistas contemporâneos acabaram sendo (e/ou deixando-se ser) influenciados a escreverem à moda modernista, talvez por beberem na fonte de cronistas como Rubem Braga, Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino, entre outros.
Depois destas ponderações, partiremos em busca de possíveis indícios que nos ajudem a descortinar se Arnaldo Jabor pode ser considerado um contemporâneo que escreve à moda modernista ou se o mesmo distancia-se destes. Para isso analisaremos algumas de suas crônicas. Mas, antes disso, observemos o que diz Joaquim Ferreira dos Santos sobre o autor:

[...] Jabor é reconhecidamente um cronista político, seus textos são tão exaltados quanto seus discursos anti-Bush, têm o poder de despertar, inquietar, polemizar. Ácidos, vorazes, estão sempre sintonizados com os assuntos que mexem com a vida dos brasileiros e brasileiras. Mas em alguns de seus textos o autor revela um lirismo, rodriguiano. Aposta ele, que “mais que o poder, o amor é uma ilusão sem a qual não podemos viver” (SANTOS, 2007, p.77).

A crônica de Jabor, a se pensar com Santos, e tendo em vista os títulos de seus dois últimos livros de crônica Amor é prosa sexo é poesia (2004) e Pornopolítica:paixões e taras na vida brasileira (2006),indicam isso, é, sem dúvida, uma crônica político-cultural. Um de seus motes favoritos é comparar a contemporaneidade política e cultural com sua experiência pessoal como militante nos anos 60 e 70.
Ainda, seguindo Santos, Jabor sempre fala do seu tempo – e isso é marca da crônica de Jabor. Ele é contemporâneo. Sua crônica é de fato política e desce fundo ao rés-do-chão ao tocar em assuntos a quente, assuntos que pouco duram no noticiário. Entretanto, seus livros publicados (são dois até agora) dão testemunha de uma crônica que, apesar de presa a seu tempo, tem intenção de permanecer. Nesses termos, é preciso perguntar se Jabor abdica como Simão disso que estamos chamando de literariedade e se de fato o tempo presente é sua exclusiva preocupação. Com esse espírito abordaremos algumas delas.
De posse desta consideração, analisaremos trechos de “O mandacaru na sala de jantar”:

[...] O leitor já viu um mandacaru? Esse deve ter um metro e setenta, com três braços abertos [...] à noite, quando chego no apartamento e o vejo em sua discreta vigília me esperando. Dou-lhe um “olá” [...] durmo e sei que há dois viventes em casa. Eu e ele [...]  aprendo com ele a resistir aos ataques que têm me ferido pela incompreensão do amor virado em ódio  (JABOR, 2006, p. 37, grifo nosso).

Note-se no grifo que o cronista traz o “leitor” para dentro do seu texto, ao modo aliás de muitas crônicas modernistas. Incita este leitor a participar de seu texto e ao mesmo tempo a refletir sobre o objeto em questão, neste caso o mandacaru. Pode-se dizer que se estabelece um “diálogo” entre cronista e leitor, e que este diálogo (contato com leitor) se configura diferente do proposto por José Simão, apesar de escreverem no mesmo contexto, a contemporaneidade. Diante disso, pode-se dizer que Jabor procura manter um diálogo horizontal com seu leitor, ao modo de Rubem Braga. Além disso, o cronista explicita a condição de isolamento do homem contemporâneo em relação ao outro. No trecho, o cronista apresenta-se como alguém que vive em meio à solidão do cotidiano metropolitano. Com isso espera-se uma identificação do leitor com ele (cronista), já que esse é o cotidiano de muitos leitores que moram nos grandes centros urbanos.
Um outro trecho da mesma crônica no qual aparecem outras características:

[...] não é um cáctus qualquer; é um personagem do Nordeste [...] À sua volta abre-se um Nordeste em minha sala, lembrança de retirantes, vaqueiros, cangaço, Lampião e Graciliano. Ele me religa com uma natureza sem exuberâncias, sem românticas esperanças ecológicas, mas uma natureza viril, discreta, [...] me trazendo um sentimento de coragem para enfrentar essa paralisia nacional que finge ser dinâmica, mas que apenas roda no mesmo erro, como um aleijado caído no chão, girando em volta de si mesmo”  ( JABOR, 2006, p.38)

Difícil não ver aqui um diálogo com o Modernismo, sobretudo, nas imagens que lembram o poema “O Cacto” (1925), de Manuel Bandeira, e o romance Vidas Secas (1938), de Graciliano Ramos - neste ultimo, na evocação de imagens do sertão nordestino, na miséria decorrente daí, além dos seus retirantes. Tudo isso no quadro de uma discussão a respeito da inclusão e de um olhar sobre o marginal. Neste sentido, Jabor apresenta mais uma característica recorrente em Braga, a saber, a identificação e o contato com a cultura popular e, consequentemente, com o povo.
O misto de literatura e jornalismo é outra característica que se destaca nesta crônica, pois ao mesmo tempo em que o cronista descreve, com certo lirismo, sua relação com o mandacaru e o ambiente nordestino, critica a uma pretensa “paralisia” da vida brasileira. Em suma, nesta crônica o mundo real é traduzido sob um olhar literário, assim Jabor se configura, além de jornalista, como homem que conhece grandes autores e obras da literatura brasileira, esta última especificidade, como constatamos anteriormente, está ausente em José Simão, porém muito presente em Rubem Braga. O híbrido de gêneros discursivos (literatura e jornalismo) é uma característica marcante do gênero crônica, como vimos no início deste trabalho.
Vejamos o que nos mostra este fragmento de “1964: o sonho e o pesadelo”:

[...] 1964, enquanto a UNE arde em fogo penso: Ali estão queimando nossos sonhos, a libertação do proletariado, queima um Brasil cordial que me parecia fácil de mudar, um Brasil feito de slogans, idéias prontas e esperanças românticas [...] agora cercado de carros de combate, vejo que o mundo mudou. Me sinto como se tivesse acordado de um sonho para um pesadelo ( JABOR, 2006, p. 29, grifo nosso) 

Aqui a linguagem literária se faz presente de modo significativo em contraste com a linguagem jornalística, que, sabemos, convivem dentro da crônica. Note-se o uso das categorias temporais, sobretudo os verbos, nos grifos: “arde”, “penso”, “vejo”, etc. Um texto jornalístico raramente é escrito assim. Ele usaria, no caso dos verbos, o pretérito perfeito, um presente acabado, ou seja: “ardeu”, “pensei”, “vi”. Note-se também o uso da data “1964” e do dêitico “ali” (vide grifo). A crônica em questão foi escrita em 2005 e publicada em 2006. Quando escreve “1964”, o cronista obriga o leitor a voltar ao passado. O discurso literário se faz presente na medida em que o cronista organiza o fato passado como estando ocorrendo no presente. Os fatos estão sendo representados como se tivessem acontecendo logo “ali”. Enfim, cronista e leitor estão, através da crônica habitando tempo e espaço iguais.
Vê-se aqui os recursos lingüísticos – é preciso dizer: literários – que usa o cronista para apresentar-se como testemunha ocular de dois fatos que marcaram a história de nosso país, o incêndio do prédio da UNE em 31 de março 1964 e a instalação do regime militar no mesmo dia. Jabor, de fato, foi militante de esquerda nos idos dos anos 60 e secundou várias das manifestações políticas importantes contra o regime militar. Na crônica, presente e passado, o Jabor jovem e o maduro, o ex-militante e o cronista se tornam pelo uso literário da linguagem um só. Note-se que, a se depender da linguagem jornalística isso dificilmente poderia ser realizado. Este tipo de linguagem faz questão de separar com linhas muito claras sujeito e objeto, presente e passado, para delimitar com a dita objetividade jornalística o fato literário.
Dando seqüência à análise. No trecho, o cronista deixa claro que tem consciência das mudanças sociais que estão acontecendo ao seu redor naquele momento e entende que essas mudanças se dão à revelia do povo. Exprime com melancolia a perda de ideais que pareciam estar prestes a serem concretizados tal como a igualdade e liberdade social para o povo.  As frustrações em relação ao passado ficam evidentes. Esse sentimento de frustração com a não concretização de certas utopias se faz muito presente nas crônicas de Jabor, como se o cronista refletisse em suas crônicas as desilusões provocadas pelo declínio do projeto modernista.
De fato, Jabor vê o presente brasileiro à luz do passado vivido por ele próprio. Porém mais que isso, há um esforço, como visto acima, de justapor passado e presente até no nível da linguagem. Entretanto, seu Brasil presente surge degrado – ou seja, pior do que o Brasil de seu passado. 
Continuemos a analise, agora com um trecho de “A miséria está fora de moda”:

A miséria armada está nos fazendo esquecer da miséria indefesa. Com a onda de violência, perdemos a compaixão pelos pobres [...] o erro dos que desejam acabar com a miséria é achar que ela está do “lado de fora” de nossa vida. A miséria não está nas periferias e favelas; está no centro de nossa vida brasileira. Somos uns miseráveis cercados de miseráveis por todos os lados. (JABOR, 2006, p. 143, grifo nosso)

Como se vê, nos trechos acima, o cronista demonstra preocupação com a condição do “proletariado”, dos “pobres” e dos “miseráveis” do qual ele diz fazer parte. Nessa perspectiva, pode-se dizer que aquele esforço de se parecer com o povo, entrevisto em Braga, está também presente em Jabor, vide grifos.  “Somos uns miseráveis”, ele diz. Novamente vemos a fórmula: um homem de classe média, letrado, olhando para o povo e se medindo com ele – como na crônica “O padeiro” de Braga, vista acima. Mas aqui é preciso marcar diferenças.
Os contextos sociais de Braga e de Jabor são muito diferentes. Aquilo que se idealizava no tempo de Braga acabou por não se concretizar no presente – este sendo o próprio contexto de Jabor. No contexto de Braga, assemelhar-se a um padeiro, metonímia das classes baixas, era uma forma de atenuar diferenças visando um projeto de nação – Braga, como vimos, visava aplainar (ao menos no seu discurso) as diferenças sociais. Em Jabor, assemelhar-se com os miseráveis é atestar a decadência da vida contemporânea, em que a nação idealizada pelos modernistas, uma nação em que pobres e ricos se confraternizariam, acabou por não se configurar. Em que o homem se tornou máquina e é obrigado a produzir como máquina, ou nas palavras do próprio Jabor: “a tecnologia nos enfiou uma lógica de fábricas, fábricas vivas (JABOR, 2006, p. 163). Quando pode, Jabor traz o lirismo, a poesia, as belas imagens cunhadas pelos “grandes autores”; mas isso é raro. O que o leitor quase sempre vê é um Jabor cáustico que usa o passado literário para enfatizar até a náusea as mazelas de um presente (a vida brasileira contemporânea) decaído.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao entrevermos algumas especificidades da crônica modernista em relação à chamada crônica contemporânea constatamos rupturas e continuidades. O exemplo mais gritante é o contraste entre a crônica de José Simão e a de Rubem Braga.
Em Simão vemos sobretudo o trocadilho pornográfico, a referência grotesca aos órgãos sexuais, o amalgama entre política e erotismo (que, é fato, não são exclusividade de Simão, mas, como vimos, estão intensamente presentes na sua crônica).  Além disso, Simão afasta de si qualquer vínculo com o literário. O referido vínculo com o literário, que caracteriza a produção de alguns cronistas modernistas, a exemplo Rubem Braga (Cf. CANDIDO, 1981; ARRIGUCCI JR., 1987), se perde. A referência aos grandes nomes da literatura, a ficcionalidade narrativa, o lirismo, dentre outros, parecem estar ausentes de sua crônica. No limite, é preciso perguntar sobre a crônica de Simão se ela é de fato crônica como a concebemos – questão que fica para outra investigação.
Braga e Jabor, em suas crônicas são muito diferentes. Em Braga, salta aos olhos sua preocupação (central para o Modernismo) de inclusão social. Seja do ponto de vista do conteúdo, seja do ponto de vista do interlocutor, seja na configuração do enunciador, sempre há uma preocupação em trazer o outro para dentro da crônica de modo insistente. No conteúdo, Braga está sempre falando de um povo ideal. Um padeiro, com sua humildade, ou um leitor comum que fala um português cotidiano e não o português elitista de certos gramáticos. Nas metáforas de Braga, um canário que, de repente, canta é imagem de um povo que se alegra com sua princesa. E, para além disso, nos seus textos o leitor é construído como co-escritor – sinal do valor que o autor dá a esse leitor. Dentro dos textos, as marcas textuais que indicam a presença desse leitor são recorrentes. Braga evoca, aliás com insistência, a participação do leitor, nomeando-o, ou trazendo seu discurso marcado por aspas. O esforço de comunicação é enorme. Braga, ao modo dos modernistas, e na esteira das lições de Mário de Andrade e Graciliano Ramos, dentre outros, quer fazer de seu texto uma espécie de reflexo da utopia de uma nação em que pobres e ricos, negros, índios e brancos, etc, viveriam como iguais na sociedade brasileira.
Nesse sentido, ao se construir como enunciador dentro de suas crônicas, Braga quer passar a idéia de que é uma espécie de mediador. Media a relação entre povo e elite, media a relação entre leitor comum e literatura erudita. Sua crônica é gênero que está a serviço da constituição da nação assim como o escritor de crônica parece ter função social semelhante. Há em Braga um otimismo quanto ao presente e, sobretudo, quanto ao futuro. Um otimismo que reflete o auge da coesão do projeto modernista de integração entre povo e elite.
Jabor não procede assim. Se em Braga temos um cronista que se esforça por conversar com seu leitor, em Jabor o que transparece é uma espécie de solidão melancólica. De resto, falta pouco para que Jabor manifeste seu asco pelo leitor que o lê. Suas crônicas, entretanto, se sucedem como textos que lamentam o presente como momento de dissolução da vida verdadeira, aquela que corresponde aos anos em que o escritor foi jovem, isto é, os anos 50 e 60, momento do auge da utopia modernista. Se em Braga há aquela função de levar beleza e encanto ao povo, de buscar beleza e encanto nesse mesmo povo, Jabor se mostra distanciado desse povo. De resto, ainda que evoque esse ou aquele “leitor” dentro do texto, isso é uma considerável exceção. A incomunicabilidade é recorrente entre Jabor e seu leitor. No limite, o mundo parece intangível para Jabor. Numa crônica sobre a mulher, o cronista desiste de tentar conhecer esse ser, “a mulher”.
 O literário está ali, entretanto, não aparece, como em Braga, como sinal ostensivo do “literário”, como marca de literatura em si. Nesse sentido, cita-se aqui e ali esse ou aquele autor, faz-se aqui e ali uma referência erudita para que se evoque ou se permita uma alusão ao “literário”. Em todo caso, como vimos na crônica que fala sobre o incêndio da UNE, “1964 o sonho e pesadelo”, Jabor se permite colocar em questão a linguagem jornalística e mesclar presente e passado. Aqui, ponto auto de sua crônica, aquilo que podemos entrever como sendo linguagem literária se manifesta. Isto é, uma linguagem em que as regras e fronteiras do discurso referencial permitindo que objeto e sujeito se integrem. Nesse ponto, Jabor deixa entrever seu uso do passado. Para ele o passado serve como um conjunto de categorias para que se possa fazer o cotejo com o presente. Como vimos, o presente sempre sai perdendo nesse caso. Nesse ponto Jabor se distancia enormemente de Simão e vai buscar refúgio em procedimentos literários que se pode encontrar em muitos autores modernistas.
Dessa maneira, portanto, pode-se dizer que Jabor pode ser considerado um modernista tardio (aspecto que talvez mereça melhor análise no futuro), devido a sua explicita admiração e nostalgia ao projeto modernista de nação brasileira. Vimos o quanto é recorrente em Jabor certa amargura em relação a um presente que parece deterioração do mundo em que as relações de comunicação literárias típicas do modernismo eram a regra do gênero crônica.

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