Bruna Delchiaro Nieble (CV)
Resumo
Sabe-se que a comensalidade passou e passa por modificações ao longo dos anos. O
homem bem como os outros animais necessita do alimento para sobreviver, no
entanto, o que os diferencia é que o homem possui o hábito de realizar suas
refeições em conjunto. Sabe-se também que a alimentação passou e está passando
por várias transformações. Estaria a comensalidade extinta ou ameaçada pelos
novos hábitos da comida rápida? O texto tem como objetivo discorrer sob o ponto
de vista de diversos autores a alimentação desde seus primeiros registros até a
atualidade, concluindo assim, com a resposta para algumas perguntas relacionadas
ao tema.
Paravras-chave: Comensalidade. Comida. Alimentação. Banquetes. Fast-food.
brunanieble@gmail.com
Introdução
O sentido da comida e da alimentação em rituais e confraternizações não é algo recente. Em registros antigos como a Bíblia já se encontra relatos que relacionam confraternização e a comensalidade, como por exemplo, a Santa Ceia. Partilhar um alimento pode ter vários significados, dentre eles pactos, fechamento de contratos, a confraternização e o ritual.
Dentro do significado da palavra comensalidade encontra-se a partilha do alimento entre duas ou mais pessoas. Apesar das mudanças ocoridas na maneira de preparar e compartilhar o alimento, o seu significado continua ultrapassando a mera necessidade fisiológica e ainda de possui um sentido mais amplo, remetendo assim, às relações entre as pessoas envolvidas.
Sobre comensalidade
Para Carneiro (2003), a alimentação é após a respiração e a ingestão de água a necessidade mais fundamental do ser humano. Além de uma necessidade biológica há por trás da alimentação um sistema repleto de simbologias que envolve representações sociais, sexuais, políticas, éticas, religiosas, e outras.
Na Idade Média, banquetes já constituíam um símbolo para expressar compromissos baseados na paz e na concórdia. Para Althoff (1998), o comer e beber em conjunto na época era uma maneira de selar um compromisso.
Cascudo (2004) diz que nenhuma atividade será tão permanente na história da humanidade como a alimentação e que a sociologia da alimentação decorre do próprio fundamento do ato social. O autor cita a arte pré-histórica por ser a responsável pelos registros da comensalidade da época onde aparece a caça, a pesca e o ato de se alimentar em grupo. Cascudo ainda afirma que o alimento representa o povo que o consome, e que o alimento denota a maneira de viver, o temperamento, e principalmente o ato de nutrição numa “cerimônia indispensável de convívio humano”. O autor ainda compara a humanidade à búfalos e colibris, que são incapazes de lembrar uma festa popular com toda a tradição, ou seja, uma das grandes diferenças entre o homem e os outros animais é o momento da refeição, onde o homem imagina o que vai comer antes mesmo de fazê-lo e com quem irá fazê-lo. Já os animais comem apenas para suprir uma necessidade, enquanto o homem “se desarma” ao sentar-se a mesa.
Para Carvalho (2004) os ritos e os hábitos à mesa indicam consensos alimentares, principalmente capazes de controlar os impulsos inerentes ao ato de comer. Um indivíduo é ou não bem aceito à mesa, segundo seus gestos básicos de postura e respeito do ritual de comer. Ainda se pode dizer que as refeições reforçam o grupo e também é um meio de manifestar a identidade do mesmo. Por isso que em diversas sociedades as celebrações de rituais são acompanhadas por banquetes. Althoff (1998) caracteriza a refeição como um dos principais sinais para selar a paz ou fazer alianças. Casamentos, batizados e a sagração de um cavaleiro, são apenas alguns dos exemplos de relações na Idade Média em o laço social era que era sacramentado através de uma refeição. Este comportamento era caracterizado na época como sendo “adequado” para tais situações.
No entanto, a refeição não significa laço e sacramentação apenas na Idade Média. Na bíblia encontramos várias passagens onde a comida “sela” pactos e comunhão como, por exemplo, a Santa Ceia. Dentro do mundo cristão, não poderia ser diferente. No ocidente onde grande parte professa a religião católica, o alimento bem como o vinho e o pão estão presentes na simbologia da igreja o que torna a refeição um símbolo mais forte ainda de comunhão e sacramento.
Joannés (1998), afirma que banquetes são servidos em festas, contratos e, sobretudo casamentos, quando a troca e a partilha da comida são submetidas à uma codificação exata:
Na Assíria do fim do terceiro milênio, o fato de untar a cabeça de uma moça livre ou organizar um banquete de núpcias bastava para legitimar um casamento. Um documento de contabilidade babilônico do princípio do segundo milênio mostra que, durante um casamento, o pai da noiva encarregava-se de distrair seus convidados e os do noivo, até que este partisse com sua mulher, depois de terem recebidos presentes, dentre os quais produtos alimentares durante a festa. A cerimônia em si comportava, entre outras coisas, uma troca simbólica de iguarias dispostas em uma mesa-bandeja, que eram consumidas, uma após a outra, pelas famílias da noiva e do noivo, criando assim um laço suplementar entre eles. (JOANNÈS, 1998, p.56).
Strong (2004) cita alguns exemplos de banquetes espetaculares que aconteciam nas ruas de Roma II a.C. Para manter a paz entre ricos e as massas populares, realizava-se esses banquetes para aplacar e pacificar a população, assim, o ano romano pontuava-se por festas públicas. Mesmo com tantos banquetes abertos, nada se comparava às grandes comemorações dos Imperadores da época. O nascimento de uma criança, a celebração dos 17 anos de um jovem e, principalmente os casamentos, já eram comemorações onde a refeição fazia parte da trama dentro da vida social. Alguns Imperadores como Cláudio chegaram a convidar 600 pessoas de uma só vez para seu banquete. O autor ainda afirma que foi o século XIX o responsável por mudanças no comportamento da nova sociedade urbana, exigidos pela rápida industrialização. Strong diz que na Inglaterra após a ampliação do direito de voto em 1832 os costumes antigos evoluíram para o que se denomina atualmente de "boas maneiras". Ou seja, saber se portar à mesa e falar a língua das regras de etiqueta era necessário se houvesse um interesse em ascender na sociedade. A partir dessas novas regras, o jantar festivo passa a ser um longo exercício de boas maneiras que deveria seguir os manuais e livros escritos nesta mesma época. A essência do jantar era a conversa, sendo a mesma considerada vital para a etiqueta na época.
Comensalidade e atualidade
Nos dias atuais pode-se perceber que não é diferente. Desde a comemoração de mais um ano de vida, até a união matrimonial exigem de grande parte das comunidades, tribos ou sociedades uma partilha de alimento e seus códigos.
Fernandes (1997) , coloca alguns pontos interessantes sobre a comensalidade sendo muitos deles cabíveis à situações como ritos de passagem e festas tradicionais. O autor afirma que a comensalidade aparece como expressão de poder e que a mesa pode ser considerada um lugar de ritualizações que indica e diferencia os homens uns dos outros. Fernandes também afirma que participar da partilha na mesa significa ser companheiro e que essa transação muitas vezes também pode significar a porta de entrada em algum grupo social. Já tratanto do meio familiar, muitas vezes a comida exerce uma significativa função em festas familiares como, por exemplo, no Natal. Outros casos que incluem os ritos de passagem como o nascimento e o casamento, nestes a comida possui um valor de congregação e convivialidade.
Um dos chefs mais citados dentro da história de festas de casamento é Carême, um cozinheiro que foi o responsável pelo casamento de Napoleão Bonaparte. A preparação do banquete do casamento do Imperador não poderia ser diferente: Luxuoso, farto e com a preocupação de agradar à todos.
Kelly (2005) cita alguns dos quitutes elaborados por Carême nesta ocasião:
Antonin e Riquette prepararam, em primeiro lugar, 24 peças grandes de carne para serem servidas no desjejum do casamento, e também 14 pedestais, cada um deles sustentando seis presuntos, seis galantinas, duas cabeças de porco recheadas e seis lombos de vitela em aspic (gelatina salgada, feita de caldo de peixe ou carne reduzidos). Havia também carne em aspic, miolos de vitela guarnecidos com aspic nas bordas, foi gras, galantinas de frango e toda uma coleção de peixes. O salmãoi foi cercado com molho rosado de manteiga; as enguias, com molho verde-pálido de cebolinha. A gelatina de aspic em pedaços com que Carême gostava de debruar os pratos foi, da mesma forma, delacadamente colorida aos tons neoclássicos favoritos da imperatriz Josefina. (p.83)
Se avaliado outro ponto de vista discutido por Fernandes (1997), o mesmo demonstra uma realidade não tão suave. Se tomarmos as diferenças entre as classes sociais atuais, o autor discorre sobre a comensalidade dentro das classes mais abonadas e das classes mais pobres. Nota-se então a diferença na ritualização da comensalidade que para os mais ricos é repleta de um "refinemento estético" enquanto para as classes mais populares o grande valor na comida é a abundância.
O que se percebe é que o ato de se alimentar em conjunto sofreu uma série de modificações devido a diversos fatores. As principais mudanças introduzidas nas diferentes formas de receber e os significados que o alimento vai adquirindo historicamente têm a ver com transformações mais profundas nas formas de produção social e nas conseqüências sobre a estrutura social e familiar, o que determina que as formas de sociabilidade doméstica se modificam constantemente.
Cascudo (2004) discorre sobre fatores negativos para a “deseducação” do povo frente a refeição, como por exemplo a decadência da refeição realizada em casa. Ou seja, há o abandono de pratos tradicionais da cultura por comidas fáceis encontradas em qualquer estabelecimento. A preocupação com a ingestão calórica também é vista pelo autor como uma vilã ao prazer de se alimentar e de realizar uma refeição acompanhado. Cada vez mais os jovens trocam o “banquete” pela comida rápida. Sobre o mesmo tema, Fernandes (1997) diz que o homem troca a mesa de sua casa por restaurantes onde o número de comensais na mesa é reduzido e não há necessariamente uma integração e sim uma refeição cercada do individualismo que um espaço cheio de desconhecidos muitas vezes impõe.
Carneiro (2003) acrescenta que os hábitos alimentares são objetos de investigação para a sociologia da alimentação. Segundo o autor, a alimentação na atualidade sofreu uma homogeneização pelas grandes cadeias de lanchonetes. Além disso, os restaurantes podem ser analisados como espaços simbólicos, caracterizados como se fosse um “teatro”, onde os comensais são separados por posições sociais e cardápios específicos. Além disso, o autor ainda coloca em questão a "erosão" do conceito de refeição. Para o mesmo, esta erosão ocorreu devido ao fim das refeições realizadas dentro de casa e da industrialização da comida que mudou totalmente o conceito de alimentação. Microondas, lanchonetes e petiscos tomam lugar à mesa.
Para Levenstein (1998) a partir de 1946 e até 1963, a sociedade norte-americana foi marcada pela era da família. Ou seja, milhares de lares foram fundados enquanto a indústria de alimentos se modernizava e oferecia uma comodidade denominada "pronto-para-servir". Aditivos, novas embalagens e eletrodomésticos super eficiêntes vieram para impressionar os outros países com as "realizações" do capitalismo americano. Assim, as considerações gastronômicas como o preço e a saúde se tornaram secundárias em relação ao aspecto prático das coisas. Dessa forma, os sabores alimentares foram deixando de ser um sinal de distinçao social. Tudo se tornava mais acessível na era da "McDonaldização" dos costumes. Coca-cola, microondas, congelados e outros vieram a partir das décadas de 60-70 "ajudar" uma era marcada pela industrialização, pela urbanização, pela elevação do nível de vida e de educação, pela generalização do uso do carro e pela entrada da mulher no mercado de trabalho. Com tantas transformações no cotidiano das famílias, surge também uma tendência a já citada alimentação fora do lar e seus restaurantes self-service.
Conclusões
Apesar de toda essa transformação na atual maneira de se alimentar, pode-se perceber que o hábito de comer em conjunto e o prazer de fazê-lo não desapareceu. Mesmo em restaurantes ou compartilhando uma comida "rápida" há o prazer em dividir o momento com outra pessoa. Para muitos, a comida perde o sabor quando a refeição é feita sozinha. Em festas, banquetes e recepções não é diferente. Percebe-se claramente a necessidade do homem em compartilhar e agregar a experiência de comer em conjunto praticando também um ritual de sociabilidade.
Como citado anteriormente, a alimentação passou e passa por profundas transformações em relação à sua preparação e ao modo com que as pessoas se alimentam. No entanto, isso não significa que a mesma deixou de possuir tal importância e que o movimento fast food trazido principalmente pela influência norte-americana, tenha transformado totalmente o ritual da alimentação. Pode-se citar movimentos contrários como o slow food, nascido na Itália, que lutam contra essa "automatização" do ato de comer. Além deste movimento, a questão da preocupação com a saúde, a entrada de alimentos orgânicos e a supervalorização de chefs e diferentes tipos de cozinhas já demonstram uma proteção da sociedade contra a idéia de que a refeição deva ser feita rapidamente e sem a preocupação com o que se está ingerindo.
No caso de festas e banquetes não é diferente. Pode-se dizer que as facilidades dentro do ramo de alimentação tiraram a preocupação de muitas donas-de-casa, principalmente das que trabalham fora. Mas na hora de agradar, comemorar e celebrar pode-se encontrar a antiga preocupação.
Percebe-se sim a influência dos fast-foods e comidas industrializadas no dia-a-dia, bem como nos eventos. No entanto, essa mudança de estrutura alimentar não veio trazer apenas dissabores para a alimentação e seus costumes. Segundo Levenstein (1998), produtos provenientes de outras regiões hoje são mais fáceis de se encontrar nos mercados. Mesmo a sazonalidade deixa de ser um impecílio para se fazer uma receita específica. Com isso, a gastronomia de diferentes etnias se mundializa, trazendo cardápios miscigenados e influências globais. Alemães passam a consumir vinho, surgem franceses vegetarianos e encontra-se qualquer tipo de alimento em qualquer região do mundo.
A expansão do conhecimento dentro da gastronomia e a facilidade de informação atráves dos transportes, internet e outros, fazem surgir uma nova geração de chefs super especializados e prontos para suprir as necessidades de um novo mercado. Pode - se dizer que a alimentação passou e continua passando por constantes modificações, mas o homem dentro destas constantes mudanças, não deixa de perder o seu lugar à mesa seja este dentro da família, no ambiente de trabalho ou nas festas e recepções.
Referências
ALTHOFF, Gerad. Comer compromete: refeições, banquetes e festas. In História da alimentação. p.300-317. FLANDRIN, Jean Louis (org.) e MONTANARI, Massimo.(org.); tradução de Luciano Vieira Machado, Guilherme J. F. Teixeira - São Paulo: Estação Librdade, 1998
ARAUJO et al. Da alimentação à gastronomia.
CARNEIRO, Henrique. Comida e Sociedade: uma história da alimentação. Rio de Janeiro: Elsevier, 2003.
CASCUDO, Luís da Câmara. História da Alimentação no Brasil. 3a.ed. São Paulo: Global, 2004.
FERNANDES, António Teixeira. Ritualização da Comensalidade. Porto: Universidade do Porto. Faculdade de Letras, 1995. Separata da Revista da Faculdade de Letras. Sociologia, Porto, I Série, vol. 7, 1997.
JOANNÈS, Francis. A Função do banquete na primeira civilizações. In História da alimentação. p.54-67. FLANDRIN, Jean Louis (org.) e MONTANARI, Massimo.(org.); tradução de Luciano Vieira Machado, Guilherme J. F. Teixeira - São Paulo: Estação Librdade, 1998
LEVENSTEIN, Harvey A. Dietética contra gastronomia: Tradições culinárias, santidade e saúde nos modelos de vida americanos. In História da alimentação. p.825-840. FLANDRIN, Jean Louis (org.) e MONTANARI, Massimo.(org.); tradução de Luciano Vieira Machado, Guilherme J. F. Teixeira - São Paulo: Estação Librdade, 1998
STRONG, Roy. Banquete: uma história ilustrada dos costumes e da fartura à mesa. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2004.
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