Cecilia Aparecida Costa (CV)
ceciliaapcosta@yahoo.com.br
Edvaldo César Moretti (CV)
edvaldomoretti@ufgd.edu.br
RESUMO
Tanto limite quanto fronteira exercem papéis fundamentais no que se refere à divisão de dois Estados-Nação. Entretanto, muitas vezes não nos atentamos para a real diferenciação que existe entre esses dois elementos: o primeiro apenas tem função de separar, enquanto que o segundo abrange o estabelecimento de relações distintas; ou seja, existe um intercâmbio cultural, social e político que contribui para que o processo de diferenciação entre o “eu” e o “outro”, a alteridade, seja perceptível. Dessa forma, o presente artigo visa abordar como a fronteira, especificadamente entre Brasil e Paraguai – nas cidades gêmeas de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero – pode ser um lugar de construção de novas identidades, ou até mesmo um “entre-lugar”, onde nacionalidades diferentes se encontram e se complementam.
PALAVRAS-CHAVE: fronteira, limite, identidade, entre-lugar e alteridade.
RESUMEN
En cuanto al límite de las fronteras juegan un papel clave en relación a la división de dos estados-nación. Sin embargo, a menudo no prestan atención a la diferenciación real entre estos dos elementos: sólo la primera función es separar, mientras que el segundo abarca la creación de listas separadas, es decir, hay un ambiente cultural, social y político que contribuya para que en el mismo, el proceso de diferenciación entre el yo y "otros" se percibe la alteridad. Por lo tanto, este artículo tiene como objetivo abordar cómo la frontera, específicamente entre Brasil y Paraguay – las ciudades gemelas de Ponta Porã y Pedro Juan Caballero – puede ser un lugar para construir nuevas identidades, hasta mismo un “entre-lugar”, donde las diferentes nacionalidades se encuentran y se complementan entre sí.
PALABRAS-CLAVE: frontera, límite, identidad, “entre-lugar” y alteridad.
Em se tratando de fronteira, a primeira ideia que nos vêm à mente é o limite de um Estado-Nação, a divisa entre países, e essa forma de entender o termo caracteriza uma visão simplista, uma vez que seu significado envolve algo muito mais complexo. Deste modo, buscaremos a complexidade da constituição do espaço fronteiriço diferenciando-o de limite, demonstrando que fronteira se trata de uma invenção humana, na qual admitiu-se a existência do outro, da diferença – a alteridade. Assim, o encontro de identidades formam o hibridismo (o entre-lugar) presente nas relações e nas práticas sociais travadas na fronteira do Brasil com o Paraguai, especificamente, no caso da análise que propomos aqui, na fronteira entre Ponta Porã – Mato Grosso do Sul, no Brasil, e Pedro Juan Caballero – no Paraguai.
Dizer apenas que fronteira e limite não possuem o mesmo significado não é o bastante, é preciso distingui-los. Afirma-se que limite é algo que foi determinado, uma linha divisória que permanece como um obstáculo fixo, independente da existência ou não de fatores físico-geográficos ou culturais, enquanto a fronteira é fluida, tem vida própria e não se prende ao limite. Nesse sentido, o chamado “marco de fronteira” é, na verdade, um símbolo visível do limite.
A esse respeito Raffestin afirma que “o limite é, portanto, uma classe geral, um conjunto cuja fronteira é um subconjunto” . Por sua vez, Dorfman e Rosés conceituam limite e fronteira afirmando:
(Limite) [...] é um atributo do estado-nação, delimitando soberania, isto é, demarcado a vigência de normas estatais diferenciadas em cada um dos seus lados e extensivas no interior do território. A fronteira distingue os territórios estatais, mas não os torna estanques, na medida em que fluxos de pessoas, objetos e informação cruzam constantemente o limite. (DORFMAN E ROSÉS, 2005, p.196).
Para as autoras acima citadas, o limite é definido pelo Estado-Nação que irá delimitar até onde vai sua extensão territorial, a abrangência de sua legislação, a sua soberania. O limite seria o fim daquilo que mantém coesa uma unidade político-territoral. Já a fronteira separa territórios estatais, mas isso não significa que os tornam isolados porque sempre haverá o ir e vir das pessoas, objetos e informações.
De acordo com o entendimento de Hissa (2006), limite seria algo que se insinua entre mundos, com o objetivo de dividir o que não pode permanecer ligado, de mostrar que existe diferença. Mas dentre todos os significados, o mais decisivo é o que conduz a ideia de restringir a liberdade, de ser um obstáculo ao trânsito livre. Nesse sentido o limite “é reconhecido como o que se põe a vigiar o território e o domínio proibido, como se nele houvesse uma vida autônoma e a vocação da guarda” . Vale ressaltar que o autor tem claro que o conceito de limite é próprio do homem e que nos elementos da natureza este é um elemento intruso.
A base para sustentação da análise aqui proposta está no estudo da temática ambiental nas cidades gêmeas de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero. O limite imposto culturalmente e socialmente divide ambientes naturais únicos, divide, portanto, a unidade, mas, no real, o entendimento de natureza presente em ambos os lados da fronteira apresentam a mesma fundação, ou seja, é a cultura ocidental definindo a natureza como ambiente, definindo a fragmentação sociedade-natureza e o tratamento da natureza como algo distante da vida urbana.
Apesar do conceito de fronteira ser utilizado há muito tempo e a noção acerca dos termos limites e fronteiras evoluírem constantemente, Raffestin chama a atenção para a pobreza da concepção fronteiriça ocidental, que precisa ser refletida:
A reflexão e mais ainda a ausência de reflexão a respeito do significado de fronteira ratificam a falta do regramento nos diversos aspectos do pensamento e da ação. A vontade de eliminar as regras e por consequência os ritos e códigos, é uma formidável manifestação de uma cultura inteira colocada em cheque. [...] A representação que a cultura ocidental faz atualmente da fronteira é de uma pobreza tão absoluta, que precisa ser alertada, pois ela é a negação de toda a história. (RAFFESTIN, 2005, p.09-10).
Na análise de Albuquerque (2010), a noção de fronteira no mundo contemporâneo adquire vários sentidos, tais como: “delimitações de territórios ou como metáforas da vida social, fronteiras porosas e rígidas, barreiras ou formas de travessias, diferenças e sincretismos, limites e caminhos” . O autor ainda afirma que fronteira é um termo polissêmico e que pode ser entendido através de diferentes metáforas. Nesse sentido, Albuquerque se remete ao ensaio de Simmel (2001), intitulado “ponte e porta”, para refletir sobre algumas dimensões de fronteira:
As metáforas da ponte e da porta são indicativas das fronteiras que delimitam e atravessam a experiência humana e as vivências em determinados espaços sociais. A ponte como uma criação humana que consegue unir o que a natureza havia separado. A construção do caminho e a percepção dos trajetos e dos pontos de ligação. A porta como algo que estabelece um limite, a edificação de barreiras entre o interno e o externo, uma separação num espaço que antes era naturalmente unificado. Contudo, a porta simboliza também a passagem, o cruzamento entre o fora e o dentro, entre a objetividade e a subjetividade da vida dos indivíduos em sociedade. (ALBUQUERQUE, 2010, p. 330).
O autor entende os símbolos ponte e porta como metáforas da experiência coletiva e individual. Assim, fronteira é uma construção humana, invenção, imaginação, experiência/vivência humana, não existindo, portanto, fronteira natural. Embora entendamos dessa forma, Andre Roberto Martin cita o professor britânico A. E. Moodie, que diz que “a fronteira se distingue do ‘limite’ precisamente porque a primeira é ‘natural’ e remete, portanto, à geografia, enquanto a segunda é ‘artificial’ e remete diretamente ao Estado” . Em sentido contrário, Raffestin acredita ser um absurdo falar em fronteira natural:
Basta pensar na Revolução Francesa ou na Revolução Russa para se constatar que todos os sistemas sêmicos sofreram transformações e, em particular, o sistema dos limites. É a razão pela qual é absurdo falar em fronteiras naturais, que só existem na condição de serem subtraídas da historicidade. E se as subtraímos da historicidade, é para “naturalizá-las”, ou seja, para fazê-las o instrumento de uma dominação que procura se perpetuar. (RAFFESTIIN, 1993, p. 166).
Toda fronteira é uma construção humana e na medida em que a inventamos identificamos o outro, a alteridade, assim elas surgem com o intuito de se sobrepor, de dominar territórios redefinindo-os constantemente.
Martin (1994 apud RATZEL) escreve “A fronteira é constituída pelos inúmeros pontos sobre os quais um movimento orgânico é obrigado a parar” . A fronteira pode ter vários sentidos, que na realidade se resumem em distinguir uma coisa da outra. Para o autor, fronteira ainda teria um sentido mais “geográfico”, o qual não faz referência a uma zona de contato entre dois grupos, mas ao processo de colonização de áreas supostamente vazias. Isto é, se existir área vazia.
É importante destacar que as fronteiras existentes na natureza estão presentes tanto no mundo orgânico quanto no inorgânico, que residem no movimento que é próprio de cada ser e não precisam ser uma zona de paragem demorada, pelo contrário, “uma paragem momentânea frente à falta de condições vitais necessárias à continuação do movimento ou então, frente à resistência de outro movimento no sentido oposto” . Assim, a fronteira avança se existirem condições vitais favoráveis ou se o movimento do sentido oposto enfraquecer.
A fronteira estaria relacionada à “área de difusão/propagação”, desde espécies “vegetais e animais, quanto das províncias rochosas, de relevo ou de solo, ou mesmo climáticas, do mesmo modo como analogamente se pode falar, em termos sociais, das ‘áreas’ ocupadas por determinados grupos étnicos, linguísticos, políticos, etc.” (MARTIN, 1994, p. 16). Deste modo, as referidas áreas (fronteiras) surgem de tudo em que existe movimento, mas em determinado momento se veem obrigadas a parar. Martin exemplifica:
É o que acontece [...] com as árvores numa montanha, as quais a certa altitude desaparecem. Até o próprio homem, com toda sua enorme capacidade de adaptação se vê obrigado a deter-se diante de condições adversas, ainda que seja momentaneamente. Desse modo compreende-se que a determinação precisa das fronteiras só pode ocorrer num lapso limitado de tempo, ou então quando não nos apercebermos do movimento. (MARTIN, 1994, p.16)
Assim, Martin concebe fronteira como sendo uma zona de transição. Esse entendimento fica notório no seguinte comentário referente a massas de ar distintas: “cada massa [...] vão se atenuando, até alcançarmos uma faixa onde as duas massas se cruzam e já não temos nem bem uma coisa nem outra ”.
Nesse sentido, nas cidades gêmeas de Ponta Porã, no Brasil, e Pedro Juan Caballlero, no Paraguai, é possível perceber que existe uma fronteira, e as relações que são estabelecidas acabam interferindo no modo como as cidades se organizam. Ponta Porã apresenta características paraguaias, bem como a cidade paraguaia, adquire características brasileiras, tornando-se uma zona de transição entre diferentes identidades.
O movimento mundial de revalorização da natureza, explicitado em outros textos, acontece de forma diferenciada nas duas cidades. No lado brasileiro ocorre um processo de mercantilização do “verde”, a ideia de sustentabilidade ambiental é incorporada ao processo de reprodução ampliada do capital, e especificamente em Ponta Porã o “verde” é vendido nos hotéis para os turistas, nos produtos orgânicos das feiras, nos mercados, nos conjuntos habitacionais sustentáveis, etc. Já no lado paraguaio, o “verde” é tratado ainda como um discurso distante de se concretizar, e projetos de educação ambiental são os principais focos de atuação neste contexto da sustentabilidade.
Ao se afirmar que as fronteiras não são fixas, mas sim um processo em movimento, faz sentido pensar em “zonas de transição”, que seria estar em um terceiro espaço a que podemos chamar de “entre-lugar”.
As perspectivas identitárias na fronteira: “entre-lugar” e alteridade
Partindo do princípio de que toda identidade é cultural e que por ser cultural é uma “construção”, ou uma “negociação” social-histórica, pensamos que o ambiente fronteiriço é propício para estabelecer uma discussão acerca do assunto, pois é neste “entre-lugar” que o indivíduo procura se reconhecer frente à alteridade.
Consideramos que entender “entre-lugar” como “zona de transição” seria pertinente, uma vez que essa se refere à área de estágio intermediário, passagem de um lugar, uma condição para outra, nesse estágio não seria possível distinguir um do outro, nem determinar onde cada um começa e termina. Nesse sentido, Núbia J. Hanciau narra que no processo de colonização europeia, ao alcançarem as novas terras, os europeus encontravam-se com um “entre-lugar”, um “terceiro lugar”:
As formulações européias misturaram-se às locais pela expansão ultramarina do fim do século XV. Uma vez descobertas e alcançadas, as novas terras representavam o próprio purgatório, um lugar intermediário entre o céu e a terra, o “terceiro lugar”, oposto à Europa – metrópole da cultura e terra dos cristãos -, para muitos um inferno com duração limitada, que começava com rito de passagem simbolizando pela viagem dos navegantes às terras de além-mar (HANCIAU, 2005, p.130, apud HANCIAU, 2001, p.130).
O “entre-lugar” representaria a passagem do velho para o novo, do céu para a terra, do mundo civilizado para a barbárie, entendido como terceiro lugar. Vale salientar que a expressão “entre-lugar” foi criada pelo brasileiro Silviano Santiago nos anos 70 e hoje já ganhou muitas variantes por diversos autores, dos quais Hanciau cita alguns:
[...] lugar intervalar (E. Glissant), tercer espacio (A. Moreiras), espaço intersticial (H. k. Bhabha), the thirdspace (revista Chora), in-between (Walter Mignolo e S. Gruzinski), caminho do meio (Z. Bernd), zona de contato (M. L. Pratt) ou de fronteira (Ana Pizarro e S. Pesavento), o que para Régine Robin representa o hors-lieu. (HANCIAU, 2005, p. 127).
A autora citada ainda faz menção a Guimarães Rosa, que cunhou ficcionalmente a “terceira margem do rio”, que também seria um espaço intermediário, um caminho do meio, onde ocorre o hibridismo. Dessa forma, ao afirmar que há um hibridismo, admite-se a existência de grupos humanos diferentes, ou seja, a existência do outro. Assim, o hibridismo nasce da junção dos diferentes, “eis a origem da mestiçagem” .
A coexistência de dois modelos de referência, habitualmente incompatíveis, causa-lhe um choque ou colisão cultural, levando-a rumar para uma nova consciência, a abandonar a margem oposta, a deixar para trás a cultura dominante, apagando-a, para atravessar a fronteira, na trajetória de um espaço intermediário em direção a um outro território completamente novo. (HANCIAU, 2005, p. 125 apud ANZALDÚA, 1994, p. 428).
Portanto, nesse viés concordamos com Bhabha (1998), ao afirmar que: “Uma fronteira não é o ponto onde algo termina, mas como os gregos reconheceram, (...) é o ponto a partir do qual algo começa a se fazer presente” . No entanto, Dorfman e Rosés direcionam a discussão por um caminho inverso e dizem que “a fronteira é uma característica de qualquer objeto ou fenômeno, cuja existência possua extensão e fim”. (DORFMAN E ROSÉS, 2005, p. 196).
Dando continuidade ao raciocínio, citamos Kahmann e Masina: “a fronteira não se situa em nenhum dos polos que exercem funções opostas num raciocínio binário, isso porque ela é, ao mesmo tempo, um, outro, ambos e nenhum” . As autoras afirmam que na constituição do entre-lugar vão surgir novos signos de identidades, que por serem “novos” não devem ser uma continuação do passado nem do presente.
Quanto à formação de uma cultura híbrida, Hanciau afirma:
No cerne dessa formulação, o terceiro espaço (ou entre-lugar), embora irrepresentável em si mesmo, constitui as condições discursivas de enunciação que asseguram: o sentido e os símbolos da cultura não tem unidade ou fixação primordial; os mesmos signos podem ser apropriados, traduzidos, re/historicizados e lidos novamente. (HANCIAU, 2005, p.137).
Entretanto, cabe aqui a reflexão acerca da existência de uma cultura pura, separada das demais por fronteiras. Hanciau afirma que não, e reconhece que “todas as culturas são híbridas e que as misturas remontam às origens da história do homem” .
Oliven (2006) afirma que até pouco tempo havia a ligação de identidades sociais a grupos de determinado lugar – país, cidade, ou bairro – e que ali projetavam suas memórias, tradições e valores e para isso era necessário demarcar fronteiras. O fato de existir essa demarcação é ao mesmo tempo uma afirmação de que é possível conter uma cultura estabelecendo limites e decidindo o que caberia nela ou não.
No entanto, isso se torna difícil, pois as pessoas viajam e carregam suas roupas, suas línguas, seus costumes e suas ideias, além do fato de que, cada vez mais, estas podem viajar sozinhas através dos meios de comunicação. Segundo Oliven:
Ao chegarem a outros solos as pessoas se adaptam. Conservam sua cultura, mas entram em contato com novos costumes e valores. A influência é recíproca. O viajante – ou imigrante – acaba aprendendo a língua do novo país e aceitando parte de seus hábitos, ao mesmo tempo em que influencia as pessoas com quem se relaciona. (OLIVEN, 2006, p. 157)
Segundo Machado et al (2005), mesmo que no senso comum não existam dúvidas sobre a concepção de identidade, como se ela fosse “natural” a um determinado grupo, é preciso compreender que toda identidade cultural é uma “construção” social-histórica. Assim, ela pode ser reconstruída/reinventada conforme as circunstâncias temporais e espaciais. Ainda segundo o autor, o processo de reconstrução de identidades não seguiria um caminho linear: “trata-se de um processo eivado de contradições e ambiguidades, os símbolos envolvidos nem sempre tendo a mesma eficácia” (MACHADO et al, 2005, p. 93).
Figueiredo (2005) afirma que a noção de identidade, definida por padrões culturais ou locais relacionados à questão nacional, regional ou local, passa a ter uma nova elaboração conceitual, deixando de ser pensada a partir de uma construção para ser uma negociação.
Se anteriormente as identidades apareciam como construções, ainda que percebidas como processos simbólicos, hoje em dia, além dessa noção, pode-se pensar e discutir a identidade como negociação, tanto como nas fronteiras culturais, como nas lingüísticas e territoriais. (FIGUEIREDO, 2005, p.546)
A explicação da mudança do entendimento de identidade – deixa de ser uma construção e passa a ser negociação – deve-se ao processo de reconhecimento da existência do outro, da ideia de alteridade, pois há um embate entre aquilo que é próprio e o que é alheio para se constituir. Portanto, afirma Figueiredo, “a aceitação do outro é o primeiro passo para a existência desse um que se propõe diverso. É na comparação com o outro que existe esse um e é nessa negociação que se gesta o tipo de identidade a ser constituída” . Todavia, vale ressaltar que a referida constituição não é feita de forma isolada, podendo ser mudada a cada novo movimento político, histórico e geográfico, permanecendo “um substrato anterior, uma noção mais vaga e difusa do conceito que lhe dá uma forma primeira” (FIGUEIREDO, 2005, p. 546).
Assim, o ambiente fronteiriço tem contribuição importante na constituição de identidades, é nele que os diferentes se encontram, sendo, portanto, o lugar da alteridade. José de Souza Martins em sua obra Fronteira: a degradação do outro nos confins do humano investiga fronteira a partir de uma dimensão propriamente sociológica e antropológica, a qual acaba discutindo fronteira a partir do humano, da alteridade, do humano no seu limite histórico:
[...] fronteira de modo algum se reduz e se resume à fronteira geográfica. Ela é fronteira de muitas e diferentes coisas: fronteira da civilização (demarcada pela barbárie que nela se oculta), fronteira espacial, fronteira de culturas e visões de mundo, fronteira de etnias, fronteira da História e da historicidade do homem. E, sobretudo, fronteira do humano. (MARTINS, 1997, p. 13).
Para o autor as limitações sobre estudos de fronteiras e sua expansão interna nos campos sociológicos, antropológicos, históricos e geográficos podem ser facilmente reconhecidas através do reconhecimento do pioneiro como suposto herói. Esse equivocado entendimento contribui para escamotear o aspecto principal da fronteira, o seu aspecto trágico:
As concepções centradas na figura imaginária do pioneiro deixam de lado o essencial, o aspecto trágico da fronteira, que se expressa na mortal conflitividade que a caracteriza, no genocida desencontro de etnias e no radical conflito de classes sociais, contrapostas não apenas pela divergência de seus interesses econômicos, mas sobretudo pelo abismo histórico que as separa. (MARTINS, 1997, p. 15, grifo nosso).
Nesse sentido, Martins se concentra na vítima como figura central e não no pioneiro, pois dessa forma o autor afirma ser possível encontrar duas características essenciais na constituição do ser humano: a alteridade e a liminaridade. A primeira e “à particular visibilidade do Outro, daquele que ainda não se confunde conosco nem é reconhecido pelos diferentes grupos sociais como constitutivo do Nós ”. A segunda é “própria dessa situação, a um modo de viver no limite, na fronteira, e às ambigüidades que dela decorrem” .
Martins, no decorrer do texto deixa claro seu entendimento a respeito da singularidade da fronteira, devido a esta ser essencialmente o lugar da alteridade, pois nela há embate de temporalidades diversas:
Na minha interpretação, [...] a fronteira é essencialmente o lugar da alteridade. É isso o que faz dela uma realidade singular. A primeira vista é o lugar do encontro dos que por diferentes razões são diferentes entre si, como os índios de um lado e os civilizados de outro; como os grandes proprietários de terra, de um lado, e os camponeses pobres, de outro. Mas o conflito faz com que a fronteira seja essencialmente, a um só tempo, um lugar de descoberta do outro e de desencontro. Não só o desencontro e o conflito decorrentes das diferentes concepções de vida e visões de mundo de cada um desses grupos humanos. O desencontro na fronteira é o desencontro de temporalidades históricas, pois cada um desses grupos está situado diversamente no tempo da História. (MARTINS, 1997, p. 150-151).
A singularidade da fronteira citada pelo autor é percebida na fronteira Brasil e Paraguai, especificadamente nas cidades gêmeas de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero, pois por mais que estejam próximas, dividas por uma avenida (que mais as junta do que as separa) e mesmo existindo uma relação de parceria entre elas, é preciso reconhecer que são duas cidades, cada uma com sua cultura, sua situação econômica, seu idioma, sua legislação. São, portanto, realidades diversas. E tudo isso contribui para que cada um dos lados enxergue o outro à sua maneira. Vazquez afirma que o Paraguai não limita simplesmente com um país, mas com uma potência regional, enquanto os brasileiros veem o outro país com descrédito, um lugar de adquirir produtos falsos.
A fronteira é um território de invenção do outro, onde o indivíduo procura se reconhecer frente à alteridade. É um “entre-lugar”, uma zona de transição entre os diferentes que estão a negociar uma identidade.
Para finalizar
Propomo-nos a discutir fronteira considerando a complexidade, pois esta, muito além de separar dois países diferentes, abrange o estabelecimento de relações de grupos culturais distintos, ou não, fato que permite o surgimento daquilo que se torna diferente, ou seja, da alteridade.
É preciso entender que limite e fronteira não possuem o mesmo significado. Embora ambos sejam construções humanas, o primeiro refere-se à linha que demarca/divide territórios e tende a ser fixo, enquanto o segundo é um processo de invenção, experiência, vivência humana em movimento, e por isso é evidente que não há fronteira natural.
As cidades gêmeas de Ponta Porã - BR e Pedro Juan Caballero - PY teoricamente estão separadas por uma fronteira, mas ao mesmo tempo compartilham dos problemas ambientais, já que para esse não existem demarcações.
Fronteira só existe porque identificamos algo diferente do que nos é comum, e a isso chamamos de “outro”, pois a partir do momento em que reconhecemos esse “outro” ocorre a afirmação da nacionalidade. Assim, a fronteira é o lugar da alteridade, do encontro de temporalidades diversas, de conceitos e preconceitos, de línguas e culturas que negociam uma identidade.
Esse território caracterizaria um lugar diverso, local de passagem entre uma coisa e outra, uma “zona de transição”, onde não se reconhece a pureza de um ou de outro, mas um “hibridismo” dos dois, sendo, portanto, um “terceiro lugar”, um “entre-lugar”.
Vale ressaltar que o conceito de fronteira é empregado de forma diferente entre aqueles que não habitam e os que habitam esse lugar, pois a fronteira só existe quando os elementos fronteiriços são acionados, e isso só é feito quando melhor convier.
Em Mato Grosso do Sul a fronteira somente é destacada ou se torna alvo de políticas públicas em função dos problemas advindos de relações sociais, culturais, econômicas e ambientais, produzidas historicamente. A fronteira entre Ponta Porã e Pedro Juan Caballero passa a ser objeto de ações públicas quando há, por exemplo, a pressão social em relação ao tráfico de drogas, à violência, à saúde, à epidemias, entre outros, ou há pressão econômica para coibir o contrabando de mercadorias, o que exige medidas relativas à zona de fronteira.
A fronteira entre as cidades de Ponta Porã e Pedro Juan Caballero é compreendida como uma área de compras, atravessá-la a tem como significado o comércio de produtos mais baratos que os encontrados em território brasileiro. Pouco ou nada importam as relações trabalhistas e culturais entre os povos.
Todas essas características tornam este território único e um campo rico para o desenvolvimento de pesquisas científicas. A fronteira enquanto objeto de estudo geográfico compreende diversidades e singularidades próprias, exigindo a produção de teoria e de metodologias de análise específicas. Este é o desafio para a ciência, compreender a produção da fronteira a partir da singularidade deste território.
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